Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
75/14.5TATMC.G1
Relator: PEDRO CUNHA LOPES
Descritores: CRIME COMUM PECULATO
ELEMENTOS DO ILÍCITO
PECULATO TITULAR CARGO POLÍTICO
RELAÇÃO DE ESPECIALIDADE
PENA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/12/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: TOTALMENTE IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
1 - O crime de peculato por titular de cargo político (art.º 20º/1, D.L. n.º 34/87, 16/7) está para com o crime comum de peculato, numa relação de especialidade.
2 - Daí, que as respetivas previsões sejam diversas.
3 - O crime de peculato previsto no C.P. molda-se por referência ao conceito de "funcionário" e no D.L. n.º 34/87, por referência à tipicidade ali prevista no artr.º 3º, com a referência a quem são os titulares de cargos políticos.
4 - O gestor de facto de uma empresa participada Municipal é ainda titular de cargo político.
5 - Tendo-se o arguido apoderado e distribuído quantias em dinheiro da referida sociedade e não atacando os factos provados, nunca poderia estar apenas em causa um crime de peculato de uso.
6 - No caso dos autos, a aplicação de uma pena pouco acima do limite mínimo abstrato da mesma, nunca poderia determinar que se considerasse a mesma como excessiva.
7 - A imposição de uma regra de conduta consistente na obrigação de o arguido publicar no jornal mais lido no local onde ocorreram os factos, uma manifestação pública de arrependimento nada tem de desproporcionado, de dupla condenação ou de ato estigmatizante, sobretudo quando o mesmo foi eleito patra um cargo público.
8 - Com efeito e pelo contrário, a mesma é benéfica às necessidades de prevenção especial positiva por parte do mesmo, pelo que deve manter-se.
Decisão Texto Integral:
1 – Relatório

Por sentença de 30 de Março de 2 020, foi o arguido P. M. condenado, nos seguintes termos:

- condenado como autor de um crime de peculato na forma continuada, p. e p. pelos arts.º 30º/2 e 375º/1 C.P., por referência ao art.º 386º/1, d), ns.º 2) e 4), C.P., por referência aos arts.º 20º/1 e 3º/1, i), L. n.º 34/87, 16/7, na pena de 3 (três) anos e 3 (três) meses de prisão e 80 (oitenta) dias de multa, à razão diária de 6€ (seis euros);
- a pena de prisão foi suspensa por igual período, com as seguintes injunções:
- entregar 1 000€ (mil euros) à “Santa Casa da Misericórdia de …”, no prazo de 10 (dez) dias, como manifestação pública de arrependimento (dever - art.º 51º/1, c), C.P.);
- publicar a suas expensas, no jornal mais lido na sua localidade, durante o prazo da suspensão, uma manifestação pública de arrependimento pelos erros cometidos durante o seu exercício de cargos autárquicos, que conduziram à sua condenação pelo crime de peculato (regra de conduta – art.º 52º/1, c), C.P.);
- foi ainda condenado no pagamento da quantia de 9 424.80€ (nove mil, quatrocentos e vinte e quatro euros e oitenta cêntimos) à assistente, a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora vencidos entre 20 de Julho de 2 012 e 25 de Janeiro de 2 016.

Discordando da decisão proferida na parte crime, da mesma recorreu o arguido apresentando no seu recurso, as seguintes conclusões:

“1ª - O recorrente foi condenado em 1ª instância pela prática de um crime de peculato na forma continuada (..) aplicando-lhe uma pena de três anos e três meses de prisão e de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de €6,00 (seis), num total de €480,00 (quatrocentos e oitenta), suspensa na sua execução mediante a sujeição ao seguintes dever e regra de conduta: (...) entregar à Santa Casa da Misericórdia de ... a quantia de €1.000,00 (mil), como manifestação pública de arrependimento sincero pela sua conduta no prazo máximo de 10 dias após o trânsito em julgado da presente sentença – art. 51º, n.º 1, al.c) do Cód Penal. e (...) publicar, a suas expensas, no jornal mais lido da localidade, durante o prazo da suspensão, uma manifestação pública de arrependimento pelos erros cometidos durante o seu exercício de cargos autárquicos que conduziram à sua condenação pelo crime de peculato»

Porém,
2ª O Tribunal a quo procede erradamente quanto à qualidade e título de intervenção do arguido, que não era realmente um ‘representante’ da entidade pública sócia da sociedade assistente, nem o fazia no exercício das suas funções;
3ª E igualmente quanto à natureza dos dinheiros envolvidos nas deslocações financeiras das operações bancárias referidas, porque têm por objecto o produto do aviamento de uma sociedade comercial e, em princípio, não podem ser objecto de peculato, mas de abuso de confiança;
4ª E que, a haver crime de peculato, sempre estaríamos perante um ‘peculato de uso’ por estar patente a inexistência de indícios de facto de que o arguido tenha «formado a resolução, que posteriormente renovou, de se apropriar, em proveito próprio e de terceiros das suas relações próprias...de parte das quantias», porque a intenção do arguido requerente nunca se colocou para além do uso do dinheiro!
5ª Ao ter julgado como o fez, não obstante a ponderação realizada, afasta-se do que seria uma análise rigorosa dos factos – incluindo os documentados, que deste modo desconsiderou;

Sem prescindir:
6ª A pena aplicada mostra-se excessiva, uma vez que ultrapassa o grau de culpa, atenta a condições atenuantes do arguido, ou seja, i) a confissão da materialidade acompanhada da devolução, por DEPÓSITO NOS AUTOS, da quantia envolvida, e ii) arrependimento activo (medido, além das palavras, pela interrupção da actividade ilícita), e estar o arguido inserido pessoal e profissionalmente na sociedade,
7ª Ao determinar a concreta medida da pena, o tribunal a quo assentou na prevenção e repressão do crime, alheando-se, indevidamente, daquelas circunstâncias e da recuperação e ressocialização do arguido, não tomando em boa conta a sua personalidade e a sua conduta anterior e sobretudo a ACTIVA posterior ao facto;
8ª Não obstante considerar, na matéria de facto provada, várias circunstâncias que não fazendo parte do crime, depuseram a favor do recorrente, o tribunal a quo na determinação da pena subvalorizou essas circunstâncias, entre as quais, repete-se as do abandono activo da continuação da actividade elícita; incluindo a interrupção da actividade de desvio de dinheiro da conta bancária da assistente;
9ª Esses aspectos deviam ter sido tidos em consideração para efeitos de determinação da medida da pena concretamente aplicada, pelo que, não o tendo sido, o Mº Juiz a quo violou o estatuído nos artigos 40º, nº 2 e 71º do Código Penal;
10ª Com efeito, as finalidades da punição realizam-se plenamente com a aplicação dessa medida punitiva;
11ª Esta pena de substituição não compromete minimamente em relação à comunidade a confiança e a reafirmação da validade da norma violada;
12ª Atentas as condições atenuantes de confissão e arrependimento, que o Tribunal a quo reconhece, deveria o arguido ter sido condenado em pena inferior, ainda em atenção à reposição do montante desviado pelo arguido;
13ª No que à pena de prisão diz respeito, a mesma foi determinada muito próximo do limite máximo, o que é totalmente desproporcional, atenta a conduta ao longo de uma vida, e aquelas atenuantes de confissão e arrependimento,
14ª Devia o tribunal ora recorrido ter atendido a possibilidade de reabilitação do arguido, e não fazendo violou as exigências preventivas e o dever de atenuação especial da pena previsto no art. 72º nº 2 c); d) CP;
15ª Ao decidir como fez o tribunal a quo interpretou de forma incorrecta o artigo e regime do 71º e ss do Código Penal.
16ª Finalmente, mostra-se inadequada a injunção relativa à publicação da declaração de manifestação pública de arrependimento, quando a mesma foi realizada em audiência pública e os factos objeto do processo foram amplamente noticiados na comunicação social, regional e nacional.

NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO REQUER A V.EXª. DIGNE: julgar a pena concretamente aplicada ao recorrente se afigura excessiva, sendo de revogar a Sentença de que se recorre, aplicando-se uma pena mais benévola ao recorrente, concluindo pelo provimento do presente recurso e, em consequência, pela revogação da sentença recorrida, com a redução da pena aplicada, bem como pela revogação da medida de injunção relativa à declaração pública a arrependimento.”

Contra-alegou a assistente. No seu entender, o arguido está incluído no conceito de funcionário vertido no art.º 386º/1, d), ns.º 2) e 4), C.P. e não se pode falar do crime de peculato de uso, p. e p. no art.º 376º C.P., estando correta a qualificação da conduta do arguido no crime de peculato continuado por titular de cargo político, p. e p. pelos arts.º 30º/2 e 375º/1 C.P., por referência aos arts.º 20º/1 e 3º/1, i), L. n.º 34/87, 16/7. No seu entender, a medida da pena de prisão está corretamente fixada, tal como a regra de conduta que condiciona a suspensão da pena de prisão foi bem fixada. Considera pois e afinal, que o recurso deve improceder, na íntegra.

O M.P. não contra-alegou, em 1ª instância.
neste Tribunal, teve vista neste Proc.º a Dignm.ª Procuradora Geral Adjunta. Deu por reproduzidas as suas alegações anteriores, quando da primeira subida deste processo ao Tribunal da Relação – que declarou a nulidade da anterior sentença. Aí, sustentara que o arguido se incluía na noção de funcionário constante do art.º 386º/1, d), ns.º 2) e 4), C.P., mas também que a regra de conduta que condiciona a suspensão – publicação de anúncio em que expresse o seu arrependimento, no jornal mais lido na localidade – não é adequada, em face das necessidades de prevenção especial positiva do arguido. Termina pois, pedindo a parcial procedência do recurso, cingida à referida regra de conduta.
Notificado nos termos do disposto no art.º 417º/2 C.P.P., o arguido não respondeu.
Respondeu a assistente, ora recorrida, que defendeu que a citada regra de conduta não põe em causa as necessidades de prevenção especial, positiva ou negativa e que tomar-se a prevenção especial como fim exclusivo das penas é inaceitável e que, em tal caso, as penas aplicadas podiam ser associadas a uma sensação geral de impunidade. Continua pois a entender, que o recurso deve ser julgado totalmente improcedente.
Os autos vão ser julgados em conferência, como o impõe o art.º 419º/3, c), C.P.P.

2 – Dos Fundamentos

Para uma melhor apreensão das questões suscitadas, transcrever-se-á de seguida a decisão recorrida:

Questão preliminar – sobre a ausência de leitura pública
Por Douta Decisão Sumária proferida nos presentes autos pelo Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, a sentença que foi anteriormente proferida foi declarada nula, tendo-se determinado a sua substituição por outra, a realizar pelo mesmo Juiz que presidiu ao julgamento, a fim de decidir-se fundamentadamente desde quando são devidos juros de mora pelo demandado e qual a implicação nestes, do depósito/pagamento a efetuar nos autos e que defina o prazo de cumprimento da condição de pagamento estabelecida.
Sendo certo que o art 373º do Cód de Proc Penal impõe como formalidade do julgamento a leitura pública da sentença, importa realizar aqui algumas considerações iniciais a respeito da omissão desta formalidade.
Em primeiro lugar, trata-se simplesmente de uma rectificação da sentença, por ausência de fundamentação que tornou a decisão imperceptível ou omissa, tendo as partes já tido a oportunidade de cumprir o contraditório nos articulados de recurso, não se pode dizer que exista aqui qualquer »decisão surpresa«.
Em segundo lugar, tendo o Ilustre Mandatário do arguido sido contactado pelo Sr Oficial de Justiça C. N., a meu pedido, foi-me comunicado que o mesmo não se opunha à ausência de leitura pública que a sentença fosse somente depositada nos autos.
Em terceiro lugar, actualmente vigora o estado de emergência nacional causado pela epidemia do Covid-19 (cfr Decreto -Lei n.º 10 -A/2020, de 13 de Março e Lei n.º 1-A/2020 de 19 de Março), tendo sido determinado a aplicação do regime das férias judiciais aos processos pendentes; e mesmo nos processos urgentes, deve ser dada preferência aos meios de comunicação à distância, apenas se realizando presencialmente os actos necessários para a proteção de direitos fundamentais.
In casu, os autos não integram a categoria de »acto urgente«, na estão em causa direitos fundamentais e a questão que vai ser agora decidida já foi discutida pelas partes nos articulados, pelo que, excepcionalmente e com a comunicação da anuência do Ilustre Mandatário do arguido, se dispensa a leitura da sentença.
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I. Relatório

