Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2637/16.7T8VCT.G1
Relator: FERNANDO FERNANDES FREITAS
Descritores: PROCURAÇÃO IRREVOGÁVEL
ÓBITO DO MANDANTE
CADUCIDADE DO MANDATO
INEFICÁCIA
NULIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/10/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – De acordo com o princípio do dispositivo, são as próprias partes que definem o âmbito do que ao tribunal cumpre conhecer, sendo elas que dispõem do processo, já que, pelo pedido e pela defesa, circunscrevem o thema decidendum, não cabendo ao juiz saber se, porventura, à situação das partes conviria melhor outra providência que não a solicitada, ou se esta poderia fundar-se noutra causa petendi.

II - Ainda que só tenha sido pedida a declaração de nulidade nada impede que seja decretada a ineficácia se o efeito prático pretendido pelo autor for a inutilização jurídica de uma venda celebrada pelo procurador já depois do óbto da representada, que ditou a extinção da procuração, porquanto o erro de qualificação jurídica que subjaz à formulação daquele pedido, pode ser corrigido pelo juiz.

III - Como ficou a constar da “Exposição de Motivos”, foi intenção confessada do legislador reforçar os poderes da Relação na reapreciação da decisão da matéria de facto, concedendo o primado ao apuramento da verdade material, pressuposto que é de uma decisão justa. Devendo a Relação formar a sua própria convicção, cumpre-lhe avaliar todas as provas carreadas para os autos, sem que esteja sujeita às indicações que lhe sejam dadas pelo recorrente e pelo recorrido.

IV – A procuração é um negócio jurídico unilateral, que implica liberdade de celebração e de estipulação e surge perfeita apenas com uma declaração de vontade, não sendo necessária qualquer aceitação para que ela produza os seus efeitos.

V – Não definindo a lei o que se deve entender por interesse do procurador ou de terceiro relevante para afastar o princípio geral da caducidade do mandato por morte do mandante, deve exigir-se que a irrevogabilidade encontre na relação jurídica que está na sua base uma causa justificada, como ocorre quando o procurador ou um terceiro pelo qual o procurador actua tem contra o dador de poderes uma pretensão à realização do negócio a que a procuração o autoriza.

VI – Uma procuração conferindo poderes para “doar, comprar, vender, ou prometer comprar e vender permutar e arrematar quaisquer bens móveis ou imóveis, no todo ou em parte, nos termos e condições que o procurador estime convenientes” é nula por indeterminabilidade do objecto, nos termos do art.º 280.º do C.C., e de qualquer modo, nunca poderia ser considerada irrevogável porquanto, abrangendo a universalidade dos bens, é excessivamente limitadora do exercício do direito de propriedade, quer na vertente da aquisição de bens, quer na vertente da sua disposição, direito que é constitucionalmente garantido, e, tendo natureza análoga aos «direitos liberdades e garantias», apenas pode sofrer as restrições previstas na lei - cfr. art.os 17.º e 18.º da Constituição”.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

A) RELATÓRIO

I.- António e Maria, vieram propor contra Manuel e Fernanda a presente acção declarativa de condenação, pedindo que: (i) seja reconhecido o direito de propriedade da falecida Cândida sobre o prédio descrito no artigo 1º da petição inicial; (ii) sejam os Autores declarados únicos herdeiros e legítimos sucessores da falecida Cândida; (iii) sejam os Autores declarados únicos e legítimos proprietários (por sucessão de Cândida) do prédio descrito no artigo 1º da petição inicial; (iv) sejam declaradas nulas as escrituras realizadas a 28.04.2015 (habilitação e compra e venda), bem como quaisquer registos operados com base nas mesmas; (v) se declare o regresso do bem imóvel descrito no artigo 1º da petição inicial à titularidade dos Autores na qualidade de únicos e legítimos herdeiros da falecida Cândida, e, consequentemente, se reconheça a ilegitimidade da Ré enquanto proprietária, abstendo-se de praticar quaisquer actos ligados a essa titularidade, nomeadamente a sua transmissão a terceiro de boa-fé, bem como o seu empossamento; (vi) seja declarado que a quantia de € 15.000,00 levantada pelo Réu pertence à herança aberta por óbito de Cândida; (vii) seja declarada a ineficácia do levantamento da quantia de € 15.000,00 por parte do Réu da conta da falecida Cândida; (viii) seja decretada a restituição pelo Réu da quantia de € 15.000,00 à herança aberta por óbito de Cândida.

Regularmente citados, contestaram os Réus por impugnação e por excepção peremptória de direito material, alegando que a procuração foi outorgada no interesse da segunda Ré como forma de lhe agradecer e pagar todos os serviços prestados e como forma de agradecimento, dissentindo, por isso, das conclusões de direito expendidas pelos Autores na petição inicial.

