Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
45/17.1T8MAC.G2
Relator: EVA ALMEIDA
Descritores: AUDIÊNCIA PRÉVIA
DECISÃO SURPRESA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/06/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Nos termos dos artºs 591º nº 1 al. b) e 593º nº 1 do CPC a audiência prévia é obrigatória sempre o que o Juiz tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa.

II - O despacho que marque a audiência prévia deve indicar o seu objecto e finalidade (art.º 591º nº 2 do CPC).

III - A audiência prévia não foi convocada com vista a “facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa”, nem no seu decurso tal intenção foi comunicada às partes.

IV - Tal omissão, influindo no exame ou decisão da causa, configura uma nulidade processual (art.º 195º nº 1 do CPC), que inquina a própria decisão proferida (saneador sentença) e que pode ser arguida em sede de recurso a interpor da mesma (Ac. do STJ de 22.02.2017, proc. 5384/15.3T8GMR.G1.S1).
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I – RELATÓRIO

L. H., M. P. e mulher MARIA, intentaram acção declarativa, com processo comum, contra a UNIÃO DE FREGUESIAS DE A E B, pedindo:

a) Que a ré seja condenada a reconhecer os aqui autores, como donos e legítimos possuidores do prédio rústico inscrito na respectiva matriz da freguesia da União das freguesias de A e B, sob o artigo 7º, descrito na Conservatória de Registo Predial, sob o número 475, da sobredita freguesia, por si e por antepossuidores, há mais de 20, 30, 40 e 50 anos;
b) Que seja declarada e reconhecida a desnecessidade e consequente extinção do ónus representado pelo poço e furo de captação de água;
c) Que os autores deixem de ser onerados com a obrigação de se absterem de, sobre os mesmos – furo e poço – praticarem quaisquer actos turbadores de tal direito de propriedade da autora – aqui ré, nos presentes autos.

Alegaram para tanto a seguinte factualidade:

– Os aqui autores são donos e legítimos possuidores do prédio rústico inscrito na respectiva matriz da União das freguesias de A e B, sob o artigo 7º, descrito na Conservatória de Registo Predial, sob o número 475, da sobredita freguesia, por si e por antepossuidores, há mais de 20, 30, 40 e 50 anos.
– Por sentença já transitada em julgado, proferida nos autos que correram termos no Tribunal Judicial de Macedo de Cavaleiros, Seção Única, com o número 320/10.6TBMCD, ficou decidido o seguinte:

– Pelo exposto decide o Tribunal: Julgar a presente acção parcialmente procedente e, consequentemente:

a) Declara-se improcedente a excepção peremptória de abuso de direito, invocada pelos réus.
b) Declara-se que o furo de captação de água, e o respectivo poço nele construído, existentes no prédio rústico inscrito na matriz respectiva na freguesia de B sob o artigo nº 5, são propriedade da autora “Freguesia de B” e de natureza pública.
c) Condena-se os réus L. H., M. P. e esposa, MARIA a reconhecerem a propriedade da autora sobre tal furo e poço, bem como a absterem-se de, sobre os mesmos, praticarem quaisquer actos turbadores de tal direito de propriedade da autora.
d)Absolver os réus do demais peticionado contra eles.

– Na referida sentença, no item II (Fundamentação de facto), consta o seguinte:

1.No local denominado “L.”, na freguesia de B, deste concelho e comarca, existe um prédio rústico que confronta de norte com A. G., nascente com C. V., sul com caminho e poente com M. M., inscrito na matriz respectiva sob o artigo nº5, da mencionada freguesia de B, em nome de A. H. (acordo).
2.A inscrição de tal prédio em nome do mencionado A. H. terá ocorrido apenas no ano de 2006, sendo antes dessa data outro o titular inscrito (acordo).
3.Em razão do falecimento do identificado A. H., aquele identificado prédio rústico foi relacionado no respectivo processo de imposto sucessório, do qual devem ainda constar, como únicos herdeiros, exactamente os ora réus (acordo).
4.No ano de 1981, por haver escassez de água para uso comum da generalidade dos habitantes na freguesia, a pedido da ora autora, o Município fez deslocar ao local denominado “L.”, limites da freguesia de B, desde concelho, uma máquina industrial, a fim de a mesma efectuar um furo de captação de água, destinada a servir a generalidade dos habitantes naquela freguesia (acordo).
10. Moradores que, desde há mais de 28 e 29 anos, sempre se dirigiam e usavam aqueles fontanários, bebedouros e lavadouros, para, designadamente, ai recolherem água para uso doméstico, dar de beber aos seus animais, e proceder ao lavar de roupas pessoais e outras (acordo).
22. Desde 1990 que a povoação de B se encontra totalmente abastecida através da conduta adutora da zona nascente de água proveniente da Barragem X, verificando-se a existência, em todas as casas da aldeia de sistema de distribuição predial de água.”
– Nos referidos autos, a autora não logrou provar o seu direito de propriedade sobre as águas, mas apenas que exercia sobre essas águas poderes de facto, como detentora ou possuidora precária.
– Acontece que, no decurso dos anos de 2015/2016, foi edificado um novo poço pela aqui ré, na freguesia de B, que se destina a uso da população da localidade, pese embora desde 1990 a população de B se encontrar abastecida por conduta de água proveniente da Barragem X, pelo que todas as casas da aldeia estão dotadas de água distribuída por esse sistema.
– Os referidos poço e furo de captação de água, foram implantados e edificados em terreno alheio pela aqui ré, do qual os aqui autores dão donos e legítimos possuidores.
– Nessa sequência pretendem os aqui autores, que deixem de ser onerados com a obrigação de “absterem-se de, sobre os mesmos – furo e poço – praticarem quaisquer actos turbadores de tal direito de propriedade da autora” – aqui ré, nos presentes autos, pois que a população da aldeia de B não necessita daquele poço, por não necessitar daquela água.

Em face do alegado concluem os autores. em sede de direito, que o ónus ou encargo que incide sobre o respectivo prédio, traduzido nas obras nele edificadas e pertencentes à ré, deve ser declarado extinto por não uso e desnecessidade.
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Contestou a ré, invocando excepção peremptória, para tanto alegando que “o que realmente é pretendido pelos autores é a extinção por desnecessidade de uma servidão que não existe, e que alegadamente onera o prédio dos autores, quando, reitera-se, a ora ré é detentora de um direito de propriedade judicialmente reconhecido, sobre o tal poço e respectivo furo de captação de águas.
Defendeu-se ainda por impugnação e pediu a condenação dos autores em multa e indemnização a seu favor, por litigarem de má-fé.
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Os autores responderam à matéria da dita excepção e à da invocada litigância de má-fé.
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Em 24.4.2017 foi proferido o seguinte despacho:

– «(…) Perante estes factos, poderá a pretensão dos autores colocar em causa a autoridade do caso julgado emanado da sentença proferida e a que aludem, o que, a confirmar-se, torna legalmente inadmissível a presente ação e, consequentemente, dita a sua improcedência.

Como assim, antes de mais, e prevenindo-se a possibilidade de estarem reunidas as condições para proferirmos decisão final, confere-se aos autores a possibilidade de exercerem o contraditório relativamente ao exposto.

Mais ficam notificados para juntarem aos autos certidão com nota do trânsito em julgado da sentença a que aludiram, sendo certo que, caso tenha havido recurso da mesma, deverão igualmente juntar cópia do acórdão proferido. »

Após, proferiu-se despacho saneador em que se conheceu oficiosamente da excepção do caso julgado, decidindo-se:

– « (…) Nessa medida, os autos não podem prosseguir por violarem o caso julgado emanado expressamente do dispositivo da sentença proferida no processo n.º 320/10.6TBMCD, em derrogação do disposto no art. 619.º do Código de Processo Civil.
Nestes termos e nos demais de direito, decide-se julgar verificada a excepção dilatória inominada da autoridade do caso julgado e, em consequência, absolvemos a Ré da instância - al. e) do art. 287º, n.º 2 do art. 576.º, em conjugação com o corpo do art. 577.º, e art. 578.º, todos do Código de Processo Civil.»

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Inconformados, os autores interpuseram recurso, por nós apreciado e provido, decidindo-se por acórdão revogar o saneador na parte em que julgou verificada a excepção do caso julgado, na sua vertente de “autoridade do caso julgado” e absolveu a ré da instância.
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Devolvidos os autos à 1ª instância, proferiu-se saneador sentença no qual se decidiu:

– «Nestes termos e nos demais de direito, decide-se julgar:

1. parcialmente procedente a ação e, em consequência:

A. – condenamos a ré a reconhecer os aqui autores, como donos e legítimos possuidores do prédio rústico inscrito na matriz rústica respetiva na freguesia da União das freguesias de A e B, sob o artigo 7, descrito na Conservatória de Registo Predial, sob o número 475, da sobredita freguesia, por si e por antepossuidores, há mais de 20, 30, 40 e 50 anos
B. – absolvemos a ré do demais peticionado.
2. Improcedente o pedido de condenação dos autores como litigantes de má-fé.
Custas pelos autores, por se entender que eles decaíram integralmente no escopo e no cerne da ação, o que retira relevância à procedência do pedido de reconhecimento da propriedade, dado que, relativamente a este, nem mesmo os autores aduziram factos que justificassem controvérsia e necessidade de tutela efetiva – n.ºs 1 e 2 do art. 527.º do Código de Processo Civil.
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Inconformados, os autores interpuseram o presente recurso, que instruíram com as pertinentes alegações, em que formulam as seguintes conclusões:

Primeira conclusão:
-O Tribunal A Quo decidiu que:

1. parcialmente procedente a ação e, em consequência:
A. – condenamos a ré a reconhecer os aqui autores, como donos e legítimos possuidores do prédio rústico inscrito na matriz rústica respetiva na freguesia da União das freguesias de A e B, sob o artigo 7, descrito na Conservatória de Registo Predial, sob o número 475, da sobredita freguesia, por si e por antepossuidores, há mais de 20, 30, 40 e 50 anos

B. – absolvemos a ré do demais peticionado.

Segunda conclusão:
-O Tribunal A Quo, salvo o devido respeito não ponderou, nem considerou a possibilidade de realização de julgamento, para análise, de prova carreada para os presentes autos.
Terceira conclusão:
-O Tribunal A Quo, não deu cumprimento, designadamente, oficiando a entidade Eletricidade, para efeitos de solicitações de documentos complementares, conforme ata de audiência prévia -do qual teor, não resulta indeferimento desse pedido, efetuado por parte dos aqui recorrentes.
Quarta conclusão:
-O que consta da douta petição inicial, é que efetivamente, se pede a condenação da ré, aqui recorrida:
A- ser a ré condenada a reconhecer os aqui autores, como donos e legítimos possuidores do prédio rústico inscrito na matriz rústica respetiva na freguesia da União das freguesias de A e B, sob o artigo 7, descrito na Conservatória de Registo Predial, sob o número 475, da sobredita freguesia, por si e por antepossuidores, há mais de 20, 30, 40 e 50 anos;
B-ser declarada e reconhecida a desnecessidade e consequente extinção do ónus representado pelo poço e furo de captação de água;
C- e que os autores deixem de ser onerados com a obrigação de “absterem-se de, sobre os mesmos – furo e poço – praticarem quaisquer atos turbadores de tal direito de propriedade da autora – aqui ré, nos presentes autos.
Quinta conclusão:
-E nessa esteira o Tribunal A Quo, decisão julgar improcedente a presente ação, absolvendo a aqui recorrida e ré, dos pedidos formulados em B e C, não indagando a prova dos mesmos, com base na produção de prova testemunhal.
Sexta conclusão:
É o que vale por dizer, que os pedidos formulados pelos autores aqui recorrentes, devem ser ponderados e analisados com base em produção de prova, por parte do Tribunal A Quo, o que não foram, marcando-se e designando-se para o efeito data de audiência de discussão e julgamento.
Sétima conclusão:
E, como, contrariamente ao referido na douta sentença colocada aqui em crise, não poderá ser aplicada a decisão proferida.
Oitava conclusão:
-Assim, a prolação da sentença de reconhecimento do direito de propriedade de poço e furo a favor da ré, aqui recorrida, não pode retirar-se que a mesma contempla os pedidos formulados e diversos dos que foram atendidos nesse processo, dos diversos nos presentes autos.
Nona conclusão:
-O objeto do recurso é constituído pelas questões suscitadas nas conclusões das respetivas alegações (cfr. art. 639º nº 1 Cód. Proc. Civil).
Décima conclusão:
-As questões que os recorrentes suscitam nas ditas conclusões de recurso são, por um lado, a da nulidade do despacho saneador/sentença por ter constituído uma decisão-surpresa com a violação do princípio do contraditório e, por outro, a não ter havido julgamento da matéria de facto por não ter sido produzida prova sobre a “vontade real das partes” questões estas que estão parcialmente relacionadas entre si.
Décima primeira conclusão:
-Pelo que, ao ter decidido, o Tribunal A Quo, nos preditos termos, deveria ter consignado pela produção de prova testemunhal, e pela remessa aos autos de prova documental a solicitar junto da Eletricidade. Décima segunda conclusão:
-Pelos fundamentos acima expostos, deverá ser julgada a apelação procedente e, revogando-se a decisão recorrida, determinando-se a sua substituição por outra que assegure o prosseguimento dos presentes autos – designadamente a realização de audiência de discussão e julgamento.
Décima terceira conclusão:
-Deverá haver modificabilidade da matéria de facto, no que se refere à decisão proferida, e nos termos do art. 662º do C. P.
C., deverá o Tribunal da Relação requerer que a decisão seja proferida com a matéria de facto, sequência da produção de prova testemunhal.
Décima quarta conclusão:
-Ordenando assim, nos termos do art. 662º/1 b) do C. P. C., “a produção de novos meios de prova” – ou seja, inquirição das testemunhas arroladas e prolação de decisão finda a mesma.
E como propugnado, fazendo-se assim, JUSTIÇA.
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Não foram apresentadas contra-alegações
*
O processo foi remetido a este Tribunal da Relação, onde o recurso foi admitido nos termos em que o fora na 1ª instância.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A DECIDIR.

