Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4740/20.0T8BRG.G2
Relator: JOAQUIM BOAVIDA
Descritores: ACIDENTE
VEÍCULO
PRIVAÇÃO DE USO
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/09/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 – Carece de justificação o parqueamento em oficina de um veículo destruído depois de estar assente que não é possível e viável a sua reparação e de o titular do direito não manifestar intenção de o reparar.
2 – A manutenção de veículo parqueado em oficina após estar definida a impossibilidade de reparação do veículo não é uma consequência do sinistro, mas de uma decisão autónoma do seu proprietário, pelo que o custo suportado com o parqueamento, decorrido um prazo razoável para poder ser retirado o veículo da oficina e dar-lhe destino, já não se insere no âmbito de proteção do artigo 563º do Código Civil.
3 – A mera privação do uso de um veículo, decorrente da sua imobilização em consequência de acidente de viação, é insuficiente para gerar a obrigação de indemnizar, devendo ser feita prova da frustração de um propósito real de proceder à sua utilização, embora sem exigir a prova de danos efetivos e concretos.
4 – A privação da possibilidade de uso é condição necessária, mas não suficiente, da existência de um dano, o qual só se concretiza, ou seja, só passa a existir, enquanto causa da obrigação de indemnizar, quando se apuram as privações concretas das vantagens que a coisa proporcionaria e que se frustraram.
5 – Para se concluir pela verificação duma desvantagem patrimonial decorrente da privação do uso do bem, basta que resulte dos autos que o titular do correspondente direito o pretendia utilizar ou que normalmente o usaria, não necessitando de provar direta e concretamente prejuízos efetivos, designadamente um acréscimo de despesa ou a frustração de um rendimento com o qual legitimamente contava.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório

1.1. AA intentou ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra L... Seguros, Compañia de Seguros y Reaseguros, SA – Sucursal em Portugal, pedindo a condenação desta «a pagar ao Autor a quantia de 7.800,00 € (sete mil e oitocentos euros), quantitativo a que acrescerá o dos juros, à taxa legal, que se vencerem desde a citação da Ré até ao integral pagamento ao Autor do que lhe é devido».
Para o efeito, alegou ter sofrido danos patrimoniais e não patrimoniais em consequência do acidente de viação que descreve, consistente num embate entre o veículo de que é proprietário e um outro seguro na Ré, cuja ocorrência imputa à conduta culposa do condutor deste último veículo.
*
A Ré contestou, alegando ser igual a contribuição dos dois condutores para a colisão dos veículos e respetivos danos e impugnou a matéria relativa às consequências do evento e aos montantes indemnizatórios pedidos pelo Autor.
Foi admitida a intervenção acessória provocada de BB, condutor do veículo de matrícula ..-..-LF. Citado, nada disse.
*
1.2. Após várias vicissitudes, foi realizada a audiência final e proferiu-se sentença a julgar a ação parcialmente procedente e a «condenar a Ré L... Seguros, Compañia de Seguros Y Reaseguros, S.A. a pagar ao Autor AA a quantia de € 6.800 (seis mil e oitocentos euros), acrescida de juros de mora à taxa legal, computados desde a data de citação até efectivo e integral pagamento
*
1.3. Inconformada, a Ré interpôs recurso de apelação da sentença, formulando as seguintes conclusões:

«1. A recorrente entende se mostram incorretamente julgados os pontos 12. e 13. dos factos provados.
2. No seu entender, a prova documental junta aos autos, mormente os documentos ...0 e ...1 juntos com a petição inicial e o depoimento das testemunhas CC e DD impunham decisão diversa acerca destes pontos.
3. No entender da recorrente, deverá, por manifesta falta de prova, ser alterado o ponto 12. da Matéria de Facto provada, extirpando o mesmo da menção à (inexistente) responsabilidade da ré no alegado parqueamento, passando o mesmo a ter a seguinte redação: “Desde a data do sinistro e até Outubro de 2020, o veículo de matrícula ..-..-RX esteve aparcado numa oficina, por não poder circular.”.
4. No mesmo sentido, deverá este Alto Tribunal, fazendo uma apreciação crítica e conjugada das provas, alterar a resposta (positiva) ao ponto 13. da Matéria de Facto provada, dando esse facto por não provados.
5. Sem prescindir, quando assim não se entenda, o que apenas por cautela de patrocínio se admite, deverá o ponto 13. da matéria de facto provada ser alterado, passando a ter a seguinte redação: “O custo de tal aparcamento ascendeu a €1540.”.
6. Assim, pelo somatório das razões que ficaram aduzidas, ao abrigo do disposto no artigo 662.º do Código de Processo Civil, requer-se, pois, a V. Exas. que alterem a douta decisão do Tribunal de 1.ª Instância sobre a matéria de facto, nos precisos termos que se deixam sustentados.
7. Procedendo-se à alteração da matéria factual provada, nos moldes que se deixam preconizados, é nossa firma opinião que o pedido referente ao alegado, mas inexistente, custo de parqueamento do veículo do autor na oficina terá de improceder in totum, com redução do montante em que a recorrente foi condenada nessa mesma medida.
8. Mesmo que venha a entender-se que a matéria de facto apurada na douta decisão ora em crise deve manter-se, o que não se aceita, mas que somente se admite por mera cautela de patrocínio, ainda assim é a douta sentença em crise merecedora de diversos e profundos reparos.
9. Conforme se verifica da sentença recorrida, na mesma foi arbitrada uma indemnização de 3250 euros relativa ao (pretenso) custo de parqueamento da viatura acidentada.
10. Conforme resulta do documento n.º ...0 que o próprio recorrido junta com a douta petição inicial, não impugnado pela recorrente, a peritagem ao veículo acidentado teve lugar na oficina Auto Reparadora B..., do Sr. CC, tendo-se concluído pela situação de perda total do veículo, o que foi comunicado ao recorrido em 6 de dezembro de 2019, apenas 20 dias após o acidente.
11. Resulta, por outro lado, da douta petição inicial, concretamente dos artigos 15.º a 18.º, que o recorrido aceitou a situação de perda total do veículo acidentado, motivo pelo qual não pretendia a sua reparação, apenas não tendo aceite a proporção de 50% de responsabilidade que lhe foi atribuída.
12. Ainda por outro lado, e retomando o supra transcrito depoimento da testemunha CC, apenas tenciona cobrar parqueamento ao recorrido, alegadamente, com respeito ao período posterior a 30 de abril de 2020.
13. Ora, pelo exposto, é evidente que nada é devido ao recorrido a título de parqueamento da viatura na oficina em causa.
14. Com efeito, entre a data do acidente (16 de novembro de 2019) e a data da comunicação da situação perda total da viatura ao recorrente (6 de dezembro de 2019) decorreram, apenas, 20 dias, período em que não era cobrado qualquer montante de parqueamento, pois os procedimentos gerais da oficina determinam aguardar por 30 ou mais dias, e, no caso concreto, aguardou-se até 30 de abril de 2020.
15. Perante a inviabilização da reparação, a comunicação de tal inviabilidade ao recorrido pela recorrente, e a sua aceitação de tal inviabilidade, perde toda a razoabilidade/proporcionalidade a permanência da viatura em oficina, por tão longo tempo, com pretensos custos de parqueamento.
16. Estes, pois, não podem ser imputados à Recorrente e objeto de indemnização, por haver culpa do lesado na ocorrência deste dano (ou este agravamento do dano originário), em termos tais que deve excluir a indemnização.
17. Conforme se verifica da sentença recorrida, na mesma foi arbitrada uma indemnização de 1.000,00 euros relativa ao (pretenso) prejuízo emergente da privação do uso do veículo acidentado nos presentes autos.
18. Constitui entendimento pacífico na jurisprudência que a privação do uso de um veículo traduz-se num dano suscetível de ser indemnizado:
a) A título de danos patrimoniais, caso se prove a ocorrência de uma repercussão negativa no património do lesado, ou
b) A título de danos não patrimoniais, caso se prove que a tal privação se repercutiu negativamente e de forma relevante na vida do dia-a-dia do lesado.
19. Ora, lendo a douta sentença, dela se extrai que não foi dado como provado qualquer facto apto a sustentar a existência de um prejuízo efetivo e objetivamente contabilizável do recorrido.
20. Com efeito, a única matéria neste particular alegada foi dada como não provada, como consta dos pontos a) e b) da matéria de facto não provada.
21. O recorrido não deixou de fazer qualquer deslocação, não teve de suportar o custo de aluguer de qualquer veículo de substituição, não teve quaisquer contratempos ou transtornos, não teve qualquer prejuízo, seja material, seja moral e não se mostra com direito ao recebimento de qualquer indemnização a este título.
22. Mostram-se violadas, por errada interpretação e aplicação, entre outras, as disposições dos artigos 342.º, n.ºs 1 e 2 e 496, n.º 1 e 562.º e 563.º do Código Civil.
NESTES TERMOS, concedendo provimento ao presente recurso, revogando a douta sentença recorrida em conformidade com o exposto, absolvendo a recorrente do pedido no que respeita a pretensos, mas inexistentes, danos de parqueamento e privação do uso, V. Exas. farão, como sempre, INTEIRA E SÃ JUSTIÇA!».
*
O Recorrido apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido.
O recurso foi admitido.
*
1.4. Questões a decidir

Nas conclusões do recurso, as quais delimitam o seu objeto (artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, 636º e 639º, nº 1, do CPC), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, a Recorrente suscita as seguintes questões:

i) Erro no julgamento da matéria de facto, quanto aos pontos nºs 12 e 13 dos factos provados;
ii) Quanto à matéria de direito, em consonância com a modificação da matéria de facto preconizada pela Recorrente, constituem questões a decidir:
a) Se inexiste fundamento para indemnizar o Autor pelo parqueamento do seu veículo em oficina;
b) Se não é devida qualquer indemnização a título de privação do uso do veículo.
***