A Mmª Juiz de Instrução pronunciou, para julgamento em processo comum e perante o Tribunal singular:
- P. M., casado, professor, nascido em -/01/1970, em ..., titular do BI n.º ……., filho de M. J. e de A. M., residente na Rua do …, Condomínio Terraços …,
Pronunciando-o pela prática de um crime de peculato na forma continuada, p. e p. nos arts. 30º, n.º 2, 375º, n.º 1, com referência ao 386º, n.º 1, al.d), n.º 2 e n.º 4, todos do Cód Penal e dos arts. 20º, n.º 1 e 3º, n.º 1, al.i) da Lei n.º 34/87 de 16/07;
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A sociedade «X – transportes turísticos e fluviais, Lda», na qualidade de assistente, deduziu pedido de indemnização cível peticionando a condenação do arguido a pagar-lhe as seguintes quantias: (a) €11.770,75 a título de indemnização por danos patrimoniais, à qual acrescem juros de mora vincendos até efectivo e integral pagamento; (b) €2500,00 a título de danos não-patrimoniais, acrescida de juros legais desde a notificação até efectivo e integral pagamento, tudo no montante global de €14.270,75.
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A decisão de pronúncia e o pedido de indemnização cível foram recebidos mediante despacho de fls 580, tendo sido designada data para a realização da audiência de julgamento da causa.
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O arguido apresentou contestação à pronúncia e ao pedido de indemnização cível tendo alegado – em suma – o seguinte:
No que diz respeito à acusação, o arguido confessa toda a factualidade material inerente às deslocações patrimoniais da conta bancária da assistente para os beneficiários das mesmas, conforme a descrição constante de fls 301/308 do inquérito, assinalando que, com o apuramento das mesmas, procedeu a depósito judicial autónomo de €9.424,80; todavia, impugna a qualificação do crime como peculato, em virtude de entender que falecem os respectivos pressupostos, na medida em que não estão em causa «dinheiros públicos» mas sim valores pertencentes a uma sociedade comercial de direito privado, nem o arguido deter qualquer qualidade pública mas somente os poderes, emergentes de mandato/procuração conferida pela gerência, de movimentar a conta através do designado «homebanking», detendo os respectivos códigos de acesso, o que conduz à integração da sua conduta no tipo legal de «abuso de confiança», p. e p. no art. 205º do Cód Penal; por outro lado, mais alega que a imposição de que o dinheiro seja público e que o arguido seja funcionário sempre implicaria estarmos perante um «peculato de uso»; por outro lado, mais alega que sempre pretendeu repor os dinheiros públicos utilizados, para efeitos de aplicação da norma do art. 376º, n.º 1 do Cód Penal, pelo que a sua conduta deverá ser convolada para «peculato de uso»; mais alega que se deixou envolver numa relação extra-conjugal com uma mulher de nome F. S., pessoa a quem se reportam directa ou indirectamente todas as transferências, que conheceu por ocasião de uma festa em 2009, o que levou a que se envolvesse numa relação e cercado de ameaças e de domínio sobre a sua vida, com ameaças sobre a sua família e vida profissional e pública, intromissão na sua vida privada e assédio sobre a sua mulher e família, apenas sustadas e adiadas com os pagamentos e transferências; mais alega não se ter conseguido libertar senão após a morte do seu progenitor em Março de 2012, o que intranquilizou o arguido e condicionou a sua capacidade de reacção e enfrentamento do cerco montado pela referida senhora, diminuindo a censurabilidade dos actos praticados; termina oferecendo a presente contestação e o que vier a resultar da audiência de discussão e julgamento.
No que diz respeito ao pedido de indemnização cível, o arguido alega ter procedido ao pagamento, por depósito autónomo, logo que tomou conhecimento do montante envolvido, facto que é do conhecimento da demandante, o que determina a inexibilidade de quaisquer juros por não poderem constituir-se antes da liquidação que depende de decisão judicial; por outro lado, mais alega inexistirem factos que consubstanciem a lesão da imagem social da assistente, não sendo devidos danos morais.
A contestação foi admitida mediante despacho de fls 624.
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Realizou-se audiência de julgamento da causa.
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Posto isto, cumpre decidir-se:
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II. Fundamentação de facto

a) factos provados
a.1) da acusação pública

1. A sociedade “X – Transportes Turísticos e Fluviais, Ldª” é uma sociedade por quotas, com o NIPC …….., constituída por dois sócios - o Município de ... e o Ayuntamento de ... -, em 18 de janeiro de 2000, e tem como objeto social a compra e venda e a exploração de transportes fluviais e turísticos no Rio Douro Internacional.
2. O arguido, na sequência de prévio acto eleitoral, foi eleito e integrou o executivo da Câmara Municipal de ... nos quadriénios 2005/2009 e de 2010 a 2013, desempenhando o cargo de Vice-Presidente e de Vereador do Pelouro do Turismo, em regime de permanência, no período compreendido entre 21 de outubro de 2005 e 17 de outubro de 2013.
3. Nesse mesmo período de tempo o Presidente da Câmara Municipal de ... era J. C., que desde logo indicou o arguido como responsável pela gestão da sobredita sociedade, uma vez que ao mesmo estava adstrito o Pelouro do Turismo, passando aquele, desde 03 de abril de 2006 até ao final do mandato (que ocorreu em 17 de outubro de 2013), a desempenhar efetivamente as funções de gerente da sociedade “X, Ldª”.
4. Ao arguido, na qualidade de único gerente de facto daquela sociedade, cabia-lhe a responsabilidade pela sua gestão e contabilidade, o contacto com os clientes, a autorização e a realização de pagamentos em nome e em representação da mesma, a movimentação da conta bancária por esta titulada domiciliada na Caixa ... – balcão de ..., com o nº …………, designadamente através da internet, detendo o arguido os respetivos códigos e as senhas de acesso àquela conta através do serviço da “…. e-banking” que permitiam a realização de pagamentos e transferências bancárias a partir daquela conta bancária da assistente.
5. Assim, durante o período compreendido entre 03 de abril de 2006 e 17 de outubro de 2013, apesar de constar no registo comercial J. C. como gerente da sociedade assistente, enquanto representante do Município de ..., era o arguido quem de facto geria a sobredita sociedade e detinha a responsabilidade exclusiva da sua gestão e contabilidade, procedendo a pagamentos, contactando os clientes, movimentando a respetiva conta bancária, tendo o poder de aprovar e mandar pagar despesas, estando ao mesmo acessível o dinheiro e outros valores patrimoniais da sociedade, cuja gestão lhe foi confiada por integrar o respetivo executivo e tal lhe caber no âmbito das funções que desempenhava.
6. A partir de, pelo menos, o 1º trimestre do ano de 2010, dada a autonomia com que desempenhava as suas funções e os factos antes descritos, o arguido formou a resolução, que posteriormente renovou, de se apropriar, em proveito próprio e de terceiros das suas relações próximas, no desempenho das descritas funções, de parte de quantias pertencentes à referida sociedade e a que tinha acesso, disponibilidade e geria por forma a assim obter benefício patrimonial que sabia ser ilegítimo.
7. Assim, o arguido decidiu apropriar-se de dinheiro que estava disponível na conta bancária da sociedade “X, Ldª” a que tinha livre acesso por força das funções que exercia, que pertencia a esta sociedade, para deste modo proceder a pagamentos de dívidas que tinha assumido a nível particular ou de que pessoas muito próximas de si tinham assumido para assim as beneficiar em detrimento e prejuízo da sociedade assistente.
8. Na execução e renovação da descrita resolução, o arguido, enquanto gerente da sociedade “X, Ldª”, agiu do modo supra descrito e deu indicação à “Caixa ...”, através do serviço “… e-banking”, para que fossem retiradas da conta bancária com o NIB …………….., pertencente àquela sociedade e depositadas nas contas bancárias de terceiros que se passam a descriminar, as seguintes quantias:
a. a) em 29/03/2010, o arguido ordenou a transferência da quantia de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros) para a conta bancária com o NIB ..........................05, pertencente a F. S., com quem o arguido, à data, mantinha um relacionamento amoroso;
b. b) em 07/04/2010, o arguido ordenou a transferência da quantia de € 400,00 (quatrocentos euros) para a conta com o mesmo NIB ..........................05, pertencente à aludida F. S.;
c. c) em 11/05/2010, o arguido ordenou a transferência da quantia de € 150,00 (cento e cinquenta euros) para a mesma referida conta com o NIB ..........................05, pertencente a F. S.;
d. d) em 04/06/2010, o arguido ordenou a transferência da quantia de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros) para a conta titulada por F. S., com o NIB ..........................05;
e. e) em 16/06/2010, o arguido ordenou a transferência da quantia de € 200,00 (duzentos euros) para a conta com o NIB ..........................05, pertencente a F. S.;
f. f) em 30/06/2010, o arguido ordenou a transferência da quantia de € 400,00 (quatrocentos euros) para a conta bancária da CAIXA ... nº …………, pertencente a B. F. e M .T.;
g. g) em 02/08/2010, o arguido ordenou a transferência da quantia de € 300,00 (trezentos euros) para a conta bancária com o NIB ..........................05, pertencente a F. S.;
h. h) em 06/08/2010, o arguido ordenou a transferência da quantia de € 550,00 (quinhentos e cinquenta euros) para a conta bancária nº ............30, pertencente a A. V., o qual, à data, tinha arrendado um imóvel sito em Mirandela a F. S., com quem o arguido, à data, mantinha um relacionamento amoroso;
i. i) em 18/08/2010, o arguido ordenou a transferência da quantia de € 950,00 (novecentos e cinquenta euros) para a conta bancária da CAIXA ... nº ……., pertencente a M. F., dono e legal representante da oficina automóvel “Auto M. F.”, onde o arguido realizava todas as reparações e serviços necessários à manutenção de todos os veículos automóveis que, à data, ele e os seus familiares diretos detinham;
j. j) em 30/08/2010, o arguido ordenou a transferência da quantia de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros) para a referida conta bancária com o NIB ..........................05, pertencente a F. S.;
k. k) em 07/09/2010, o arguido ordenou a transferência da quantia de € 350,00 (trezentos e cinquenta euros) para a mesma conta com o NIB ..........................05, pertencente a F. S., com quem o arguido, à data, mantinha um relacionamento amoroso;
l. l) em 28/09/2010, o arguido ordenou a transferência da quantia de € 275,00 (duzentos e setenta e cinco euros) para a sobredita conta com o NIB ..........................05, pertencente a F. S.;
m. m) em 21/10/2010, o arguido ordenou a transferência da quantia de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros) para a conta bancária de F. S., com o NIB ..........................05;
n. n) em 02/11/2010, o arguido ordenou a transferência da quantia de € 325,00 (trezentos e vinte e cinco euros) para a conta bancária com o NIB ..........................05, pertencente a F. S.;
o. o) em 15/11/2010, o arguido ordenou a transferência da quantia de € 175,00 (cento e setenta e cinco euros) para a conta de F. S. com o NIB ..........................05;
p. p) em 02/12/2010, o arguido ordenou a transferência da quantia de € 450,00 (quatrocentos e cinquenta euros) para a mesma conta bancária com o NIB ..........................05, pertencente a F. S.;
q. q) em 31/05/2011, o arguido ordenou a transferência da quantia de € 275,00 (duzentos e setenta e cinco euros) para a conta bancária nº ............30, pertencente ao aludido A. V.;
r. r) em 15/06/2011, o arguido ordenou a transferência da quantia de € 160,00 (cento e sessenta euros) para a conta de F. S. com o referido NIB ..........................05;
s. s) em 16/06/2011, o arguido ordenou a transferência da quantia de € 130,00 (cento e trinta euros) para a conta bancária nº ……….00, pertencente a A. R.;
t. t) em 11/07/2011, o arguido ordenou a transferência da quantia de € 325,00 (trezentos e vinte e cinco euros) para a conta de F. S. com o NIB ..........................05;
u. u) em 02/09/2011, o arguido ordenou a transferência da quantia de € 150,00 (cento e cinquenta euros) para a mesma conta de F. S. com o NIB ..........................05;
v. v) em 09/09/2011, o arguido ordenou a transferência da quantia de € 125,00 (cento e vinte e cinco euros) para a conta de F. S. com o NIB ..........................05;
w. w) em 23/09/2011, o arguido ordenou a transferência da quantia de € 100,00 (cem euros) para a conta de F. S. com o NIB ..........................05;
x. x) em 12/10/2011, mais um vez o arguido ordenou a transferência da quantia de € 500,00 (quinhentos euros) para a conta de F. S. com o NIB ..........................05;
y. y) em 09/11/2011, o arguido ordenou a transferência da quantia de € 120,00 (cento e vinte euros) para a conta bancária nº …….00, pertencente a E. D., à data, amigo da filha da referida F. S.;
z. z) em 16/11/2011, o arguido ordenou a transferência da quantia de € 1000,00 (mil euros) para a conta de F. S. com o NIB ..........................05;
aa. aa) em 22/12/2011, o arguido ordenou a transferência da quantia de € 200,00 (duzentos euros) para a conta bancária nº ................00, pertencente a E. B. (filha da referida F. S.);
bb. bb) em 02/12/2012, o arguido ordenou a transferência da quantia de € 285,00 (duzentos e oitenta e cinco euros) para a referida conta bancária nº ................00, pertencente a E. B. (filha da referida F. S.);
cc. cc) em 09/03/2012, o arguido ordenou a transferência da quantia de € 150,00 (cento e cinquenta euros) para a aludida conta bancária nº ................00, pertencente a E. B.; e
dd. dd) em 20/07/2012, o arguido ordenou a transferência da quantia de € 120,00 (cento e vinte euros) para essa mesma conta bancária nº ................00, pertencente a E. B..
9. Assim, entre o início do ano de 2010 até finais do ano de 2012, por trinta vezes, nas datas supra descritas, o arguido atuou da sobredita forma e determinou que a instituição bancária “CAIXA ...” retirasse da conta bancária da sociedade assistente as quantias por ele indicadas e supra descritas e as depositasse à ordem das contas bancária por ele também indicadas, fazendo, assim, uso do dinheiro que bem sabia pertencer à sociedade “X, Ldª” para proceder ao pagamento de dívidas e despesas particulares que somente ao mesmo diziam respeito ou de pessoas das suas relações próximas e que nada tinham a ver com a sociedade assistente.
10. A quantia global apropriada pelo arguido através das transferências bancárias acima elencadas ascende, pelo menos, ao montante de € 9.165,00, dinheiro esse que não lhe pertencia e de que o mesmo se apropriou em detrimento e em prejuízo da referida sociedade.
11. Entretanto, depois da posse do novo executivo camarário no ano de 2013 e após uma auditoria efetuada às contas e análise da contabilidade da sociedade “X, Ldª”, além das transferências bancárias supra aludidas, verificou-se ainda existência de duas faturas que logo levantaram suspeitas por não estarem relacionadas com o objeto social da assistente: as faturas com os nºs 2025 (de 17/08/2010) e 11/0345E (de 04/08/2011).
12. A fatura nº 2025, no valor de € 950,45, foi emitida em 17 de agosto de 2010 pela sociedade “Auto M. F.” à sociedade assistente, por indicação do arguido, com vista ao pagamento de material e de mão-de-obra relativa a serviço de reparação mecânica de veículos automóveis do arguido e de seus familiares diretos e que por ele havia sido encomendado a M. F., vindo depois tal fatura a ser paga, através de transferência bancária ordenada pelo arguido, em 18 de agosto de 2010, no montante de € 950,00 (cfr. al. i) acima mencionada).
13. Por sua vez, a fatura nº 11/0435E, no valor de € 2.165,00, foi emitida em 04 de agosto de 2011 pela sociedade “Y” à sociedade assistente, por indicação do arguido, com vista ao pagamento da prestação do serviço de restauração realizado em 23 de junho de 2011, no Complexo de Turismo Rural …, sito em …., Espanha, para comemoração da comunhão e batizado dos filhos do arguido, não se realizando ali qualquer outro evento naquela data, designadamente qualquer evento organizado pela sociedade assistente.
14. Tal fatura veio depois a ser paga pelo arguido, em 08 de agosto de 2011, através do cheque nº 9021563909 associado à sua conta bancária pessoal da “Caixa ...” com o nº ……….500, no montante de € 2.165,15 (cfr. fls. 129, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos s legais efeitos).
15. Com a emissão da referida fatura nº 11/0435E em nome da sociedade assistente, porque se trata de uma transação intracomunitária e as mesmas estão isentas de IVA, dando lugar no destino à sua liquidação e dedução, o arguido evitou o pagamento do valor correspondente ao IVA no montante de € 160,38, o que originou a liquidação e dedução do valor do IVA no montante de € 259,80 para a referida sociedade assistente, causando-lhe, assim, um prejuízo neste montante.
16. Em consequência dos factos acabados de descrever, o arguido causou um prejuízo patrimonial à sociedade “X – Transportes Turísticos e Fluviais, Ldª” que ascende, pelo menos, ao valor global de € 9.424,80 (nove mil, quatrocentos e vinte e quatro euros e oitenta cêntimos), cujo valor o arguido, em 21 de janeiro de 2016, já depositou à ordem destes autos.
17. O arguido tinha perfeita consciência que todas as quantias monetárias de que se apropriou eram-lhe indevidas, por não lhe pertencerem, bem sabendo que as mesmas apenas lhe estavam acessíveis momentaneamente, em razão e por causa do cargo e das descritas funções que exercia na referida sociedade, em representação do Município de ....
18. Agiu o arguido de forma livre, deliberada e consciente, em obediência a renovadas e diferentes resoluções criminosas, aproveitando-se do facto de ter na sua esfera de disponibilidade e decisão o destino das verbas e receitas da sociedade assistente, cuja gestão lhe cabia em exclusivo, para fazer uso e se apropriar de valores pecuniários a que sabia não ter direito e que integrou no seu património ou no património de terceiros das suas relações diretas e pessoais, agindo em beneficio destes e em prejuízo da sociedade cujos interesses representava.
19. O arguido, ao invés daquilo a que estava obrigado no exercício das suas aludidas funções públicas, não respeitou a finalidade a que as quantias referidas, no montante global de € 9.424,80, se destinavam, antes as dissipando em proveito próprio e de terceiros que lhe eram próximos e com ele mantinham fortes relações pessoais.
20. Com os factos praticados, o arguido lesou financeiramente os interesses da assistente, pelo menos, no valor supra indicado.
21. O arguido atuou na sequência de diferentes e renovadas resoluções criminosas, executando o plano que havia delineado de forma estruturalmente idêntica e essencialmente homogénea, sendo certo que o facto de ser o único responsável pela efetiva gestão, contabilidade e pagamentos da sociedade assistente e, bem assim, o facto de durante muito tempo ninguém ter detetado a irregularidade da sua atuação, facilitou a prática das referidas condutas.
22. Tinha o arguido perfeito conhecimento que todas as suas condutas eram proibidas e sancionadas por lei e que lesavam o interesse público a que estava vinculado enquanto funcionário e gerente de facto de uma sociedade com capitais públicos e em representação do Município de ..., e a que está distribuído o desempenho de um serviço público.
a.2) do pedido de indemnização cível
23. A demandante cível foi descredibilizada e sujeita a suspeitas e dúvidas sobre a sua gestão durante o período em que o arguido exercia as suas funções.