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações dos apelantes, tal como decorre das disposições legais dos artºs 635º nº4 e 639º do CPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art.º 608º nº2 do CPC).
A única questão a resolver é se ocorre a excepção da autoridade do caso julgado.

III - FUNDAMENTOS DE FACTO

A sentença recorrida assentou na seguinte factualidade, assente por acordo das partes ou documentos que dela fazem prova plena:

1) Os aqui autores são donos e legítimos possuidores do prédio rústico inscrito na matriz rústica respetiva na freguesia da União das freguesias de A e B, sob o artigo 7, descrito na Conservatória de Registo Predial, sob o número 475, da sobredita freguesia, por si e por antepossuidores, há mais de 20, 30, 40 e 50 anos [acordo].
2) Por sentença já transitada em julgado, referente aos autos que correram termos no Tribunal Judicial de Macedo de Cavaleiros, Seção Única, com o processo número 320/10.6TBMCD, entre os aqui autores, estes réus na referida acção, e a ré, autora nessa decisão, foi decidido:

“Julgar a presente acção parcialmente procedente e, consequentemente:

a) Declara-se improcedente a excepção peremptória de abuso de direito, invocada pelos réus.
b) Declara-se que o furo de captação de água, e o respectivo poço nele construído, existentes no prédio rústico inscrito na matriz respectiva na freguesia de B sob o artigo nº 5, são propriedade da autora “Freguesia de B” e de natureza pública.
c) Condena-se os réus L. H., M. P. e esposa, MARIA a reconhecerem a propriedade da autora sobre tal furo e poço, bem como a absterem-se de, sobre os mesmos, praticarem quaisquer actos turbadores de tal direito de propriedade da autora.
d) Absolver os réus do demais peticionado contra eles.” [acordo e cópia da certidão com nota do trânsito e a sentença de fls. 95 a 110]
3) Na sentença aludida em 2) deu-se como provado, entre o mais, que:

“1. No local denominado “L.”, na freguesia de B, deste concelho e comarca, existe um prédio rústico que confronta de norte com A. G., nascente com C. V., sul com caminho e poente com M. M., inscrito na matriz respectiva sob o artigo nº5, da mencionada freguesia de B, em nome de A. H. (acordo).
2. A inscrição de tal prédio em nome do mencionado A. H. terá ocorrido apenas no ano de 2006, sendo antes dessa data outro o titular inscrito (acordo).
3. Em razão do falecimento do identificado A. H., aquele identificado prédio rústico foi relacionado no respectivo processo de imposto sucessório, do qual devem ainda constar, como únicos herdeiros, exactamente os ora réus (acordo).
4. No ano de 1981, por haver escassez de água para uso comum da generalidade dos habitantes na freguesia, a pedido da ora autora, o Município fez deslocar ao local denominado “L.”, limites da freguesia de B, desde concelho, uma máquina industrial, a fim de a mesma efetuar um furo de captação de água, destinada a servir a generalidade dos habitantes naquela freguesia (acordo).
10. Moradores que, desde há mais de 28 e 29 anos, sempre se dirigiam e usavam aqueles fontanários, bebedouros e lavadouros, para, designadamente, ai recolherem água para uso doméstico, dar de beber aos seus animais, e proceder ao lavar de roupas pessoais e outras (acordo).
22. Desde 1990 que a povoação de B se encontra totalmente abastecida através da conduta adutora da zona nascente de água proveniente da Barragem X, verificando-se a existência, em todas as casas da aldeia de sistema de distribuição predial de água.” [acordo e cópia da certidão com nota do trânsito e a sentença de fls. 95 a 110].