Os autos prosseguiram os seus termos vindo a proceder-se ao julgamento que culminou com a prolação de douta sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, por parcialmente provada:

- Declarou os Autores como únicos herdeiros e legítimos sucessores de Cândida, falecida em 26 de Abril de 2015;
- Declarou ineficaz relativamente aos Autores o contrato de compra e venda celebrado por escritura pública no dia 28 de Abril de 2015 e descrito na alínea e) do ponto II.1. desta decisão;
- Ordenou o cancelamento da inscrição da aquisição do direito de propriedade incidente sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número … a favor de Fernanda (Ap. 167 de 2015/04/30); e
- Absolveu os Réus do demais peticionado.

Inconformados, trazem os Réus o presente recurso pedindo que:

- a referida sentença seja considerada nula por violação do art. 615.º, n.º 1, alínea e) do C.P.C.; ou caso assim se não entenda:
- se considere que julgou erradamente a matéria de facto e deveria ter dado como provados os factos vertidos nos artigos 2º, 3º, 4º, 5º, 6º, 7º, 8º, 9º, 10º, 11º, 12º, 13º, 14º, 15º, 16º, 17º, (este na sua totalidade) 18º, 20º, 22º a 25º da Contestação e não provado o que consta no ponto g) dos factos dados como provados (alegados no artigo 16º da PI) pelo que deverá ser alterada e considerados provados;
- se considere que a mesma sentença violou o disposto no artigo 1175.º (por lapsus calami escreveu-se 1272.º) do C.C., devendo ser revogada e serem eles, Réus, absolvidos dos pedidos.
Não foram oferecidas contra-alegações.
O recurso foi recebido como de apelação, com efeito devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre decidir.
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II.- Os Réus/Apelantes formularam as seguintes conclusões:

A. O pedido formulado pelos AA visava a nulidade das escrituras realizadas, ou seja, a escritura de compra e venda e de habilitação.
B. A douta sentença condena os RR a “Declaro ineficaz relativamente aos Autores o contrato de compra e venda celebrado por escritura pública no dia 28 de Abril de 2015 e descrito na alínea e) do ponto II.1. desta decisão”
C. Salvo o devido respeito, a sentença ao decidir como decidiu é nula, nos termos do disposto no artigo 615º, n.º 1 alínea e) do CPC.
D. Dado que condena em quantidade e objecto diverso do pedido.
E. Não se trata de uma aplicação das regras de direito (nos termos do artigo 5º do CPC) mas sim uma condenação diversa da peticionada, o que, salvo melhor, está vedada ao meritíssimo Juiz a quo.