II – Fundamentos

2.1. Fundamentação de facto
2.1.1. Na decisão recorrida julgaram-se provados os seguintes factos:

«1 - No dia 16 de Novembro de 2019, pelas 00H20M, ocorreu um sinistro na Estrada Nacional ...05, km 33, na freguesia ..., no qual intervieram o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-LF, pertencente a BB e por este então conduzido, e o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-XR, pertencente ao Autor e então conduzido pelo seu filho DD.
2 – Nas circunstâncias referidas em 1), o veículo de matrícula ..-..-XR circulava, numa noite de bom tempo e piso seco, pela Estrada Nacional ...05 no sentido ... -Barcelos.
3 – Ao km 33, o veículo de matrícula ..-..-XR estava a chegar ao fim de uma reta e preparava-se para fazer uma curva à esquerda quando o veículo de matrícula ..-..-LF, que vinha em sentido contrário, surge descontrolado.
4 – Depois de desfazer a curva, o condutor do veículo de matrícula ..-..-LF não o conseguiu controlar, invadindo a faixa de rodagem por onde seguia o veículo de matrícula ..-..-XR e embatendo neste, na sua parte frontal e lateral esquerda.
5 – O condutor do veículo de matrícula ..-..-XR foi surpreendido pela manobra do veículo de matrícula ..-..-LF e não teve tempo de reagir para evitar o embate.
6 – Na decorrência do sinistro, o veículo de matrícula ..-..-LF foi apreendido pelas autoridades pois não reunia as condições para circular.
7 – O Autor apresentou a participação amigável do acidente à sua seguradora e reclamou à congénere para quem o ..-..-LF transferiu a sua responsabilidade civil.
8 – A sua companhia de seguros, L., declinou qualquer responsabilidade, atribuindo a total responsabilidade ao veículo de matrícula ..-..-LF.
9 – A aqui Ré assumiu 50% da responsabilidade pela reparação dos danos do sinistro, com a justificação de que “as provas indicam que ambos os condutores são responsáveis pelo acidente”.
10 – Como consequência directa e necessária do sinistro o veículo de matrícula ..-..-XR sofreu estragos muito graves que levaram à sua perda total.
11 – A Ré avaliou o veículo do Autor, à data do sinistro, em € 2.750 e propôs € 200 pelos salvados.
12 – Desde a data do sinistro e até Outubro de 2020, o veículo de matrícula ..-..-RX esteve aparcado numa oficina, em consequência quer da posição da Ré quer por não poder circular.
13 – O custo de tal aparcamento ascendeu a € 3250.
14 – O Autor ficou privado da utilização do veículo desde a data do sinistro.
15 – A Ré, por contrato de seguro titulado pela apólice nº ...00, em vigor à data do sinistro, assumiu a responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros pelo veículo automóvel de matrícula ..-..-LF.
16 – Nas circunstâncias mencionadas em 1), BB conduzia o veículo de matrícula ..-..-LF com uma taxa de álcool no sangue de 1,65 g/l.»
*
2.1.2. Factos não provados

O Tribunal a quo julgou não provados os seguintes factos:

«a) Era o filho do Autor que utilizava diariamente o ..-..-XR para se deslocar para a Universidade ... que frequenta.
b) Neste período, teve o filho do Autor, para se deslocar, de recorrer a carros de praça, transportes públicos e favores de terceiros.
c) O condutor do veículo de matrícula ..-..-RX exercia, à altura do sinistro, a condução desse veículo por conta, no interesse e sob a ordem e direcção efetiva do aqui Autor.»
**
2.2. Do objeto do recurso
2.2.1. Impugnação da decisão da matéria de facto – conclusões 1ª a 6ª

2.2.1.1. A Recorrente impugna a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal de 1ª instância no que respeita aos pontos nºs 12 e 13 dos factos assentes (conclusão 1ª), pretendendo que seja alterada a redação do ponto 12 e julgado não provado o facto constante do ponto 13.

Tendo por base os fundamentos invocados relativamente a cada um desses pontos de facto, procedemos à análise de todos os documentos juntos aos autos e à audição integral da gravação da audiência final, na qual depuseram as seguintes testemunhas:
- DD (filho do Autor);
- EE (conhecida do Autor);
- CC (proprietário da oficina para onde foi rebocado o veículo do Autor depois do acidente);
- FF (militar da GNR que esteve no local do acidente e elaborou a respetiva participação, junta com a p.i. como documento nº ...).
Foi ainda prestado depoimento de parte pelo interveniente acessório BB (o condutor do outro veículo interveniente no acidente).
*

2.2.1.2. Ponto 12 dos factos provados

Este ponto de facto tem o seguinte teor:
«12 – Desde a data do sinistro e até Outubro de 2020, o veículo de matrícula ..-..-RX esteve aparcado numa oficina, em consequência quer da posição da Ré quer por não poder circular.»
 
A Recorrente pretende que seja alterada a redação deste ponto de facto, «extirpando o mesmo da menção à (inexistente) responsabilidade da ré no alegado parqueamento, passando o mesmo a ter a seguinte redação: “Desde a data do sinistro e até Outubro de 2020, o veículo de matrícula ..-..-RX esteve aparcado numa oficina, por não poder circular.”».
Funda a sua impugnação nos documentos nºs ...0 e ...1 juntos com a petição inicial e nos depoimentos das testemunhas CC e DD.

