Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4017/18.0T8GMR.G1
Relator: CONCEIÇÃO SAMPAIO
Descritores: DEVER GERAL DE INFORMAÇÃO
TOMADOR OU SEGURADO
CIRCUNSTÂNCIAS RELEVANTES
APRECIAÇÃO DO RISCO
OMISSÕES OU INEXATIDÕES DOLOSAS
INEXATIDÕES NEGLIGENTES
INCUMPRIMENTO DOLOSO
DOLO-VICIO
ERRO SIMPLES
ANULAÇÃO DO CONTRATO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/04/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - O artigo 24.º, n.º 1, da LCS, estatui um dever geral de informação pelo tomador ou segurado quanto a circunstâncias relevantes para a apreciação do risco.
II - Os artigos 25.º e 26.º da LCS distinguem as omissões ou inexatidões dolosas das omissões ou inexatidões negligentes.
III - No campo do incumprimento doloso, há que distinguir o dolo enquanto modalidade de culpa e o dolo enquanto vício da vontade: o dolo-culpa constitui um elemento subjetivo de uma ação ou omissão, que corresponde ao juízo feito pelo agente em determinada atuação, encontrando-se patente no n.º 1 do artigo 483.º do Código Civil; o dolo-vicio corresponde ao «dolus malus» definido no n.º 1 do artigo 253.º do Código Civil, como «qualquer sugestão ou artifício que alguém empregue com a intenção ou consciência de induzir ou manter em erro o autor da declaração, bem como a dissimulação, pelo declaratário ou terceiro, do erro do declarante».
IV - O dolo-vicio contrapõe-se ao erro simples, ou seja, aos casos em que a declaração negocial se formou «com algum desvio em relação ao que se queria dizer por ter assentado em pressupostos ou informações insuficientes ou incorretas, mas sem que tenha havido intenção do declarante de provocar tal situação», nos termos dos artigos 247.º, 251.º e 252.º do Código Civil.
V - O artigo 25.º da LCS regula um caso de «dolo-vício», o que tem como consequência a necessidade da verificação da dupla causalidade exigida nos artigos 253.º e 254.º do Código Civil: o dolo tem de ser causa do erro do segurador e o erro tem de ser essencial, sendo a causa da anulabilidade.
VI - Donde, para anular o contrato, o segurador terá de demonstrar que o dolo o conduziu ao erro e que, se conhecesse o erro, não teria celebrado o contrato.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I – RELATÓRIO

A. G. instaurou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra X Seguros, S.A., pedindo que, por força do contrato de seguro do ramo vida celebrado entre o falecido marido da Autora e a Ré, que tinha como beneficiária a interveniente BANCO ... – Instituição Financeira de Crédito, S.A., se decida, em virtude do falecimento da pessoa segura nos seguintes termos: declarar-se de nenhum efeito a comunicação de anulabilidade do contrato de seguro efetuada pela Ré; declarar-se válido e eficaz tal contrato de seguro à data de 03/12/2013, assim se condenando a Ré ao respetivo reconhecimento, bem como ao cumprimento de todas as obrigações daí decorrentes; declarar-se nula qualquer (quaisquer) cláusula(s) geral(ais) ou particular(es) do referido contrato de seguro ou declaração de saúde, eventualmente subscrita(s) pelo dito marido da A., se interpretada(s) no sentido de que era exigido a este, no momento da celebração do contrato de seguro, o fornecimento de qualquer outro elemento informativo ou documental, para além dos que forneceu, para fazer operar de forma válida, eficaz e bastante as obrigações, e respetivo cumprimento, reclamados da R.; declarar-se verificado, na pessoa do marido da Autora, desde 03/12/2013, a situação de óbito prevista no clausulado daquele seguro, condenando-se a Ré no respetivo reconhecimento; condenar-se a Ré a substituir-se ao marido da Autora e a esta na obrigação de pagamento de todas as importâncias líquidas e liquidáveis ao abrigo das obrigações para estes decorrentes do empréstimo identificado na petição inicial, de 03/12/2013 em diante, acrescidas dos juros de mora à taxa legal; condenar-se a Ré a pagar à Autora, reembolsando-a, as quantias monetárias que esta, entretanto e posteriormente a 03/12/2013, entregou à identificada entidade mutuante por conta do empréstimo bancário em referência, a título de prestações mensais de capital e juros, portes e de prémios de seguro, num total que, à data da entrada em julgado da ação, perfazia o montante de € 10.850,00 (dez mil oitocentos e cinquenta euros); condenar-se a Ré a pagar à Autora, reembolsando-a, as quantias monetárias que esta, desde o dia 02/07/2018 até à prolação de sentença definitiva, entregará ao identificado banco por conta do empréstimo em referência, a título de prestações mensais de capital e juros, a liquidar em incidente próprio; condenar-se a Ré a pagar à referida BANCO ... - Instituição Financeira de Crédito, S.A., o montante total remanescente do que, aquando da prolação de sentença, ainda estiver por restituir à mesma entidade mutuante, referente ao mencionado empréstimo, cujas prestações se venceriam daí em diante, com os juros convencionais e todos os demais acréscimos contratuais previstos, designadamente, para a amortização antecipada, a liquidar em incidente próprio.
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A Ré contestou, alegando, em síntese, que o marido da Autora omitiu doenças pré-existentes aquando da celebração do dito contrato de seguro, designadamente, a existência de síndrome hiperosmolar hiperglicémico, de pneumonia adquirida na comunidade e de leucemia mieloide aguda recidivante. Assim sendo, conclui a Ré pela invalidade de tal contrato de seguro e, consequentemente, no sentido da improcedência da ação.
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A Ré deduziu incidente de intervenção principal da sociedade comercial BANCO ... - Instituição Financeira de Crédito, S.A., o qual foi admitido, tendo a interveniente contestado, alegando que informou a Autora e o seu marido do teor dos contratos em discussão nos autos. Mais alegou a interveniente que, caso se verifique que o marido prestou informações falsas ou omitiu informações referentes ao seu estado de saúde, nos termos invocados pela Ré, será a Autora a ter de assacar com as responsabilidades emergentes do contrato de mútuo celebrado. Concluiu a interveniente, face ao por si alegado, no sentido da improcedência da ação.
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Foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente, por provada, e, consequentemente, concluindo no sentido da validade e eficácia do contrato de seguro, por não ocorrerem as invalidades invocadas, e considerando o óbito da pessoa segura, condenou a Ré no pagamento de todas as importâncias líquidas e liquidáveis ao abrigo das obrigações decorrentes dos contratos, desde a data do sinistro (03/12/2013) em diante, pelo que deverá a Ré:
- pagar à Autora todas as quantias monetárias que esta, desde aquela data (03/12/2013) até à data da entrada em julgado desta acção, entregou à identificada entidade mutuante por conta dos contratos em referência, a título de prestações mensais de capital e juros, portes, e de prémios de seguro, no montante global de € 10.850,00 (dez mil oitocentos e cinquenta euros), tudo acrescido de juros moratórios, à taxa legal, contados desde as datas dos pagamentos de cada prestação e prémio de seguro;
- pagar à Autora todas as quantias monetárias que esta, desde a data da entrada em julgado da ação e até ao trânsito em julgado desta sentença, entregou e, eventualmente, entregará à identificada entidade mutuante por conta do empréstimo bancário em referência, a título de prestações mensais de capital e juros, acrescido de juros moratórios, à taxa legal, contados desde as datas dos pagamentos de cada prestação, tudo a liquidar em incidente próprio, previsto nos artigos 358º e segs. do CPC;
- pagar à interveniente BANCO ... - Instituição Financeira de Crédito, S.A., o montante total remanescente do que, à data do trânsito em julgado desta sentença, ainda estiver por liquidar no que respeita ao capital em dívida do aludido contrato de mútuo.
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Inconformada com a sentença, a Ré X Seguros, S.A., interpôs recurso, finalizando com as seguintes conclusões:

