Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
384/11.5TBCBC-A.G2
Relator: MARIA DA CONCEIÇÃO SAMPAIO
Descritores: ACÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS
OBJECTO
CABEÇA DE CASAL
GRATUIDADE DO CARGO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/17/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
SUMÁRIO (DA RELATORA)

I - A ação de prestação de contas tem por objeto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios.

II - Não cabe na sua finalidade determinar se a pessoa obrigada a prestá-las foi ou não diligente na administração, apurar a responsabilização do administrador por eventual má administração ou considerar rendimentos que não foram obtidos por falta de diligência do obrigado.

III – Deverão ser consideradas receitas da herança as rendas entregues pelo arrendatário a pessoa incumbida de as receber pelo cabeça-de-casal, ainda que esses valores não hajam sido posteriormente entregues ao cabeça de casal.

IV - Nesta situação, não está em causa um ato de má gestão seja da cabeça de casal seja do seu representante, pois que foi diligenciado e obtido o valor que era devido a título de rendas, o qual foi entregue a alguém autorizado a recebê-las pelo representante da herança, ou seja, a cabeça de casal.

V - O cargo de cabeça de casal é gratuito, decorrendo desta regra de gratuitidade do exercício do cabecelato que não podem resultar para a herança, encargos relativos a pagamentos a terceiros por serviços de administração.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I- Relatório

Por apenso ao processo de inventário que correu termos neste juízo sob o n.º 384/11.5TBCBC (por morte de A. M. e C. M.), vieram J. M., contribuinte n.º ..., divorciado, residente na Rua …, Cabeceiras de Basto, P. J., contribuinte n.º …, casado, residente no lugar …, Cabeceiras de Basto, J. F., contribuinte n.º …, casado, residente na Rua …, Lisboa, M. I., contribuinte n.º …, casada, residente no lugar do …, Cabeceiras de Basto, A. L., contribuinte n.º …, casado, residente na Rua …, Cabeceiras de Basto, intentar a presente ação especial de prestação de contas contra a cabeça-de-casal M. R., casada, residente na rua … Porto.

Conforme decorre da decisão proferida em 11-04-2016 (fls. 57 e ss.), foi admitida, ainda, a intervenção principal provocada, na veste de autores, dos herdeiros V. M. e P. M..

Por decisão proferida em 30-06-2016 (fls. 80 e ss.) - transitada em julgado após acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães que confirmou aquela decisão (fls. 122 e ss.) - foi considerado existir obrigação de prestação de contas por parte da ré, referente à administração do património da herança deixada por óbito de A. M. e C. M., desde 05-12-2011 até 05-07-2015.

Notificada a ré para apresentar contas, veio dar cumprimento a essa obrigação (fls. 155 e ss.), tendo apresentado tais contas um saldo de € 937,19.

Por sua vez, os autores vieram contestar algumas das receitas e despesas apresentadas, reclamando a existência de um saldo positivo, favorável à herança, nunca inferior a €36.344,52.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento com a prolação de sentença que julgou a ação parcialmente procedente, e, em consequência, declarando prestadas as contas da herança por óbito de A. M. e C. M., relativas ao período de 05-12-2011 a 05-07-2015:

a) Determinou a exclusão, como verbas da despesa, das quantias referentes a “despesas administrativas” dos anos de 2013, 2014 e 2015, no montante global de €4680,00, e o valor “Liquidação Dr. M. F.”, no valor de €3.776,70;
b) Declarou a existência de saldo positivo no montante de € 9.393,89 (nove mil, trezentos e noventa e três euros e oitenta e nove cêntimos);
c) Condenou a ré a pagar aos restantes herdeiros 7/8 daquela quantia, na proporção dos respetivos quinhões;
d) Absolveu a ré do demais peticionado.
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Inconformado com a sentença, os Autores interpuseram recurso, finalizando com as seguintes conclusões:

1– A ré nomeou um seu irmão – o chamado V. M. – para exercer funções inerentes ao cargo de cabeça de casal, designadamente para contactar os inquilinos dos prédios das heranças e proceder à cobrança de rendas;
2– Isto mesmo resulta quer do teor dos “recibos” por ele assinados quer das declarações por ele prestadas em sede de audiência de julgamento;
3– Assim, ao entregarem-lhe os montantes das rendas, os inquilinos faziam- no a um representante da cabeça de casal que, por sua vez, representava as heranças;
4– Deve, pois, considerar-se como provado que a cabeça de casal conferiu ao seu irmão V. M. poderes de estabelecer contactos com os inquilinos dos prédios das heranças para assuntos relacionados com os arrendamentos, designadamente para deles receber as rendas;
5– Daqui decorre que a entrega pelos inquilinos ao V. M. dos montantes das rendas era, pois, liberatória – o que também decorre do facto de ela ter sido expressamente consentida pela cabeça de casal e por esta a ter ratificado – arts. 770º a) e c) do CC.;
6– A cabeça de casal, na relação das rendas recebidas, não incluiu as relativas às lojas M. (D. e Electricidade) relativas a quatro meses do 1º semestre de 2012;
7– Como justificação refere o seu não pagamento pelo inquilino que terá invocado compensação com prejuízos de inundações;
8– A invocação da compensação implica o reconhecimento de que as rendas foram efetivamente pagas (aliás não constam da relação de rendas não pagas);
9– Não foi feita prova pela ré dos invocados prejuízos e da declaração de compensação por parte do inquilino;
10– Deve, pois, ser considerado como provado que foram pagas pelo inquilino da loja M. as rendas referentes a quatro dos seis meses do primeiro semestre de 2012, sendo
- 1.700 € relativos à loja Electricidade;
- 2.000 € relativos à loja D.;
11– As rendas em falta relativas aos anos de 2013, 2014 e 2015 das lojas M. foram efetivamente pagas pelo inquilino e recebidas pelo V. M. como representante da cabeça de casal e, por via delas das heranças;
12– Isto mesmo decorreu inequivocamente do seu depoimento e, quanto às rendas referentes aos anos de 2014 e 2015, também por confissão da cabeça de casal (requerimento de 08/03/2017);
13– Deve, pois, ser dado como provado que foram recebidas pelo chamado V. M., em representação da cabeça de casal, as rendas pagas pelo inquilino das lojas Electricidade e D., inscritas na matriz urbana da freguesia de (...) nos arts. … D e … D relativas a dois meses do primeiro semestre de 2012 no valor de 1850 €, 6 meses de Junho, Julho e Setembro a Dezembro de 2013 no valor de 5550 €; 4 meses de 2014 no valor de 3700 € e 6 meses de Janeiro a Junho de 2015 no valor de 5550 €, num total de 16.650 €;
14– A cabeça de casal, no seu requerimento de 12/07/2018, refere que o V. M. recebeu valores de rendas da sapataria AV. de que “nunca prestou contas à herança”;
15– Isso mesmo decorre do depoimento prestado pelo próprio V. M. e do facto de ele, ao elaborar as tabelas das rendas, fez constar na referente às da sapataria AV. a rubrica “SN”;
16– Deve, pois, ser considerado como provado que foram recebidas rendas pelas heranças, no âmbito da execução do contrato de arrendamento da “Sapataria AV.” referentes aos seguintes períodos: ano de 2013 (8 rendas – no valor de € 1.314,72); ano de 2014 (9 rendas – no valor de € 1.479,06); e ano de 2015 (4 rendas – no valor de € 656,85) num valor total de 3.450,63 €;
17– Mas ainda que assim se não entendesse a cabeça de casal seria responsável pelos montantes de que o V. M. ilicitamente se apropriou, nesse mesmo montante;
18– Ao decidir de maneira diferente o M. Juiz a quo interpretou erradamente e violou os arts. 310/b, 798, 799 e 2020 do CC;
19– A cabeça de casal pagou obras de condomínio referentes à loja M. D. no montante de 3.444,00 €;
20– No entanto, metade desse valor – correspondente à segunda prestação – apenas seria devida no final da obra, que ocorreu já após a partilha da herança e da inerente cessação do cabeçalato;
21– Assim, deverá a verba referente a obras ser reduzida de 4.220 € para 2.447,50 €, adicionando-se o excedente (1.772,50 €) ao saldo devedor das contas;
22– O saldo devedor das contas é, pois, de 34.967,02 € correspondente ao saldo constante da douta sentença recorrida (9.393,89 €) acrescido dos montantes de 3.700,00 € + 16.650,00 € + 3.450,63 € + 1.772,50 €.

Pugnam os Recorrentes pela integral procedência do recurso com a consequente parcial revogação da sentença recorrida, que deve ser substituída por outra que fixe em 34.976,02 € o saldo positivo das contas das heranças e condene a ré a pagar aos restantes herdeiros 7/8 dessa quantia, na proporção dos respetivos quinhões (ou seja, 4.372,00 € a cada um).

Foram apresentadas contra-alegações.

A Ré recorreu subordinamente, apresentando as seguintes conclusões:

1. A questão que aqui se coloca à douta apreciação do Meritíssimo Tribunal “ad quem”, resume-se a saber se a quantia recebida pelo autor V. M. se reportava ao reembolso das despesas a que o mesmo tinha de fazer face atendendo às tarefas que desempenhava ou se se tratava de uma recompensa por serviços de administração da herança e, em caso de resposta afirmativa ao segundo caso, se a cabeça de casal autorizou o recebimento a esse título
2. A este propósito importa considerar o depoimento de V. M. (minuto 00:18:33 a minuto 00:24:55) que afirmou que esse valor se reporta à restituição de despesas
3. Importa considerar, ainda, o depoimento de P. M. (minuto 00:14:36 a minuto 00:18:14) que reconheceu que V. M. incorria em despesas regulares em virtude do trabalho prestado à herança
4. Por sua vez, C. A. (minuto 00:08:40 a minuto 00:10:20) foi peremptório ao afirmar que aquele valor se destinava a fazer face a despesas correntes
5. Por fim, M. R. (minuto 00:08:42 a minuto 00:09:44) foi assertiva ao indicar que aquele valor não tinha qualquer intuito remuneratório, mas antes se destinava à restituição de despesas em que o seu irmão incorria.
6. Resultou, assim, provado que a ré, ora Apelante, autorizou que o autor V. M. recebesse, por reembolso das despesas despendidas a título de deslocações e de comunicações, no ano de 2013, a quantia global de €2.340,00, no ano de 2014, a quantia global de €1.560,00, e no ano de 2015, a quantia global de €780,00.
7. Deve, por isso, ser alterada a resposta dada à alínea d) da matéria de facto não provada e ao ponto 2 dos factos provados.
8. Assim, deve considerar-se provado que o autor V. M. despendeu, no ano de 2013, a quantia global de €2.340,00, no ano de 2014, a quantia global de €1.560,00, e no ano de 2015, a quantia global de €780,00 em deslocações e comunicações.