O documento nº ...0 é uma carta datada de 06.12.2019, enviada pela Ré ao Autor, na qual comunica que assume «50% da responsabilidade pela reparação dos danos que resultaram do acidente» e que, após ter sido realizada peritagem na oficina CC, concluiu-se que «o custo da reparação é de 5.909,93 €, valor superior ao valor de substituição do seu veículo – 2.750,00 €, pelo que não nos será possível repará-lo», que o salvado foi avaliado em € 200,00 e que por isso «vamos pagar-lhe 1.175,00€ (50% valor de substituição do seu veículo menos o valor do salvado)», indicando empresa interessada em ficar com o salvado pelo apontado valor.
O documento nº ...1 é uma declaração emitida em 30.04.2020 pela testemunha CC, na qual expressa que «o proprietário da viatura com matrícula ..-..-XR, AA, devido a questões financeiras não pode realizar o arranjo do ... as circunstâncias a viatura encontra-se aparcada nas instalações Auto Reparadora B..., Rua ...-Silva, ... ... custo de aparcamento diário de 10 euros por metro quadrado».
Do depoimento da testemunha DD resulta apenas que o veículo, depois do acidente, «foi rebocado e foi para uma garagem e ficou à espera do que era para fazer» (04:17), que «chegou a carta a dizer que era 50/50» (04:49), que o seu pai não aceitou tal distribuição da responsabilidade e que o veículo ficou aparcado numa oficina cujo nome não recordava e que esteve lá «bastante tempo» (06:48).
Na parte relevante para a reapreciação do julgamento sobre esta questão factual, a testemunha CC disse que o veículo do Autor veio de «reboque e foi colocado lá», na sua oficina (01:45), que a ideia do Autor era «arranjar o carro» (02:01), «só que estava muito danificado» (02:06), «o carro ficou lá, não houve solução do carro» (02:33). Segundo afirmou, o carro esteve na sua oficina «desde que entrou» até «outubro de 2020» (03:40), altura em que «foi para abate» (05:01), que não sendo reparado o carro tem que ser retirado «em prazos de um mês ou seja o que for» (03:15), que leva pelo aparcamento «10 euros o dia» (03:30) e que o Autor «está à espera que acabe o processo, para receber dinheiro para me pagar» (04:00), mas que «ele tem de pagar de qualquer maneira» (05:51). É ainda relevante o segmento em que a testemunha afirma que fez a peritagem e que «chegamos à conclusão que aquilo não era viável; não era viável reparar aquele carro» (04:45).
Da conjugação destes elementos probatórios, resulta inequívoco que o veículo foi rebocado do local onde ocorreu o acidente para a oficina da testemunha CC, onde esteve até “outubro de 2020”, altura em que foi retirado para ser abatido. Não se sabe a data concreta em que foi retirado, pelo que tanto pode ter sido no primeiro dia como no último dia do mês de outubro de 2020.
É também patente que o veículo, devido aos graves danos que sofreu, ficou impossibilitado de circular em consequência do acidente. Todos os quatro elementos probatórios que se referiram são coincidentes sobre tal matéria. Portanto, o veículo ficou parqueado na oficina por não poder circular.
Que o aparcamento até outubro de 2020 seja consequência «da posição da Ré» é que não nos parece que possa ser dado como provado.
Primeiro, tal referência não explicita no que consiste a “posição da Ré”, pelo que redunda numa apreciação valorativa e conclusiva de algo que não se concretiza.
Segundo, resultando tanto do depoimento da testemunha CC como do documento nº ...0 que “não era viável” a reparação do veículo, atenta a diferença entre o seu valor à data do acidente e o custo que importava a sua reparação, e tendo a Ré comunicado esse facto ao Autor por carta de 06.12.2019, em inteira consonância com a realidade, não é a posição da Ré que determina a permanência do veículo numa oficina de reparação de automóveis. Não há relação de causa e efeito.
Justifica-se que um veículo suscetível de reparação permaneça numa oficina a aguardar essa reparação, a qual pode demorar mais ou menos tempo a iniciar-se em função da posição assumida pelo responsável pelos danos. Naturalmente que enquanto se aguarda a definição é curial que a viatura permaneça na oficina, com os inerentes custos relativos ao depósito da mesma. Se não é possível ou viável a reparação de um veículo, não se justifica mantê-lo na oficina a aguardar por uma reparação que nunca se fará. É que, em bom rigor, as oficinas existem para prestar os serviços que aí habitualmente são prestados, principalmente para efetuar reparações, não para parquear viaturas que não podem ser reparadas.
Terceiro, como o veículo, em razão da sua “perda total”, não era suscetível de reparação – no que tanto Autor como Ré concordam – e o seu destino natural era o “abate”, também não é o facto de a Ré só ter assumido a responsabilidade pela indemnização de metade dos danos que determina a permanência do veículo na oficina até outubro de 2020.

Pelo exposto, na procedência da impugnação, decide-se alterar a redação do ponto nº 12 dos factos provados, que passará a ter o seguinte teor:

«12. Desde a data do sinistro e até outubro de 2020, o veículo de matrícula ..-..-RX esteve aparcado numa oficina por não poder circular.»
*
2.2.1.3. Ponto 13 dos factos provados

O Tribunal recorrido julgou provado que:
«13 – O custo de tal aparcamento ascendeu a € 3250.»
A Recorrente pretende que este facto seja julgado não provado ou, quando assim não se entenda, que passe a ter a seguinte «redação: “O custo de tal aparcamento ascendeu a €1540.”».

Invoca a Recorrente os mesmos meios probatórios que já descrevemos em 2.2.1.2., argumentando que o dono da oficina (CC) «não confirmou, antes negou, a cobrança de qualquer quantia a título de parqueamento desde a data do acidente, aludindo sim à eventual cobrança de um montante diário a este título desde a data do envio da referida carta, de 30 abril de 2020, não tendo especificado qualquer montante global em dívida». Conclui que não se compreende «que o tribunal a quo tenha dado como provado que o parqueamento do veículo do recorrido na oficina para onde foi transportado tenha tido qualquer custo, e muito menos no montante de 3250 €. É que, contabilizado o montante de 10 € diário, desde 30 de abril de 2020 até 01 outubro de 2020, o valor global seria de 1.540 €».

Ao contrário do defendido pela Recorrente, não consta do documento nº ...1 da petição inicial – cujo teor se transcreveu em 2.2.1.2. – que o dono da oficina só cobraria parqueamento a partir de 30.04.2020. Essa data corresponde à da emissão da declaração e não constitui referência para o termo inicial da cobrança de aparcamento ao valor diário de 10 euros.
Por outro lado, o dono da oficina foi ouvido como testemunha e a interpretação que fazemos do seu depoimento coincide com a da Sra. Juiz, segundo a qual «fixou àquele [ao Autor], pelo aparcamento, o custo diário de € 10». Resulta do depoimento da testemunha CC que é essa a quantia que habitualmente cobra quando o veículo não é reparado na oficina e que no caso o veículo esteve lá desde o dia do acidente até outubro de 2020. Portanto, se bem o interpretamos, embora nada tenha sido pago até agora, pretende cobrar o valor correspondente a todo o período do parqueamento.
Como o acidente ocorreu no dia 16 de novembro de 2019, pelas 00H20M, e parqueamento cessou em outubro de 2020, sem que indique a data concreta, não se podendo especular mais do que o admissível, está em causa o período entre 16.11.2019 e 01.10.2020, correspondente a 320 dias. Por isso, sendo o montante diário de € 10,00, o valor total é de € 3.200,00 e não de € 3.250,00.