1 – O presente recurso vem interposto da sentença que julgou a ação intentada por A. G. contra a X Seguros, S.A parcialmente procedente, por provada e, em consequência, concluiu no sentido da validade e eficácia do contrato de seguro de grupo por entender não ocorrerem as invalidades que foram invocadas nesta ação.
2 – A Recorrente entende que não se decidiu acertadamente, por um lado, porque fez-se uma interpretação parcialmente errada dos factos e, por outro lado, porque também se fez uma interpretação parcialmente errada e insuficiente da prova que foi produzida.
3 – No dia 05 de Maio de 2012, no “stand” de vendas de veículos automóveis “Auto ...”, em Braga, o M. S., na qualidade de “cliente”, a A. G., na de “avalista” e a BANCO ... Instituição Financeira de Crédito, S.A., na de “credor”, subscreveram um documento particular intitulado de “contrato de mútuo” com o n.º ......26.
4 – Para garantia do cumprimento das obrigações pecuniárias emergentes do citado acordo, o M. S., através da proposta com o n.º ……05, aderiu ao “seguro de grupo”, do ramo vida celebrado entre a X e a BANCO ... Instituição Financeira de Crédito, S.A., associado ao contrato de mútuo.
5 – Quando aderiu ao “seguro de grupo” do ramo vida, o M. S. declarou que não se encontrava incapacitado total ou parcialmente para o trabalho por motivo de doença ou acidente; que não estava nem esteve sob tratamento por qualquer doença nos últimos 12 meses, que nunca esteve incapacitado por um período superior a 30 dias (consecutivos ou não), nem esteve hospitalizado por mais de 10 dias consecutivos; que não se encontrava em reabilitação em consequência de um acidente, nem estava hospitalizado nem era titular de uma pensão de invalidez.
6 – O M. S. leu a proposta de adesão ao seguro de grupo e assinando-a, ainda que por intermédio da Recorrida a seu rogo, admitiu não se verificar nenhuma das exclusões das coberturas acordadas, nomeadamente a ocorrência de “situações preexistentes à data de subscrição do contrato”.
7 – No entanto, à data da subscrição dos contratos (05 de Maio de 2012), o M. S. sofria de várias patologias e de uma incapacidade substancial fruto de um acidente vascular cerebral por si sofrido vários anos antes.
8 – Nessa data o M. S. não conseguia locomover-se sem o auxílio de cadeira de rodas e não era capaz de assinar o seu nome, sendo esta a razão pela qual os contratos foram assinados pela Recorrida a rogo do M. S..
9 – A incapacidade física que afetava o M. S. à data da celebração dos aludidos contratos era manifesta, sendo facilmente apreensível por qualquer pessoa que lidasse com ele.
10 – Em virtude dessa incapacidade, o M. S. obteve benefícios fiscais (isenção de imposto automóvel e de IVA) na aquisição da referida viatura.
11 – O seguro de grupo apresenta uma particular estruturação: num primeiro momento (fase estática), o contrato é celebrado entre a seguradora e o tomador do seguro, que estabelecem entre si as condições de inclusão no grupo e as condições de seguro para os aderentes; num segundo momento (fase dinâmica), o tomador de seguro promove a adesão ao contrato junto dos membros do grupo.
12 – No dia 05 de Maio de 2012, no “stand” “Auto ...”, estiveram presentes o M. S., a Recorrida, o F. L. que intermediou o negócio e o J. S. que era o vendedor da Auto ....
13 – A Recorrente não esteve presente no dia em que foram subscritos o contrato de mútuo e a adesão ao seguro de grupo.
14 – A X nunca contactou com a Recorrida nem com o falecido M. S..
15 – Nunca foi comunicado à Recorrente quaisquer circunstâncias clínicas referentes ao estado de saúde do M. S., pelo que
16 – A Recorrente não tinha, nem nunca teve, conhecimento da incapacidade nem de outras situações pré-existentes de que poderia padecer o M. S. à data em que este aderiu ao seguro de grupo.
17 – Se a Recorrente tivesse conhecimento prévio dessas situações pré-existentes, nomeadamente do acidente vascular cerebral sofrido pelo M. S. em 1997 e da incapacidade de que este padecia, não teria celebrado o contrato de seguro com o M. S..
18 – Conforme foi referido pela testemunha Dr. Basílio de Castro, médico que presta serviços para a Recorrente, “Faz parte das guidelines não aceitar um AVC num individuo com esta idade. Portanto um AVC para quem tinha na altura cinquenta e picos anos é um AVC muito precoce, portanto o risco é muito acrescido e portanto não era aceite”.
19 – Quando questionado se “A X simplesmente recusaria a celebração do contrato de seguro?”, esta testemunha respondeu que “Este é o parecer médico de acordo com as guidelines. AVC de pessoa jovem pressupõe logo um risco acrescido e agravado sugerindo a não aceitação da apólice”.
20 – Antes da proposta de adesão ter sido assinada pela Recorrida a rogo do M. S. perante uma notária, a mesma foi lida ao M. S., que a compreendeu, tendo este declarado que aquela era conforme à sua vontade.
21 – Com a declaração que prestou, o M. S. afirmou, de forma clara e inequívoca, que não padecia de qualquer doença que estivesse previamente diagnosticada e/ou em tratamento e que não tinha conhecimento de quaisquer circunstâncias que pudessem ser significativas para a Recorrente considerar antes de decidir contratar ou definir o conteúdo do contrato.
22 – Atendendo às patologias e incapacidade substancial de que padecia, o M. S. não declarou com exatidão (como tinha de fazer) todas as circunstâncias que conhecia e razoavelmente devesse ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador, pelo que omitiu e ocultou voluntariamente as informações da sua saúde.
23 – A Recorrente foi induzida em erro pelas declarações inexatas do falecido M. S., visto que as doenças que este padecia à data da celebração dos contratos dos autos assumem particular importância no risco inerente a um contrato de seguro com as coberturas de “morte e invalidez total e permanente”.
24 – A Recorrente aceitou a adesão do M. S. ao aludido “seguro de grupo” por estar convencida da não existência de situações pré-existentes à data da subscrição do contrato.
25 – Se a Recorrente tivesse conhecimento de doenças pré-existentes à data da subscrição do contrato, nunca teria permitido a adesão do M. S. ao seguro de grupo.
26 – O n.º 1 do artigo 24º da LCS enuncia o princípio de que “o tomador do seguro ou o segurado está obrigado, antes da celebração do contrato, a declarar com exatidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador”.
27 – Assim, é exigido ao tomador ou ao segurado que revelem as circunstâncias relativas à saúde do segurado que conhecem no momento da declaração e que, para um segurador medianamente cuidadoso na avaliação dos riscos que assume, sejam objetivamente de considerar relevantes para a decisão de contratar, ou para a definição concreta do conteúdo dos contratos.
28 – Em - de Dezembro de 2013, o referido M. S. faleceu,
29 – Por carta datada de 11 de abril de 2017, a Recorrente comunicou à aqui interveniente, enquanto tomadora (beneficiária) do seguro, além do mais, o seguinte:
“Após análise da documentação apresentada, que foram omitidos factos importantes ao assinar a declaração de saúde constante do contrato acima identificado, subscritos em 10/04/2012, nomeadamente no que respeita à situação clínica existente à data da aceitação do contrato de seguro, o que veio a influir na apreciação do risco e consequente aceitação do mesmo. De referir que a situação clínica e o estado de saúde que existiam já antes da celebração do contrato de seguro não eram, nem poderiam ser, desconhecidos, bem como, decerto, não era desconhecida, nem poderia ser, a sua relevância para celebração do referido contrato. Face ao exposto, lamentamos mas não poderemos responder pela situação apresentada. Assim, nos termos dos artigos nºs. 24º e 25º do Decreto-Lei nº. 72/2008, de 16 de Abril, agradecemos que considerem o contrato de seguro anulado desde a presente data”.
30 – Por carta datada de 09 de Maio de 2017, a aqui interveniente comunicou à Recorrida que a Recorrente não poderia assumir a responsabilidade pelo sinistro e que o seguro havia sido “cancelado” a partir de 11 de Abril de 2017.
31 – A presente ação foi instaurada em 02 de Julho de 2018.
32 – Após a Recorrente ter sido citada, apresentou contestação onde alegou (sic) que “O M. S. (pessoa segura) omitiu e ocultou voluntariamente as informações da sua saúde (concretamente, os citados diagnósticos de doença anteriores à data da subscrição da proposta do contrato de seguro), com o objetivo de conseguir que a sua adesão ao contrato de seguro de grupo de vida fosse aceite pela seguradora (aqui Ré), nas condições em que foi efetivamente aceite”.
33 – Pelo que, salvo melhor opinião, as situações clínicas pré-existentes à data da adesão ao seguro de grupo foram, efetivamente, invocadas pela X, quer na fase pré-judicial, através das cartas remetidas à Recorrida e à Interveniente, quer na fase judicial, através do artigo 14º da sua contestação.
34 – Para além de ter contestado, a Recorrente também chamou aos presentes autos, nos termos do disposto no artigo 311º e seguintes do CPC, a beneficiária e tomadora do seguro Banco ... – Instituição Financeira de Crédito, S.A., aqui interveniente.
35 – A interveniente apresentou contestação onde alega que a Recorrida, através da declaração do Dr. F. V. que juntou como documento n.º 6 do petitório, produziu prova quanto a situações clínicas pré-existentes ficando, por isso, com o ónus de demonstrar que não houve, aquando da contratação, omissão de informações quanto ao real estado de saúde do M. S..
36 – Tendo a interveniente referido também que “A verificar-se a pré-existência de condições clínicas (que estão já documentadas nos autos) então será a Autora que terá de assacar com as responsabilidades do contrato (caso essa responsabilidade não seja assumida pela seguradora por força de alguma vicissitude do contrato de seguro)”.
37 – Desta forma, a Interveniente Banco ... – Instituição Financeira de Crédito, S.A. alegou circunstâncias relevantes referentes ao estado de saúde do M. S. que são anteriores à celebração dos contratos.
38 – E que motivariam, caso se considerasse provado a pré-existência dessas condições clínicas, a imputação das responsabilidades do contrato à aqui Recorrida.
39 – Pelo que teria o Tribunal a quo de se pronunciar sobre a omissão destas informações aquando da subscrição dos contratos dos autos.
40 – Não o tendo feito, a douta sentença recorrida enferma da nulidade preceituada na al. d) do artigo 615º, n.º 1 do CPC.
41 – No tocante à prova testemunhal, a Recorrente discorda da valoração que o Tribunal a quo fez dos depoimentos das testemunhas M. B. e M. C..
42 – Como se sabe, o Tribunal aprecia livremente as provas, decidindo segundo a sua prudente convicção (artigo 607º, n.º 5 do CPC).
43 – Neste caso concreto, o argumento – constante na douta sentença recorrida – que levou o Tribunal a quo a desconsiderar o depoimento da testemunha M. B. enferma de erro e, por isso, é infundado.
44 – A aqui Recorrente não esteve presente no “stand” “Auto ...”, nem perante a notária, quando foram os contratos lidos e assinados.
45 – O M. S. comunicou à mediadora a incapacidade que, à data, o afetava por força do acidente vascular cerebral que o vitimou.
46 – Conforme consta nos factos provados da sentença recorrida, “No âmbito do aludido seguro de grupo, a aqui interveniente consta, igualmente, como mediadora”.
47 – Nunca foi comunicado à Recorrente quaisquer circunstâncias clínicas referentes ao estado de saúde do M. S., nomeadamente a incapacidade de que este padecia à data.
48 – Pelo que, o Tribunal deveria ter ponderado, para a formação da sua convicção, o depoimento da testemunha M. B. quando esta declarou que o M. S. não comunicou à Recorrente qualquer patologia de que padecia.
49 – De igual forma, dado que esta (fulcral) informação não chegou ao conhecimento da Recorrente de outra forma, deveria o Tribunal a quo, salvo melhor opinião, ter-se pronunciado sobre o depoimento da testemunha M. C. quando esta declarou que a seguradora, se tivesse conhecimento das doenças pré-existentes, não aceitaria celebrar um seguro com alguém que tivesse sofrido um AVC em idade tão jovem pois tal traria um risco acrescido e agravado.
50 – Face ao exposto, deverão ser aditados aos factos provados da douta sentença recorrida, os factos 22 e 28 a 38 acima referidos, para os quais aqui integralmente se remete.
51 – E deverão ser aditados aos factos não provados da sentença recorrida, os factos a) a f) acima referidos, para os quais ora também integralmente se remete.
52 – Como resulta dos autos, o M. S. estava incapacitado de conduzir e a aquisição do Volvo V50 a Diesel foi concretizada em seu nome, no sentido de obter benefícios fiscais em virtude do estado de incapacidade em que se encontrava.
53 – A adesão do M. S. ao seguro de grupo foi uma das (várias) exigências da entidade financiadora, aqui interveniente, para que o crédito para aquisição do veículo automóvel fosse aprovado.
54 – Na ânsia de beneficiar do crédito para poder adquirir o Volvo V50 Diesel, o M. S. terá omitido as “situações pré-existentes” para evitar que o crédito não fosse aprovado.
55 – Razão pela qual, em 11 de Abril de 2017, após concluir que foram omitidos factos importantes no que respeita à situação clínica existente à data da aceitação do contrato de seguro, a Recorrente comunicou ao tomador do seguro que o contrato de seguro estava anulado nos termos do disposto nos artigos 24º e 25º da LCS.
56 – Sintetizando: a decisão proferida na douta sentença recorrida deve ser revogada e substituída por outra que absolva a Recorrente do pedido contra si formulado.
57 – A douta sentença recorrida violou o disposto no artigo 615º, n.º 1, al. d) do CPC.
Pugna a Recorrente pela integral procedência do recurso com a consequente revogação da sentença recorrida.
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Foram apresentadas contra-alegações defendendo a Recorrida a improcedência do recurso e a manutenção do decidido.
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Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