Sem prescindir

9. A natureza patrimonial da obrigação de prestar contas revela-se nomeadamente no próprio objecto da ação, a que alude o artigo 941º do Código de Processo Civil que visa o “apuramento e aprovação de receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se”, operações estas que assumem um carácter predominantemente patrimonial.
10. Também o que importa, no âmbito dessa ação em termos de obrigação de prestar contas, é quem de facto administra bens alheios, independentemente da fonte que gera essa obrigação
11. Uma coisa é a intransmissibilidade do cargo de cabeça de casal, a que alude o artigo 2095º do Código Civil e outra bem diferente é a própria natureza da obrigação de prestar contas, por quem administra património alheio, como afinal acontece no caso em apreço.
12. E uma coisa é a pessoalidade do cargo de cabeça de casal e outra é a natureza da obrigação de prestar contas a que está obrigado, o que significa que o facto do cargo de cabeça de casal ser de natureza pessoal, não faz com essa pessoalidade se transmita também à obrigação de prestar contas.
13. Sendo a obrigação de prestar contas de natureza patrimonial é susceptível de transmissão para quem fez administração de bens alheios.
14. Conforme resultou provado, era o autor V. M. quem administrava, de facto, a herança e o valor mensal que retirava, para fazer face às despesas em que incorria, não era sequer transferido pela R.
15. Tal conclusão resulta, de resto, do depoimento de C. A. (minuto 00:06:37 a minuto 00:06:59), das declarações de parte de M. R. (minuto 00:14:44 a minuto 00:16:05), das declarações de J. M. (minuto 00:18:29 a minuto 00:19:03) e de P. M. (minuto 00:44:07 a minuto 00:44:42)
16. Nessa medida, sobre o Autor V. S. impendia o ónus de provar a proveniência daquelas despesas e que as mesmas nada tiveram que ver com o exercício da sua administração.
17.Tendo-se demonstrado que a Apelante não é responsável por aquelas “despesas administrativas”, os Apelados que pretendam sindicar o montante e a natureza deverão interpor nova acção, destinada a esse fim, contra o autor V. M..
18. Na verdade, a cabeça de casal não possui legitimação para o efeito, nem responde pelos actos daquele seu irmão.
19. De facto, não pode, em todo o caso, considerar-se que a Apelante autorizou o recebimento de qualquer quantia por serviços de administração da herança por parte do autor V. M..
20. Acresce que, como bem se defende na douta sentença ora posta em crise, “nesta ação especial não deve ser a cabeça-de-casal responsabilizada por eventuais atos de má gestão quer seus, quer os seus representantes, saldados, designadamente, na apropriação de valores que deveriam ter sido, mas não foram, entregues à herança”.
21. Por conseguinte, deve ser considerado não provado o facto constante do ponto 2 dos factos provados, concretamente, que a Apelante tenha autorizado que o autor V. M. recebesse quaisquer quantias a título de administração da herança.
22. Como resulta de todo o exposto, em qualquer dos casos, deverá a primeira parte da alínea a) do dispositivo da sentença ser alterada no sentido da inclusão, como verbas da despesa, das quantias referentes a “despesas administrativas” dos anos 2013, 2014 e 2015, no montante global de €4.680,00.
23. Nessa medida, o saldo positivo a distribuir ascende ao montante de €4.713,89 (€9.393,89-€4.680,00).
Foram apresentadas contra-alegações.

Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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II - Delimitação do objeto do recurso

As questões decidendas a apreciar, delimitadas pelas conclusões dos recursos, consistem em determinar se deve ser modificada a decisão proferida sobre a matéria de facto, e, consequentemente, se deve ser alterado o saldo positivo das contas da herança.
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III – Fundamentação

3.1. Os factos

Na 1ª instância foi dada como provada a seguinte factualidade:

1. No âmbito da execução dos contratos de arrendamento dos prédios correspondentes aos artigos matriciais urbanos da freguesia de (...) n.ºs ...-D e ...-D, o respetivo arrendatário pagou as seguintes rendas: 2 rendas do primeiro semestre de 2012, no valor de €1850,00; 6 rendas de junho a dezembro de 2013, com exceção do mês de agosto, no valor de € 5.550,00; 4 rendas do ano de 2014, no valor de € 3.700,00; 4 rendas de janeiro a abril de 2015, no valor de € 3.700,00.
2. A ré autorizou que o autor V. M. recebesse, por serviços de administração da herança: no ano de 2013, a quantia global de € 2.340,00; no ano de 2014, a quantia global de € 1.560,00; e no ano de 2015, a quantia global de € 780,00.
3. Por obras feitas no prédio “Q. (Satélite)” e no prédio “Q. (ELECTRICIDADE)”, a cabeça-de-casal pagou, em 02-06-2015, os valores respetivos de € 3.445,00 e € 775,00.

Ao invés, considerou-se como não provados os seguintes factos:

a) A ré recebeu as rendas referidas em “1” dos factos provados.
b) As 6 rendas de janeiro a julho de 2012 (no valor de € 5.550,00) foram integralmente pagas.
c) No âmbito da execução do contrato de arrendamento da “Sapataria de AV.”, a ré recebeu as seguintes rendas: ano de 2013 (8 rendas – no valor de € 1.314,72); ano de 2014 (9 rendas – no valor de €1.479,06); e ano de 2015 (4 rendas – no valor de € 656,85).
d) A ré despendeu as quantias referidas em “2” em deslocações e comunicações.
e) A ré despendeu em honorários pagos ao seu advogado, Dr. M. F.., o montante de € 3.776,70.
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3.2. O Direito

3.2.1. Da impugnação da matéria de facto

.a) Do ónus a cargo dos recorrentes que impugnam a decisão relativa à matéria de facto

A Recorrida M. R. nas suas contra-alegações veio invocar a rejeição do recurso quanto à impugnação da matéria de facto, com o fundamento de que os Recorrentes não especificaram, nas suas conclusões, os concretos meios probatórios, constantes do registo ou de gravação realizada que, alegadamente, impunham decisão diversa acerca dos pontos da matéria de facto impugnados, conforme dispõe a alínea b), do número 1, do artigo 640º, do Código de Processo Civil.

Vejamos.

No âmbito da impugnação da matéria de facto, preceitua o art. 640º, n.º 1 do CPC que, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a)- os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b)- os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c)- a decisão que, no seu entender, dever ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Acrescenta o nº 2 do mesmo preceito, na sua alínea a) que “quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravadas, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.”

A consagração legal do registo das provas produzidas na audiência de discussão e julgamento visa instituir um efetivo segundo grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, permitindo às partes impugnarem erros de julgamento também neste âmbito.

Todavia, o legislador teve o cuidado de não permitir uma impugnação genérica e global da matéria de facto julgada em primeira instância, para não onerar o tribunal de recurso com um reexame sem fundamento bastante, pressupondo que as divergências, em regra, serão pontuais.

Por estes motivos, o recorrente tem que assinalar os pontos de facto que considera incorretamente julgados, indicar expressamente a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre esses pontos e ainda especificar os meios de prova constantes do processo que determinam decisão diversa quanto a cada um dos factos, ou, pelo menos, a cada conjunto de factos concretamente indicados e especificados.

Sendo certo que todas estas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor, não se deve cair num formalismo radical, como o indeferimento do recurso por falta de indicação nas conclusões dos meios probatórios ou segmentos da gravação em que o recorrente se funda, se constantes das alegações (neste sentido Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, pag. 160).

No caso em apreço, constando das alegações os meios probatórios ou segmentos da gravação em que os Recorrentes se fundam, forneceram estes à Relação os elementos relevantes e concretos que permitem ao tribunal a reapreciação da matéria de facto.
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3.2.2. Da modificabilidade da decisão sobre a matéria de facto

Nos termos do artigo 662º, do Código de Processo Civil, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.

Incumbe à Relação, como se pode ler no acórdão deste Tribunal de 7.4.2016 (1), “enquanto tribunal de segunda instância, reapreciar, não só se a convicção do tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova e os outros elementos constantes dos autos revelam, mas também avaliar e valorar (de acordo com o princípio da livre convicção) toda a prova produzida nos autos em termos de formar a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos da matéria de facto objecto de impugnação, modificando a decisão de facto se, relativamente aos mesmos, tiver formado uma convicção segura da existência de erro de julgamento na matéria de facto”.

Apesar disso, sem prejuízo de uma valoração autónoma dos meios de prova, essa operação não pode nunca olvidar os princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação das provas.

Os Recursos, principal e subordinado, serão apreciados conjuntamente por uma questão de metodologia e melhor compreensão das questões.