Em conformidade com o exposto, na parcial procedência da impugnação, modifica-se o ponto nº 13 dos factos provados, passando a ter o seguinte teor:
«13 – O custo de tal aparcamento ascendeu a € 3.200,00 (três mil e duzentos euros).»
**

2.2.2. Reapreciação de Direito

Na parte em que o recurso versa sobre a matéria de direito, como se pode ver nas conclusões 7ª a 21ª das suas alegações, a Recorrente alega um erro de interpretação e aplicação das normas que constituem fundamento jurídico da condenação no pagamento de indemnizações pelo parqueamento do veículo e pela privação do respetivo uso.
Por isso, são essas as duas questões que a seguir se abordarão.

2.2.2.1. Do parqueamento do veículo – conclusões 7ª a 16ª

O Autor pediu nesta ação que a Ré fosse também condenada a pagar-lhe o «valor total de 3.250,00 € (10,00 € por dia)» que «teve de suportar [com] o aparcamento do veículo sinistrado, em consequência, quer da posição da Ré, quer por não poder circular em consequência direta do acidente».
Na sentença, julgou-se procedente esta vertente da pretensão, com a condenação da Ré no pagamento da quantia de € 3.250,00, argumentando que, «[c]onsiderando que estamos perante um dano patrimonial decorrente do sinistro, tem o Autor direito a ser do mesmo ressarcido».

Ressalvada a devida consideração, inexiste fundamento para a Ré ser condenada na totalidade daquela quantia.
A situação dos autos é relativamente simples no que respeita ao quadro factual de que depende a apreciação da questão.
Em consequência do sinistro, ocorrido a 16.11.2019, o veículo ficou destruído (em estado de perda total), pelo que não podia ser reparado na oficina para o qual foi transportado e onde permaneceu até outubro de 2020. Resulta do alegado nos artigos 14º a 18º da petição inicial que o Autor aceitou que os «estragos muito graves» sofridos pelo seu veículo (14º) levaram «à sua perda total» (15º), em consonância com o que foi julgado provado no ponto de facto nº 10, que o veículo valia € 2.750,00 e que os salvados foram avaliados em € 200,00 (16º).
Sabe-se que a Ré, por missiva de 06.12.2019, «assumiu 50% da responsabilidade pela reparação dos danos resultantes do acidente» e propôs-se pagar € 1.175,00 e ainda € 200,00 pelos salvados.
Portanto, o litígio que permanecia respeitava apenas à diferença entre o valor proposto pela seguradora e o montante que valia o veículo, que era de «2.750,00 €, subtraído o valor dos salvados» (18º), por o Autor pretender ficar com o veículo sinistrado.
Inexistia, como atualmente inexiste, qualquer dissídio sobre a questão da perda total, do valor do veículo ou do valor dos salvados e o Autor em momento algum afirmou, na petição ou em documento junto aos autos, pretender a reconstituição natural do veículo danificado, ou seja, reparar o veículo sinistrado.
Daí que seja de questionar se a permanência do veículo na oficina constitui uma consequência do sinistro ou a simples decorrência de uma decisão autónoma do Autor.
Isto porque o veículo não continuou na oficina para aí ser reparado, mas apenas parqueado, como se de uma garagem se tratasse.
E a questão é esta: num quadro como o apontado, justifica-se o parqueamento em oficina de um veículo destruído depois de estar assente que não é possível e viável a sua reparação e de o seu dono não manifestar intenção de o reparar?
No nosso entender, a resposta é inequivocamente negativa.
Por um lado, em conformidade com o disposto nos artigos 137º e 102º, nºs 1 e 2, do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (RGCS), aprovado pelo DL nº 72/2008, de 16 de abril, na sequência da participação do sinistro, a seguradora obriga-se a satisfazer as indemnizações devidas a terceiros, após a confirmação da ocorrência do sinistro e das suas causas, circunstâncias e consequências, sendo que no caso era necessária a quantificação das consequências do sinistro. Efetuada a peritagem, a seguradora devia comunicar a sua decisão no prazo máximo de 30 dias, propondo uma forma de regularização dos danos resultantes do sinistro.
No caso dos autos, depois de efetuada a peritagem, a Ré apresentou uma proposta de regularização do sinistro que só não mereceu a concordância do Autor quanto à medida da responsabilidade pela reparação dos danos resultantes do acidente, nos exatos termos que atrás se expuseram. A proposta foi formulada por carta datada de 06.12.2019 (uma sexta-feira), que terá, segundo pressupomos, chegado ao conhecimento do Autor numa data posterior à da emissão. Foi fixado um prazo de 15 dias durante o qual era válida a proposta de aquisição dos salvados pelo valor de € 200,00, que é um valor que se reconhece na petição inicial como adequado.
Estando perante um incontestado caso de perda total do veículo, afigura-se que a situação relativa aos salvados poderia ter ficado resolvida dentro dos 60 dias após o sinistro, prazo esse que era suficiente para o Autor aceitar ou não a proposta no que respeita aos salvados e, na negativa, dar-lhe outro destino (procurando obter uma proposta de valor mais elevado ou diligenciando pelo respetivo abate), procedendo à sua retirada da oficina, uma vez que o veículo não ia ser reparado.
Por outro lado, decorrido o apontado prazo razoável para a resolução da questão, não se verifica o nexo de causalidade entre o evento lesivo e o facto parqueamento. Nos termos do artigo 563º do CCiv, que acolhe o princípio da causalidade adequada, a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão. A obrigação de indemnizar implica que entre o acto lesivo e o prejuízo exista uma relação causal, o mesmo é dizer que o primeiro possa ser considerado a causa jurídica do segundo[1].
A manutenção do parqueamento em oficina após estar definida a impossibilidade de reparação do veículo já não é uma consequência do sinistro, mas de uma decisão autónoma do Autor. Daí que o custo suportado com o parqueamento, decorrido um prazo razoável para poder ser retirado o veículo da oficina e dar-lhe destino, já não se insere no âmbito de proteção do artigo 563º do CCiv.
O sinistro não foi condição necessária do prejuízo extravagante, isto é, o relativo a um parqueamento que se manteve para além do prazo razoável de 60 dias. O sinistro não tem aptidão para provocar o parqueamento indefinido de um veículo sinistrado insuscetível de reparação e relativamente ao qual foi formulada uma concreta proposta de aquisição dos seus salvados pelo montante que os mesmos efetivamente valiam.
Repara-se que a prova da relação causal cabe ao lesado, ou seja, aquele que invoca o direito de indemnização de que ela é facto constitutivo – artigo 342º, nº 1, do CCiv.
No caso dos autos, essa relação causal, ou seja, a razão pela qual se manteve o veículo sinistrado numa oficina depois de decorrido o apontado prazo razoável para a resolução do assunto, não está demonstrada e não tem qualquer respaldo no quadro factual julgado provado.
Por isso, a Ré responde apenas pelos primeiros quarenta e cinco dias em que o parqueamento numa oficina se mostra justificado e decorrente do sinistro e da necessidade de regularização do mesmo.
Pelo exposto, na parcial procedência da apelação, a indemnização a arbitrar a este título importa em € 600,00.
*
2.2.2.2. Da indemnização pela privação do uso do veículo – conclusões 17ª a 21ª