São as seguintes as questões jurídicas a apreciar:
- A nulidade da sentença;
- A impugnação da matéria de facto;
- Invalidade do contrato de seguro: omissão/falsidade de declarações.
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III- FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Os factos
3.1.1. Factos Provados

Foram dados como assentes na primeira instância os seguintes factos:
1. Em - de Agosto de 1980, a A. contraiu casamento católico com M. S.
2. nascido a -/08/1954.
3. O dito M. S. decidiu comprar um veículo automóvel, com recurso a financiamento bancário para pagamento parcial do seu preço.
4. Assim e com tal objectivo, no dia 05 de Maio de 2012, no “stand” de vendas de veículos automóveis “Auto ...”, em Braga, subscreveram o dito M. S., na qualidade de “cliente”, e a A. na de “avalista”, documento particular intitulado de “contrato de mútuo”, cujo teor, constante de fls. 234 a 236, aqui se dá por reproduzido, em que interveio e figura como “credor” a interveniente Banco ... Instituição Financeira de Crédito, S.A.
5. A A. assinou o aludido documento em nome próprio, na qualidade de avalista,
6. e também a rogo do seu marido, o aludido M. S.,
7. por este não poder assinar.
8. O citado empréstimo destinava-se a financiar o M. S. na aquisição a pronto pagamento de um veículo automóvel da marca Volvo, modelo V50, a diesel,
9. pelo preço de € 21.200,00.
10. No âmbito do dito acordo, o M. S. obrigou-se a efectuar uma entrada inicial de € 6.700,00,
11. tendo-se a interveniente obrigado a emprestar àquele o montante de € 14.500,00,
12. o qual deveria ser pago pelo M. S. em 120 prestações mensais e sucessivas de € 183,10, cada uma,
13. ocorrendo o vencimento da primeira prestação em 05 de Junho de 2012 e o vencimento das prestações seguintes no mesmo dia dos meses subsequentes.
14. Mais se obrigou o M. S. a entregar livrança em branco, com a assinatura no local próprio destinado à avalista, para poder ser preenchida, apresentada a pagamento e cobrada nas situações contratualmente previstas.
15. No âmbito do aludido acordo, o M. S. obrigou-se também à constituição de hipoteca voluntária a favor da aqui interveniente, sobre o mencionado veículo automóvel, para garantia do montante total imputado ao mesmo,
16. montante esse que ascendia a € 22.417,00.
17. A interveniente entregou o aludido montante de € 14.500,00
18. e o M. S. entregou a referida entrada inicial,
19. tendo, pois, sido liquidado o preço total do dito veículo automóvel.
20. O M. S., nos termos acordado com a interveniente, constituiu a favor desta hipoteca sobre o referido veículo.
21. A A. assinou, no local próprio destinado ao “avalista”, livrança em branco que entregou à interveniente, para ser preenchida, apresentada a pagamento e cobrada em caso de incumprimento do mencionado contrato de mútuo.
22. Para garantia do cumprimento das obrigações pecuniárias emergentes do citado acordo, o M. S. celebrou com a aqui R. um acordo denominado “seguro de grupo”, do ramo vida, associado ao dito mútuo, ao qual foi atribuído o número de contrato ......26 e o número de apólice ../800.388, cujo teor, constante de fls. 12 a 13, aqui se dá por reproduzido,
23. com data de início em 10 de Abril de 2012
24. e duração de 120 meses.
25. O M. S. é, no âmbito do aludido “seguro de grupo”, a pessoa segura,
26. sendo a interveniente a tomadora e beneficiária.
27. No âmbito do aludido “seguro de grupo” a aqui interveniente consta, igualmente, como mediadora.
28. No referido “seguro de grupo” foi, além do mais, contratada a cobertura de morte ou invalidez total e permanente, sendo que, pela mesma, a aqui R. se obrigou a garantir o pagamento do capital em dívida ao tomador do seguro relativo a cada pessoa segura, se a mesma, em consequência de doença ou acidente, viesse a falecer.
29. No âmbito do aludido “seguro de grupo”, consta a seguinte “declaração de adesão”: “A(s) Pessoa(s) Segura(s) declara(m) aderir ao Seguro de Vida X, acessório ao Contrato de Financiamento celebrado entre o Aderente e a (*)2, que tem(têm) mais de 18 anos e menos de 65; não se encontra(m) incapacitada(s) total ou parcialmente para o trabalho por motivo de doença ou acidente; não está(ão) nem esteve(estiveram) sob tratamento por qualquer doença nos últimos 12 meses, nunca esteve(estiveram) incapacitada(s) por um período superior a 30 dias (consecutivos ou não), nem esteve(estiveram) hospitalizada(s) por mais de 10 dias consecutivos; não se encontra(m) em reabilitação em consequência de um acidente, nem está(ão) hospitalizada(s), nem é(são) titular(es) de uma pensão de invalidez.”.
30. No âmbito do aludido “seguro de grupo” consta, como causa de exclusão das coberturas acordadas, a ocorrência de “situações pré-existentes à data de subscrição do contrato”.
31. No âmbito do referido “seguro de grupo” constam as seguintes “declarações e autorizações finais”: “Declaro(amos) que recebi(emos) um exemplar das Condições Gerais e Especiais da modalidade subscrita e delas tive(emos) conhecimento antes da celebração do contrato. Mais declaro(amos) ter recebido, em documento escrito, toda a informação pré-contratual legalmente prevista e necessária ao seu total esclarecimento acerca do contrato de seguro.”.
32. Em - de Dezembro de 2013, o referido M. S. faleceu,
33. tendo a causa da morte sido uma patologia infecciosa, designadamente, pneumonia adquirida na comunidade, no contexto de síndrome hiperglicémico hiperosmolar em doente com leucemia mieloide aguda recidivante.
34. Em face do dito óbito, a A. solicitou junto da R. o accionamento da supra referida apólice de seguro, no sentido de que esta pagasse à interveniente o que então restava por liquidar no âmbito do aludido empréstimo.
35. Porém, a R. negou-se a efectuar o pagamento solicitado pela A.
36. Em 31 de Dezembro de 2014, a R. remeteu à A. uma carta, cujo teor, constante de fls. 16, aqui se dá por reproduzido, no âmbito do qual a R., além do mais, solicita à A. esclarecimentos face a dúvidas surgidas acerca da data em que foi conhecida do M. S. a leucemia mieloide aguda de que o mesmo veio a padecer.
37. Por carta datada de 11 de abril de 2017, cujo teor, constante de fls. 16, verso, aqui se dá por reproduzido, a aqui R. comunicou à A., além do mais, o seguinte: “Após análise da documentação apresentada, que foram omitidos factos importantes ao assinar a declaração de saúde constante do contrato acima identificado, subscritos em 10/04/2012, nomeadamente no que respeita à situação clínica existente à data da aceitação do contrato de seguro, o que veio a influir na apreciação do risco e consequente aceitação do mesmo. (…) Face ao exposto, lamentamos mas não poderemos responder pela situação apresentada. Assim, nos termos dos artigos nºs. 24º e 25º do Decreto-Lei nº. 72/2008, de 16 de Abril, agradecemos que considerem o contrato de seguro anulado desde a presente data.”.
38. Por carta datada de 09 de Maio de 2017, cujo teor, constante de fls. 17 e 17, verso, aqui se dá por reproduzido, a aqui interveniente comunicou à A. que a R. não poderia assumir a responsabilidade pelo sinistro e que o seguro havia sido “cancelado” a partir de 11 de Abril de 2017.
39. As cláusulas do aludido “seguro de grupo” foram elaboradas pela R. sem prévia negociação com o dito M. S.,
40. o qual se limitou a subscrever tal contrato sem poder influenciar o teor das mesmas.
41. Até à data em que esta ação foi intentada, todas as prestações do aludido empréstimo foram pagas,
42. sendo que, desde o falecimento do M. S., tem sido a A. a efetuar tais pagamentos.
43. Nunca o M. S. procedeu a amortizações antecipadas do referido empréstimo.
44. Desde 03/12/2013 até 02/07/2018, a A. pagou à interveniente o montante global de € 10.450,00, referente a prestações de reembolso do empréstimo e demais quantias aludidas no dito “contrato de mútuo”.
45. De 03/12/2013 até Dezembro de 2017, pagou a A., a título de prémios de seguro respeitantes ao aludido “seguro de grupo”, o montante global de € 400,00.
46. À data em que foi celebrado o aludido “seguro de grupo”, foram lidas ao M. S. e à A. as condições gerais e especiais da modalidade de seguro subscrita,
47. tendo-lhes sido entregues exemplares de tais condições
48. e, em documento escrito, foi-lhes entregue toda a informação contratual legalmente prevista e necessária com vista ao seu esclarecimento acerca desse “seguro de grupo”.
49. A R. aceitou a adesão do M. S. ao aludido “seguro de grupo” por estar convencida da não existência dos diagnósticos de doença aludidos em 33.
50. Se a R. tivesse conhecimento dos diagnósticos de doença aludidos em 33. à data da celebração do aludido contrato de seguro, nunca teria celebrado esse contrato nos termos e nas condições que celebrou, sendo que poderia celebrar o dito contrato de seguro em moldes diferentes, nomeadamente, com agravamento dos prémios e inclusão de cláusulas de exclusão adicionais.
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3.1.2. Factos Não Provados

