Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1732/20.2T8BCL.G1
Relator: JORGE BISPO
Descritores: CASSAÇÃO DA LICENÇA DE CONDUÇÃO
PERDA DA TOTALIDADE PONTOS
PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE E NECESSIDADE
ARTºS 18º
N.º 2
E 29º
N.º 5
DA CONSTITUIÇÃO
E 148º DO CÓDIGO DA ESTRADA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/17/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) A medida de cassação do título de condução por perda da totalidade de pontos, na medida em que é determinada em função da natureza, da gravidade e do número das infrações cometidas, com a consequente variação da quantidade de pontos a subtrair, e que não é indiferente ao período de tempo em que o condutor se mantém sem registo de contraordenações graves ou muito graves ou crimes de natureza rodoviária no registo de infrações, propiciador da recuperação de novos pontos, respeita os princípios da proporcionalidade e também da necessidade, em função da maior perigosidade revelada pelo condutor.
II) Assim como também não representa um duplo e novo sancionamento em relação à aplicação das penas acessórias de proibição de conduzir pela prática das contraordenações ou dos crimes rodoviários, estando antes em causa a inidoneidade para a condução de veículos com motor, decorrente dessas condenações.
III) Pelo exposto, é de concluir no sentido de não se mostrarem violados os princípios consagrados nos arts. 18º, n.º 2, e 29º, n.º 5, da Constituição, não padecendo o art. 148º do Código da Estrada de inconstitucionalidade.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

1. No processo de cassação com o n.º 73/2020, a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR), por decisão de 22-04-2020, determinou a cassação do título de condução n.º ......, de que é titular o arguido D. F..
2. Não se conformando com essa decisão, o arguido impugnou-a judicialmente, dando origem aos autos com o NUIPC 1732/20.2T8BCL, a correr termos no Juízo Local Criminal de Barcelos (Juiz 1), do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, em cujo âmbito foi proferida sentença, em 07-10-2020, a julgar improcedente, na totalidade, o recurso, confirmando integralmente a decisão administrativa.
3. Mais uma vez inconformado, o arguido interpôs o presente recurso, concluindo assim a respetiva motivação (transcrição [1]):
«CONCLUSÕES:

I. O recorrente foi notificado da decisão proferida pelo Presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, que determinou a cassação do seu título de condução n.º ......, na sequência das condenações pela prática de dois crimes rodoviários que foram averbadas ao seu RIC.
II. Nos termos da sentença, foi confirmada a decisão administrativa que decidiu decretar a cassação do título de condução n.º ...... de que o recorrente é titular.
III. Viola o ne bis in idem (previsto no artigo 29.°, n.º 5 da CRP e consagrado no artigo 54.° da CAAS como princípio de preclusão e verdadeira proibição de cúmulo de ações penais) a sentença recorrida.
IV. O arguido cumpriu as penas aplicadas no âmbito dos processos citados na sentença recorrida.
V. Ora, o Tribunal a quo ao aplicar a norma 148.° do Código da Estrada, viola a Constituição da República Portuguesa.
VI. Nos termos do artigo 204.° da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP), deveria antes tê-la desaplicado, revogando o despacho da Autoridade Administrativa, por a sua aplicação determinar a violação da CRP e portanto, há uma irregularidade prevista no artigo 123.° n.º 1 do Código Processo Penal, não podendo por isso manter-se a decisão recorrida.
VII. Quer assim dizer-se que caso se entendesse que a lei processual estaria cumprida, a norma que determina a cassação do título de condução deverá ser considerada inconstitucional designadamente por violação de caso julgado e por inconstitucionalidade das normas 148.° e 149.° do Código da Estrada.
VIII. No caso sub judice, o arguido não incumpriu as injunções aplicadas.
IX. Do ne bis in idem resulta que o mesmo facto não pode ser valorado por duas vezes, isto é, a mesma conduta ilícita não pode ser apreciada com vista à aplicação de sanção por mais do que uma vez.
X. Se se entender que a perda de pontos poderá preencher o elemento formal da pena acessória ou efeito da pena, já não preenche qualquer elemento ou pressuposto material.
XI. Nestas situações, qualquer condenação posterior numa pena representaria uma violação do princípio da necessidade, consagrado no artigo 18°, n° 2, da CRP.
XII. Constituição que o juiz de julgamento não pode deixar de aplicar. A sentença recorrida, ao condenar o arguido numa pena, não só manteve a violação do ne bis in idem, como afrontou o princípio constitucional da necessidade (da pena).
XIII. Por todo o exposto deve o presente recurso vir a ser julgado procedente por provado e a douta sentença revogada, decidindo-se que pela não aplicação da sanção de cassação da carta de condução.
XIV. Sempre teremos que reconhecer que, em nenhuma das duas vezes o agente atuou com intenção de violar normas jurídicas, resultando em ambas as situações o não preenchimento de um pressuposto, absolutamente essencial, para toda e qualquer responsabilidade, o elemento subjetivo.
XV. Pelo que se considera como proporcional e adequado a imposição de obrigação de frequência de ações de formação ou tão-somente a obtenção de novo título de condução mas de forma imediata, pressupondo sempre que o respondente é um excelente condutor, tanto mais que o faz profissionalmente, e do seu título de condução tem necessidade para o exercício da sua atividade profissional.