QUANTO À MATÉRIA DE FACTO

F. Quanto ao julgamento da matéria de facto o recorrente, salvo o devido respeito, discorda que não tenha sido dados como provados os factos vertidos nos artigos 2º, 3º, 4º, 5º, 6º, 7º, 8º, 9º, 10º, 11º, 12º, 13º, 14º, 15º, 16º, 17º, (este na sua totalidade) 18º, 20º, 22º a 25º da Contestação.
G. Por outro lado discorda que tenha sido dado como provado o facto vertido no artigo 16º da petição inicial (ponto g) dos factos dados como provados), ou seja, que o Réu Francisco teve conhecimento da morte da mandante.
H. A prova produzida (e a não produzida) em Audiência de Julgamento apontam em sentido completamente oposto ao decidido pelo meritíssimo juiz a quo quanto à decisão da matéria de facto acima referenciada.
I. A procuração outorgada, nos termos e data em que foi outorgada, aponta em sentido diverso;
J. Os depoimentos de parte prestados também apontam em sentido diverso;
K. O depoimento das testemunhas: A. M., Luísa e sobretudo de L. A. apontam para sentido diverso para resposta aos pontos agora postos em crise pelos Recorrentes.
L. As regras de experiência comum também impõem em sentido diverso das respostas dadas.
M. Da apreciação dos depoimentos prestados em Audiência de Julgamento se extrai o sentido correto do julgamento da matéria de facto.
N. Quanto à matéria vertida no 16º da Petição Inicial cumpre aqui referir que não foi feita qualquer pergunta a qualquer testemunha para confirmar esse facto: que o procurador teve conhecimento da morte da mandante.
O. Razão pela qual não se pode transcrever qualquer parte face à total ausência de prova nesse sentido.
P. Após a análise dos depoimentos estamos aptos para ajuizar a matéria de facto que no nosso entender e salvo o devido respeito deveria ter sido dada como provada e o ponto que deveria ser dado como não provado.
Q. Estas testemunhas, com conhecimento directo dos factos, concretizaram e confirmaram de forma coerente, distante e sem qualquer interesse direto na causa toda a matéria alegada na contestação, mais concretamente nos pontos a que acima de faz referência.
R. A testemunha A. M. (médico de profissão) confirmou de forma clara a matéria alegada nos artigos 9º, 10º, 11º, 12º, 14º e 15º.
S. A testemunha Luísa confirmou a matéria de facto alegada nos artigos 6º, 9º, 10º, 11º, 12º, 14º, 15º, 16º, 18º.
T. A testemunha L. A. foi, sem dúvidas a pessoa que, sem contar com os RR, mais tempo lidou com a falecida Cândida e foi perentória em confirmar toda a matéria alegada na contestação.
U. Com esse seu conhecimento direto confirmou toda a matéria alegada na contestação.
V. É do mais normal e corrente que em forma de agradecimento quer pelos “fins” quer por toda a amizade fosse sua vontade que o imóvel, único bem da qual era proprietária fosse para a Ré, enquanto pessoa que a cuidou e amparou.
W. É das situações mais usuais na nossa sociedade.
X. Quanto á matéria vertida no ponto 16ª - o conhecimento pelo réu do falecimento – (ponto g) dos factos dados como provados) pura e simplesmente não foi produzida qualquer prova nesse sentido.
Y. Sendo que, e salvo o devido respeito, a argumentação do meritíssimo juiz a quo de que esse ponto resultou da “valoração da conjugação da globalidade dos depoimentos testemunhais” está errada.
Z. Um facto fulcral para o desenrolar da acção não resultar provado pela conjugação de factos.
AA. Tem necessariamente que ser produzida prova.
BB. E não foi!!
CC. Pelo que terá de ser dado como não provado.
DD. Salientando que, e forma paradoxal o meritíssimo juiz a quo neste ponto salienta a grande proximidade entre RR e a falecida, contudo na restante argumentação não dá qualquer importância a essa proximidade, nomeadamente para atribuir credibilidade ao depoimento da L. A..
EE. A prova produzida em Audiência de Julgamento aponta no sentido de prova agora explanado, ou seja, impõe que essa matéria vertida nos artigos da contestação sejam dados como provados.
FF. E que o ponto g) dos factos dados como provados seja dado como não provado e a que corresponde o artigo 16º da Petição Inicial.
GG. Resultando os factos em causa como provados e o ponto g) como não provado, o desacerto da douta sentença é manifesto ao não considerar que a procuração em causa nos autos não caducou.
HH. O artigo 1175.º do Código Civil dispõe que “A morte não faz caducar o mandato, quando este tenha sido conferido também no interesse do mandatário ou de terceiro”.
II. Pires de Lima e Antunes Varela (in, “código Civil Anotado”, Volume II, Coimbra Editora, pág. 739 e seguintes) explicam que “Não há, porém, caducidade se o mandato foi conferido também no interesse do mandatário ou de terceiro. Regula-se uma situação semelhante às previstas no n.º 2 do artigo 1170.º e no n.º 3 do artigo 265.º. Nenhum destes artigos permite, sem justa causa ou sem o acordo do interessado, revogar o mandato ou a procuração. Os requisitos exigidos nestas três disposições são os mesmos.”
JJ. A douta sentença violou o disposto no artigo 1175º do Código Civil.
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III.- Como resulta do disposto nos art.os 608.º, n.º 2, ex vi do art.º 663.º, n.º 2; 635.º, n.º 4; 639.º, n.os 1 a 3; 641.º, n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, (C.P.C.), sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.

Como se extrai das conclusões acima transcritas, cumpre:

- decidir da nulidade arguida à sentença;
- reapreciar a decisão da matéria de facto, nos segmentos impugnados;
- reapreciar a decisão de mérito.
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B) FUNDAMENTAÇÃO

IV.- Os Apelantes começam por arguir a nulidade da sentença defendendo ter ela condenado em quantidade e objecto diverso do pedido, porquanto, alegam, “o pedido formulado pelos AA visava a nulidade das escrituras realizadas, a de compra e venda e de habilitação” e foi decidido declarar “ineficaz relativamente aos Autores o contrato de compra e venda celebrado por escritura pública no dia 28 de Abril de 2015”.
Os fundamentos de nulidade da sentença vêm taxativamente enunciados no n.º 1 do art.º 615.º do C.P.C..
Trata-se de vícios formais, que, à excepção do da alínea a) (falta de assinatura do juiz), respeitam à estrutura e aos limites da sentença – referem-se à estrutura da sentença as alíneas b) e c), e aos seus limites as alíneas d) e e).
Os Apelantes referem-se, pois, a um dos vícios que respeita aos limites da sentença: a condenação em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido – alínea e).

Como se extrai do disposto no art.º 608.º do C.P.C., o juiz, estando obrigado a resolver todas as questões que as partes lhe coloquem, quer as formais, quer as que respeitam ao mérito da causa, e estando ainda obrigado a conhecer de todos os pedidos que tenham sido formulados e de todas as excepções invocadas, por sua própria iniciativa apenas poderá conhecer das questões que lhe seja lícito conhecer oficiosamente.
São, pois, as próprias partes, nos termos do princípio do dispositivo, que definem o âmbito do que ao tribunal cumpre conhecer.