a. O M. S., antes da data da adesão ao “seguro de grupo” acima aludido, já sabia que padecia de síndrome hiperosmolar hiperglicémico, de pneumonia adquirida na comunidade e de leucemia mielóide aguda recidivante.
b. Apesar do M. S. já ter conhecimento daqueles diagnósticos de doença, nada disse sobre esses mesmos diagnósticos na proposta (formulário) do “seguro de grupo”,
c. tendo-os omitido e ocultado voluntariamente com o objetivo de conseguir que a sua adesão àquele “seguro de grupo” fosse aceite pela R. nas condições em que foi efetivamente aceite.
d. Nunca a A. deu resposta às questões colocadas pela R. relativamente à saúde do M. S.
e. e relativamente ao historial clínico deste, designadamente, no que respeita a internamentos no Hospital … do Porto e no Hospital de …, anteriores à subscrição do aludido “seguro de grupo”.
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3.2. O Direito

3.2.1. Da nulidade da sentença

A Recorrente invoca a nulidade da sentença por o tribunal a quo não se ter pronunciado sobre a omissão das informações clinicas aquando da subscrição dos contratos dos autos.
Prescreve o artigo 615°, nº1, al. d) do CPC, que «é nula a sentença quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento».
O vício em causa prende-se com os limites da atividade de conhecimento do tribunal, estabelecidos quer no artigo 608º, nº2 do CPC: «O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras».
Se o juiz deixa de conhecer questão submetida pelas partes à sua apreciação e que não se mostra prejudicada pela solução dada a outras, peca por omissão; ao invés, se conhece de questão que nenhuma das partes submeteu à sua apreciação nem constitui questão que deva conhecer ex officio, o vício reconduz-se ao excesso de pronúncia.
Todavia, importa definir o exato alcance do termo «questões» por constituir, in se, o punctum saliens da nulidade.
É pacífico o entendimento de que a nulidade consistente na omissão de pronúncia só se verifica quando o Tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões ou pretensões que devesse apreciar e cuja apreciação lhe foi colocada.
A expressão «questões» prende-se com as pretensões que os litigantes submetem à apreciação do Tribunal e as respetivas causas de pedir e não se confunde com as razões (de facto ou de direito), os argumentos, os fundamentos, os motivos, os juízos de valor ou os pressupostos em que as partes fundam a sua posição na controvérsia.
Recorrendo aos ensinamentos de Alberto dos Reis, “resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação não significa considerar todos os argumentos que, segundo as várias vias, à partida plausíveis, de solução do pleito (art.º 511º nº 1), as partes tenham deduzido ou o próprio juiz possa inicialmente ter admitido: por um lado, através da prova, foi feita a triagem entre as soluções que deixaram de poder ser consideradas e aquelas a que a discussão jurídica ficou reduzida; por outro lado, o juiz não está sujeito às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas (art.º 664º) e, uma vez motivadamente tomada determinada orientação, as restantes que as partes hajam defendido, nomeadamente nas suas alegações de direito, não têm de ser separadamente analisadas” (1)

Na sentença recorrida fez-se constar na respetiva motivação que: “Relativamente à questão da eventual invalidade do contrato de seguro por o segurado ter, alegadamente, fornecido informações falsas e/ou ter omitido determinado circunstancialismo acerca do seu estado de saúde, importará, antes de mais, referir que, considerando o alegado pela R. na contestação por si apresentada, apenas se discute nesta acção se o M. S., aquando da celebração do contrato de seguro em causa, já sabia que padecia de síndrome hiperosmolar hiperglicémico, de pneumonia adquirida na comunidade e de leucemia mielóide aguda recidivante e se, de forma voluntária e consciente, ocultou da R. tais diagnósticos. De facto, considerando o princípio da autorresponsabilidade das partes ou princípio do dispositivo, consagrado no artigo 5º do CPC, sempre estaria vedado ao tribunal conhecer qualquer outro circunstancialismo para além do que foi invocado pela R. na sua contestação, sendo certo que a interveniente, no que a esta questão respeita, nada acrescentou ao que já havia sido alegado pela R. naquele articulado.
Conclui-se, pois, que o tribunal apreciou as questões que a causa colocava, fê-lo foi num sentido não coincidente com o pugnado pela Recorrente.
Donde, não enferma a sentença da nulidade que lhe é apontada.
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3.2.2. Da impugnação da matéria de facto

Existem requisitos específicos para a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, os quais, se não observados conduzem à sua rejeição.