Mais se provou que:

24. O arguido é casado e tem dois filhos menores, com 10 e 14 anos.
25. O arguido trabalha como docente na escola secundária de .. e aufere mensalmente €1200,00.
26. A esposa do arguido é igualmente docente e aufere também €1200,00.
27. O agregado familiar reside em casa própria e paga mensalmente €500,00 de prestação.
28. O arguido não tem quaisquer antecedentes criminais.

b) factos não-provados
b.1) da acusação pública
b.2) do pedido de indemnização cível

Nenhuns com relevância para a causa.
c) análise crítica da prova

O Tribunal assentou a sua convicção numa análise crítica de toda a prova produzida, tendo valorado a conduta do arguido em sede de audiência de julgamento, bem como a documentação junta aos autos.
Em primeiro lugar, conforme decorre da acta da audiência de julgamento da causa, após ter prestado longamente declarações sobre os factos e de ser interrogado pelo Tribunal após os mesmos, confrontado com as evidências, o arguido declarou que pretendia confessar, integralmente e sem reservas, os factos de que era acusado, mesmo após a advertência prevista no art. 344º, n.º 1 do Cód de Proc Penal, tendo sido atribuída à sua declaração os efeitos previstos no n.º 1 e no n.º 2 do mesmo preceito.
Em segundo lugar, o Tribunal mais valorou aqui a extensa prova documental constante dos autos, a saber, o auto de denúncia de fls 2 a 12, as certidões permanentes de fls 13 a 17, 416 a 424, as certidões de actas de fls 18/24, 36/41, 123/125, os documentos bancários de fls 35, 53/86, 89, 130/156, 173/187, 195/541, 266, 269/280, as facturas de fls 42/44, 46, 49/52, o documento contabilístico de fls 45, as informações de fls 47, 48, 103-B a 103-J, 126/128, 427, os «prints» de fls 110, 111, 161/163, a cópia do cheque de fls 129, os relatos de diligência externa de fls 284/286 e o certificado de registo criminal de fls 414.
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III. Fundamentação de Direito

O arguido encontra-se acusado da prática de um crime de peculato na forma continuada, p. e p. nos arts. 30º, n.º 2, 375º, n.º 1, com referência ao 386º, n.º 1, al.d), n.º 2 e n.º 4, todos do Cód Penal e dos arts. 20º, n.º 1 e 3º, n.º 1, al.i) da Lei n.º 34/87 de 16/07.
Lê-se nas citadas normas o seguinte:
Artigo 375.º
Peculato
1 - O funcionário que ilegitimamente se apropriar, em proveito próprio ou de outra pessoa, de dinheiro ou qualquer coisa móvel ou imóvel ou animal, públicos ou particulares, que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou lhe seja acessível em razão das suas funções, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - Se os valores ou objectos referidos no número anterior forem de diminuto valor, nos termos da alínea c) do artigo 202.º, o agente é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
3 - Se o funcionário der de empréstimo, empenhar ou, de qualquer forma, onerar valores ou objectos referidos no n.º 1, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
Artigo 386.º
Conceito de funcionário
1 - Para efeito da lei penal a expressão funcionário abrange:
a) O funcionário civil;
b) O agente administrativo; e
c) Os árbitros, jurados e peritos; e
d) Quem, mesmo provisória ou temporariamente, mediante remuneração ou a título gratuito, voluntária ou obrigatoriamente, tiver sido chamado a desempenhar ou a participar no desempenho de uma actividade compreendida na função pública administrativa ou jurisdicional, ou, nas mesmas circunstâncias, desempenhar funções em organismos de utilidade pública ou nelas participar.
2 - Ao funcionário são equiparados os gestores, titulares dos órgãos de fiscalização e trabalhadores de empresas públicas, nacionalizadas, de capitais públicos ou com participação maioritária de capital público e ainda de empresas concessionárias de serviços públicos.
3 - São ainda equiparados ao funcionário, para efeitos do disposto nos artigos 335.º e 372.º a 374.º:
a) Os magistrados, funcionários, agentes e equiparados de organizações de direito internacional público, independentemente da nacionalidade e residência;
b) Os funcionários nacionais de outros Estados, quando a infração tiver sido cometida, total ou parcialmente, em território português;
c) Todos os que exerçam funções idênticas às descritas no n.º 1 no âmbito de qualquer organização internacional de direito público de que Portugal seja membro, quando a infracção tiver sido cometida, total ou parcialmente, em território português;
d) Os magistrados e funcionários de tribunais internacionais, desde que Portugal tenha declarado aceitar a competência desses tribunais;
e) Todos os que exerçam funções no âmbito de procedimentos de resolução extrajudicial de conflitos, independentemente da nacionalidade e residência, quando a infração tiver sido cometida, total ou parcialmente, em território português;
f) Os jurados e árbitros nacionais de outros Estados, quando a infração tiver sido cometida, total ou parcialmente, em território português.
4 - A equiparação a funcionário, para efeito da lei penal, de quem desempenhe funções políticas é regulada por lei especial.