Resulta da enunciação deste princípio que são as partes que dispõem do processo, sendo elas que, pelo pedido e pela defesa, circunscrevem o thema decidendum, não cabendo ao juiz “saber se, porventura, à situação das partes conviria melhor outra providência que não a solicitada, ou se esta poderia fundar-se noutra causa petendi”, como expressivamente escreveu MANUEL DE ANDRADE (in “Noções Elementares de Processo Civil”, págs. 373-378).
Reafirmando esta ideia, escreve LEBRE DE FREITAS gozarem as partes “da liberdade de decisão sobre a instauração do processo, sobre a conformação do seu objecto e das partes na causa e sobre o termo do processo” ou seja, têm “a disponibilidade da instância” e “a disponibilidade da conformação da instância”, sendo, assim, “monopólio das partes a conformação da instância, nos seus elementos objectivos e subjectivos” (in “Introdução ao Processo Civil – Conceito e princípios gerais à luz do novo código”, 3.ª ed., págs. 155-165).
Em suma, o objecto da sentença tem de coincidir com o objecto do processo, não podendo o juiz ficar aquém nem ir além do que lhe foi pedido, nem decidir em termos manifestamente diversos do pedido.

Ora, na situação sub judicio, o que, de essencial, pretendem os Autores é que “se declare o regresso do bem imóvel” à sua titularidade “na qualidade de únicos e legítimos herdeiros da falecida Cândida” (pedido e)), sendo certo que na petição inicial, invocando o disposto no art.º 268.º do Código Civil (C.C.), afirmam que o negócio que os ora Apelantes celebraram é “ineficaz”, e extraem a nulidade do contrato, não só qualificando-o de venda de bens alheios como invocando o conluio dos Réus no intuito de enganar “os herdeiros legítimos da falecida Cândida” (ou seja, eles, Autores).

O Tribunal a quo, considerou, e bem, que, não tendo o Apelante vendido o prédio em causa (à também Apelante, sua mãe), como se fora seu, não tem aplicação o regime da venda de bens alheios, estabelecido nas normas antecedentes, por força do disposto no art.º 904.º do C.C., e declarou ineficaz o negócio por ter sido celebrado em data posterior à da extinção da procuração em virtude do decesso da representada, nos termos do art.º 268.º do mesmo Cód..

Como refere o Ac. do S.T.J. de 27/09/1994, (numa situação com contornos semelhantes) ainda que só tenha sido pedida a declaração de nulidade “nada impedia que a declaração de ineficácia fosse decretada porquanto o efeito prático pretendido pelo Autor era a inutilização jurídica das doações, e um pedido assim formulado teria ficado a dever-se a isso na qualificação jurídica daquele efeito prático, sendo que os erros desta natureza … é ao Juiz que cumpre corrigi-los, sem a mais ligeira ofensa do princípio do dispositivo” (in C. J., Acs. do S.T.J., ano II – Tomo III-1994, pág. 68).
Foi esta, de resto, a doutrina defendida por ANTUNES VARELA, a propósito dos efeitos da procedência da impugnação pauliana (in R.L.J., ano 122º, n.º 3785, pág. 255) e veio a ter acolhimento no Acórdão do S.T.J. de Uniformização da Jurisprudência n.º 3/2001 (in D.R., Série I-A, n.º 34, de 09/02/2001), que se funda igualmente nos ensinamentos de ALBERTO DOS REIS, que refere que o juiz “Ao fazer a aplicação da norma, há-de proclamar os efeitos e as consequências jurídicas que entende legítimas, e não as que qualquer das partes se permita reclamar, contanto que não altere a causa de pedir”.

Que o segmento decisório, posto em causa, não condena em “quantidade diferente” torna óbvio o seu teor literal, e que também não condena em objecto diferente extrai-se da consideração do efeito prático que os Autores pretendem e está, inequivocamente, contido no pedido formulado sob a alínea e).
Ainda que o Tribunal julgasse improcedente o pedido de declaração de nulidade do negócio (solução defendida pelo Cons.º Sousa Inês, no voto de vencido aposto no AUJ acima referido), não deixaria de acolher o pedido acima mencionado (de declaração do regresso do bem imóvel à titularidade dos Autores, na qualidade de únicos e legítimos herdeiros da falecida Cândida) posto que considerou o negócio ineficaz.
Improcede, pois, a arguição da nulidade.
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V.- Os Apelantes impugnam a decisão de facto, pretendendo que seja julgada provada a facticidade que alegam nos artigos 2 a 18; 20; e 22 a 25 da contestação, e seja invertido o sentido da decisão quanto ao facto que consta na alínea g) dos “factos provados”.
a) O art.º 640.º do C.P.C. enumera os ónus que ficam a cargo do recorrente, sendo que a cominação para a inobservância do que aí se impõe é a rejeição do recurso quanto à parte afectada.
Os Apelantes cumpriram com todos os ónus que aquele dispositivo legal impõe, quer os enunciados nas três alíneas do n.º 1, quer o da alínea a) do n.º 2, na medida em que, de modo inequívoco, indicam os pontos da decisão de facto que têm por incorrectamente julgados, e apresentaram o seu projecto de decisão, enunciando os meios de prova em que fundamentam o seu dissenso.
Além disso, situam no tempo da gravação as passagens dos depoimentos, de parte e testemunhal, em que alicerçam o projecto de decisão que propugnam.
Não há, assim, obstáculo legal a que se reaprecie a decisão de facto, nos segmentos fácticos impugnados.
b) Na reapreciação da decisão da matéria de facto impõe-se observar o que dispõe o art.º 662.º do C.P.C., que, como ficou a constar da “Exposição de Motivos”, tem subjacente a intenção de reforçar os poderes da Relação, com o objectivo primordial de evitar o julgamento formal, baseado apenas no ónus da prova, privilegiando o apuramento da verdade material dos factos, pressuposto que é de uma decisão justa.