Na sentença, com base num juízo de equidade, decidiu-se «fixar em € 1000 (mil euros) o valor da indemnização devido pela privação do uso».
Alega a Recorrente que, no concerne à privação do uso do veículo, «não foi dado como provado qualquer facto apto a sustentar a existência de um prejuízo efetivo e objetivamente contabilizável do recorrido» (conclusão 19ª), uma vez que «a única matéria neste particular alegada foi dada como não provada, como consta dos pontos a) e b) da matéria de facto não provada» (conclusão 20ª).
Conclui que o «recorrido não deixou de fazer qualquer deslocação, não teve de suportar o custo de aluguer de qualquer veículo de substituição, não teve quaisquer contratempos ou transtornos, não teve qualquer prejuízo, seja material, seja moral e não se mostra com direito ao recebimento de qualquer indemnização a este título» (conclusão 21ª).

Analisada a sentença, parece-nos que a mesma, sem que exista base factual suficiente, se limita a presumir a existência de um dano resultante da privação do uso, independentemente de qualquer demonstração sobre o uso habitualmente dado ao veículo. Na tese acolhida na sentença, usasse ou não o Autor o seu veículo, por ter sido privado da possibilidade de o usar, sempre ocorreria um dano efetivo. Isso está bem patente na parte em que se afirma que «[q]uem dispõe de um bem, ao ver-se privado do mesmo, sofre desde logo o prejuízo correspondente ao valor da disponibilidade anterior, não podendo ser reconstituída a situação anterior ao dano sem que ele seja compensado por tal privação». Por conseguinte, o elemento essencial é a “privação do bem”, a impossibilidade de dispor do bem, e a ideia é “compensar por tal privação”, pelo que assenta num raciocínio semelhante àquele que é feito a propósito do dano não patrimonial. Basta haver uma indisponibilidade do bem decorrente da sua danificação, uma privação da possibilidade abstrata de uso, para dever ser fixada uma indemnização, a qual é automática e sempre segundo juízos de equidade.
Na apreciação da questão, importa começar por fazer notar que o dano não patrimonial e o dano decorrente da privação do uso têm natureza distinta e as respetivas indemnizações são insuscetíveis de sobreposição. São indemnizações conceptualmente distintas e com diferentes finalidades ressarcitórias.
A nossa lei civil consagrou duas categorias normativas de danos, com um específico regime ressarcitório: os patrimoniais e os não patrimoniais. Qualquer dano só pode ser ressarcido, com as regras e critérios que lhe são próprios, no âmbito de cada uma dessas categorias.
Desde logo, os interesses cuja lesão desencadeia um dano não patrimonial são infungíveis e, por isso, não podem ser reintegrados mesmo por equivalente. São insuscetíveis de avaliação em dinheiro devido a não atingirem bens integrantes do património do lesado, mas sim bens como a vida, a saúde, a integridade física, a integridade psíquica, a liberdade, a beleza, a honra, entre outros, da afectação dos quais resulta sofrimento físico e psíquico, desgosto, angústia. Por isso, o seu ressarcimento assume uma função essencialmente compensatória: visam compensar o dano mediante satisfações derivadas da utilização do dinheiro, isto é, trata-se de proporcionar ao lesado uma compensação monetária que, de algum modo, alivie os sofrimentos que o facto lesivo lhe provocou, ou lhos faça esquecer.
A indemnização por privação do uso, em especial de um veículo danificado em acidente de viação por que outrem é responsável, visa ressarcir um dano que afeta um interesse pecuniariamente avaliável, que tem expressão patrimonial. Está em causa a reconstituição da situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação. Como não é possível a reconstituição natural, a respetiva indemnização é fixada em dinheiro.
O que é objeto de controvérsia, no que respeita à indemnização por privação do uso, não é a sua eventual confusão com os danos não patrimoniais, mas sim a forma como se procede ao cálculo da sua indemnização. Tem, sobretudo, a ver com a prova do dano e o frequente recurso à equidade para determinar o valor da indemnização, com fundamento no disposto no nº 3 do artigo 566º do Código Civil.
Nas últimas três décadas a questão da indemnização pela privação do uso de um veículo, decorrente da sua imobilização em consequência de acidente de viação, tem sido objeto de acesa discussão na doutrina e na jurisprudência, com múltiplas teses e correntes, tributária da progressiva autonomização de tal dano[2].