O bem jurídico protegido com a incriminação consiste na integridade do exercício de funções públicas pelo funcionário, bem como o património alheio, de natureza pública ou particular; de acordo com o Douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/07/2006, proc. n.º 06P2032, o tipo legal em causa configura uma dupla protecção, tutelando por um lado bens jurídicos patrimoniais, na medida em que criminaliza a apropriação e a oneração ilegítima de bens alheios e por outro lado, a probidade e fidelidade dos funcionários, a fim de garantir o bom andamento e a imparcialidade da Administração Pública.
A nível dos pressupostos objectivos, a norma pune a (a) apropriação (b) ilegítima pelo (c) funcionário, (d) em proveito próprio ou de outra pessoa, (e) de dinheiro ou outra coisa móvel, pública ou particular, (f) que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou lhe seja acessível em razão das suas funções, bem como na oneração dos referidos bens.
A «acção de apropriação» inclui a apropriação de dinheiro ou da coisa que se encontra na sua posse ou lhe é acessível em razão das suas funções; trata-se, ao fim de contas, de uma modalidade de furto qualificado pela qualidade do agente e pela concretização da intenção de apropriação do agente; a conduta típica inclui igualmente a inversão do título da posse da coisa que foi entregue ao funcionário por título não translativo da propriedade; trata-se, nesta modalidade, de um crime de abuso de confiança qualificado pela qualidade do agente; a norma equipara a «oneração dos referidos bens» à acção e apropriação.

A este respeito, tem muito interesse o Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19/05/2015, proc. n.º 115/08.7TASPS.L1-5, onde se lê o seguinte:
I. Para o crime de peculato, tal como para o crime de abuso de confiança, o que releva para definir a consumação do crime, é a apropriação, não o propósito de apropriação. Aquela consuma-se com a atitude de o arguido dissipar o dinheiro, que lhe foi entregue para determinados fins, em seu próprio proveito ou de terceira pessoa ou, simplesmente, dar-lhe um destino diverso daquele que lhe deveria dar. Qualquer dessas atitudes revela que o arguido agiu como se o dinheiro fosse dele, usou-o como se fosse o respectivo dono, apropriando-se do mesmo.
II. É esse o momento da inversão do título da posse, pois, enquanto até ali, o agente possuía em nome de terceiro – tendo aquele recebido o bem por título não translativo da propriedade -, a partir de então agiu como dono da coisa que lhe foi entregue.
III. Aquela apropriação, implicando a aludida inversão do título de posse, extrai-se da prática de actos concludentes de que resulte a intenção de o agente fazer sua a coisa.
(…)
Aquela apropriação, implicando a aludida inversão do título de posse, extrai-se da prática de actos concludentes de que resulte a intenção de o agente fazer sua a coisa, sendo exemplo de tal apropriação «a recusa de restituição ou a omissão da recusa de interpelação para o efeito», ou ainda, a «mera omissão da devolução decorrido um tempo razoável» e, tratando-se de coisa fungível, como o dinheiro, «ocorre quando o agente não a restitui no tempo e sob a forma combinada com o seu proprietário ou dispõe dele de forma injustificada»
A apropriação deve ser «ilegítima», no sentido de ser contra a lei, de não haver nenhum título que justifique e legitime a apropriação ou oneração da coisa alheia.
Essa apropriação pode ser em «proveito próprio do funcionário ou de terceiro», podendo este terceiro ser uma pessoa singular ou colectiva, pública ou particular.
A «coisa» pode ser pública ou particular mas deverá sempre ser alheia ao funcionário; a norma abrange de igual forma dinheiro e coisa móvel.
Essa coisa deve estar na «posse ou detenção do funcionário ou estar acessível ao mesmo»; a coisa considera-se acessível ao funcionário quando estiver na sua esfera de domínio funcional, não se exigindo que se encontre na sua posse ou detenção física; por outro lado, deve estar-lhe acessível, na sua posse ou detenção «em razão do exercício das suas funções»; trata-se da tutela de uma relação funcional de facto entre um funcionário e um bem, público ou privado, em que a intangibilidade deste deverá ser garantida em nome dos deveres do cargo e é posta em crise pela conduta indevida. Nos termos do Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 23/01/2013, proc. n.º 214/11.8PCCBR.C1, o segmento «acessível em razão das suas funções» referido no art. 375º, n.º 1 do Cód Penal exige uma especial relação de poder ou de domínio ou de controlo/supervisão sobre a coisa que o agente detém em razão das suas específicas funções e que vem a postergar com abuso ou infidelidade das específicas funções, ao apropriar-se, para si ou para terceiro, dessa mesma coisa - não sendo suficiente apenas a simples acessibilidade física em relação à coisa de que se apropria.
A nível dos pressupostos subjectivos, trata-se de um crime exclusivamente doloso embora admita qualquer modalidade de dolo.
A «pedra de toque» desta norma consiste no conceito de «funcionário» cuja definição consta do art. 386º do Cód Penal. Esta norma teve por intenção reunir num só preceito todas as definições possíveis de «funcionário» espalhadas por várias normas do Cód Penal, em vez de se definir «norma a norma» o conceito de funcionário aplicável àquele ilícito-típico em concreto. De acordo com o Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26/02/2010, proc. n.º 591/02.1JACBR.C1,
1.- O conceito de funcionário, definido pelo artigo 386 do CP, é um conceito amplo, diferente do conceito de funcionário para efeitos administrativos e, cada vez mais amplo como resulta das sucessivas alterações legislativas;
2.- O conceito, para o direito penal, consagra qualquer atividade realizada com fins próprios do Estado e, a atividade relacionada com a liquidação de patrimónios em processo de falência ou a venda em ação executiva é fim próprio do Estado levada a efeitos através do órgão de soberania Tribunais;
3.- Aquele que desempenha atividade compreendida na função pública administrativa ou jurisdicional, de forma temporária, mediante remuneração, recebendo e executando ordens emanadas da autoridade, tem a qualidade de funcionário para efeitos do disposto nos artigos 386º CP.

De acordo com Pinto de Albuquerque, o conceito de gestores, titulares dos órgãos de fiscalização e trabalhadores de empresas públicas, nacionalizadas, de capitais públicos ou com participação maioritária de capital público e ainda de empresas concessionárias de serviços públicos integram o conceito de «funcionário», para os efeitos do art. 386º, quer as referidas entidades explorem serviços públicos ou outros serviços; de acordo com o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 371/83, o propósito do legislador foi o de evitar «lacunas de punibilidade» em relação a funções cujo paralelismo com o conceito de «funcionário» é por demais evidente; a ratio da equiparação assenta no «estatuto funcional» das pessoas que exercem aquelas funções, o que se compreende na medida em que a gravidade acrescida do ilícito assenta na violação de certos deveres funcionais e não na natureza do serviço que prestam.
Trata-se de um crime de dano e de resultado.
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Por seu turno, lê-se nos arts. 20º, n.º 1 e 3º, n.º 1, al.i) da Lei n.º 34/87 de 16/07 o seguinte:

Artigo 3.º
Cargos políticos
1 - São cargos políticos, para os efeitos da presente lei:
(…)
i) O de membro de órgão representativo de autarquia local;
Artigo 20.º
Peculato
1 - O titular de cargo político que no exercício das suas funções ilicitamente se apropriar, em proveito próprio ou de outra pessoa, de dinheiro ou qualquer coisa móvel ou imóvel, pública ou particular, que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou lhe seja acessível em razão das suas funções, é punido com prisão de três a oito anos e multa até 150 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - Se o infractor der de empréstimo, empenhar ou, de qualquer forma, onerar quaisquer objectos referidos no número anterior, com a consciência de prejudicar ou poder prejudicar o Estado ou o seu proprietário, será punido com prisão de um a quatro anos e multa até 80 dias.
Como se pode ver, trata-se de uma norma que vai beber muito, a nível dos pressupostos objectivos e subjectivos, do tipo legal consagrado nos arts. 375º e 386º do Cód Penal. Existem, todavia, duas grandes diferenças:
Em primeiro lugar, uma diferença de nota radica no agente do crime; ao passo que no tipo legal consagrado nos arts. 375º e 386º do Cód Penal se trata de um «funcionário», o tipo legal do arts. 20º, n.º 1 da Lei n.º 34/87 de 16/07 aplica-se a «titular de cargo político», nos termos definidos no 3º, n.º 1, al.i) do mesmo diploma.
Em segundo lugar, outra diferença assenta na moldura penal: ao passo que o art. 375º do Cód Penal é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal, o tipo legal do arts. 20º, n.º 1 da Lei n.º 34/87 de 16/07 é punido com é punido com prisão de três a oito anos e multa até 150 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
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Posto isto, afigura-se evidente que os pressupostos de ambas as normas se encontram preenchidos.
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Sobre o crime de peculato – art. 375º do Cód Penal
Em primeiro lugar, na medida em que resulta dos factos considerados provados que o arguido exercia funções de gerência de facto de uma sociedade de capitais públicos – na medida em que a sociedade «X» foi constituída por dois municípios – o mesmo deve ser considerado um «funcionário», nos termos e para os efeitos do disposto nos arts. 375º e 386º, n.º 2 do Cód Penal, visto que que as razões subjacentes à criminalização – a tutela da integridade do exercício de funções públicas pelo funcionário, bem como o património alheio, de natureza pública ou particular -devem abarcar o tipo de vínculo estabelecido entre o arguido e a dita sociedade (cfr, a este respeito, o Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26/02/2010, proc. n.º 591/02.1JACBR.C1 atrás citado).
Em segundo lugar, na medida em que resulta dos factos provados que o arguido dispôs do dinheiro de uma conta aberta em nome da sociedade «X», tendo feito transferências para uma sujeita com quem mantinha um relacionamento amoroso, por diversas ocasiões, para o proprietário de uma casa arrendada em nome da dita sujeita, para a filha da mesma sujeita com quem mantinha um relacionamento amoroso, para a oficina onde fazia reparações automóveis pessoais e para uma entidade onde organizou uma festa de comunhão e baptizado dos seus filhos menores, sem que estas transferências tivessem alguma relação com o objecto social da assistente, torna-se por demais evidente que o arguido apropriou-se em benefício de terceiros de uma coisa móvel (em concreto dinheiro) que lhe estava acessível em razão do exercício das suas funções. – cfr pontos 8, 12 e 13 dos factos provados.
Com efeito, atenda-se que os Tribunais superiores já decidiram que o acto de «apropriação» consuma-se com a atitude de o arguido dissipar o dinheiro, que lhe foi entregue para determinados fins, em seu próprio proveito ou de terceira pessoa ou, simplesmente, dar-lhe um destino diverso daquele que lhe deveria dar; qualquer dessas atitudes revela que o arguido agiu como se o dinheiro fosse dele, usou-o como se fosse o respectivo dono, apropriando-se do mesmo (cfr, a este respeito, o Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19/05/2015, proc. n.º 115/08.7TASPS.L1-5 atrás citado).
Ao ter agido da forma descrita resumidamente supra, obviamente que agiu como se o dinheiro fosse dele, usando-o para entregar quantias a uma pessoa com quem mantinha um relacionamento amoroso e para pagamento de despesas pessoais.
Por outro lado, pelos mesmos motivos, usou-o tanto em benefício próprio como de terceiro.
Em terceiro lugar, a isto acresce que a «coisa» de que se apropriou consiste em dinheiro, pelo que se trata de um objecto expressamente previsto na norma.
Em quarto lugar, a coisa apreendida encontrava-se acessível ao arguido unicamente em razão das suas funções uma vez que se não exercesse funções de gestão na sociedade em causa, não se vislumbra por que motivo teria acesso às quantias em questão (cfr, a este respeito, o Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 23/01/2013, proc. n.º 214/11.8PCCBR.C1 atrás citado).
Em quinto lugar, a apropriação em causa foi ilegítima na medida em que não resulta dos factos provados título que justifique as transferências em questão.
Por último, o arguido agiu dolosamente, na sua modalidade de dolo directo.
Termos em que o arguido cometeu um crime de peculato, p. e p. no 375º, n.º 1, com referência ao 386º, n.º 1, al.d), n.º 2 e n.º 4, todos do Cód Penal.
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Sobre o crime de peculato – art. 20º da Lei n.º 34/87
O arguido encontra-se ainda acusado da prática do crime de peculato previsto no art. 20º da Lei n.º 34/87 de 16/07.
Em primeiro lugar, vimos acima que esta norma tem os mesmos pressupostos objectivos e subjectivos do que a norma homónima do art. 375º do Cód Penal, pelo que, estando os pressupostos desta preenchidos, os pressupostos objectivos e subjectivos do art. 20º da Lei n.º 34/87 de 16/07 também se consideram preenchidos.
Em segundo lugar, a grande diferença entre as normas assenta na qualidade do agente; ao passo que o art. 375º do Cód Penal aplica-se a «funcionários», a norma do art. 20º da Lei n.º 3/87 de 16/07 aplica-se a «titulares de cargos políticos».
Ora, o art. 3º, n.º 1, al.i) da Lei n.º 34/87 de 16/07 (uma norma homóloga ao art. 386º do Cód Penal) define como «cargo político», para efeitos do diploma, o de «membro de órgão representativo de autarquia local».
In casu, na medida em que resulta dos factos provados que o arguido, na sequência de acto eleitoral, integrou o executivo da Câmara Municipal de ..., nos quadriénios de 2005/2009 e de 2010/2013, desempenhando o cargo de vice-presidente e de Vereador do Pelouro do Turismo, em regime de permanência, entre 21/10/2005 e 17/10/2013, o mesmo preenchia o pressuposto previsto no art. 3º, n.º 1, al.i) da Lei n.º 34/87 de 16/07.
Termos em que o arguido cometeu um crime de peculato, p. e p. nos arts. 20º, n.º 1 e 3º, n.º 1, al.i) da Lei n.º 34/87 de 16/07.
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Sobre o concurso de crimes – arts. 30º e 79º do Código Penal