Assim, não estando limitada pelos depoimentos e demais provas que lhe tenham sido indicados pelo recorrente, na reapreciação da matéria de facto a Relação avalia livremente todas as provas carreadas para os autos e valora-as e pondera-as, recorrendo às regras da experiência, aos critérios da lógica, aos seus conhecimentos das pessoas e das coisas, de modo a formar a sua própria convicção.

Como refere o art.º 341.º do Código Civil (C.C.) as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos. Não se podendo exigir que esta demonstração conduza a uma verdade absoluta (objectivo que sempre seria impossível de atingir), quem tem o ónus da prova de um facto terá de conseguir “criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto”, como referem ANTUNES VARELA et Al. (in “Manual de Processo Civil”, Coimbra Editora, pág. 420).
Ainda de acordo com o que dispõe o art.º 349.º do C.C., desde que seja admitida a prova testemunhal, é igualmente admissível o recurso às presunções judiciais, que são ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.

Como referem ANTUNES VARELA et Al., “as presunções naturais, judiciais ou de facto são aquelas que se fundam nas regras práticas da experiência, nos ensinamentos havidos através da observação (empírica) dos factos” e, prosseguem defendendo que, admitindo prova em contrário, a prova “dirige-se contra o facto presumido, visando convencer o juiz de que, não obstante a realidade do facto que serve de base à presunção, o facto presumido não se verificou …” (ob. cit., págs. 486 e 488).
Se, depois de reapreciadas as provas, subsistir a dúvida quanto à realidade de um facto ou sobre a repartição do ónus da prova, decide-se contra a parte a quem o facto aproveita, segundo o princípio consagrado no art.º 414.º do C.P.C..
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VI.- O Tribunal a quo proferiu a seguinte decisão de facto:

i) julgou provado que:

a) No dia 26 de Abril de 2015 faleceu Cândida;
b) Cândida é irmã dos Autores;
c) No dia 30 de Maio de 2013, Cândida declarou, por escrito e sob o título de procuração, “que com a faculdade de substabelecer e podendo celebrar negócio consigo mesmo, nomeia e constitui seu procurador, Manuel, (…) ao qual concede os mais amplos poderes de administração civil, para administrar quaisquer bens que a mandante seja possuidora ou venha a ser, para dar ou tomar de locação, mesmo a longo prazo, bens móveis e imóveis, para despedir locatários e rescindir os contratos, para receber as importâncias, valores ou rendimentos de qualquer natureza, vencidos ou vincendos; (…) Movimentar as contas que possui junto de qualquer Banco ou Instituição de Crédito, a débito ou a crédito, transferências ou ordens de pagamento, podendo proceder ao levantamento de quaisquer títulos, assinando os competentes recibos ou cheques, que estejam em nome da mandante; (…) Para doar, comprar, vender ou prometer comprar e vender, permutar e arrematar quaisquer bens móveis ou imóveis, no todo ou parte, nos termos e condições que estime convenientes, para aceitar quaisquer doações, para proceder a partilhas judiciais ou extrajudiciais, incluindo-se nestas as partilhas em vida de bens doados, recebendo o seu quinhão em bens de qualquer espécie, e nas judiciais, recebendo as primeiras citações, deliberando em conferência de interessados e licitando, pagar ou receber tornas, dar e aceitar quitações, para usar e desistir do direito de preferência, constituir em propriedade horizontal quaisquer prédios, outorgar e assinar as necessárias escrituras”, conforme se retira da cópia de fl. 16 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
d) Sobre o documento supra referido incidiu termo de autenticação, conforme se extrai da cópia de fl. 17 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
e) No dia 28 de Abril de 2015, no Cartório Notarial, da notária Sofia, Manuel, na qualidade de procurador e em representação de Cândida, declarou que, pela presente escritura, pelo preço de trinta e sete mil euros, que já recebeu, em nome da sua representada, vende à segunda outorgante, Fernanda, que declarou aceitar a venda, o prédio urbano composto por casa de dois pavimentos, garagem e logradouro, com a área coberta de setenta e cinco metros quadrados e descoberta de duzentos e vinte e cinco metros quadrados, a confrontar do norte, nascente e sul com o próprio (Cândida) e do poente com caminho público, sito no lugar de …, da União das Freguesias de …, concelho de Valença, omisso na Conservatória do Registo Predial, inscrito na respectiva matriz sob o artigo … da actual União das Freguesias de …, correspondente ao artigo … da extinta freguesia de Valença, com o valor patrimonial de € 39.690,00, conforme se retira da cópia da certidão da escritura pública de compra e venda junta aos autos de fls. 17v a 19 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
f) No dia 28 de Abril de 2015, no Cartório Notarial, da notária Sofia, compareceram M. L., Fernanda e Paulo, que declararam “que no dia três de Fevereiro de mil novecentos e setenta e cinco, na extinta freguesia de Valença, concelho de Valença, onde teve a sua última residência habitual no lugar da …, faleceu José, natural da extinta freguesia de …, concelho de Valença, no estado de casado, em segundas núpcias dele e primeiras núpcias dela e sob o regime da comunhão geral de bens, com Cândida. (…) Que o falecido não deixou descendentes nem ascendentes vivos, não havia feito testamento nem qualquer disposição de última vontade, deixando como herdeira como única sucessão (sic) legitimária: (…) A) seu cônjuge, a referida Cândida (…) que dele se mantém no estado de viúva (…) Que têm perfeito conhecimento destes factos pelo que, pela presente escritura, declaram que o cônjuge é a única herdeira do falecido, não havendo quem lhe prefira ou com ela concorra na sucessão á herança”, conforme se retira da cópia da certidão da escritura pública de habilitação, junta aos autos de fls. 20 a 21 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
g) Quando os Réus outorgaram na escritura pública descrita na alínea d), sabiam que Cândida tinha falecido no dia 26 de Abril de 2015;
h) Está descrito na Conservatória do Registo Predial, sob o número …, um prédio urbano, de natureza mista, composto de casa de dois pisos, garagem e logradouro, conforme cópia da certidão da referida Conservatória constante de fl. 14 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
i) A aquisição do direito de propriedade incidente sobre o referido prédio está inscrita na referida Conservatória a favor da segunda Ré, por compra a Cândida, mediante a Ap. 167 de 2015/04/30, conforme cópia da certidão da referida Conservatória constante de fl. 14 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
j) Cândida foi empregada doméstica da segunda Ré durante, pelo menos, 40 anos;
k) Dormia em casa da segunda Ré, com excepção dos meses de Julho e Agosto, durante os quais dormia em sua casa, e durante o período em que foi casada com José;
l) Tratou e ajudou a criar os filhos da segunda Ré, entre os quais, o primeiro Réu;
m) Cândida passou os últimos dias de vida entre a casa da segunda Ré e o hospital em Viana do Castelo;
n) Cândida está sepultada no jazigo da família dos Réus, no cemitério de Valença;
o) De acordo com o Procedimento Simplificado de Habilitação de Herdeiros, lavrado em 26 de Agosto de 2015, arquivado no processo nº 10857, Maço nº 2, do ano de 2015, do Arquivo Central do Porto, Cândida faleceu no dia 26 de Abril de 2015, na freguesia de …, concelho de Viana do Castelo, sem descendentes, nem ascendentes vivos, sem ter deixado testamento ou qualquer disposição de última vontade e tendo deixado dois irmãos germanos vivos, António e Maria e que não há quem lhes prefira ou com eles possa concorrer na sucessão, conforme se retira de fl. 13 dos presentes autos e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.

ii) julgou não provados:

- Da petição inicial: artigos 18º e 19º.
- Da contestação: artigos 2º, sem prejuízo do que se deu por provado na alínea j), 3º, 4º, 5º, sem prejuízo do que se deu por provado na alínea l), 6º, 7º, sem prejuízo do que se deu por provado na alínea l), 8º, sem prejuízo do que se deu por provado na alínea k), 9º, 10º, 11º, 12º, 13º, 14º, 15º, 16º, sem prejuízo do que se deu por provado na alínea m), 17º, sem prejuízo do que se deu por provado na alínea n), 18º, 20º, 22º a 25º.
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VII.- Como já se deixou referido, os Apelantes pretendem que se julgue não provado o facto constante da alínea g), e pretendem que se leve à decisão de facto a narração (completa) sobre o seu relacionamento pessoal com a mandante, irmã dos Autores, Cândida.

Foram revisitados, através das gravações, todos os depoimentos prestados na audiência de julgamento, tendo-se dedicado especial atenção à razão de ciência de cada uma das testemunhas, ao método utilizado na inquirição, traduzido no modo como as perguntas lhes foram colocadas, e às respostas obtidas, o que permitiu formar um juízo fundamentado sobre a sua credibilidade.
As testemunhas Luísa, farmacêutica, e A. M., médico, basearam as suas afirmações no conhecimento adquirido, sobretudo, nas suas relações profissionais com a família dos Apelantes, já que era a farmácia da primeira que, quando necessário, lhes fornecia os medicamentos, e o segundo é o médico de família, também da irmã dos Autores, a referida Cândida, sem embargo de, como afirmaram, terem ido a casa dos ora Apelantes algumas vezes. Revelaram-se, por isso, merecedores de credibilidade.