Assim, o artigo 640º, CPC impõe ao recorrente o ónus de:
a) especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) especificar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
c) especificar a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Impõe-se que nas conclusões o recorrente indique concretamente os pontos da matéria de facto que impugna e o que entende que deve ser assente, apresentando a sua pretensão de forma inequívoca, de forma a que se possa, com clareza, separar a mera exposição da sua apreciação sobre a prova da reivindicação da alteração da matéria de facto, e saber claramente em que sentido pretende que a matéria de facto provada seja alterada.
No caso, considera a Recorrente que deveriam ser aditados aos factos provados, os seguintes factos:
22. Para garantia do cumprimento das obrigações pecuniárias emergentes do citado acordo, o M. S. aderiu ao “seguro de grupo”, do ramo vida celebrado entre a aqui Ré e a interveniente Banco ... Instituição Financeira de Crédito, S.A., associado ao dito contrato de mútuo, ao qual foi atribuído o número de contrato ......26 e o número de apólice ../800.388, cujo teor, constante de fls. 12 a 13, aqui se dá por reproduzido.
28. À data da subscrição dos contratos, o M. S. sofria de uma incapacidade substancial fruto de um acidente vascular cerebral por si sofrido vários anos antes;
29. À data da subscrição dos contratos o M. S. não conseguia locomover-se sem o auxílio de cadeira de rodas e não era capaz de assinar o seu nome;
30. A aludida incapacidade de que padecia o M. S. era conhecida da aqui interveniente Banco ... – Instituição Financeira de crédito, S.A.;
31. Essa incapacidade foi comunicada à interveniente Banco ... – Instituição Financeira de crédito, S.A., além do mais, através da entrega de documentação destinada a comprovar tal estado de incapacidade,
32. no sentido do M. S. obter benefícios fiscais na aquisição da referida viatura em virtude do estado de incapacidade em que se encontrava à data da celebração dos contratos;
33. A Autora e o M. S. foram elucidados acerca do teor do contrato de seguro por um funcionário da vendedora do veículo automóvel (Auto …), que agia em representação da interveniente Banco ... – Instituição Financeira de crédito, S.A.;
34. A aqui Ré não esteve presente no dia (05 de Maio de 2012) em que foram outorgados o contrato de mútuo e a adesão ao “seguro de grupo”.
35. À data da celebração dos contratos, a aqui Ré não tinha conhecimento da incapacidade nem de outras situações pré-existentes de que padecia o M. S..
36. A aqui Ré aceitou a adesão do M. S. ao aludido “seguro de grupo” por estar convencida da não existência de situações pré-existentes à data da subscrição do contrato;
37. Se a aqui Ré tivesse conhecimento de doenças pré-existentes à data da subscrição do contrato, nunca teria celebrado esse contrato nos termos e nas condições em que o mesmo foi celebrado;
38. O M. S., aquando da adesão ao contrato de seguro de grupo, omitiu e ocultou da Recorrente doenças pré-existentes.
E ainda que deveriam ser aditados aos factos não provados os seguintes:
a) Antes da adesão ao seguro de grupo do ramo vida, o M. S. informou a Ré das doenças pré-existentes de que padecia.
b) Antes do M. S. ter aderido ao seguro de grupo do ramo vida, a interveniente BANCO ... – Instituição Financeira de crédito, S.A. informou a Ré das doenças pré-existentes de que aquele padecia.
c) À data da celebração dos contratos, a Ré tinha conhecimento da incapacidade substancial de que padecia o M. S.,
d) bem como de outras doenças pré-existentes de que padecia o M. S..
e) À data da celebração dos contratos, a Ré tinha conhecimento que o M. S. necessitava de se locomover com o auxílio de uma cadeira de rodas.
f) À data da celebração dos contratos, a Ré tinha conhecimento que o M. S. não era capaz de assinar o seu nome, em virtude da incapacidade substancial de que padecia fruto de um acidente vascular cerebral sofrido vários anos antes.
Em suma, pretende a Recorrente colocar em crise a análise da prova que foi produzida pelo tribunal a quo quanto ao conhecimento por parte do falecido M. S. de circunstâncias relevantes relativas à sua saúde que não foram comunicadas à Recorrente e que, se tivessem sido comunicadas, teriam influído sobre a existência do contrato de seguro.
A Recorrente não se insurge quanto à matéria factual que na decisão o tribunal considerou provada e não provada, entende é que deveriam ser aditados outros factos que, a final, conduziriam a uma diferente decisão. De notar que, a invalidade do contrato de seguro, decorrente das omissões ou declarações inexatas do tomador de seguro suscetíveis de alterar a avaliação do risco, é uma exceção cujos pressupostos caberiam à Recorrente, na qualidade de segurador, provar.
Analisada a contestação da Ré, alcança-se que não alegou o facto integrante da exceção da invalidade do contrato que agora pretende aditar, como lhe incumbia nos termos dos artigos 5.º, n.º 1, e 572.º, alínea c), do CPC.
Tal facto é essencial, segundo as várias soluções plausíveis de direito.
No contexto do que vem alegado pelas partes nos seus articulados, em obediência ao respetivo ónus da prova, e vista a prova produzida, sufragamos inteiramente a convicção do Mmo Juiz a quo plasmada na decisão.

Para o que releva, motivou-se na sentença da seguinte forma:
«Relativamente à questão da eventual invalidade do contrato de seguro por o segurado ter, alegadamente, fornecido informações falsas e/ou ter omitido determinado circunstancialismo acerca do seu estado de saúde, importará, antes de mais, referir que, considerando o alegado pela R. na contestação por si apresentada, apenas se discute nesta acção se o M. S., aquando da celebração do contrato de seguro em causa, já sabia que padecia de síndrome hiperosmolar hiperglicémico, de pneumonia adquirida na comunidade e de leucemia mielóide aguda recidivante e se, de forma voluntária e consciente, ocultou da R. tais diagnósticos. De facto, considerando o princípio da autorresponsabilidade das partes ou princípio do dispositivo, consagrado no artigo 5º do CPC, sempre estaria vedado ao tribunal conhecer qualquer outro circunstancialismo para além do que foi invocado pela R. na sua contestação, sendo certo que a interveniente, no que a esta questão respeita, nada acrescentou ao que já havia sido alegado pela R. naquele articulado.
Posto isto, diga-se, no que se refere à dita factualidade invocada pela R., que, como resulta evidente do teor dos documentos médicos e hospitalares juntos a fls. 15, verso, e 79 a 175 e, bem assim, do teor do relatório pericial juntos aos autos, considerando ainda os esclarecimentos prestados pela Sr.ª perita, as ditas patologias apenas foram diagnosticadas ao M. S. depois da data da adesão ao contrato de seguro de grupo acima aludido. De facto, como resulta claro do teor dos ditos elementos probatórios, o M. S., à data da celebração dos ditos contratos, não havia sido diagnosticado como padecendo de síndrome hiperosmolar hiperglicémico, de pneumonia adquirida na comunidade ou de leucemia mielóide aguda recidivante.
Assim sendo, considerando o acima exposto, outra alternativa não restava que não fosse a de considerar não provada a factualidade constante das alíneas a. a c. dos factos não provados.
Diga-se, meramente a latere, que do teor da dita documentação e do relatório pericial constante dos autos resulta demonstrado que o M. S., à data da celebração dos aludidos contratos, sofria de outras patologias e de uma incapacidade substancial fruto de um acidente vascular cerebral por si sofrido vários anos antes. Porém, como também resultou evidente da prova produzida, nomeadamente, do declarado pela testemunha F. L. e pela A., o M. S. e a própria A., aquando da celebração dos aludidos contratos, comunicaram ao vendedor do referido veículo automóvel tal circunstancialismo, designadamente, no que se refere à incapacidade de que o segurado padecia em virtude do acidente vascular cerebral que sofreu. Aliás, como referiram a A., no decurso das suas declarações de parte, e a testemunha F. L., o M. S., no sentido de obter benefícios fiscais na aquisição da referida viatura em virtude do estado de incapacidade em que se encontrava, entregou à vendedora dessa viatura, que actuava também como representante da aqui interveniente, documentação por forma a comprovar o grau de incapacidade que o afectava. Mais, como também confirmou a A. e a testemunha F. L., a incapacidade física que afectava o M. S. à data da celebração dos aludidos contratos era manifesta, sendo facilmente apreensível por qualquer pessoa que lidasse com ele, sendo certo que o M. S. não conseguia sequer locomover-se sem o auxílio de cadeira de rodas e não era capaz de assinar o seu nome. Foi essa a razão que determinou a necessidade de a aqui A. assinar os aludidos contratos a rogo do M. S.. Ou seja, a aludida incapacidade de que padecia o M. S. era, à data em que foram celebrados os sobreditos contratos, conhecida da representante da entidade mutuante, sendo que tal incapacidade, para além de resultar evidente considerando estado físico em que se apresentava o M. S., foi comunicada por este e pela A. à mediadora, além do mais, através da entrega de documentação destinada a comprovar tal estado de incapacidade. Percebe-se, pois, que as contestantes não tivessem invocado, quanto às ditas patologias apresentadas pelo M. S. à data da celebração dos aludidos contratos, a omissão de prestação da respectiva informação, pois que o segurado, antes da celebração de tais contratos, efectivamente comunicou à mediadora as mesmas.
Não mereceu, assim, qualquer interesse para a formação da convicção do tribunal o declarado pela testemunha M. B. no que a esta factualidade respeita, pois que a mesma, de forma completamente desconforme com a realidade, declarou que o segurado, à data da celebração do referido contrato de seguro, não comunicou qualquer patologia de que padecia. Na verdade, como se viu, o segurado, que ainda não sofria das patologias nesta acção invocadas pela R. ou, pelo menos, não as conhecia, efectivamente comunicou à mediadora a incapacidade que, à data, o afectava por força do acidente vascular cerebral que o vitimou.»
Exposta a motivação da sentença, bastará atentar no seu teor para se verificar que é com exímio rigor e incontestável ponderação que o juiz a quo esclarece os motivos que subjazem ao julgamento feito no que concerne à questão da omissão de informações clinicas.
Não só são elencados os meios de prova (alguns documentais cuja análise traz à evidencia o seu rigoroso escrutínio), como é feita uma análise comparativa e critica entre depoimentos, documentos e declarações.
Como é sabido, a prova de um facto não resulta, regra geral, de um só depoimento ou parte dele, mas da conjugação de todos os meios de prova e da sua valoração tendo em conta critérios de bom senso, razoabilidade e sensatez, recorrendo às regras da experiência e aos parâmetros do homem médio.
Neste contexto, compreende-se que se reclame da parte da Recorrente a explicitação da sua discordância fundada nos concretos meios probatórios ou pontos de facto que considera incorretamente julgados, ónus que não se compadece com a mera alusão a depoimentos parcelares e sincopados, sem indicação concreta das insuficiências, discrepâncias ou deficiências de apreciação da prova produzida, em confronto com o resultado que pelo tribunal foi declarado.
Exige-se, pois, o confronto desses elementos com os restantes que serviram de suporte para a formulação da convicção do tribunal, apontando as eventuais disparidades e contradições que infirmem a decisão impugnada.
Ora, a discordância, por exegese diferenciada, do teor do depoimento de duas testemunhas não impõe, de per si, a censura da convicção do julgador, não tendo a impugnante aportado argumentos válidos nem provas bastantes que conduzam a diferente convicção, limitando-se a indicar passagens de depoimentos que foram tidos em conta pelo tribunal na sua motivação.
Resulta, pois, do exposto, que não houve uma desconsideração da prova produzida no que se refere à factualidade impugnada, mas sim uma correta apreciação da mesma, improcedendo a impugnação da decisão da matéria de facto.
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3.2.3. Subsunção jurídica