O concurso de crimes encontra-se regulado nos arts. 30º e 79º do Código Penal. A problemática do concurso de crimes reconduz-se à questão da unidade ou pluralidade de valorações criminais existentes no comportamento global do agente submetido à apreciação do Tribunal que define, em definitivo, a unidade ou pluralidade de factos puníveis.
A partir de um só facto ou de uma só acção podem realizar-se diversos crimes, por violação simultânea de diversas normas incriminadoras, bem como o mesmo crime diversas vezes, por violação da mesma norma incriminadora (concurso ideal); tal como a partir de vários factos ou de várias acções pode realizar-se o mesmo crime diversas vezes, por violação repetida da mesma norma incriminadora, bem como diversos crimes, por violação de diversas normas incriminadoras (concurso real).
Se forem negados diversos valores jurídicos, existirão tantos crimes quantos os valores negados ainda que a acção do sujeito se circunscreva a uma só conduta naturalística; inversamente se apenas um valor é negado, apenas um crime existirá em virtude de a específica negação de valor que se repreende no crime reunir em si todos os elementos que o constituem numa só actividade.
A conduta naturalística funciona como indicador de uma unidade ou pluralidade de resoluções criminosas. A designada unidade lateral de acção revela-se na realização reiterada do mesmo tipo legal, numa sucessão ininterrupta de actos que fundamentalmente concretizam a mesma decisão unitária de vontade.
Na linha da fundamentação constante dos Doutos Acórdãos do Tribunal da Relação de Évora de 20/05/2014, proc. n.º 358/10.3T3STC.E1 e da Relação do Porto de 09/07/2014, proc. n.º 2060/12.2JAPRT.S1.P1, a qual subscrevemos, as normas jurídico-penais, a par da valoração objectiva da conduta humana, têm uma função de determinação, de imperativo, de contrapeso no momento da resolução, havendo tantas violações de norma quantas vezes ela se tornar ineficaz nessa função determinadora da vontade.

No caso concreto, temos aqui duas situações de concurso: a conduta do arguido preenche simultaneamente os pressupostos objectivos e subjectivos de duas normas distintas e o arguido agiu por várias vezes, numa unidade naturalística, num período de tempo que se estendeu entre 2010 e 2012.

Em primeiro lugar, no que diz respeito à primeira situação de concurso – o facto de a conduta do arguido preencher simultaneamente os pressupostos de duas normas distintas – há que relembrar as regras reguladoras do concurso de crimes sumariamente descritas no Douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/05/2010, proc. n.º 474/09.4PSLSB.L1.S1:

I - A problemática relativa ao concurso de crimes (unidade e pluralidade de infracções), das mais complexas na teoria geral do direito penal, tem no art. 30.º do CP, a indicação de um princípio geral de solução: o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
II - O critério determinante do concurso é, assim, no plano da indicação legislativa, o que resulta da consideração dos tipos legais violados. E efectivamente violados, o que aponta decisivamente para a consagração de um critério teleológico referido ao bem jurídico.
III - A indicação da lei acolhe, pois, as construções teoréticas e as categorias dogmáticas que, sucessivamente elaboradas, se acolhem nas noções de concurso real e concurso ideal.
IV - Há concurso real quando o agente pratica vários actos que preenchem autonomamente vários crimes ou várias vezes o mesmo crime (pluralidade de acções), e concurso ideal quando através de uma mesma acção se violam várias normas penais ou a mesma norma repetidas vezes (unidade de acção).
V - O critério teleológico que a lei acolhe no tratamento do concurso de crimes, condensado na referência a crimes «efectivamente cometidos», é adequado a delimitar os casos de concurso efectivo (pluralidade de crimes através de uma mesma acção ou de várias acções) das situações em que, não obstante a pluralidade de tipos de crime eventualmente preenchidos, não existe efectivo concurso de crimes (os casos de concurso aparente e de crime continuado).
VI - Ao lado das espécies de concurso próprio (ideal ou real) há, com efeito, casos em que as leis penais concorrem só na aparência, excluindo uma as outras.
VII - A ideia fundamental comum a este grupo de situações é a de que o conteúdo do injusto de uma acção pode determinar-se exaustivamente apenas por uma das leis penais que podem entrar em consideração – concurso impróprio, aparente ou unidade de lei.
VIII - A determinação dos casos de concurso aparente faz-se, de acordo com as definições maioritárias, segunda regras de especialidade, subsidiariedade ou consumpção.
A este respeito, considera-se existir uma relação de «subsidiariedade» quando uma norma condiciona expressamente a sua aplicação à não aplicação de outra.
In casu, lendo as normas do art. 375º, n.º 1 do Cód Penal e 20º, n.º 1 da Lei n.º 34/87de 16/07, verifica-se que ambas condicionam a sua aplicação à circunstância de pena mais grave não caber ao agente por força de outra disposição legal.
Termos em que existe aqui uma relação de subsidiariedade expressa entre ambas as normas (art. 30º do Cód Penal).
Ora, analisando as molduras penais, verifica-se que a moldura prevista no 20º, n.º 1 da Lei n.º 34/87de 16/07 é mais grave do que a moldura prevista no art. 375º, n.º 1 do Cód Penal.
Termos em que o arguido deve ser punido pela moldura do art. 20º, n.º 1 da Lei n.º 34/87de 16/07.
Em segundo lugar, no que diz respeito à segunda situação de concurso, verifica-se que o arguido reiterou a sua conduta pelo menos em 30 ocasiões durante um período que se estendeu entre 2010 e 2012.
Ora, o número de vezes em que se verifica essa ineficácia é fornecido pelo critério da resolução, a qual ilustra quantas vezes o indivíduo resolveu agir por modo contrário ao imperativo da norma.
No caso concreto, o Tribunal considera que se verifica aqui um concurso de crimes, na sua modalidade de concurso ideal efectivo na medida em que uma só acção, que implementou uma só resolução criminosa.
Termos em que o arguido cometeu um só crime na sua forma continuada – arts.º 30º e 79º do Cód Penal.
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IV. Determinação da medida da pena

Realizado desta forma o enquadramento jurídico-penal, importa agora determinar a natureza e medida da pena a aplicar.
O crime de peculato na forma continuada, p. e p. nos arts. 30º, n.º 2, 375º, n.º 1, com referência ao 386º, n.º 1, al.d), n.º 2 e n.º 4, todos do Cód Penal e dos arts. 20º, n.º 1 e 3º, n.º 1, al.i) da Lei n.º 34/87 de 16/07 é punido com pena de prisão entre 3 e 8 anos e pena de multa até 150 dias.
O art. 40º Código Penal determina que a pena tem finalidades exclusivamente preventivas, visando proteger bens jurídicos (prevenção geral) e a reintegração do agente na sociedade (prevenção especial); a isto acresce que a culpa constitui o limite máximo da pena (arts. 40º, n.º 1 e n.º 2, do Cód. Penal).
Por seu turno, o art. 70º do Código Penal determina que, se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não-privativa da liberdade, o Tribunal deverá dar preferência à pena não-privativa da liberdade sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Por outro lado, a determinação da medida da pena será feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (art. 71º Código Penal).
Passando para a determinação concreta da pena no caso sub-judice:
Em primeiro lugar, as exigências de prevenção geral afiguram-se, no caso concreto, no caso concreto, prementes. Num país em que a delapidação de fundos públicos – em particular nos órgãos autárquicos – frequentemente goza de impunidade, não merecendo sequer a censura dos eleitores, constituindo assim forte incentivo para a reiteração de fenómenos de similares em proveito pessoal, assim prejudicando a imagem e funcionamento da Administração Pública, o Tribunal entende que deve punir estas condutas, sinalizando assim à comunidade que as mesmas são efectivamente ilícitas e que não passam impunes.
Em segundo lugar, consideramos que as exigências de prevenção especial afiguram-se, no caso concreto, reduzidas. O arguido encontra-se socialmente integrado e não tem antecedentes criminais.
Na medida em que se trata de num crime ainda punível com pena de prisão e com pena de multa (cumulativas), importa proceder à determinação da respectiva medida.
A aplicação de qualquer pena ou medida de segurança visa não só a protecção de bens jurídicos mas também a reintegração do agente na sociedade, pelo que (sendo certo que em caso algum a pena poderá ultrapassar a medida da culpa), compete ao tribunal, na operação de determinação da medida da pena conduzir-se por duas ideias fundamentais: a culpa e a prevenção, quer geral, quer especial (artigos 40.º e 71.º, ambos do Código Penal).

Atendendo aos elementos a ponderar na determinação da medida concreta da pena, importa atender aos seguintes critérios que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele:

- grau de ilicitude do facto – afigura-se mediana; o arguido dissipou património público em proveito pessoal e de terceiros.
- modo de execução deste – foi realizado de modo subversivo, aproveitando-se dos poderes de gestão que detinha sobre uma sociedade;
- gravidade das consequências – o património da sociedade ficou delapidado em €9.424,80.
- conduta anterior ao facto e posterior a este – o arguido não tem quaisquer antecedentes criminais e repôs o dinheiro de que se apropriou, o que não pode ser desconsiderado; também manifestou arrependimento pela sua conduta o que nos parece sincero.
- intensidade do dolo – agiu como dolo directo, o que constitui a modalidade mais grave de dolo.
- condições pessoais ao gente e sua situação económica – trata-se de um arguido socialmente integrado, a trabalhar, nada havendo a salientar em relação à sua pessoa;
A moldura penal abstracta da pena de prisão aplicável a este crime encontra-se fixada entre 3 e 5 anos (por força do disposto no art. 16º, n.º 3 do Cód de Proc Penal).
A moldura penal abstracta da pena de multa aplicável a este crime encontra-se fixada entre 10 e 150 dias (art. 47º, n.º 1 do Código Penal).

Termos em que consideramos justa e adequada:
- a pena de 3 anos e 3 meses de prisão -
- a pena de 80 dias de multa

No que diz respeito ao quantitativo diário da multa, fixamos o mesmo em €6,00 (art. 47.º n.º 2 do Código Penal).
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Da suspensão da execução da pena de prisão – art. 50º do Código Penal

Lê-se no art.50º do Código Penal o seguinte:
Artigo 50.º
Pressupostos e duração
1 - O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
2 - O tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova.
3 - Os deveres e as regras de conduta podem ser impostos cumulativamente.
4 - A decisão condenatória especifica sempre os fundamentos da suspensão e das suas condições.
5 - O período de suspensão tem duração igual à da pena de prisão determinada na sentença, mas nunca inferior a um ano, a contar do trânsito em julgado da decisão.
Este preceito consiste numa decorrência do princípio da humanidade nas penas e destina-se a combater as penas de prisão de curta e média duração; essencialmente, parte do princípio de que a advertência contida na condenação na pena de prisão poderá cumprir as finalidades preventivas que se pretendem alcançar com a punição penal, não sendo necessário proceder ao encarceramento do condenado.
O Tribunal considera que os pressupostos da norma se encontram preenchidos.
Em primeiro lugar, trata-se de uma pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos.
Em segundo lugar, o Tribunal entende que a simples censura do facto e a ameaça da prisão cumprem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Com efeito, atente-se que o arguido não tem quaisquer antecedentes criminais, repôs o dinheiro com que se apropriou e manifestou arrependimento, o que nos parece sincero.
Pelo exposto, o Tribunal entende que deve suspender a execução da pena de prisão por igual período.
Todavia, uma suspensão pura e simples não cumpre na íntegra as finalidades preventivas.
O Tribunal considera que deverá ser sujeita a um dever e a uma regra de conduta destinados a reparar a imagem pública e o mal do crime causado.
No que diz respeito ao dever, o Tribunal considera que o arguido deve entregar a uma instituição de solidariedade social, em concreto, à Santa Casa da Misericórdia de ... a quantia de €1000,00, como manifestação pública de arrependimento sincero pela sua conduta – art. 51º, n.º 1, al.c) do Cód Penal; como prazo de cumprimento desta obrigação, na decorrência e no rigoroso cumprimento da Douta Decisão sumária que conheceu o recurso da versão anterior desta sentença, estabeleço o prazo de 10 dias, a contar do trânsito em julgado da sentença.
No que diz respeito à regra de conduta, o Tribunal considera que o arguido deverá publicar, a suas expensas, no jornal mais lido da localidade, durante o prazo da suspensão, uma manifestação pública de arrependimento pelos erros cometidos durante o seu exercício de cargos autárquicos que conduziram à sua condenação pelo crime de peculato – art. 52º, n.º 1, al.c) do Cód Penal.
Termos em que o Tribunal decide suspender a execução da pena de prisão por igual período e sujeitar essa suspensão ao dever e regra de conduta atrás referidos.
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V. Sobre o pedido de indemnização cível

O ofendido deduziu ainda pedido de indemnização civil por danos ocasionados com o crime.
O art. 129º do Código Penal determina que a indemnização pelas perdas e danos emergentes do crime é regulada pela lei civil.
São, portanto, aqui aplicáveis as regras da responsabilidade civil previstas nos artigos 483º e seguintes do Código Civil, e da obrigação de indemnizar previstas nos artigos 562.º e seguintes do mesmo diploma legal.
O artigo 483º n.º1 do Código Civil obriga «aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrém ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios (...) a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».