Os Recorrentes Autores consideram que deveriam ser dados como provados os seguintes factos:

1. A cabeça de casal conferiu ao seu irmão V. M. poderes de estabelecer contactos com os inquilinos dos prédios das heranças para assuntos relacionados com os arrendamentos, designadamente para deles receber as rendas.
2. Foram pagas pelo inquilino da loja M. as rendas referentes a quatro dos seis meses do primeiro semestre de 2012, sendo
- 1.700 € relativos à loja Electricidade;
- 2.000 € relativos à loja D..
3. Foram recebidas pelo chamado V. M. em representação da cabeça de casal as rendas pagas pelo inquilino das lojas Electricidade e D., inscritas na matriz urbana da freguesia de (...) nos arts. ... D e ... D relativas a dois meses do primeiro semestre de 2012 no valor de 1850 €, 6 meses de Junho, Julho e Setembro a Dezembro de 2013 no valor de 5550 €; 4 meses de 2014 no valor de 3700 € e 6 meses de Janeiro a Junho de 2015 no valor de 5550 €, num total de 16.650 €.
4. Foram recebidos pelas heranças, no âmbito da execução do contrato de arrendamento da “Sapataria AV.” referentes aos seguintes períodos: ano de 2013 (8 rendas – no valor de € 1.314,72); ano de 2014 (9 rendas – no valor de € 1.479,06); e ano de 2015 (4 rendas – no valor de € 656,85), num total de 3.450,63 €.

Por sua vez a Recorrente Ré considera que deve ser alterada a resposta dada à alínea d) da matéria de facto não provada e ao ponto 2 dos factos provados, passando a considerar-se provado que o autor V. M. despendeu, no ano de 2013, a quantia global de €2.340,00, no ano de 2014, a quantia global de €1.560,00, e no ano de 2015, a quantia global de €780,00 em deslocações e comunicações e deve ser considerado não provado o facto constante do ponto 2 dos factos provados, concretamente, que a Apelante tenha autorizado que o autor V. M. recebesse quaisquer quantias a título de administração da herança.

Vejamos se assiste razão aos Recorrentes.

Antes de entramos na análise detalhada da impugnação da matéria de facto, importa deixar esclarecido que por decisão transitada em julgado após acórdão do Tribunal da Relação que a confirmou foi considerado existir obrigação de prestação de contas por parte da ré, referente à administração do património da herança deixada por óbito de A. M. e C. M., desde 05-12-2011 até 05-07-2015.

Isto posto.

Entendem os Recorrentes Autores que a cabeça de casal encarregou o seu irmão V. M. de contactar os inquilinos e de receber as rendas, pelo que o V. M. ao receber as rendas fazia-o em representação da cabeça de casal. Ou dito de outra maneira: ao entregarem-lhe o dinheiro das rendas, os inquilinos faziam-no a um representante da cabeça de casal que, por sua vez, representava as heranças.

Mas ainda que se considerasse que o V. M. não representava a herança, mesmo assim, o pagamento das rendas seria liberatório, extinguindo a obrigação uma vez que o pagamento foi expressamente consentido pelo cabeça de casal.

Da prova produzida, não restaram dúvidas que o autor V. M. realizou trabalhos de administração da herança e fê-lo a mando da ré, cabeça de casal, sendo compensado pela prestação desses serviços.

Daí que, nesta parte, concordamos com os Recorrentes, na afirmação clara que a cabeça de casal encarregou o seu irmão V. M. de cobrar as rendas.

Sendo assim, a cabeça de casal ao encarregar o seu irmão V. M. de cobrar as rendas consentiu que elas lhe fossem pagas e considerou como pagas as rendas por ele cobradas. Tanto significa que considerou como recebidas pela herança e com eficácia liberatória as rendas pagas por intermédio do seu irmão.

Ora, o facto de este não ter entregado o montante das rendas à cabeça de casal é, a este respeito, inócuo.

A circunstância agora em apreciação não se encontra abrangida no princípio, com o qual se concorda inteiramente, de que a ação de prestação de contas “não visa a responsabilização do administrador por eventual má administração nem a fixação de rendimentos que não foram obtidos por falta de diligência do obrigado”.

Na verdade, os Recorrentes Autores não questionam o montante das rendas praticadas nem a eventual negligência na obtenção de outros proveitos dos imóveis da herança.

A questão que aqui se coloca é de molde muito diferente: saber se o pagamento de rendas a alguém a que a cabeça de casal encarregou de as receber se repercute ou não nas contas da herança.

Desde logo, por força do estipulado no art. 770º, alínea a) do Código Civil, ao conferir eficácia liberatória ao pagamento de rendas por terceiro autorizado, a cabeça de casal considerou como pagas à herança as rendas recebidas por essa via.

E se esse pagamento se tem por imputado à herança então o valor respetivo não pode deixar de estar refletido na conta corrente.

Resta de seguida saber que rendas é que podem ser consideradas como recebidas pela Ré e, portanto, imputadas à herança.

Nesta parte, concordamos na íntegra com o apuramento feito na sentença recorrida, matéria que corresponde ao facto provado “1” e não provado c) e resulta sobretudo do confronto dos documentos fiscais com declarações/depoimento de parte de V. M..

Da prova produzida, não resultou a demonstração que 4 das rendas de 2012 (que não foram, para todos os efeitos, declaradas em sede de IRS) tivessem sido pagas pelo arrendatário ou recebidas pela Ré cabeça de casal.