Na jurisprudência, algumas das anteriores (sub)correntes acabaram por ser abandonadas ou ultrapassadas, cingindo-se atualmente a três principais, sendo que a terceira que aqui se aponta só esparsamente se vê defendida:

a) A privação do uso de um veículo gera obrigação autónoma de indemnizar, independentemente da prova de uma utilização quotidiana do veículo, ainda que com recurso à equidade e ponderação das precisas circunstâncias que rodeiam cada situação[3];
b) A mera privação do uso do veículo é insuficiente para gerar a obrigação de indemnizar, devendo ser feita prova da frustração de um propósito real, concreto e efetivo, de proceder à sua utilização, embora sem exigir a prova de danos efetivos e concretos[4];
c) Para que a privação seja ressarcível terá de fazer-se prova do dano concreto e efetivo, isto é, da existência de prejuízos decorrentes diretamente da não utilização do bem[5].

Em resumo, para a primeira corrente basta a demonstração da privação do uso, para a segunda, além dessa privação, tem de demonstrar-se um propósito real de o lesado proceder à utilização do bem, enquanto a terceira não dispensa a prova de concretos prejuízos de ordem patrimonial.
Embora na sua formulação teórica sejam bem distintas entre si, na aplicação prática as duas primeiras acabam por se confundir na generalidade das situações, pois, sempre que existe uma utilização quotidiana tendem ambas a considerar que existe dano, sendo a quantificação da respetiva indemnização feita com base em critérios norteados pela equidade.
Pela nossa parte, a apreciação da ressarcibilidade nunca pode ser dissociada da análise das circunstâncias que rodeiam a privação do uso, sendo de afastar teses que defendam a fixação da indemnização de modo automático e de forma abstrata, sem qualquer ligação à situação concreta. Basta pensar na situação de alguém que deixa o veículo estacionado na rua e segue para o estrangeiro para passar férias e durante a sua ausência o veículo é danificado e reparado. Como é evidente, tal pessoa não sofreu um dano por privação do uso, pois, não tinha intenção nem possibilidade de utilizar o veículo naquele período. Vários outros exemplos se poderiam apontar de situações em que o titular do bem, apesar da danificação deste, não sofre qualquer dano autónomo de privação do uso. No fundo, não há dano autónomo suscetível de indemnização quando o titular no período de indisponibilidade do bem não se propunha aproveitar das suas vantagens ou utilidades.

No caso dos autos, o Autor pediu que a Ré fosse condenada a pagar-lhe quantia não inferior a € 2.000,00 pelo «prejuízo não patrimonial» decorrente da privação do uso do veículo. É isso que consta do artigo 24º da petição inicial: «Sofreu, o Demandante, devido à atuação da Ré, um prejuízo não patrimonial, que não poderá, parcimoniosamente, ser compensados com verba inferior a 2.000,00 €».