A responsabilidade civil por facto ilícito assenta, portanto, nos seguintes pressupostos:

a) a existência de um facto voluntário do agente;
b) a ilicitude de tal facto (mediante a violação de um direito de outrem ou violação de lei que protege interesses alheios);
c) a culpa (ou nexo de imputação do facto ao lesante);
d) o dano ( um prejuízo causado pelo facto ilícito) e,
e) o nexo de causalidade entre o facto e o dano.

A título de danos, dispõe o art. 562º Código Civil que, quem se encontrar obrigado a reparar um dano, deverá reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.
Este preceito deve ser lido em conjunto com o art. 566º Código Civil, onde se lê que a indemnização deverá ser fixada em dinheiro sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor.
Seguindo este raciocínio, analisemos o pedido deduzido pelo demandante.
Em primeiro lugar, é inegável que se trata de um acto voluntário do agente, porquanto dispomos de elementos que apontam para que o acto de agir da forma descrita nos factos provados foi praticado de acordo com a vontade do sujeito; da factualidade provada resulta que se tratou de acto perfeitamente dominável pela vontade.
Em segundo lugar, o acto em causa é sem dúvida ilícito, na medida que ofendeu o património do ofendido, os quais encontram resguarda legal nos art. 63º da Constituição e nos arts. 483º e 1302º do Código Civil. Por seu turno, é ainda qualificável como crime de peculato na forma continuada, p. e p. nos arts. 30º, n.º 2, 375º, n.º 1, com referência ao 386º, n.º 1, al.d), n.º 2 e n.º 4, todos do Cód Penal e dos arts. 20º, n.º 1 e 3º, n.º 1, al.i) da Lei n.º 34/87 de 16/07.
Em terceiro lugar, o acto em causa é sem dúvida culposo uma vez que, como o arguido agiu livre, voluntária e deliberadamente, tendo consciência que a sua conduta era qualificada como crime, podia e devia ter-se comportado de outra forma, pelo que não procedeu com a diligência de um bom pai de família, de acordo com as circunstâncias do caso concreto (art. 487º, n.º 2, Código Civil).
Em quarto lugar, afigura-se inegável que a conduta do arguido tenha produzido danos.
A este respeito, o ofendido peticiona uma indemnização no valor de (a) €11.770,75 a título de indemnização por danos patrimoniais, à qual acrescem juros de mora vincendos até efectivo e integral pagamento; (b) €2500,00 a título de danos não-patrimoniais, acrescida de juros legais desde a notificação até efectivo e integral pagamento, tudo no montante global de €14.270,75.
No que diz respeito à indemnização por danos patrimoniais, na medida em que resulta dos factos provados que a conduta do arguido provocou danos no valor de €9.424,80, o valor dos danos patrimoniais será equivalente a esta quantia (art. 566º, n.º 2 do Cód Civil).
No que diz respeito à indemnização por danos não-patrimoniais, a lei admite a indemnização por danos não-patrimoniais. Nos termos do art. 496º, nº1 do Código Civil, os danos não patrimoniais serão atendíveis sempre que, pela sua gravidade, mereçam tutela do direito. Segundo o nº3 do mesmo preceito legal, o montante indemnizatório será fixado equitativamente pelo Tribunal (artigo 4º, alínea a) do Código Civil), tendo em atenção o grau de culpabilidade do agente, a situação económica do lesado e as demais circunstâncias que o justifiquem (por remissão para o artigo 494º do referido Código).
In casu, resulta dos factos provados que a demandante cível foi descredibilizada e sujeita a suspeitas e dúvidas sobre a sua gestão durante o período em que o arguido exercia as suas funções.

Todavia, a Jurisprudência dos Tribunais superiores tem hesitado em relação à indemnização por danos não-patrimoniais causados a pessoas colectivas:

A este respeito, importa atentar ao Douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/07/2014, proc. n.º 366/12.OTVLSB.L1.S1, onde se lê o seguinte:

1 . As sociedades comerciais podem ser compensadas por danos não patrimoniais.
2 . A sua natureza leva, no entanto, a que surjam especificidades.
3 . Entre elas, a maior exigência quanto à gravidade merecedora da tutela do direito do que a relativa às pessoas singulares.
4 . Não atinge gravidade suficiente a dúvida e desconfiança de pessoas relacionadas comercialmente com a sociedade, sobre se esta tinha o telefone cortado por não ter dinheiro para o pagar e se dispunha de dinheiro para pagar o preço que propunha pela compra de catalisadores.

Interessa ainda o Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23/09/2007, proc. n.º 8509/2006-7 onde se lê o seguinte:

I – As pessoas colectivas gozam dos direitos e estão sujeitas aos deveres compatíveis com a sua natureza, não se encontrando excluídos da sua capacidade de gozo alguns direitos de personalidade, como é o caso do direito à liberdade, ao bom nome e à honra na sua vertente da consideração social.
II – Insere-se na norma constante do art.º 484, do Código Civil, a protecção do bom-nome das pessoas colectivas na vertente da imagem de honestidade na acção, de credibilidade e de prestígio social, comportando a sua previsão não só as declarações baseadas em factos (verdadeiros ou falsos) que sejam susceptíveis de gerar um movimento negativo relativamente ao visado, mas também os comentários e as opiniões informativas, sempre que o juízo de valor neles contidos seja apresentado como um facto desonroso ou lhe esteja por subjacente (explícita ou implicitamente) a ideia de que à notícia transmitida se deve acrescentar algo desfavorável ao visado e ainda não revelado.
III - O conflito entre o direito ao bom nome e reputação com o direito de liberdade de expressão soluciona-se optimizando a eficácia de cada um deles através da distribuição proporcional dos custos desse conflito sem que, porém, se atinja o conteúdo essencial de cada um.
IV - A violação de um direito afecto à personalidade jurídica da sociedade, como é o caso do direito ao bom nome e à imagem, apenas será indemnizável se da lesão resultar um reflexo negativo na sua potencialidade de lucro.

Por seu turno, mais resulta do Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 18/02/2014, proc. n.º 366/12.0TVLSB.L1-7:

I – A essência do dano não patrimonial está na repercussão que a ofensa recebida tem no espírito do lesado, traduzindo-se no sofrimento, físico ou moral, nele infligido.
II – As pessoas coletivas gozam de direito a indemnização pelos danos sofridos com a afirmação ou difusão de facto que seja suscetível de prejudicar o seu crédito ou bom nome, bens de natureza imaterial – art. 484º do C. Civil;
III – Importando distinguir entre o bem jurídico atingido e o dano que resulta dessa lesão, a afetação do crédito ou do bom nome de sociedade comercial é insuscetível de provocar nela, enquanto entidade destituída de personalidade física e moral, qualquer reflexo negativo de natureza psicológica;
IV – Daí que a ofensa perpetrada só releve, para efeitos de indemnização, na medida em que cause um dano indireto, sendo assim qualificado aquele que, embora atingindo bens jurídicos imateriais, como o bom nome ou o crédito, se reflete negativamente no património do lesado.

Daqui se retira que a Jurisprudência dos Tribunais superiores, muito embora admita a titularidade de direitos de personalidade por pessoas colectivas, tem sido particularmente exigente com a possibilidade de estas reclamarem uma indemnização por danos não-patrimoniais, apenas a admitindo quando a lesão nos direitos de personalidade da pessoa colectiva se repercutir no património do lesado, mormente na sua potencialidade de lucro.
Ora, não resulta dos factos provados que tenha sido afectada a referida capacidade de lucro da sociedade.
Termos em que nenhuma quantia deve ser fixada a título de danos não-patrimoniais.
Por último, deve ainda ser estabelecido o nexo de causalidade entre o facto e o dano para que o concreto dano possa ser imputado à conduta do agente.
A este respeito, o art. 563º Código Civil adoptou o critério da causalidade adequada na sua formulação negativa, na medida em que a obrigação de indemnização apenas existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.
O julgador tem que realizar um juízo de «prognose póstuma» no sentido de avaliar se a conduta é causa adequada dos danos ou se foi de todo em todo irrelevante para a produção daqueles danos.

No caso concreto, não parecem suscitar dúvidas de que a conduta do arguido foi causa adequada do prejuízo sofrido pela assistente, porquanto, realizando um juízo de prognose póstuma, a sua conduta levou o ofendido a sofrer os danos patrimoniais assinalados acima, pelo que constitui uma forma adequada de produção daqueles danos.
Assim, condeno o arguido a indemnizar o ofendido na quantia de €9424,80 (nove mil, quatrocentos e vinte e quatro euros e oitenta cêntimos) a título de danos patrimoniais ocasionados com a sua conduta.
A ofendida mais peticiona a condenação do arguido no pagamento de juros desde a data da apropriação indevida até efectivo e integral pagamento.
Após ser proferida sentença, que condenou o arguido no pagamento à assistente da quantia de €9.424,80 a título de danos patrimoniais acrescida de juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento, o arguido veio requerer a aclaração da sentença a respeito do momento a partir do qual inicia a contabilização dos juros vencidos e até quando se contabiliza dos juros vincendos (refª 1084679 (09/04/2018)).
O Tribunal respondeu a esta questão através do despacho com a refª 21101120 (03/05/2018).

A Douta Decisão sumária que conheceu do objecto do recurso entendeu que ocorreu aqui uma nulidade com os seguintes fundamentos:

A sentença inicial não fazia nenhuma referência ao momento a partir do qual deveriam ser contados os juros de mora quanto ao pedido cível e implicação quanto a estes, do depósito efetuado pelo arguido à ordem dos autos; do mesmo modo, omitia qualquer fundamentação quanto à decisão sobre juros.
Após pedido de reforma da sentença decidiu-se “ex novo” (pois tal não constava da sentença inicial), que os juros deveriam ser contados “por reporte ao pedido formulado pela assistente no pedido de indemnização cível” e que o depósito “não interrompe a contagem dos juros em causa”, de novo sem qualquer fundamentação – que aliás, não podia ser junta em decisão sobre pedido de esclarecimento e reforma da sentença.

Tendo, por estes motivos, determinado a substituição da sentença proferida por outra onde se decidisse, fundamentadamente desde quando são devidos juros de mora pelo demandado e qual a implicação nestes, do depósito/pagamento a efetuar nos autos:
Cumpre agora dar rigoroso cumprimento à Douta Decisão sumária que antecede.