A questão central posta no recurso respeita às declarações iniciais de risco no âmbito do contrato de seguro de pessoas.
No nosso ordenamento jurídico não há uma definição legal, precisa e unitária, sobre o que é o contrato de seguro. A Lei do Contrato de Seguro (LCS) - cuja entrada em vigor se deu em 1 de janeiro de 2009, através do Decreto-Lei n.º72/2008 de 16 de abril - tendo em vista a sua aplicação primordial ao típico contrato de seguro, evitou intencionalmente uma definição de contrato de seguro. Optou por identificar os deveres típicos do contrato de seguro, assumindo que os casos de qualificação duvidosa devem ser decididos pelos tribunais em vista da maior ou menor proximidade com esses deveres típicos e da adequação material das soluções legais ao tipo contratual adotado pelas partes (2).
Todavia, tal não significa que não se possa retratar os elementos constitutivos que o caracterizam na sua essência e daí avançar para o seu conceito. Através desses elementos e usando a caracterização proposta por Meneses Cordeiro podemos afirmar que no contrato de seguro 'uma pessoa transfere para outra o risco da verificação de um dano, na esfera própria ou alheia, mediante o pagamento de determinada remuneração. A pessoa que transfere o risco, assumindo a remuneração, diz-se tomador do seguro ou subscritor; a que assume o risco e recebe a remuneração, é a entidade seguradora; o dano eventual é o sinistro; a pessoa cuja esfera jurídica é protegida pelo seguro (e que pode, ou não, coincidir com o tomador do seguro) é o segurado; a remuneração da seguradora, devida pelo tomador do seguro, é o prémio' (3).
O contrato de seguro pode, assim, ser definido como o contrato aleatório por via do qual uma das partes (o segurador) se obriga, mediante o recebimento de um prémio, a suportar um risco, liquidando o sinistro que venha a ocorrer.
É caracterizado, portanto, como um contrato sinalagmático, aleatório, oneroso, sucessivo ou de execução continuada e de adesão. Importa aqui concretizar dois pontos: primeiro, no que respeita à natureza sinalagmática do contrato de seguro, a mesma advém do facto de dele emanarem obrigações para ambos os contraentes, uma vez que o segurador se obriga a indemnizar o segurado pelos prejuízos sofridos em caso de realização de um risco, enquanto o segurado se obriga ao pagamento de uma soma determinada, o prémio, na data do respetivo vencimento; em segundo lugar, enquanto contrato de adesão que é, o segurador está legitimado a propor aos destinatários cláusulas contratuais gerais que não resultam da negociação prévia entre as partes, limitando-se aqueles a subscrevê-las ou a aceitá-las. O ponto de partida, porém, é que qualquer contrato, e este não é exceção, é o resultado de consenso entre os contraentes.
No caso em apreço, estamos perante um seguro de pessoas, cujo objeto, de acordo com o disposto no artigo 175.º, n.º 1, da LCS, é aquele que compreende a cobertura de riscos relativos à vida, à saúde e à integridade física de uma pessoa ou grupo de pessoas.
Na modalidade de seguro de vida, o artigo 183.º da LCS estabelece que o segurador cobre um risco relacionado com morte ou a sobrevivência da pessoa segura.
A questão posta no recurso, sobre os deveres pré-contratuais de informação que incumbem ao segurado, convoca para a sua apreciação a importância das declarações iniciais de risco e consequências da sua inobservância.
O anterior regime cominava com a nulidade os contratos de seguro em que as declarações do segurado ou do tomador se revelassem inexatas ou reticentes, com influência na celebração ou na fixação das condições do contrato (artigo 439ºdo Código Comercial).
Cedo a doutrina e a jurisprudência alertaram para o desajustamento daquela cominação, antes fazendo corresponder o vício à anulabilidade do contrato, o que desde logo exigia a sua arguição pelo interessado e possibilitava a convalidação do negócio. A título de exemplo, pode ver-se o Ac. do STJ de 04.03.2004, de acordo com o qual 'não obstante a referência do art. 429º do Código Comercial à nulidade, a natureza particular dos interesses em jogo e a inexistência de violação de qualquer norma imperativa determinam que deva ser a anulabilidade a consequência ou a sanção ligada à emissão de declarações inexatas ou reticentes pelo segurado, suscetíveis de influírem na existência ou condições do contrato de seguro; não é qualquer declaração inexata ou reticente que desencadeia a possibilidade de anulação do seguro: é indispensável que a inexatidão influa na existência e condições do contrato, de sorte que o segurador ou não contrataria ou teria contratado em diversas condições se a conhecesse; embora não se exija que o declarante tenha agido com dolo, sendo suficiente que a declaração inexata ou reticente se deva a culpa sua, é, todavia, necessário que o segurado ou o tomador tenha conhecimento dos factos ou circunstâncias inexactamente declaradas ou omitidas; esse conhecimento deve reportar-se ao momento da subscrição da proposta contratual, não podendo as declarações do segurado ser analisadas com base em sucessos posteriores à subscrição de tal proposta, na qual as ditas declarações são feitas; é que o vício do contrato, nos termos do art. 429º do Código Comercial, refere-se tão só à formação do contrato e não ao desenvolvimento do mesmo'. (4)
Por outro lado, ainda, em determinadas circunstâncias passou a considerar-se ilegítima a invocação daquela invalidade: quando faltasse um nexo de causalidade adequada entre a atuação do segurado ou do tomador e o resultado; quando a seguradora revelasse inércia na sua atuação posterior; quando houvesse omissão manifesta de deveres de diligência e, em geral, sempre que tivessem sido adotados comportamentos suscetíveis de integrarem a figura do abuso de direito.
Não obstante o consenso doutrinal e jurisprudencial alcançado, era notória a dificuldade de integração de algumas situações o que justificou a intervenção legislativa plasmada nos artigos 24º a 26º da Lei do Contrato de Seguro.
Estipula o artigo 24º, n.º1, deste diploma, que o segurado ou o tomador do seguro é obrigado a 'declarar com exatidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador'.
Parte-se agora da distinção entre as atuações dolosas ou meramente negligentes, podendo no primeiro caso a seguradora arguir a anulabilidade do contrato, enquanto que nas condutas negligentes a consequência se traduz, em regra, na exigência da redução proporcional da sua responsabilidade.
A solução legal não é isenta de crítica, desde logo pela dificuldade na delimitação dos conceitos, sobretudo quando nos deparamos com as situações limite que caracterizam o dolo eventual e a negligência consciente.
Afigura-se de igual modo que o legislador não considerou devidamente o desconhecimento e o desinteresse generalizado das pessoas por questões relacionadas com cláusulas contratuais. É um dado comum que a larga maioria dos segurados ou tomadores de seguros não têm conhecimento das questões específicas ligadas ao regime jurídico do contrato de seguro, desconhecendo um conjunto de termos e condições relacionadas com exclusões, cláusulas de sub-rogação e limitações aplicáveis ao contrato de seguro assim como a relevância dos critérios que as seguradoras usam para aceitação dos contratos ou fixação das respetivas condições. Ora, a lei penaliza o segurado não apenas pela omissão ou inexatidão das circunstâncias que conheça, mas ainda das que devesse ter por significativas para efeitos de apreciação do risco pelo segurador, o que, como adverte Abrantes Geraldes, 'deixa uma larga margem de incerteza e de insegurança suscetível de ser aproveitada pelas seguradoras que estão em melhores condições para sustentar a inerente litigiosidade' (5).
Neste contexto, tem a jurisprudência sido sensível às situações da vida que importam a ponderação destes elementos, por recurso à figura do homem médio, disso sendo exemplo o Ac. da Relação de Guimarães de 02.07.2013, a propósito da interpretação de uma cláusula inserta no contrato de seguro, onde se decidiu que 'em matéria de interpretação, o contrato de seguro rege-se pelas regras interpretativas previstas nos art. 236º a 238º do Código Civil (teoria da impressão do destinatário). Mas em relação às cláusulas contratuais gerais nele previstas, enquanto contrato de adesão, há que ponderar ainda as regras especiais previstas no Regime Geral das Cláusulas Contratuais Gerais, mais concretamente nos seus art. 10º e 11º, devendo, na dúvida, prevalecer o sentido mais favorável ao aderente (princípio do in dubio contra proferentem ou contra stipulatorem). (6)
É neste sentido, também, que vai a Diretiva 93/13/CEE do Conselho de 5 de abril de 1993 relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores, em que assume ponto nuclear a instituição de um sistema de sindicância baseado no conceito de cláusulas abusivas, sendo decisiva para o efeito a circunstância de a cláusula, contrariando as exigências de boa fé, originar um significativo desequilíbrio, em detrimento do consumidor, entre os direitos e deveres das partes decorrentes do contrato (7).
Do mesmo modo, a Diretiva 2005/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de maio de 2005, relativa às práticas comerciais desleais, estabelece o critério para aferir sobre o caráter leal ou desleal da prática comercial através da referência ao consumidor médio, entendido enquanto pessoa de toda a sociedade aferido sem ter em conta alguma característica específica que lhe dê conhecimentos abaixo ou acima da média (art. 5º, nº2).