O depoimento da testemunha L. A. não se pode ter por espontâneo, já que as respostas que deu foram induzidas pelo modo como as perguntas lhe foram colocadas, o que, amiudadas vezes, a levou a responder «sim, sim» mesmo antes de terminada a formulação da questão, perdendo a segurança que aparentava quando passou a ser contra instada, o que influenciou negativamente o juízo sobre a sua credibilidade. Com efeito, começou por dizer que trabalhou como empregada doméstica em casa dos Apelantes «há 23, 24 anos», e que «agora (há 9 ou 10 anos a esta parte) vai lá fazer umas horas quando ela (referindo-se à apelante Fernanda) me chama», mas, sugestionada pela pergunta, imediatamente a seguir acrescentou que «agora vai lá duas a três vezes por semana», o que dificilmente se compagina com a sua profissão de “empregada fabril”, e com a falta de conhecimento que revelou no final do seu depoimento quando afirmou «eu casei e saí. Depois não sei». Relativamente à expressão constante do artigo 13º, alegadamente proferida pela Cândida para a apelante Fernanda, a pergunta é-lhe colocada nestes termos: “olhe diz-se aqui que a Dª Cândida dizia à Dª Fernanda “até agora tratei eu da menina e agora é a menina que trata de mim” isto é verdade?”, induzindo-a a responder «sim, sim», sem justificar a resposta, apesar de, mais tarde, ter reconhecido que elas «eram quase da mesma idade». Perguntada se “alguma vez ela (a referida Cândida) disse que a casa era para a D.ª Fernanda?”, respondeu «Sim. Ela disse sempre que a casa era p’ra quem le fizesse os fins». Havendo-se insistido na pergunta, agora situando-a ao tempo mais recente, da convalescença, respondeu «sim, sim, era, era. Ouvi isso muitas vezes», e quando lhe foi dito «tem a certeza disso. É que isso é um ponto muito muito importante» inevitavelmente respondeu «ela sempre disse que a casa era p’ra dona Fernanda, que era ela que estava a tratar dela». Mas já na contra-instância, questionada se aquela Cândida dava algum dinheiro como contrapartida de ser tratada disse «não saber», assim como afirmou não ser do seu conhecimento que esta última ajudou a cuidar do marido da Apelante, que, como foi declarado, sofreu da doença de Alzheimer.

A testemunha Jorge, que foi casado com a também testemunha L. S., filha do A. António, afirmou que a referida Cândida «dizia que gostava muito de estar lá (em casa dos Apelantes), gostava do casal e também gostava dos filhos, que os ajudou a criar, mas às vezes o mais novo pegava nela e que a levava a dar um passeio ou a almoçar e que depois a levava aos escritórios de uns senhores ou ao Banco, às vezes em Valença, outras vezes em Espanha, e pedia-lhe para assinar uns papéis, que ela também não sabia o que é que era, e que aquilo a chateava. Que não achava bem», acrescentando que ela «sentia-se na obrigação» de fazer isso.
É de crer que o sentido da “obrigação” lhe adviesse do carinho que tinha pelos filhos da Apelante, que, como referiu a testemunha Luísa, «eram os meninos da Cândida».
Ainda sobre o “contributo financeiro” desta Cândida para a família, cumpre fazer realçar o que consta da “Declaração” emitida pela Banco C, de fls. 25v.º - três levantamentos, da conta pessoal daquela, no valor global de € 15.900,00, no período de 27/03/2015 a 10/04/2015, altura em que estaria internada no hospital, já na fase terminal da doença (viria a falecer em 26/04/2015).