IV – FUNDAMENTOS DE DIREITO

Em face das conclusões dos apelantes a primeira questão que cumpre apreciar é a da alegada nulidade do despacho saneador/sentença por traduzir uma decisão-surpresa em violação do princípio do contraditório.

No caso em apreço, na sequência do nosso acórdão que, julgando não verificada a excepção do caso julgado, revogou o despacho saneador na parte em que absolvera a ré da instância, devolvidos os autos à 1ª instância, nesta foi exarado despacho do seguinte teor:

– «Muito embora na presente acção não se mostra obrigatória a audiência prévia, o certo é também que tal diligência se nos afigura, no caso, relevante para esclarecer qual a concreta pretensão dos autores, dado que, da leitura da petição inicial, não ficámos com a convicção de que visassem, salvo o devido respeito por opinião contrária, a extinção de qualquer aproveitamento de águas, mas sim a extinção das obras concretamente realizadas, furo e poço, reconhecidas por sentença transitada em julgado da propriedade da ré. Tal convicção nossa reside não apenas do teor do petitório, mas igualmente, a título exemplificativo, dos arts. 18.º, 26.º e do ponto 6. da carta alegada no art. 20.º, ambos da petição inicial.

Assim, designamos o dia 23/4/2018/, pelas 16h00m para realização de uma audiência prévia e não antes, por indisponibilidade de agenda, com vista a discutir as posições das partes, com vista à delimitação dos termos do litígio e, igualmente, realizar a tentativa de conciliação entre as partes.
Notifique, cumprindo o disposto no art. 151.º/1 do Código de Processo Civil

Realizada a audiência prévia foi proferido saneador sentença, isto é, conheceu-se do mérito da causa.

Nos termos dos artºs 591º nº 1 al. b) e 593º nº 1 do CPC a audiência prévia é obrigatória sempre o que o Juiz tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa.

O despacho que marque a audiência prévia deve indicar o seu objecto e finalidade (art.º 591º nº 2 do CPC).

No caso em apreço e como resulta do despacho acima reproduzido, a audiência não foi convocada com vista a “facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa” – citada al. b) do nº 1–, mas sim “com vista à delimitação dos termos do litígio e realizar a “tentativa de conciliação entre as partes” – als. a) e c) do nº 1.

Tão pouco na audiência prévia e como patenteia a respectiva acta, foi comunicada às partes a intenção de conhecer imediatamente do mérito da acção.

Assim, foi vedado às partes, em primeiro lugar, pronunciarem-se sobre a desnecessidade de produção de prova relativamente à matéria controvertida e sobretudo, de produzirem alegações finais sobre o mérito da causa, violando-se o princípio do contraditório, que é um dos pilares fundamentais do processo civil (art.º 3º nº3), de que o citado art.º 591º é mera emanação e concretização.

Tal omissão, influindo no exame ou decisão da causa, configura uma nulidade processual (art.º 195º nº 1 do CPC), que inquina a própria decisão proferida (saneador sentença) e que pode ser arguida em sede de recurso a interpor da mesma (1).

Consequentemente impõe-se anular o saneador-sentença e reabrir-se a audiência prévia, desta feita comunicando-se às partes a intenção de conhecer do mérito da causa no saneador e respectivos fundamentos, nomeadamente sobre a desnecessidade de produção de prova relativamente à matéria que se encontra controvertida, permitindo-lhes pronunciarem-se sobre essa questão, bem como facultar-lhes a discussão de facto e de direito sobre o mérito da causa,

Fica prejudicada a apreciação das demais questões colocadas na presente apelação, nomeadamente por se ter decidido sem produção de prova.

V – DELIBERAÇÃO

Nestes termos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente a apelação, anulando todos os actos posteriores à convocação das partes para a audiência preliminar que se mostrem prejudicados, nomeadamente o saneador sentença proferido, de forma a ampliar os fins a que a mesma se destina, como acima exposto
Custas pela parte vencida a final.
Guimarães, 06-12-2018

Eva Almeida
Maria Amália Santos
Ana Cristina Duarte


1- Ac. do STJ de 22.02.2017 (5384/15.3T8GMR.G1.S1) :”Esta nulidade processual coberta pelo acórdão, ainda que não se configure como uma das nulidades previstas no art.º 615.º n.º 1 do CPC, acaba por inquinar o mesmo, ferindo-o de nulidade”