O montante de €1.850,00, equivalentes a dois meses de renda, do 1.º semestre de 2012, foram declarados em sede fiscal mas não constam das contas como tendo sido recebidos, e apesar dessa declaração fiscal, não se demonstrou que tivessem sido efetivamente recebidos pela cabeça-de-casal.

Das declarações do Autor V. M. depreende-se que, no primeiro semestre de 2012, não estaria, ainda, com a incumbência de receber rendas dos prédios, adiantando que nesse período o recebimento era feito pelo irmão P. J., admitindo ainda que este poderia ter ficado com algumas rendas e que teria havido um encontro de contas com o inquilino dos prédios devido a umas inundações que lhe teriam causado prejuízos.

Este segmento foi secundado pelo declarado pelo Autor P. M. que referiu que duas rendas (o tal valor de € 1.850,00) teriam ficado com o P. J. e que as quatro rendas (as remanescentes do semestre) teriam servido para compensar o inquilino pelos prejuízos decorrentes de inundações. Também C. A., marido da Ré, corroborou a versão do encontro de contas com o inquilino e que o mesmo teria sido celebrado com o autor P. j..

Concluímos à semelhança da primeira instância que o valor de € 1.850,00 teria sido efetivamente pago pelo inquilino, mas não entregue à herança, e daí a justificação para ser declarado fiscalmente. O restante montante, considerado em acerto de contas com prejuízos sofridos pelo inquilino, não foi contabilizado em sede de IRS.

Cremos, assim, salvo o devido respeito que a prova apurada não permite o “salto” dado pelos Recorrentes na construção jurídica efetuada da compensação à admissão de recebimento.

Uma observação final: relativamente ao ano de 2015 a impugnação dos Autores quanto às verbas de receitas, incide sobre as rendas de janeiro a abril, e nessa conformidade foi enunciado o tema da prova e consequentemente produzida a prova. Estender o período até junho é facto novo trazido em sede de alegações de recurso, que como tal não pode ser atendido.

Em conclusão, do acervo probatório, com segurança só pode ser afirmado que no âmbito da execução dos contratos de arrendamento dos prédios correspondentes aos artigos matriciais urbanos da freguesia de (...) n.ºs ...-D e ...-D, o respetivo arrendatário pagou 2 rendas do primeiro semestre de 2012, no valor de €1.850,00; 6 rendas de junho a dezembro de 2013, com exceção do mês de agosto, no valor de € 5.550,00; 4 rendas do ano de 2014, no valor de € 3.700,00; 4 rendas de janeiro a abril de 2015, no valor de € 3.700,00.

Dessas rendas a Ré só não recebeu as 2 rendas do primeiro semestre de 2012.

Quanto ao contrato de arrendamento da “Sapataria de AV.”, não se pode afirmar que a Ré tenha recebido 8 rendas, no valor de € 1.314,72, no ano de 2013; 9 rendas, no valor de €1.479,06,no ano de 2014 e 4 rendas, no valor de € 656,85, no ano de 2015. É que o Autor V. M., proprietário do estabelecimento coM.al, reconheceu não ter pago essas rendas, afirmação que não foi infirmada por qualquer outro elemento probatório.
E aqui, enquanto inquilino relapso, não podemos dizer que atuou em representação da Ré cabeça de casal, sendo facilmente entendível que não cabe a esta entregar à herança o valor das rendas que afinal aquele inquilino não pagou.

No que respeita ao pagamento do custo de obras em prédios da herança, os Recorrentes não questionam que o pagamento foi feito, antes se, na data do pagamento, estavam vencidos os débitos correspondentes e, portanto, se a herança tinha obrigação de os pagar.

Os Recorrentes laboram em erro ao fazerem corresponder o momento da obrigação de pagamento ao condomínio ao momento de obrigação de pagamento ao empreiteiro. São coisas diferentes.

Certo é que, para o que aqui releva, das atas de assembleia de condomínio e do depoimento do administrador de condomínios Ricardo, resulta que os valores em causa foram efetivamente pagos em 2 de junho de 2015, sendo que nesta data, a cabeça-de-casal ainda exercia as suas funções e, outrossim, não tinha sido concretizada a partilha (a sentença que homologou a partilha foi proferida em ata de conferência de interessados ocorrida em 05-06-2016, tudo como se alcança do processo de inventário apenso).

Quanto à impugnação da Recorrente/Ré, em sede de recurso subordinado, podemos desde já adiantar que não lhe assiste razão.

Considera a Recorrente que deve ser considerado não provado o facto constante do ponto 2 dos factos provados, concretamente, que a Apelante tenha autorizado que o Autor V. M. recebesse quaisquer quantias a título de administração da herança. Deve, ainda, ser alterada a resposta dada à alínea d) da matéria de facto não provada e ao ponto 2 dos factos provados, no sentido de considerar-se provado que o autor V. M. despendeu, no ano de 2013, a quantia global de €2.340,00, no ano de 2014, a quantia global de €1.560,00, e no ano de 2015, a quantia global de €780,00 em deslocações e comunicações.