Termos em que e nos demais de direito, deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser revogada a sentença recorrida, substituindo-se por outra, nos termos exarados.»

4. O Exmo. Magistrado do Ministério Público junto da primeira instância pugnou pela improcedência do recurso, com base na seguinte síntese conclusiva (transcrição):
«CONCLUSÕES:

1 – De tudo o atrás explanado, diremos em síntese que o douto despacho recorrido deverá ser mantido na íntegra, uma vez que não se violou qualquer das normas jurídicas e Princípios Gerais do Direito ora invocados, mormente os Princípios da Necessidade (da pena) e do “ne bis in idem”.
2 – Pelo que, o Mmº Juiz a quo, em nosso entender, decidiu de forma correta ao proferir o despacho de fls., devidamente fundamentado de facto e de direito, com recurso a abundante Doutrina e Jurisprudência, não merecendo a mesma qualquer censura jurídica.
3 – Já que fez ajustada apreciação dos factos e adequada aplicação da Lei.
4 – Destarte não violou o Mmº Juiz a quo o disposto nos artºs 148º, 149º, do Código da Estrada, 123º, do Código de Processo Penal e 18º, nº 2, 29º, nº 5 e 204º, da Constituição da República Portuguesa.»
5. Nesta instância, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, pronunciando-se ao abrigo do disposto no art. 416º, n.º 1, do Código de Processo Penal, emitiu parecer no sentido de o recurso dever «(…) ser rejeitado por decisão sumária do Exmo. Relator, em razão da sua por manifesta improcedência (…), nos termos propugnados na oportuna e exauriente argumentação que o Senhor Procurador da República expendeu na resposta ao recurso (…) , já que vem escalonada ali argumentação adequada e suficiente para evidenciar a transversal sem-razão do recorrente, posição que, por economia dos escanifrados meios, se subscreve na íntegra, dando-se aqui, em razão das circunstâncias e devido ao carácter negativamente extenso do recurso, por reproduzida».
Mais refere o Exmo. Procurador-Geral Adjunto que o recurso, «(…) para além do evidente desconchavo de algumas das suas conclusões […] desconsidera todo o avassalador repositório de fundamentos da improcedência da impugnação, em que foram expostas "ad nauseam": a arquitetura jurídica do abatimento de pontos na carta de condução, circunstâncias em que ocorre, metodologia da sua operacionalização e, bem assim, a conformidade constitucional do aludido mecanismo complementar de sancionamento da delinquência rodoviária mais grave.»
6. No âmbito do disposto no art. 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não houve resposta a esse parecer.
7. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, de harmonia com o preceituado no art. 419º, n.º 3, al. c), do Código de Processo Penal.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. QUESTÕES A DECIDIR

De acordo com as conclusões formuladas pelo recorrente, que definem e delimitam o objeto do recurso, as questões a apreciar reconduzem-se a saber:
a) - Se o tribunal a quo deveria ter desaplicado o art. 148º do Código da Estrada, revogando a decisão da autoridade administrativa que determinou a cassação do seu título de condução, com fundamento em aquela norma enfermar de inconstitucionalidade por violação do princípio ne bis in idem e do princípio da necessidade, consagrados, respetivamente, nos arts. 29º, n.º 5, e 18º, n.º 2, da Constituição (conclusões III a XIII);
b) - Se, em substituição da cassação do título de condução, deveria ter sido aplicada a imposição da obrigação de frequência de ações de formação ou determinada a obtenção de novo título de condução “de forma imediata” (conclusões XIV e XV).