Isto posto:
Em primeiro lugar, no que diz respeito à questão de saber a partir de que momento é que são devidos juros de mora, o art 805º, n.º 1, al.c) do Cód Civil é claríssimo que existe mora do devedor, independentemente de interpelação, quando a obrigação provier de um facto ilícito; quanto ao momento a partir do qual se começam a contar os juros, depende da liquidez do crédito: se o crédito for ilíquido, não há mora enquanto se não tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor; tratando-se, porém, de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, o devedor constitui-se em mora desde a citação, a menos que já haja então mora, nos termos da primeira parte deste número (art 805º, n.º 3 do Cód Civil).
Tomando em consideração que a obrigação de indemnização provém da prática de um crime de peculato na forma continuada, p. e p. nos arts. 30º, n.º 2, 375º, n.º 1, com referência ao 386º, n.º 1, al.d), n.º 2 e n.º 4, todos do Cód Penal e dos arts. 20º, n.º 1 e 3º, n.º 1, al.i) da Lei n.º 34/87 de 16/07, torna-se por demais evidente que a mesma provém de um facto ilícito; nestes termos, por força do disposto no art 805º, n.º 3 do Cód Civil, o devedor constituir-se-á em mora a partir da citação, salvo se o crédito já for líquido, situação em que o devedor se terá constituído em mora, independentemente de interpelação, a partir do momento em que se tornou líquido – cfr o Douto Acórdão do STJ de 20/01/2010, proc. n.º 380/1999.P2.S1.
Ora, por »liquidez do crédito«, entende-se »a qualidade da obrigação que esteja quantitativamente determinada« (cfr o Douto Acórdão do TRG de 17/12/2018, proc. n.º 1101/15.6T8PVZ.1.G1); o crédito torna-se líquido a partir do momento em que se puder saber, com certeza e precisão, o montante exigível.
In casu, na medida em que o Tribunal considerou que o arguido cometeu o crime supra descrito na sua forma continuada (arts 30º e 79º do Cód Penal) existe aqui uma só conduta criminosa, pelo que a mesma apenas se consumou à data da prática do último acto que integra a conduta em questão (cfr o Douto Acórdão do STJ de 30/10/2012, proc n.º 224/06.7TACBC.G2-A.S1).
Resulta dos factos provados que o último acto que integra a conduta criminosa foi praticado em 20/07/2012 (pontos 1-10 e 15, em particular ponto 8, dd)), pelo que foi nesta data em que a conduta se consumou e em que o crédito se tornou líquido, i.e: a partir do momento em que se pôde apurar com precisão o prejuízo patrimonial causado à sociedade.
Termos em que os juros devem ser contados a partir de 20/07/2012, por força do disposto no art 805º, n.º 2, al.c) e n.º 3 do Cód Civil.
Em segundo lugar, o arguido pretende saber qual a implicação na contagem dos juros do depósito autónomo à ordem do Tribunal em 25/01/2016, em vista à reparação do dano envolvido; pretende, no fundo, saber se esse depósito implica a interrupção da contagem dos juros vincendos em virtude de tal montante já não se encontrar na sua esfera patrimonial.
Trata-se, assim, de uma consignação em depósito (art. 841º do Cód Civil); a este respeito, a consignação aceita pelo credor ou declarada válida por decisão judicial libera o devedor, como se ele tivesse feito a prestação ao credor na data do depósito (art 846º do Cód Civil).
In casu, resulta dos autos que a autoridade judiciária admitiu a consignação em depósito da quantia em causa (refª 19324963 (05/05/2016)) e a assistente solicitou expressamente a transferência da quantia em questão (refª 1094340 (23/04/2018)), pelo que o credor aceitou a consignação.
Pelo que o devedor fica ilibado da obrigação de pagar juros moratórios a contar da data da consignação em depósito.
Termos em que apenas serão devidos juros moratórios entre 20/07/2012 e 25/01/2016.
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VI. Dispositivo

Termos em que o Tribunal decide:

1. Condenar o arguido P. M. pela prática de um crime de peculato na forma continuada, p. e p. nos arts. 30º, n.º 2, 375º, n.º 1, com referência ao 386º, n.º 1, al.d), n.º 2 e n.º 4, todos do Cód Penal e dos arts. 20º, n.º 1 e 3º, n.º 1, al.i) da Lei n.º 34/87 de 16/07, aplicando-lhe uma pena de três anos e três meses de prisão e de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de €6,00 (seis), num total de €480,00 (quatrocentos e oitenta).
2. Suspender a pena de prisão aplicada ao arguido P. M., por igual período, sujeito ao seguinte dever e regra de conduta:
a. Dever - entregar à Santa Casa da Misericórdia de ... a quantia de €1000,00 (mil), como manifestação pública de arrependimento sincero pela sua conduta, no prazo máximo de 10 dias após o trânsito em julgado da presente sentença – art. 51º, n.º 1, al.c) do Cód Penal.
b. Regra de conduta - o Tribunal considera que o arguido deverá publicar, a suas expensas, no jornal mais lido da localidade, durante o prazo da suspensão, uma manifestação pública de arrependimento pelos erros cometidos durante o seu exercício de cargos autárquicos que conduziram à sua condenação pelo crime de peculato – art. 52º, n.º 1, al.c) do Cód Penal.
3. Condenar o arguido P. M. a pagar a quantia de €9.424,80 (nove mil, quatrocentos e vinte e quatro euros e oitenta cêntimos) à assistente a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora vencidos entre 20/07/2012 e 25/01/2016, improcedendo no respeitante aos juros vincendos e aos danos não-patrimoniais.
*
Custas pelo arguido, as quais se fixam em 2UC (art. 513º do Cód de Proc Penal).
Lida, vai ser depositada.
*
Remeta boletins (art. 6º da Lei n.º 37/2015).”

2.1. – Questões a Resolver

2.1.1. – Do Crime de Peculato por Titular de Cargo Político
2.1.2. – Do Crime de Peculato de Uso
2.1.3. – Da Medida da Pena

2.2. – Do Crime de Peculato por Titular de Cargo Político

O arguido recorrente foi condenado por um crime continuado de peculato, por titular de cargo político. Este crime vem previsto em legislação especial, no caso o D.L. n.º 34/87, 16/7, nos arts.º 20º/1 e 3º/i, L. n.º 34/87, 16/7.
Quer na decisão, quer na motivação de direito, quer na pronúncia que antecedeu o julgamento, fala-se também sempre nos arts.º 375º, 386º/1, d), ns.º 2) e 4), C.P. que criminalizam o crime de peculato (geral), previsto no Código Penal.
Porém e analisados os respetivos tipos criminais, desde logo se verifica que no crime de peculato geral o sujeito tem de preencher o conceito de funcionário previsto no art.º 386º C.P., enquanto no peculato por titular de cargo político o agente tem de ser isso mesmo, um dos titulares de cargos políticos, tal como referido no art.º 3º, D.L. n.º 34/87, 16/7.
O crime de peculato de titular de cargo político introduz pois uma maior especificidade na qualidade do seu agente, relativamente ao crime de peculato do C.P. – este tem de ser titular de cargo político, não interessando já a qualidade de “funcionário”.

Está pois em causa um “crime específico impróprio”, na medida em que estes são “crimes que existem como um tipo geral para qualquer pessoa e que depois, se tornam praticados por pessoas com uma certa qualidade especial passam a ser punidos de forma diferente – de forma agravada”, Teresa Beleza, “Direito Penal”, 2º Vol., Lisboa, “Ed. A.A.F.D.L.”, 1 983, pág. 118.

Existe pois “uma relação de concurso aparente (especialidade) entre o crime do art.º 375º C.P. e o crime previsto no art.º 20º da Lei n.º 34/87, 16/7, cuja moldura é aliás mais grave. Os elementos do tipo especial são os mesmos do tipo geral, com a particularidade do agente do crime ser um titular de cargo político.”
Os crimes de peculato (previsto no C.P.) e de peculato por titular de cargo político estão pois numa relação de especialidade entre si, tendo pois âmbitos ou previsões diversas.
O que está em causa no caso dos autos é pois saber-se se o arguido realmente é titular de um cargo político e se foi por via dessas funções que se apropriou de bens que lhe não pertenciam.
Ora, de acordo com os factos provados, o arguido era, à data dos factos, Vereador do Pelouro do Turismo e Vice-Presidente da Câmara Municipal de …, tendo por isso sido designado como responsável pela gestão da sociedade “X – Transportes Turísticos e Fluviais, Lda.”, sociedade por quotas de que eram sócios, o “Município de ...” e o “Ayuntamento de ...”. Esta tinha por objeto a compra, venda e exploração de transportes fluviais e turísticos, no Rio Douro.
O arguido desviou dinheiro desta sociedade, através de transferências efetuadas para terceiros que lhe eram próximos que não visavam o pagamento de qualquer dívida ou quantia devida, por parte daquela.
A questão discutida pelo arguido no recurso interposto é a de saber se o mesmo pode ser agente do crime, uma vez que estão em causa as suas funções naquela empresa, que é de Direito Privado.
Esta empresa é assim uma empresa local e participada pelo Município, em que o arguido era Vice-Presidente e Vereador do pelouro respetivo, o do Turismo.
Contrariamente ao que acontece no C.P., em que o conceito de funcionário é um conceito indeterminado que o art.º 386º C.P. tenta definir e concretizar, no D.L. n.º 34/87, o conceito de titular de cargo político surge definido através de uma tipicidade taxativa, prevista no respetivo art.º 3º.
Ora, o art.º 3º/i, L. n.º 34/87, 16/7, engloba nos titulares de cargos políticos, os membros de órgãos representativos das autarquias locais.
O arguido era Vice-Presidente e Vereador do Turismo da Câmara Municipal de ... e, por isso, representante daquele Município. Nos termos do disposto no art.º 5º/2, Reg. Jur. das Autarquias Locais (L. n.º 75/13, 12/9), os órgãos representativos do Município são a Assembleia Municipal e a Câmara Municipal”. Era pois o mesmo órgão representativo do Município, que a par das Juntas de Freguesia constituem as Autarquias Locais.
A questão complica-se um pouco, por os factos não terem ocorrido no âmbito da própria Câmara Municipal órgão representativo do Município, mas numa sociedade participada por esta, de que o arguido era gerente, em representação do Município. Que é efetivamente uma sociedade por quotas e, por isso, de Direito Privado.

Como se referiu, os sócios desta sociedade eram o Município de ... e o Município vizinho Espanhol, o “Ayuntamento de ...” – ou sejam, dois Municípios.

Ora, nos termos do disposto no art.º 7º, D.L. n.º 133/13, 3/10 (Reg. Jur. do Setor Público Empresarial) são empresas participadas todas as organizações empresariais em que o Estado ou quaisquer outras entidades públicas detenham uma participação permanente, de forma direta ou indireta.

Nos termos ainda do disposto no art.º 51º/1 da mesma Lei, os Municípios podem adquirir participações em sociedades comerciais de responsabilidade limitada, nos termos da mesma lei. E, nos termos do disposto no art.º 52º da mesma lei, as sociedades participadas devem prosseguir fins de relevante interesse público local – letra em “bold” nossa.
Com base ainda no art.º 33º/1, ff), do citado Reg. Jur. das Autarquias Locais (a citada L. n.º 75/13, 12/9), cabe às Câmaras Municipais promover e apoiar o desenvolvimento de atividades relacionadas com a atividade económica de interesse Municipal.
Como nos termos do disposto no art.º 2º, L. n.º 50/12, 31/8 (Reg. Jur. da Atividade Empresarial Local e das Participações Locais), a atividade empresarial local é desenvolvida pelos Municípios (…) através dos serviços municipalizados ou intermunicipalizados e das empresas locais.
O que quer dizer que o Município criou uma sociedade sua participada, no sentido de desenvolver a atividade turística local, na prossecução do interesse público local e de uma forma permitida por lei. Só por via de o arguido ser titular de órgão representativo do Município, a Câmara Municipal, onde era Vereador do Turismo e Vice Presidente, o arguido foi nomeado gerente desta sociedade.
Estava ali pois, como representante do Município e no sentido de acautelar o interesse público, função também do referido Município.
O que quer dizer que os Municípios podem participar em sociedades locais, desde que nisso haja interesse público local.
A sociedade participada pelo Município “X” visava assim explorar a atividade de compra, venda e exploração de transportes fluviais e turísticos no Rio Douro, dela fazendo parte a Câmara Municipal de ... e a sua congénere Espanhola, o “Ayuntamento de ...”, o que era do interesse local.
Temos pois que o arguido P. M. foi designado pela referida Câmara como seu representante na dita sociedade local e participada, de forma legal e de encontro ao interesse público local. Ali foi colocado por já ser titular de órgão do referido Município, a Câmara Municipal (como Vereador e Vice-presidente) e, como se referiu, na prossecução do interesse público.
Pode pois dizer-se, como bem referiu a assistente nas suas contra-alegações, que a “atividade desenvolvida pela assistente corresponde a uma forma de prossecução das atribuições legais das autarquias locais”, agindo pois e assim, ainda como titular da Câmara Municipal. Aliás, foi ali colocado como gestor, em representação da mesma.
Pode assim e bem dizer-se que ali estava ainda como representante da Câmara Municipal, da qual era titular de órgão representativo. Pelo que e não obstante a referida sociedade seja de Direito Privado, que ali estava em representação da dita Câmara Municipal e na prossecução do interesse público visado por esta, na constituição da referida sociedade participada.
Assim, bem cabe na previsão do art.º 3º/i da citada L. n.º 34/83, já que funcionava ainda como membro de órgão representativo da autarquia local.
O arguido aproveitou-se do facto de ser gestor daquela para fazer várias transferências para terceiros ligados a si, para quem a dita sociedade não tinha qualquer dívida ou dever de pagamento. Desta forma pagou dívidas suas ou de pessoas que lhe eram próximas, em prejuízo da referida sociedade.
Inverteu o título da posse relativamente àquelas quantias e depois, usou-as como se fossem suas, distribuindo-as por quem quis.
Apropriou-se pois de dinheiro da referida sociedade, enquanto titular de cargo político e por ter um acesso privilegiado aos bens da dita sociedade, dos quais era possuidor e podia utilizar.
Agiu pois, como se fosse dono das ditas quantias, estando assim em causa um ato de apossamento das mesmas.
Cometeu assim, um crime por titular de cargo político, nos termos do disposto nos arts.º 3º/1, i) e 20º L. n.º 34/87, 16/7, nunca podendo estar em causa um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo art.º 205º C.P.