Pois bem.

Ouvidas as declarações das partes e os depoimentos das testemunhas e examinados os documentos juntos aos autos formamos convicção inteiramente coincidente com a convicção do tribunal recorrido.

De facto, neste particular, a fundamentação exarada na sentença recorrida é clara e consistente, esclarecendo o tribunal como formou a sua convicção, como valorou a prova, como a articulou, qual a análise crítica a que a submeteu. Consta da sentença recorrida a seguinte motivação: “Quanto às despesas apresentadas pela ré a título de deslocações e de comunicações ou, noutra perspetiva, de encargos gerais e não especificados, o autor V. M. confirmou que recebia, com autorização daquela cabeça-de-casal, provenientes do bolo da herança, valores mensais de “€130,00”, os quais totalizaram: no ano de 2012, a quantia de € 780,00 (apenas paga em janeiro de 2013); nos anos de 2013 e 2014, respetivamente, as quantias de €1560,00; e no ano de 2015 (meio ano), a quantia de € 780,00 (facto “2”).

Neste segmento ficou por apurar e explicar uma das quantias de € 780,00 referente ao ano de 2013, tendo-se constatado, depois de melhor compulsados os autos, que esse valor, que foi mencionado em sede de impugnação das contas, não surge nas contas apresentadas, onde apenas se contam 3 despesas de €780,00.

Noutra perspetiva, tendo-se demonstrado que os valores descritos como deslocações e comunicações eram, na verdade, uma “avença” paga ao autor V. M. por realizar trabalhos de administração da herança, forçosamente não se provou que as quantias descritas no facto “2” eram despendidas pela ré a título de deslocações e de comunicações (facto não provado “d)”).

Por conseguinte, e salvo o devido respeito, os trechos dos depoimentos parcialmente transcritos nas alegações do recurso, não podendo ser valorados de per si, mas concatenados com o conjunto da prova produzida, não permitem a alteração dos factos provados e não provados pretendida pela Recorrente.

Resulta, pois, do exposto, que não se vislumbra uma desconsideração da prova produzida no que se refere à factualidade impugnada, mas sim uma correta apreciação da mesma, não se patenteando a inobservância de regras de experiência ou lógica, que imponham entendimento diverso do acolhido.

Não assiste assim razão à Recorrente na impugnação da matéria de facto.
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Em suma, em face da parcial procedência da impugnação da matéria de facto dos Recorrentes/Autores, exclui-se da matéria de facto não provada o facto a) e acrescenta-se à matéria de facto provada o seguinte facto:

1.A. Dessas rendas a Ré só não recebeu as 2 rendas do primeiro semestre de 2012.
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3.2.3. Da subsunção jurídica dos factos ao direito

A ação de prestação de contas tem por objeto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se” - artigo 941.º do Código de Processo Civil.

Prestar contas implica, por sua natureza, descriminar despesas e receitas efetivamente realizadas, mas não tem a ver com a responsabilização do administrador por eventual má gestão, nem com a fixação de rendimentos que não foram obtidos por falta de diligência do obrigado – neste sentido o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03-04-2003, disponível em www.dgsi.pt.

Com efeito, convém sempre ter presente, dada a precipitação a que a equivocidade de alguns comportamentos dão azo, que a ação de prestação de contas não tem por fim determinar se a pessoa obrigada a prestá-las foi ou não diligente na administração, não visa a responsabilização do administrador por eventual má administração nem a fixação de rendimentos que não foram obtidos por falta de diligência do obrigado. Como refere Luís Filipe Pires de Sousa, apropriadamente citado na sentença recorrida, “Apenas pode discutir-se na ação de prestação de contas o valor ou a inscrição de receitas alegadamente efetivas e não de receitas virtuais. O disposto no artigo 944.º (apresentação das receitas e despesas em conta-corrente) não se compagina com a determinação de receitas virtuais. (…) Caso pretenda averiguar da boa ou má administração da pessoa obrigada a prestar contas, deve o autor recorrer ao processo comum e não ao processo especial de prestação de contas” - in “Processos Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas”, 2016, Almedina, página 140.

Feita a advertência e posto em foco que a finalidade da ação é o apuramento das receitas e das despesas e a determinação do eventual saldo resultante, indo ao caso concreto, resultou demonstrado que, quanto aos artigos matriciais urbanos da freguesia de (...) n.ºs ...-D e ...-D, o arrendatário pagou as seguintes rendas: 2 rendas do primeiro semestre de 2012, no valor de €1850,00; 6 rendas de junho a dezembro de 2013, com exceção do mês de agosto, no valor de € 5.550,00; 4 rendas do ano de 2014, no valor de € 3.700,00; 4 rendas de janeiro a abril de 2015, no valor de € 3.700,00. Dessas rendas, as duas relativas ao primeiro semestre de 2012, no valor de €1850,00, não foram recebidas pela Ré (terão sido entregues ao autor P. J. que não as terá, por sua vez, entregado à cabeça-de-casal).