2. DA DECISÃO RECORRIDA

Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):

«1 - D. F. é titular de carta de condução, com o n.º ……, que o habilita a conduzir veículos da categoria AM desde 30/08/1995 e que o habilita a conduzir de condução de veículos da categoria B e B1 desde 03/04/2006.
2 - Este arguido foi condenado:
- por sentença proferida em 30/01/2018, transitada em julgado em 01/03/2018, no processo n.º 68/18.3GBBCL, que correu termos no juízo local criminal de Barcelos (J2), pela prática em 28/01/2018, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, além do mais, na pena acessória de inibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 4 meses;
- por sentença proferida em 24/04/2019, transitada em julgado em 24/05/2019, no processo n.º 350/19.2GBBCL, que correu termos no juízo local criminal de Barcelos (J2), pela prática em 15/04/2019, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, além do mais, na pena acessória de inibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 8 meses.
3 - Por despacho proferido pelo Presidente da Autoridade Nacional da Segurança Rodoviária, datado de 22/04/2020, e notificado ao arguido por ofício datado de 09/06/2020, foi declarado verificados os requisitos da cassação da carta do arguido e determinada a execução da mesma (cassação).»

3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

3.1 – Da inconstitucionalidade da norma do art. 148º do Código da Estrada

Antes de mais, refira-se que no termo da conclusão VII, o recorrente também faz alusão, a par da referência ao art. 148º do Código da Estrada, à inconstitucionalidade do art. 149º do mesmo diploma, preceito este que regula o "registo de infrações " do condutor, indicando os elementos que dele devem constar [os crimes praticados no exercício da condução de veículos a motor e respetivas penas e medidas de segurança, as contraordenações graves e muito graves praticadas e respetivas sanções e a pontuação atualizada do título de condução (n.º 1)], bem como estabelecendo a obrigatoriedade de o Ministério Público comunicar à ANSR os despachos de arquivamento de inquéritos proferidos nos termos do n.º 3 do artigo 282º do Código de Processo Penal quando tenha existido cumprimento da injunção a que alude o n.º 3 do artigo 281º do mesmo diploma (n.º 2), e prevendo ainda que a referida autoridade assegure o acesso dos condutores ao registo de infrações (n.º 3).
Todavia, em parte alguma o recorrente concretiza qualquer segmento normativo desse artigo que infrinja a Constituição, antes resultando claramente das conclusões e da respetiva densificação no corpo da motivação que os fundamentos da inconstitucionalidade por ele invocada se circunscrevem ao art. 148º do Código da Estrada, na parte relativa à cassação do título de condução.
Com efeito, o que recorrente defende é que o tribunal a quo deveria ter recusado a aplicação deste último artigo e, consequentemente, revogado a decisão da autoridade administrativa que determinou a cassação do seu título de condução.
3.1.1 - Para tanto, invoca a inconstitucionalidade dessa norma, com fundamento, em primeiro lugar, na violação do princípio ne bis in idem, porquanto pelos mesmos factos já havia sido julgado e condenado nos processos identificados na sentença recorrida, tendo cumprido as penas aí aplicadas, pelo que a nova valoração dessas condutas ilícitas para aplicação de outra sanção implica a violação do caso julgado (conclusões III a IX).
Vejamos se lhe assiste razão.
A Lei n.º 116/2015, de 28 de agosto, procedeu à décima quarta alteração ao Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de maio, nomeadamente introduzindo o “sistema de pontos” na carta de condução.