Uma outra brecha na anunciada tutela do segurado decorre, a nosso ver, do que estabelece o n.º2, do artigo 24º, consignando que a declaração do risco abrange cláusulas não mencionadas em questionário (8). Ou seja, apesar do preenchimento correto do formulário que lhe é apresentado pelo segurador, ainda assim pode o segurado ver-se confrontado com a invocação de terem sido omitidas declarações ou circunstâncias significativas para a apreciação do risco. Mal se compreende tal disposição da lei, quando é certo que na generalidade dos casos o tomador desconhece a técnica dos seguros e ignora que outras circunstâncias possam interessar as seguradoras (9).
É verdade que se ressalvou no artigo 24º, n.º3, que o segurador que tenha aceitado o contrato, salvo em caso de dolo, não pode prevalecer-se da omissão de resposta a pergunta do questionário, de resposta imprecisa a questão formulada em termos demasiado genéricos, de incoerência ou contradição evidente nas respostas ao questionário, de facto que o seu representante, aquando da celebração do contrato, saiba ser inexato ou, tendo sido omitido, conheça ou de circunstâncias conhecidas do segurador, em especial quando são públicas e notórias.
A realidade, porém, tem demonstrado que a nossa jurisprudência tem continuado a precisar de recorrer a outras soluções extraídas de institutos de ordem geral, como o abuso de direito, por forma a encontrar a justa decisão para situações que não encontram guarida nos mecanismos consagrados no regime do contrato de seguro (10).
Em face da gravidade das consequências que a lei extrai das omissões ou inexatidões declaratórias, apresenta-se de difícil compreensão a faculdade de se transferir para momento posterior, geralmente após a ocorrência do sinistro, a discussão de aspetos que por tão fundamentais deveriam ter sido definidos e estabilizados aquando da celebração do contrato.
Pela nossa parte, perfilhamos na íntegra o entendimento avançado por Abrantes Geraldes, assim resumido: 'sendo as seguradoras detentoras de maior poder contratual e de maior conhecimento das circunstâncias relevantes para o exercício da sua atividade, razões de segurança e de certeza jurídica deveriam ter levado a optar por outra solução assente num modelo de declarações essencialmente fundado no preenchimento de questionários fechados, previamente elaborados de acordo com a especificidade de cada seguro ou de cada objeto do seguro. Através de uma série de questões que integrassem as principais circunstâncias suscetíveis de interferir na apreciação dos riscos e no conteúdo dos contratos de seguro - que as seguradoras bem conhecem - seria então legítimo repercutir a posteriori nos interessados os efeitos negativos decorrentes de falsas ou de incompletas informações'. (11)
Em sentido mais otimista Luís Poças defende que”'relativamente ao art. 24º da Lei do Contrato de Seguro, considerando a referida dificuldade de o proponente aferir quais os factos ou circunstâncias que está obrigado a declarar, o novo regime não optou por um sistema de questionário fechado, mas, mantendo um regime de declaração espontânea, solucionou o problema por via da definição do critério de relevância e da delimitação, a esse nível, do dever de declaração do risco. Por outro lado, superando-se algumas das críticas apontadas ao anterior regime, a relevância deixa de ser aferida na Lei do Contrato de Seguro pelos critérios do segurador, passando a sê-lo em função dos critérios representados pelo proponente concreto: o dever incide sobre as circunstâncias que o tomador do seguro ou o segurado conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador” (12)
Os artigos 18.º a 26.º da LCS constituem normas jurídicas relativamente imperativas, o que significa que o seu teor só poderá ser alterado se tal se mostrar mais favorável ao tomador do seguro, segurado ou beneficiário, tal como previsto no artigo 13.º da LCS.
No artigo 24.º, n.º 1, da LCS, estatui-se um dever geral de informação pelo tomador ou segurado quanto a circunstâncias relevantes para a apreciação do risco, prevendo-se ainda no nº 2 do preceito a sua aplicação a circunstâncias cuja menção não seja solicitada em questionário eventualmente fornecido pelo segurador para o efeito.
O dever de informação que impende sobre o tomador do seguro ou sobre o segurado destina-se a dar a conhecer à seguradora os factos relevantes para a avaliação do risco do seguro.
No regime que vigora entre nós não existe obrigatoriedade de apresentação de um questionário por parte da seguradora. Porém, os questionários predominam nos seguros de pessoas, considerando-se nessa conformidade que sendo um questionário respondido com seriedade e de boa fé, nada mais haverá, em princípio, a acrescentar. (13)
No caso de um seguro de vida exige-se ao tomador ou ao segurado que manifestem as circunstâncias relativas à saúde do segurado que conhecem no momento da declaração, o que, para a seguradora, tendo em conta a avaliação dos riscos que vai assumir é, em princípio, relevante ou para a decisão de contratar ou para a definição concreta do conteúdo do contrato.
Os artigos 25.º e 26.º da LCS fazem a destrinça das situações de omissões ou inexatidões dolosas das omissões ou inexatidões negligentes.
A «inexatidão» corresponde ao vício da declaração que é falsa, desconforme à verdade, à realidade objetiva conhecida. A «omissão» é o vício da declaração que silencia uma circunstância relevante, não a revelando total ou parcialmente (14).
Em caso de incumprimento doloso do dever de declaração inicial do risco, o contrato é anulável mediante declaração enviada pelo segurador ao tomador do seguro (artigo 25.º, nº1 da LCS)
Como refere Pedro Romano Martinez, a propósito deste incumprimento doloso, há que distinguir o dolo enquanto modalidade de culpa e o dolo enquanto vício da vontade. (15)
O dolo-culpa constitui um elemento subjetivo de uma ação (ou de uma omissão), que corresponde ao juízo feito pelo agente em determinada atuação, encontrando-se patente no n.º 1 do artigo 483.º do Código Civil.
Neste sentido, dolo e negligência constituem modalidades de culpa ou de ilicitude subjetiva.
No segundo caso, o dolo é um vício da vontade, também conhecido por «dolo-artimanha» ou seja, «é uma ação que, necessariamente, é acompanhada do elemento subjetivo dolo». (16)
O «dolo-artimanha» corresponde ao «dolus malus» definido no n.º 1 do artigo 253.º do Código Civil, definido como «qualquer sugestão ou artifício que alguém empregue com a intenção ou consciência de induzir ou manter em erro o autor da declaração, bem como a dissimulação, pelo declaratário ou terceiro, do erro do declarante».
Contrapõe-se ao erro simples, ou seja, aos casos em que a declaração negocial se formou «com algum desvio em relação ao que se queria dizer por ter assentado em pressupostos ou informações insuficientes ou incorretas, mas sem que tenha havido intenção do declarante de provocar tal situação», nos termos dos artigos 247.º, 251.º e 252.º do Código Civil.
Há, porém, quem entenda que o dolo previsto no artigo 25º da LCS não está necessariamente orientado para o engano e, portanto, o proponente incumpre dolosamente quando quer mentir ou omitir relativamente a um facto que sabe ser relevante, mesmo que o seu propósito não seja enganar o segurador (mas, apenas, por exemplo, ocultar um facto embaraçoso). Para os defensores desta teses, o que releva é a vontade e consciência de mentir ou omitir, independentemente de qualquer propósito. (17)
Tem-se assistido, também, a divergências jurisprudenciais quanto à exigência do requisito da essencialidade do erro para o segurador.
No sentido afirmativo, isto é, que para anular o contrato, o segurador terá de demonstrar que o dolo o conduziu ao erro e que, se conhecesse o erro, não teria celebrado o contrato, ou seja, terá de demonstrar a essencialidade do erro, pode ver-se exemplificativamente os Acs. do STJ de 8.11.2018 e da Relação do Porto, de 15.11.2018 (18).
Em sentido contrário, de que a anulabilidade do contrato de seguro bastase com o incumprimento doloso daquele dever, não sendo imprescindível que a omissão ou declaração inexata seja suscetível de influenciar o segurador na decisão de contratar, pode ver-se os Acs. da Relação de Coimbra de 17.9.2019 e da Relação do Porto de 4.9.2015 (19).
O sentido do nosso entendimento é o de que o artigo 25.º da LCS regula um caso de «dolo-vício», o que tem como consequência a necessidade da verificação da dupla causalidade exigida nos artigos 253.º e 254.º do Código Civil: o dolo tem de ser causa do erro do segurador e o erro tem de ser essencial, sendo a causa da anulabilidade.
Em resultado dessa compreensão, para anular o contrato o segurador terá de demonstrar que o dolo o conduziu ao erro e que, se conhecesse o erro, não teria celebrado o contrato.
Revertendo ao caso, o quadro factual afasta a conclusão de que o segurado sequer tenha agido dolosamente, menos ainda com o intuito de possibilitar ou sequer facilitar a contratação do seguro e nas melhores condições.
Mais. A factualidade provada e (sobretudo) a não provada, não permite tampouco enquadrar o caso no regime do erro simples previsto no artigo 26.º da LCS.
Chegados a este ponto concreto do apuramento da factualidade pertinente, importará deixar uma nota, já acima veiculada, que se prende com a extensão do princípio dispositivo.
De acordo com o artigo 5º, nº1, do CPC, às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas.
No âmbito do contrato de seguro, questão de ordem metodológica, consiste em saber como se reparte o ónus da prova dos factos juridicamente relevantes para o reconhecimento (ou negação) do direito à indemnização do segurado fundado num seguro de vida tendo em conta a impugnação pelo segurador, fundada na exclusão da cobertura do seguro por doença pre-existente e declarações inexatas.
Ao autor incumbe a prova do evento abrangido pela cobertura do seguro; à ré a prova dos casos de exclusão da garantia da cobertura – artigo 342º, do Código Civil.