E nos artigos 21º a 23º da petição inicial aduziu, para fundamentar tal conclusão, o seguinte quadro factual:
«21. O Autor ficou privado da utilização do veículo durante várias messes na espectativa de, com o dinheiro que iria receber, adquirir outro.
22. Na verdade, era o seu filho que utilizava diariamente o ..-..-XR para se deslocar para a Universidade ... que frequenta,
23. Assim, neste período, teve o Autor, através do seu filho, para se deslocar, de recorrer a carros de praça, transportes públicos e ainda ao favor de terceiros.»
Enfatiza-se que o Autor pediu a aludida indemnização a título de compensação de um dano não patrimonial.
O Tribunal recorrido considerou que «a mera privação do uso traduz-se num dano autónomo de natureza patrimonial que, se não quantificado, pode e deve ao menos ser ressarcido em termos de equidade», e arbitrou, a esse título, a quantia de mil euros.
Sendo manifesto que o Autor ficou privado da possibilidade de uso do seu veículo, verifica-se que não logrou sequer demonstrar qualquer facto relativo à utilização que era habitualmente dada ao veículo e muito menos as consequências que a privação do uso do veículo originou. Com efeito, julgou-se não provado que: «a) Era o filho do Autor que utilizava diariamente o ..-..-XR para se deslocar para a Universidade ... que frequenta; b) Neste período, teve o filho do Autor, para se deslocar, de recorrer a carros de praça, transportes públicos e favores de terceiros». E o Tribunal a quo explicou porquê: «Relativamente aos factos enunciados nas alíneas a) e b), nenhuma das testemunhas indicadas pelo Autor fez referência aos mesmos, sendo certo que não existem nos autos outros meios de prova que os sustentem».
O único facto que deu como provado foi o relativo à privação do uso (v. ponto nº 14) e apenas com base numa presunção judicial: «O Tribunal concluiu que o Autor ficou privado da utilização do veículo desde a data do sinistro através de uma presunção judicial – sabendo nós que o veículo, com o sinistro, ficou destruído (em estado de perda total), não tendo sido reparado, concluímos o acima enunciado».
Por conseguinte, não se apurou a concreta vantagem patrimonial que a coisa proporcionaria. O Autor não necessitava de provar direta e concretamente prejuízos efetivos, designadamente um acréscimo de despesa ou a frustração de um rendimento com o qual legitimamente contava. Isto porque, para se concluir sobre a ocorrência duma desvantagem patrimonial decorrente da privação do uso do bem, basta que resulte dos autos que o titular do correspondente direito o pretendia utilizar ou que normalmente o usaria. Mas para isso é necessário que exista um mínimo de substrato factual para permitir tal conclusão. Se existir essa base factual, a questão seguinte é já a da quantificação da indemnização, o que pode perfeitamente alicerçar-se num juízo de equidade. Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03.05.2011[6], «a avaliação do dano em causa, se outro critério não puder ser adoptado, será determinada pela equidade, dentro dos limites do que for provado, nos termos estabelecidos no artigo 566º, nº 3, do CC».
Ora, não basta o tolher da mera faculdade abstrata de utilização, pois, para existir dano ressarcível, tem de se verificar uma concreta e real desvantagem resultante da privação do gozo do bem. Portanto, a privação da possibilidade de uso é condição necessária, mas não suficiente, da existência de um dano, o qual só se concretiza, ou seja, só passa a existir, enquanto causa da obrigação de indemnizar, quando se apuram as privações concretas das vantagens que a coisa proporcionaria e que se frustraram.
Como bem se sintetiza no acórdão da Relação do Porto de 08.10.2018[7], uma coisa é a privação do uso e outra, que conceptualmente não coincide necessariamente com aquela, será a privação da possibilidade de uso. Uma pessoa só se encontra realmente privada do uso de alguma coisa, sofrendo com isso prejuízo digno de ser ressarcido, se realmente a pretendesse utilizar caso não ocorresse a impossibilidade de dela dispor. Não pretendendo fazê-lo, apesar de também o não poder fazer, está-se perante a mera privação da possibilidade de uso, sem repercussão económica, que, só por si, não revela um dano patrimonial indemnizável.
Por conseguinte, a privação da possibilidade de uso é apenas uma fonte possível de dano, mas não é já em si um dano[8]. A privação da possibilidade de uso só constitui dano ressarcível mediante a referenciação às concretas e efetivas utilidades atingidas e cuja fruição se frustrou, pois, só assim se concretizará tal dano em termos de suscetibilidade da medição através da teoria da diferença[9].
Não se pode perder de vista que, em consonância com as regras ou princípios que se retiram do disposto nos artigos 483º, nº 1, 562º, 563º e 564º do Código Civil, constitui dano indemnizável toda a perda, prejuízo ou desvantagem resultante da ofensa de bens ou interesses alheios protegidos pela ordem jurídica. Sem dano, em qualquer uma das suas vertentes, não há responsabilidade civil. E não existem danos abstratos ressarcíveis: todos os danos são concretos; o dano não é um evento abstrato sem exteriorização prática. O dano patrimonial consubstancia sempre um resultado negativo na esfera jurídica do lesado em consequência do evento lesivo: se não fosse a lesão o lesado estaria numa situação melhor, ou porque os seus bens ou direitos não teriam sofrido um prejuízo ou porque não obteve os benefícios com que legitimamente podia contar. Se o evento lesivo gera no património do lesado uma desvantagem suscetível de avaliação pecuniária, então há dano patrimonial juridicamente relevante.
No caso vertente é patente que o Autor não demonstrou ter sofrido um dano patrimonial decorrente da privação do uso do seu veículo. Não está provado um resultado negativo na sua esfera jurídica em consequência do evento lesivo: que, se não fosse a lesão, estaria numa situação melhor no que concerne à vertente aqui em causa. Só se o evento lesivo gera no património do lesado uma desvantagem suscetível de avaliação pecuniária é que há dano patrimonial juridicamente relevante.
Também inexistia qualquer fundamento para fixar uma indemnização por danos não patrimoniais decorrentes da privação do uso do veículo. Isto por não estar provada a lesão de qualquer interesse de natureza infungível, insuscetível de avaliação em dinheiro, como tal coberto pelo disposto no nº 1 do artigo 496º do CCiv.
Termos em que procede a apelação nesta parte.
**

III – DECISÃO

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência, revogando-se parcialmente a sentença, condena-se a Ré a pagar ao Autor a quantia global de € 3.150,00 (três mil cento e cinquenta euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal, vencidos deste a data da citação e vincendos até integral pagamento.
Custas da apelação na proporção do decaimento.
*
*
Guimarães, 09.03.2023
(Acórdão assinado digitalmente)

Joaquim Boavida
Paulo Reis
Maria Luísa Duarte Ramos


[1] Ana Prata, Código Civil Anotado, vol. I, 2017, Almedina, pág. 630.
[2] A autonomização do dano não tem aqui o sentido de criação de um tertium genus, relativamente aos danos emergentes e aos lucros cessantes, que têm expressão legal no artigo 564º, nº 1, do Código Civil. Face ao nosso direito positivo tal tertium genus não existe. Um dano patrimonial só é suscetível de ser enquadrado nos danos emergentes ou nos lucros cessantes. A autonomização da questão do dano de privação do uso emerge fundamentalmente da dificuldade de avaliação de tal dano patrimonial, para a qual o sistema jurídico contém solução. É um problema conceptual que conduz à criação de teorias e correntes artificiais.
[3] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.07.2018 (Abrantes Geraldes), no processo 176/13.7T2AVR.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt, tal como todos os outros citados, sem indicação da fonte, no presente acórdão. No mesmo sentido, os acórdãos do STJ de 07.02.2008 (Sousa Leite), na revista 4505/07 da 6ª Secção (que pode também ser consultado na Colectânea de Jurisprudência do Supremo, Tomo I, pág. 90), e de 08.05.2013 (Maria dos Prazeres Beleza), no processo 3036/04.9TBVLG.P1.S1.
[4] Acórdão do de 03.05.2011 (Nuno Cameira), no processo 2618/08.06TBOVR.P1. V. ainda os acórdãos do STJ de 09.12.2008 (Moreira Alves) e de 09.07.2015 (Fernanda Isabel Pereira).
[5] Esta é a posição que era considerada tradicional, mas que agora está em franco declínio.
[6]  Proferido no processo nº 2618/08.06TBOVR.P1 – relator Nuno Cameira, já atrás citado.
[7] Relator Jorge Seabra, processo 4031/15.8T8MTS.P1.
[8] Mota Pinto, Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, vol. I, Almedina, 2008, págs. 594-596 e 591.
[9] Acórdão do STJ de 03.10.2013.