Como se pode ler na exposição de motivos da proposta de Lei que esteve na origem daquele diploma[2]:
«A presente proposta de lei destina-se a alterar o Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de maio, implementando o regime da carta por pontos.
O atual regime contempla já um sistema aproximado da carta por pontos, embora bastante mitigado. Trata-se, assim, de promover uma atualização do regime vigente, acompanhando a maioria dos países europeus, onde o regime da carta por pontos se encontra plenamente consagrado e estabilizado.
A carta por pontos constitui uma das ações chave da Estratégia Nacional de Segurança Rodoviária, aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 54/2009, de 14 de maio. Pretende-se, com a sua implementação, aumentar o grau de perceção e de responsabilização dos condutores, face aos seus comportamentos, adotando-se um sistema sancionatório mais transparente e de fácil compreensão.
A análise comparada com outros países europeus demonstra que é expetável que a introdução do regime da carta por pontos venha a ter um impacto positivo significativo no comportamento dos condutores, contribuindo, assim, para a redução da sinistralidade rodoviária e melhoria da saúde pública.»
Perante o elevado índice de sinistralidade rodoviária existente no nosso país e a premente necessidade de o combater eficazmente, para o que se têm revelado insuficientes as sucessivas campanhas de prevenção rodoviária, a referida alteração ao Código da Estrada teve o propósito assumido de provocar uma alteração no comportamento dos condutores em ordem a alcançar esse desiderato.