A alegação da Ré inserta na contestação quanto aos factos integrantes da exceção que invocou cingiu-se ao seguinte (artigos 12º a 15º da contestação):
«- Foram indicadas como causas da morte os seguintes diagnósticos: “síndrome hiperosmolar hiperglicémico”, “pneumonia adquirida na comunidade” e “leucemia mielóide aguda recidivante”.
- Apesar do M. S. (pessoa segura) já saber estes diagnósticos de doença antes da data da adesão ao contrato de seguro de grupo de vida, nada disse sobre esses mesmos diagnósticos na proposta (formulário) do contrato de seguro.
- O M. S. (pessoa segura) omitiu e ocultou voluntariamente as informações da sua saúde (concretamente, os citados diagnósticos de doença anteriores à data da subscrição da proposta do contrato de seguro), com o objectivo de conseguir que a sua adesão ao contrato de seguro de grupo de vida fosse aceite pela seguradora (aqui ré), nas condições em que foi efectivamente aceite.
- A ré apenas aceitou a adesão do M. S. (pessoa segura) ao contrato de seguro de grupo de vida por estar plenamente convencida da não existência dos citados diagnósticos de doença (anteriores à subscrição da proposta do contrato de seguro).»

Em sede de recurso, a Ré vem sustentar que:

- À data da subscrição dos contratos (05 de Maio de 2012), o M. S. sofria de várias patologias e de uma incapacidade substancial fruto de um acidente vascular cerebral por si sofrido vários anos antes.
- Nessa data o M. S. não conseguia locomover-se sem o auxílio de cadeira de rodas e não era capaz de assinar o seu nome, sendo esta a razão pela qual os contratos foram assinados pela Recorrida a rogo do M. S..
- Em virtude dessa incapacidade, o M. S. obteve benefícios fiscais (isenção de imposto automóvel e de IVA) na aquisição da referida viatura.
- Se a Recorrente tivesse conhecimento prévio dessas situações pré-existentes, nomeadamente do acidente vascular cerebral sofrido pelo M. S. em 1997 e da incapacidade de que este padecia, não teria celebrado o contrato de seguro com o M. S..
Do confronto dos factos constantes dos dois articulados, contestação e alegações de recurso, facilmente se constata que a Recorrente alega agora factos novos que não alegou anteriormente.
Ora, a decisão judicial tem de conter-se dentro do perímetro objetivo dos factos integrantes da exceção deduzida, em função do qual se afere também o exercício do contraditório da contraparte, não sendo lícito ao tribunal desviar-se desse âmbito ou desvirtuá-lo.
Se é certo que o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artigo 5º, n.º 3, do CPC), também é verdade que a qualificação jurídica tem de ser operada dentro da fronteira da factualidade alegada e provada.
Em face disso, e analisado o factualismo apurado, não resultou demonstrado que o segurado tivesse conhecimento da doença antes da data da adesão ao contrato de seguro de grupo, sucumbindo como tal a imputação de falsidade ou omissão de declarações de risco.
Pelo exposto, terá a apelação de improceder.
*
IV – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Guimarães, 4 de Novembro de 2021

Assinado digitalmente por:
Rel. – Des. Conceição Sampaio
1º Adj. - Des. Elisabete Coelho de Moura Alves
2º Adj. - Des. Fernanda Proença Fernandes


1. In CPC Anotado, Vol. V, pg. 143.
2. Referência feita no preâmbulo do Decreto-Lei n.º72/2008 de 16 de abril.
3. In Contrato de Seguro e Seguro de Crédito – II Congresso Nacional de Direito dos Seguros, Memórias, Coordenação de António Moreira e M. Costa Martins, Almedina, 2001, pág. 27.
4. In CJstj - Tomo I, pág. 102. No mesmo sentido pode ver-se os Acs. do STJ de 17.11.2005, in CJstj - Tomo III, pág. 120, e de 08.06.2006, in www.dgsi.pt, o Ac. da Relação de Coimbra de 18.10.2005, in CJ - Tomo IV, pág. 31, e o Ac. da Relação de Guimarães 09.03.2005, in CJ - Tomo II, pág. 279. Na doutrina pode ver-se JOSÉ VASQUES, in Contrato de Seguro, pág. 223, e JOSÉ CARLOS MOITINHO DE ALMEIDA, in O contrato de Seguro, pág. 61.
5. Intervenção no Colóquio organizado pela Secção Portuguesa da Associação Internacional de Direito dos Seguros que decorreu no dia 10 de março de 2010, sob o tema Novo Regime do Contrato de Seguros, no painel Contrato de Seguro: Praxis.
6. Disponível em www.dgsi.pt.
7. Neste sentido, ALMENO DE SÁ, in Cláusulas Contratuais Gerais e Diretiva Sobre Cláusulas Abusivas, pag. 19.
8. A generalidade das legislações europeias adotaram uma solução diferente como é o caso da lei sobre o contrato de seguro alemã de 23 de novembro de 2007 (§19), da lei luxemburguesa de 27 de julho de 1997 sobre o contrato de seguro (art. 11°), da lei belga de 25 de junho de 1992 sobre o contrato de seguro terrestre (art. 5°) e da lei espanhola de 8 de outubro (art. 10°, n°1).
9. Neste sentido se pronunciou José Carlos Moitinho de Almeida, in Proteção do Tomador do Seguro e dos Segurados no Novo Regime Legal do Contrato de Seguro, www.csm.pt. Neste ponto pode ver-se também o Ac. da Relação de Lisboa de 14.03.2013, in www.dgsi.pt.
10. Como é o caso do Ac. da Relação de Lisboa de 13.03.2007, in CJ - Tomo II, pág. 79; dos Acórdãos do STJ de 12.02.2009 e da elação de Coimbra de 18.12.2013, in www.dgsi.pt, o Ac. da Relação do Porto de 10.12.2009, in www.dgsi.pt.
11. Ob. cit.
12. In O Dever de Declaração Inicial do Risco no Contrato de Seguro, pág. 348.
13. Menezes Cordeiro, Direito dos Seguros, Coimbra: Almedina, 2013, pag. 579.
14. Neste sentido, o Acórdão da Relação de Lisboa de 28.6.2018, disponível em www.dgsi.pt.
15. In Lei do Contrato de Seguro, 3.ª ed., Coimbra: Almedina, 2016, pag. 153..
16. Neste sentido o Ac. da Relação de Lisboa de 21.05.2020, citando Joana Galvão Telles, Deveres de informação das partes, in Temas de Direito dos Seguros, coord. de Margarida Lima Rego, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2016, p. 382..
17. Tese propugnada por Luís Poças, In O Dever de Declaração Inicial do Risco no Contrato de Seguro, Coimbra: Almedina, 2013, pag. 468.
18. Ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
19. Disponíveis em www.dgsi.pt.