As demais foram entregues pelo arrendatário ao Autor V. M., incumbido pela cabeça de casal de proceder ao seu recebimento. Este pagamento, pela cabeça de casal assumido como liberatório, tem necessariamente de ser imputado à herança.

Por conseguinte, quanto ao montante destas rendas terão de ser consideradas receitas da herança em virtude de terem sido entregues a pessoa que administrava tais bens a pedido da cabeça-de-casal.

Nesta situação, não está em causa um ato de má gestão seja da cabeça de casal seja do seu representante, pois que foi diligenciado e obtido o valor que era devido a título de rendas, o qual foi entregue a alguém autorizado a recebê-las pelo representante da herança, ou seja, a cabeça de casal.

Relativamente às rendas da “Sapataria de AV.”, já a situação é diferente.

Na verdade, neste caso, tais rendas não foram pagas, pelo que não deverão ser contabilizadas como receitas.

No que concerne às despesas, os valores que a ré autorizou que o autor V. M. recebesse por serviços de administração da herança, não deverão ser incluídos nas contas como despesa da herança.

O cargo de cabeça de casal é gratuito - artigo 2094.º do Código Civil.

Como pode ler-se no Acórdão desta Relação de 4.4.2017 “II -O cargo do cabeça de casal é gratuito, pelo que não pode o mesmo socorrer-se dos serviços remunerados de terceiros para executar o seu trabalho. III - Assim, a remuneração a esse terceiro não pode ser tida como despesas da herança” – Acórdão disponível em www.dgsi.pt.

Por isso, devem apenas ser suportadas as despesas em que, efetivamente, o cabeça de casal tenha incorrido com a administração da herança.

Consequentemente, da regra da gratuitidade do exercício do cabecelato não podem resultar, para a herança, encargos relativos a pagamentos por serviços de administração, designadamente aqueles que ora são apresentados nas contas prestadas, ou seja, em forma de pagamento de uma espécie de avença a um co-herdeiro para auxílio nessa mesma administração que por força da lei, se quer gratuita.

Deste modo, concluímos como na sentença recorrida, considerando que as despesas administrativas dos anos de 2013, 2014 e 2015 – aí apresentados em 6 tranches de € 780,00 - no montante global de €4680,00, por não corresponderem a gastos suportáveis pela herança (não se demonstrou que fossem de deslocações ou comunicações), não poderão ser incluídos nas contas apresentadas.
Finalmente, quanto à questão das obras feitas no prédio “Q. (Satélite)” e no prédio “Q. (Electricidade)”, apurou-se que a cabeça-de-casal pagou, em 02-06-2015, os valores respetivos de € 3.445,00 e € 775,00. Os prédios em causa faziam parte do acervo hereditário que viria a ser partilhado, ocorrendo a liquidação das despesas com as obras quando ainda não havia sido partilhada a herança. Donde, devem estes valores manter-se com a qualificação de despesas nas contas apresentadas.

Em suma, a apelação interposta pelos Recorrentes/Autores merece parcial provimento, enquanto a apelação subordinada se apresenta totalmente improcedente.

Nesta conformidade, deverão as contas prestadas ser corrigidas de modo a que:

a) das receitas passe a constar o valor das rendas recebidas pela cabeça de casal relativamente aos prédios correspondentes aos artigos matriciais urbanos da freguesia de (...) n.ºs ...-D e ...-D e que são as seguintes:

- 6 rendas de junho a dezembro de 2013, com exceção do mês de agosto, no valor de € 5.550,00;
- 4 rendas do ano de 2014, no valor de € 3.700,00;
- 4 rendas de janeiro a abril de 2015, no valor de € 3.700,00,
no valor global de € 12.950,00.

b) das despesas sejam excluídos:

- os valores de despesas administrativas dos anos de 2013, 2014 e 2015, no montante global de €4680,00;
- o valor “Liquidação Dr. M. F.”, no montante de €3.776,70.
Consequentemente, deverá ser corrigido o saldo positivo para o valor global de € 22.343,89 (€ 937,19 + € 4.680,00 + € 3.776,70 + € 5.550,00 + € 3.700,00 + € 3.700,00), que deverá ser distribuído aos 8 herdeiros, na proporção dos respetivos quinhões.
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IV – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação interposta pelos Recorrentes/Autores, assim revogando em parte a sentença recorrida, declarando a existência de saldo positivo no montante de € 22.343,89 (vinte e dois mil trezentos e quarenta e três euros e oitenta e nove cêntimos); confirmando-se na parte restante a decisão recorrida.
Custas do recurso principal por Recorrentes e Recorrida, na proporção de ¼ para os primeiros e ¾ para a segunda.
Mais acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o Recurso subordinado, ficando a cargo da Recorrente as respectivas custas.
Guimarães, 17 de Dezembro de 2018

Conceição Sampaio
Elisabete Coelho de Moura Alves
Fernanda Proença Fernandes

1- Disponível em www.dgsi.pt