Nessa sequência, sob a epígrafe “Sistema de pontos e cassação do título de condução”, o art. 148º do Código da Estrada, na parte que para o caso releva, passou a dispor o seguinte:
“(…)
2 - A condenação em pena acessória de proibição de conduzir e (…), determinam a subtração de seis pontos ao condutor.
(…)
4 - A subtração de pontos ao condutor tem os seguintes efeitos:
a) Obrigação de o infrator frequentar uma ação de formação de segurança rodoviária, de acordo com as regras fixadas em regulamento, quando o condutor tenha cinco ou menos pontos, sem prejuízo do disposto nas alíneas seguintes;
b) Obrigação de o infrator realizar a prova teórica do exame de condução, de acordo com as regras fixadas em regulamento, quando o condutor tenha três ou menos pontos;
c) A cassação do título de condução do infrator, sempre que se encontrem subtraídos todos os pontos ao condutor.
(…)
10 - A cassação do título de condução a que se refere a alínea c) do n.º 4 é ordenada em processo autónomo, iniciado após a ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao título de condução.
11 - A quem tenha sido cassado o título de condução não é concedido novo título de condução de veículos a motor de qualquer categoria antes de decorridos dois anos sobre a efetivação da cassação.
(…)."
Este preceito estabeleceu, assim, o sistema de pontos associado ao título de condução e a cassação deste, com o mencionado propósito legislativo de incutir nos condutores uma mais vincada perceção sobre as consequências das infrações de trânsito, incluindo, agora, para efeitos de cassação do título de condução não só os ilícitos contraordenacionais graves e muito graves (n.º 1), como também os crimes rodoviários, entre eles a condução de veículo em estado de embriaguez, cuja prática tem como consequência o desconto de metade dos pontos inicialmente atribuídos a cada condutor (n.º 2), o que ocorre independentemente da sanção acessória imposta pelo cometimento do crime rodoviário.
Com efeito, de acordo com o disposto no art. 121º-A, n.º 1, do Código da Estrada, a cada condutor são atribuídos 12 pontos, podendo estes ser acrescidos de: - 3 pontos, até ao limite máximo de 15, se, em cada período três anos, inexistir registo de contraordenações graves ou muito graves ou crimes de natureza rodoviária no registo de infrações (arts. 121º A, n.º 2, e 148º, n.º 5, do Código da Estrada); - 1 ponto, até ao limite de 16, se, em cada período de revalidação da carta de condução, não constarem registo de crimes de natureza rodoviária e o condutor, voluntariamente, frequentar ações de formação (arts. 121º, n.º 3, e 148º, n.º 7, do Código da Estrada).
No caso vertente, tendo o recorrente sido condenado, por sentenças transitadas em julgado, pela prática de dois crimes de condução de veículo em estado de embriaguez, em penas acessórias de proibição de conduzir veículos motorizados, tudo conforme resulta dos factos provados, viu ser-lhe subtraída a totalidade dos 12 pontos que lhe haviam sido atribuídos, o que tem como consequência necessária a cassação do seu título de condução.
Para o efeito foi organizado o competente processo autónomo, no qual, confirmada a verificação daqueles pressupostos, previstos no art. 148º, n.ºs 2 e 4, al. c), do Código da Estrada, a autoridade administrativa proferiu a referida decisão de cassação, confirmada pelo despacho recorrido.
Defende o recorrente que essa norma padece de inconstitucionalidade material, por ser contrária ao princípio ne bis in idem.
Claramente sem razão.
Refira-se que pese embora a questão não tenha sido suscitada no recurso de impugnação judicial, já que nele o recorrente invocou a inconstitucionalidade do art. 148º do Código da Estrada apenas por violação do disposto no n.º 4 do art. 30.º da Constituição, segundo o qual “[n)enhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais e políticos", o certo é que nos termos do art. 75º do Regime Geral das Contraordenações e Coimas (aprovado pelo DL n.º 433/82, de 27/10), a 2ª instância pode alterar a decisão do tribunal recorrido sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido da decisão recorrida, salvo, obviamente, a proibição da reformatio in pejus.
O art. 29º, n.º 5, da Constituição, ao dispor que “[n]inguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”, consagra o princípio ne bis in idem, igualmente acolhido no direito internacional e europeu, com resulta do art. 14º, n.º 7, do Pacto Internacional Sobre os Direitos Civis e Políticos, art. 4.º do Protocolo n.º 7 à CEDH e art. 50º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
De tal princípio decorre a proibição de duplo julgamento e de dupla punição pelo mesmo crime, visando-se garantir a certeza e a segurança do direito, ainda que com eventual sacrifício da justiça material.
Pretende o recorrente ver um duplo sancionamento entre, por um lado, a aplicação das penas acessórias aplicadas pelos dois crimes de condução em estado de embriaguez pelos quais foi condenado nos referidos processos criminais e, por outro lado, a subsequente cassação do seu título de condução determinada ao abrigo do deposto no art. 148º do Código da Estrada.
Todavia, o que está em causa nesta cassação é a inidoneidade para a condução de veículos com motor, decorrente das anteriores condenações por crimes rodoviários, e não um novo sancionamento pela prática daqueles crimes.
Na verdade, o que se trata é do sancionamento pela prática reiterada de crimes (ou contraordenações graves ou muito graves), que revela uma falta de condições para o exercício da condução.
Essa inidoneidade revelada pelo condutor constitui algo que não foi, nem podia, ser considerado naquelas decisões, sendo nela que reside o fundamento para a cassação do título de condução.