Improcede pois e nesta parte, a argumentação do recorrente.

2.3. – Do Crime de Peculato de Uso

Avança depois o arguido recorrente no seu recurso, referindo que quando muito terá cometido um crime de peculato de uso, p. e p. pelo art.º 376º/1 C.P. e não o de peculato por que foi condenado.

Ora, no peculato de uso, o agente que é um funcionário não pretende apoderar-se de bens ou valores que não lhe pertencem, mas tão-só usar ou permitir que outrem use para fins diferentes daqueles a que se destinam, coisa imóvel, veículos ou outras coisas móveis ou animais de valor apreciável e que lhe estão acessíveis, por força das funções que exerce.

Em primeiro lugar deve dizer-se que este normativo não se refere a dinheiro.
Estão sim em causa, a título exemplificativo veículos, máquinas, ferramentas ou imóveis.
Em segundo lugar, a intenção do agente esgota-se no mero uso, não ocorrendo uma intenção de apropriação.
Ora, no caso o arguido utilizou como seus, os montantes que transferiu para terceiros entre 29 de Março de 2 010 e 20 de Julho de 2 012, logo a atividade perdurou durante cerca de dois anos e quatro meses.
Só em 21 de Janeiro de 2 016 e na pendência dos presentes autos, o arguido deposita à ordem dos mesmos, a quantia total de que se apropriou, ou seja cerca de três anos e seis meses depois, do último ato praticado.
Deste facto se retira também que a intenção não seria usar apenas temporariamente o dinheiro da sociedade ofendida, sendo que a restituição só é feita quando este processo já está pendente.
Do mesmo modo, consta do art.º 10º da matéria de facto provada, que o arguido se apropriou da quantia global desviada, em detrimento e em prejuízo da sociedade lesada.
O arguido não impugna a matéria de facto fixada (art.º 412º/3 C.P.P.), que é aliás a que faz sentido segundo as regras da experiência, no caso dos autos.
Nunca poderia pois estar em causa, a prática por si apenas de um crime de peculato de uso, p. e p. pelo art.º 276º/1 C.P. em vez do crime de peculato por titular de cargo político, p. e p. pelos arts.º 3º/i e 20º, L. n.º 34/87, 16/7.

Improcede pois e também quanto a esta matéria, o recurso interposto pelo arguido P. M..

2.3. – Da Medida da Pena

Considera ainda o arguido que a pena de prisão aplicada é excessiva, pois ultrapassa a medida da culpa.
Refere ainda que está inserido e integrado na sociedade e que decorreram seis anos, desde o momento da prática dos factos.
Pesemos pois, os argumentos do recorrente.
Ora, o crime por que o arguido recorrente foi condenado – peculato por titular de cargo político, p. e p. pelos arts.º 3º/i e 20º/1, L. n.º 34/87, 16/7 e 47º/1 C.P., quanto ao limite inferior da pena de multa – é punível, em abstrato, com prisão de 3 (três) a 8 (oito) anos e multa de 10 (dez) a 150 (cento e cinquenta) dias.
O arguido foi condenado na pena de 3 (três) anos e 3 (três) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com condição e regra de conduta e em 80 (oitenta) dias multa, à razão diária de 6€ (seis euros).
O recorrente só aborda, nas conclusões que apresentou a pena de prisão aplicada, pelo que só esta será objeto desta decisão de recurso.
Está hoje ultrapassada a visão retribucionista da pena, segundo a qual esta varia apenas em função da culpa do agente. Ela estabelece antes, o limite máximo da pena a aplicar.
Considerações de prevenção geral, devem determinar o seu limite mínimo; senão, a pena seria considerada laxista pela comunidade social, e serviria como foco impulsionador de outras condutas desviantes.

Dentro destes parâmetros, são as exigências de prevenção especial ou, dito de outra forma, a necessidade de reinserção social do agente que há-de determinar a medida da pena a aplicar (neste sentido, F. Dias, "Direito Penal Português", Ed. Notícias, 1993, págs.214 e segs.; Robalo Cordeiro, "Escolha e Medida da Pena", em "Jornadas de Direito Criminal", págs. 235 e segs.; Anabela M. Rodrigues, "Rev. Port. Ciência Criminal", Ano1, Nº2, págs. 248 e segs.).

Na linguagem de Figueiredo Dias, op. cit., pág. 227, “As finalidades de aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, na medida possível, na reinserção do agente na comunidade. Por outro lado, a pena não pode ultrapassar, em caso algum, a medida da culpa.”

Como refere na mesma obra, pág. 230,

“A culpa traduz-se numa incondicional proibição de excesso: a culpa constitui um limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas”.

Ou ainda, a págs. 231,

“Dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva ou de integração (…) podem e devem actuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo eles que vão determinar, em último termo, a medida da pena.”

Deve dizer-se que está em causa um crime considerado como muito grave, pela nossa comunidade social. Com efeito, os cargos políticos devem ser exercidos pelos seus titulares, com toda a probidade, lealdade e dentro da mais profunda legalidade. Senão, servem apenas como forma de aproveitamento pessoal do poder público, o que constitui um abuso, relativamente à comunidade social e aos eleitores que elegeram o referido titular. Estes crimes fazem desacreditar a própria Democracia, por serem os representantes do povo a praticar crimes, apenas em seu aproveitamento pessoal. Põem assim em causa o próprio poder público e quem o representa, fazendo pois cair em descrédito o próprio Estado de Direito. São muito elevadas por isso, as necessidades de prevenção geral.

São agravantes, no caso concreto:

- o tempo por que perdurou a atividade ilícita – cerca de dois anos e quatro meses - e número de atos apropriativos praticados – em número de trinta (art.º 71º/2, a), C.P.);
- o dolo direto, com que o arguido atuou (art.º 71º/2, b), C.P.);
- o montante global de que o arguido se apropriou, já algo relevante – cerca de nove mil e cem euros, num prejuízo de cerca de nove mil e quatrocentos euros (art.º 71º/2, a), C.P.);
- o facto de o arguido ser até Vice-Presidente da Câmara Municipal de ... (art.º 71º/2, d), C.P.).

E atenuantes:
- o facto de o arguido estar laboral e familiarmente integrado (art.º 71º/2, d), C.P.);
- não ter outros antecedentes criminais registados (art.º 71º/2, d), C.P.);
- a confissão livre, integral e sem reservas, do arguido, relevante para a prova da acusação (art.º 71º/2, circunstância inominada, C.P.);
- o facto de, pese embora já na pendência do processo crime, ter indemnizado a sociedade ofendida, do prejuízo material sofrido por esta (art.º 71º/2, e), C.P.).
- o facto de a maior parcele apropriada (art.º 79º/1 C.P.) ser no valor de mil euros (art.º 71º/2, a), C.P.).

O arguido praticou pois por várias vezes e por largo tempo, atos muito graves e em que atuou como se dono fosse da sociedade participada Municipal “X, Lda.”, que servia para o progresso da região.
Apesar de tudo não estão em causa valores muito altos, o arguido está socialmente integrado, confessou de forma relevante e indemnizou já, a ofendida.
Foi condenado em pena pouco acima do limite mínimo da pena – apenas cerca de 3 (três) meses.
Não se pode pois considerar como demasiado elevada, a pena aplicada.
Pelo contrário e tendo em conta o referido, a pena de prisão mostra-se justa e adequada, tendo sido corretamente concretizada.
Nada pois a apontar; a referida pena de prisão aplicada.

Não tem assim também provimento, o recurso do arguido nesta parte.

2.4. – Da Regra de Conduta que Condiciona a Suspensão

A referida pena de prisão foi declarada suspensa na sua execução, sob duas condições:

- a de o arguido pagar a quantia de 1 000€ (mil euros) à “Santa Casa da Misericórdia de ...”, no prazo de 10 (dez) dias como manifestação pública de arrependimento (dever);
- a de o arguido publicar, durante o decurso da suspensão da execução da pena, no jornal mais lido da sua localidade, uma manifestação pública de arrependimento pelos erros cometidos durante o seu exercício de titular de cargos autárquicos e que conduziram à sua condenação pelo crime de peculato (regra de conduta).

É esta última condição da suspensão aplicada, que o arguido discute na parte final do seu recurso. Considera que esta regra de conduta é desproporcionada e não é mais do que uma “dupla punição”.
A Dignm.ª Procuradora Geral Adjunta considerou também, já neste Tribunal de recurso, que tal condição punha em causa as necessidades de prevenção especial positiva do arguido, pelo que concluíu que o recurso nesta parte deveria proceder.
Esta condição da suspensão, que se traduz na imposição de uma regra de conduta, foi feita ao abrigo do disposto no art.º 52º/1, c), C.P. – cumprimento de determinadas obrigações.

Vejamos.
As regras de conduta visam a reintegração do arguido em sociedade e assim fins de prevenção especial positiva.
Está em causa um crime grave e praticado no exercício de um cargo público.
O próprio arguido confessou e indemnizou já, o ofendido.
Considera-se positivo para si próprio em termos de reintegração, que o arguido demonstre publicamente o seu arrependimento, quer como forma de alterar o seu comportamento futuro, quer como forma de a comunidade local o voltar a aceitar.
Com efeito, o arrependimento mais não é do que uma forma de autorreprovação do crime, primeiro passo para que a partir daí o condenado não caia na mesma conduta. Tal como cria um clima social benéfico à reintegração social do arguido, para mais em meios pequenos como o dos autos, em que o seu comportamento decerto terá sido muitas vezes reprovado pelos Munícipes que também o elegeram.
Não se vê pois, que surja contra as necessidades de prevenção especial positiva do arguido e condenado, nestes autos.
Antes, num caso em que o crime foi praticado enquanto o arguido era titular de um cargo político pode surgir e sugerir uma alteração do seu comportamento, benéfica aos olhos de quem o vê e conhecia o crime.
Também não está em causa uma “segunda condenação” ilegal, porquanto é a lei que prevê que a suspensão da execução da pena de prisão possa ser acompanhada e subordinada, ao cumprimento de deveres e regras de conduta.

No caso dos autos foi aplicada uma rera de conduta e um dever. O que serve também para que, em termos sociais não se sinta a condenação como “mais uma absolvição” e se passe a revalorizar o próprio arguido, por via do arrependimento demonstrado.

Considera-se pois proporcionada e adequada, a fixação da citada regra de conduta e benéfica até, à reintegração social do arguido – nada tendo de estigmatizante, mas sim de redentor.
Considera-se pois, que a citada regra de conduta foi corretamente aplicada.
Termos em que, também aqui o recurso do arguido P. M. não terá provimento.
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Razões por que,

3 – Decisão

a) se julga totalmente improcedente o recurso apresentado pelo arguido P. M., por via disso se mantendo toda a decisão proferida.
b) Custas pelo arguido, com 4 (quatro) U.C.`s de taxa de justiça – arts.º 513º/1 C.P.P., 8º/9 e tabela 3), anexa ao R.C.P.
c) Notifique.
Guimarães, 12 de Abril de 2 021

(Pedro Cunha Lopes)
(Fátima Furtado)