Assim, esta não constitui uma dupla punição pelo mesmo facto ou pela mesma realidade dotada de unidade de sentido, mas antes por uma nova realidade. Em causa está, não a condenação pela prática do mesmo crime em sanções penais cumulativas, mas sim a cassação da carta de condução por efeito da perda de pontos, desde que a soma destes ultrapasse o número de pontos atribuídos ao condutor e que, como vimos, pode atingir o máximo de 16.
Às penas acessórias anteriormente aplicadas acresce agora uma outra sanção, destinada a punir já não as concretas infrações, mas sim a perigosidade acrescida ou ineptidão entretanto reveladas pelo condutor, ao demonstrar que as anteriores penas (principais e acessórias) foram insuficientes para o afastar da prática de novos crimes rodoviários, sendo, por isso, inidóneo para o exercício da condução, justificando-se a cassação do respetivo título, enquanto forma de reforçar o sistema com uma reação (in casu de natureza administrativa) que vá para além da pena acessória.
Pelo exposto, não só o arguido não está a ser julgado pelos mesmos factos, como são distintos os fundamentos subjacentes à aplicação, por um lado, das penas acessórias de proibição de conduzir pela prática dos crimes de condução em estado de embriaguez e, por outro lado, da medida de cassação do título de condução, assim como são igualmente diferentes as finalidades de umas e de outra.
Daí que o facto de o arguido já ter sido condenado na pena acessória de proibição de conduzir por cada um dos referidos crimes, não impede a cassação do seu título de condução, pois esta não viola o princípio ne bis in idem, consagrado no art. 29º, n.º 5, da Constituição.
O objeto do processo tendente à aplicação da medida de cassação do título de condução por efeito da perda de pontos não foi apreciado nem decidido em nenhum dos referidos processos em que o arguido foi condenado em pena acessória de proibição de conduzir.
Por seu turno, no processo de cassação não se reapreciam os factos julgados naqueles processos nem cada uma das sanções principais e acessórias em que o recorrente aí foi condenado.
Inexiste, pois, qualquer identidade entre o objeto conhecido num e noutros processos.
Aliás, a condenação pelos referidos crimes constitui mesmo pressuposto necessário da aplicação da medida de cassação da carta para se aquilatar da idoneidade ou não para a condução de veículos a motor.
Na cassação do título de condução não está em causa qualquer uma das condenações anteriormente sofridas, mas sim a perda total de pontos por factos relativos ao exercício da condução automóvel, praticados durante um determinado período, donde decorre automaticamente a cassação.
Do mesmo modo que não se verifica uma dupla condenação quando uma determinada pena é agravada pelo facto de haver sucessão de condenações, como sucede, por exemplo, no caso de reincidência.
Na parte final da conclusão VII, alega o recorrente que o tribunal a quo, ao aplicar o art. 148º do Código da Estrada violou a Constituição, incorrendo na irregularidade prevista no art. 123º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Todavia, não se alcança, nem o recorrente o explicita, como e em que medida uma eventual aplicação pelo tribunal de normas ou princípios que violam a Constituição se possa traduzir numa mera irregularidade processual, sendo, pois, de concluir pelo carácter manifestamente infundado dessa alegação.
3.1.2 - Em segundo lugar, invoca o recorrente que a «(…) condenação posterior numa pena representaria uma violação do princípio da necessidade, consagrado no artigo 18°, n° 2, da CRP», pelo que «(…) a sentença recorrida, ao condenar o arguido numa pena, não só manteve a violação do ne bis in idem, como afrontou o princípio constitucional da necessidade (da pena)» (conclusões X a XII).
De acordo com o disposto no art. 18º, n.º 2, da Constituição, as restrições de direitos, liberdades e garantias devem "limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos".
É à luz deste preceito constitucional que terá lugar a aplicação dos três subprincípios em que se desdobra o princípio da proporcionalidade, enquanto princípio fundamental do nosso ordenamento jurídico-constitucional, entre eles o invocado pelo recorrente: idoneidade (ou adequação), necessidade (ou indispensabilidade) e justa medida (ou proporcionalidade em sentido estrito).
Todavia, o facto de o legislador associar a um crime (ou a uma pena) de alguma gravidade um efeito que atinja os direitos fundamentais (civis, profissionais ou políticos), não implica necessariamente a violação de um qualquer princípio constitucional, desde que seja sempre respeitado o princípio da proporcionalidade, tanto em abstrato, como em concreto.
Ora, a restrição de direitos decorrente da cassação do título de condução na sequência da perda da totalidade dos pontos atribuídos ao condutor, apresenta-se como necessária e proporcional à salvaguarda de outros direitos constitucionalmente garantidos, nomeadamente o direito à vida e/ou à integridade física dos demais condutores e utentes da estada (cf. arts. 24º, n.º 1, e 25º, n.º 1, da Constituição). Noutro prisma, encontra justificação no comportamento do condutor, revelador de uma perigosidade acrescida no exercício da condução.
Em suma, a medida de cassação do título de condução por perda da totalidade dos pontos, na medida em que é determinada em função da natureza, da gravidade e do número das infrações cometidas, com a consequente variação da quantidade de pontos a subtrair, e que não é indiferente ao período de tempo em que o condutor se mantém sem registo de contraordenações graves ou muito graves ou crimes de natureza rodoviária no registo de infrações, propiciador da recuperação de novos pontos, respeita os princípios da proporcionalidade e também da necessidade, em função da maior perigosidade revelada pelo condutor.
Pelo exposto, é de concluir no sentido de não se mostrarem violados os princípios e normas invocados pelo recorrente para sustentar a invocada inconstitucionalidade (arts. 18º, n.º 2, e 29º, n.º 5, da Constituição), pelo que esta não se verifica.
Nesta parte improcede, pois, o recurso.

3.2 - Da imposição de obrigação de frequência de ações de formação ou da obtenção de novo título de condução “de forma imediata”, em substituição da cassação da licença de condução
Defende também o recorrente que em substituição da cassação do título de condução deveria antes ter sido aplicada a imposição da obrigação de frequência de ações de formação ou determinada a obtenção de novo título de condução “de forma imediata”, por em nenhuma das duas vezes ter atuado com intenção de violar normas jurídicas, não estando preenchido o elemento subjetivo, e por ser um excelente condutor, tanto mais que o faz profissionalmente, e necessitar do seu título de condução para o exercício da sua atividade profissional (conclusões XIV e XV).
Todavia, a requerida frequência de ação de formação, enquanto efeito da subtração de pontos, só se mostra possível nos casos previstos na alínea a) do n.º 4 do art. 148º do Código da Estrada, ou seja, quando o condutor tenha cinco ou menos pontos, estando excluída tal possibilidade quando o condutor tenha todos os pontos subtraídos, como é o caso. Da mesma forma que a obrigação de realizar a prova teórica do exame de condução só está prevista para o caso de o condutor ter três ou menos pontos (al. b) do n.º 4 do mesmo artigo) e já não quando tenha sido retirada a totalidade dos pontos, o que acarreta necessariamente a cassação do título de condução.
Acresce que o n.º 11 do art. 148º veda a requerida obtenção imediata de novo título, ao dispor que "[a] quem tenha sido cassado o título de condução não é concedido novo título de condução de veículos a motor de qualquer categoria antes de decorridos dois anos sobre a efetivação da cassação".
Pelo exposto, as pretensões formuladas pelo recorrente afrontam diretamente a lei, razão pela qual têm de ser indeferidas.
Mais uma vez não se vislumbra o alcance e a relevância da alegação, inserta na conclusão XIV, de que «em nenhuma das duas vezes o agente atuou com intenção de violar normas jurídicas, resultando em ambas as situações o não preenchimento de um pressuposto, absolutamente essencial, para toda e qualquer responsabilidade, o elemento subjetivo», porquanto em face da condenação do recorrente, com trânsito em julgado, pelos dois referidos crimes de condução em estado de embriaguez pelos quais foi sancionado com a pena acessória de proibição de conduzir, bem como atento o objeto do presente processo, destinado a sindicar a decisão da cassação do título de condução, não faz qualquer sentido questionar, agora e nesta sede, a verificação dos elementos subjetivos desses crimes.
Igualmente irrelevante para a questão da cassação do título de condução se apresenta a alegação, contida na conclusão XV, de que o recorrente «é um excelente condutor, tanto mais que o faz profissionalmente, e do seu título de condução tem necessidade para o exercício da sua atividade profissional», posto que nenhuma dessas circunstâncias, a comprovar-se, assume relevância no sentido de obstar à cassação do título de condução.
O processo de cassação é um processo de verificação de pressupostos, concretamente aferir se ao condutor foi corretamente subtraída a totalidade dos pontos, sendo, em caso afirmativo, proferida decisão de cassação do título de condução, sem qualquer poder discricionário da autoridade administrativa.
As suas qualidades de "bom condutor" e o facto de necessitar da carta de condução não obstam à verificação dos pressupostos legais da cassação. Esta, quando verificados os respetivos pressupostos, não está dependente da maior ou menor necessidade do título de condução pelo agente infrator, pelo que, por razões de segurança jurídica, justiça relativa e proporcionalidade, tal circunstância não constitui critério a atender.
Deverá, pois, improceder também este segmento do recurso.

III. DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido, D. F., confirmando a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quatro unidades de conta (art. 513º, n.º 1, do Código de Processo Penal, arts. 92º, n.ºs 1 e 3, e 93º, n.º 3, do DL n.º 433/82, de 27 de outubro, e art. 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa a este último diploma).
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(Texto elaborado pelo relator e revisto por ambos os signatários - art. 94º, n.º 2, do CPP)
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Guimarães, 17 de dezembro de 2020

Os Juízes Desembargadores
Jorge Bispo (relator)
Pedro Miguel Cunha Lopes (adjunto)
(data certificada pelo sistema informático e assinaturas eletrónicas qualificadas certificadas)


1. Todas as transcrições efetuadas respeitam o respetivo original, salvo gralhas evidentes e a ortografia utilizada.
2. Proposta de Lei n 336/XII (4.ª), publicada no Diário da Assembleia da República, II Série-A, n.º 139, de 28 de maio de 2015.