Ora, tudo isto, conjugado com as afirmações produzidas pelo A. António e pela sua filha, testemunha L. S., segundo os quais aquela sempre lhes disse que «a casa e o recheio era para os sobrinhos» põe, pelo menos, em dúvida a veracidade do afirmado em 18º; 20º; 22º; e 23º, da contestação, como deu conta o Tribunal a quo na fundamentação, que se acompanha inteiramente, quando refere não se compreender “porque é que o procurador da falecida haveria de outorgar uma escritura pública de compra e venda e declarado em nome da falecida vender quando a intenção desta seria doar para agradecer a amizade e os cuidados que a Ré teria tido com ela”, nem se consegue descortinar a razão (tal como para aquela, também para esta os Apelantes não dão qualquer justificação) por que tendo sido levada perante um Solicitador para conferir a procuração e sua autenticação (cfr. fls. 17) numa altura em que, considerado o afirmado pelas testemunhas, estaria ainda numa fase de recuperação da intervenção cirúrgica a que foi submetida, por doença do foro oncológico (cfr. artigo 16º da contestação), nunca foi levada perante o Notário para manifestar a sua vontade inequívoca quanto à disposição dos seus bens, designadamente da casa a que se reportam os autos, tanto mais que, sendo ela viúva e não tendo filhos, nem havia herdeiros legitimários, e, por conseguinte, a necessidade de acautelar a legítima. E fica ainda sem se conhecer a razão por que, se era sabida a intenção da referida Cândida deixar a casa à Apelante, por sentimento de gratidão ou por se considerar «da família», a escritura só foi celebrada dois dias após o seu falecimento, e a razão por que o falecimento foi encoberto à Notária, testemunha Sofia, como ela própria declarou.
Se se tiver presente o que a testemunha Jorge declarou, e acima se deixou transcrito, aquilo que as regras da experiência comum permitem extrair é apenas que a procuração foi conferida com a intenção de haver uma pessoa que administrasse os interesses económicos da referida Cândida, tanto mais que nem os depoimentos prestados nem o teor da procuração permitem deduzir, com o grau de segurança necessária, de quem partiu a iniciativa para que a procuração fosse passada e com aqueles dizeres tão amplos.

Impõe-se, pois, concluir que dos factos alegados na contestação, aqueles de que se fez prova consistente são os que constam das alíneas j); k); l); m); e n).

Relativamente aos que os Apelantes pretendem sejam levados à decisão, integrando a facticidade provada, liminarmente se deverão excluir os artigos: 2.º, atento o que já consta da alínea j); 3.º, por ser manifesta a sua irrelevância; 7.º, por ser a repetição dos artigos 4.º e 5.º; 11.º e 15.º, por traduzirem a mesma facticidade dos antecedentes (o último até é introduzido pela expressão “Como já se disse”); 20.º; 24.º; e 25.º, por serem conclusivos do alegado, designadamente, em 22.º e 23.º.
Como se vê, designadamente, da certidão de nascimento de fls. 9v.º e 10, a referida Cândida nasceu em 4/12/1930; casou em 11/10/1959; enviuvou em 03/02/1975; e faleceu em 28/04/2015.
Esteve, pois, casada 15 anos e 4 meses, o que se não pode considerar um “pequeno período” de vida dela (artigo 8º), e, contando apenas 44 anos de idade quando o marido faleceu, de modo algum se pode dizer de “idade avançada” (artigo 9º) a precisar de alguém que cuidasse dela.

Tendo, embora, sido confirmado pelas testemunhas que a referida Cândida estava quase sempre em casa da Apelante, não se provou que essa vivência fosse permanente (artigos 10º e 14º), e, como se deixou acima referido, muito menos se pode ter por provado que a estadia não tivesse contrapartidas (artigos 11º e 12º), assim como se não provou o que consta do artigo 13º.
Relativamente aos artigos 16º e 17º, a prova autoriza a introduzir algumas alterações à facticidade registada nas alíneas m) e n).

Com efeito, tendo em consideração os depoimentos das testemunhas Luísa e A. M., crê-se ser verdadeiro que quando a supramencionada Cândida foi operada a um cancro (cerca de três anos antes de morrer), foi tratada em casa dos Apelantes, tendo sido o Apelante Manuel quem tratou dos trâmites da cirurgia, a acompanhava nas consultas ao médico, e quem lhe comprava os medicamentos.

Por outro lado, e consideradas as regras da experiência comum, e porque a afirmação foi espontânea, é de acreditar na testemunha L. A. de que a mesma Cândida «pediu» aos Apelantes «se podia ir p’ró jazigo» (da família), dizendo «que não queria ir p’rá sepultura do marido».

Relativamente ao facto constante da alínea g), o Tribunal a quo fundou a sua convicção “na valoração da conjugação da globalidade dos depoimentos testemunhais”, fazendo realçar que “todos eles afirmaram existir grande proximidade existencial entre a falecida Cândida e os Réus, de tal modo que aquela foi cuidada, com excepção do período em que passou no hospital, por estes até à sua morte, tendo, depois disso, sido por eles sepultada no jazigo da família, em Valença”.

Retira-se desta fundamentação que a decisão se alicerçou na presunção de que, considerada a “proximidade existencial entre a falecida Cândida e os Réus”, que, à excepção do período em que esteve internada no hospital, cuidaram dela até à morte, e a sepultaram no jazigo da família, é de concluir, como é natural, atentas as regras da experiência comum, o normal do acontecer, que eles tiveram conhecimento do decesso na mesma data em que ele ocorreu.

Com efeito, como se sabe, para que os restos mortais da referida falecida pudessem ter sido depositados no jazigo da família foi necessária a prévia e expressa autorização desta. Os Apelantes fazem parte da família, o que permite afirmar com segurança que tiveram de prestar o seu consentimento para tal - a apelante Fernanda pelas razões óbvias derivadas da sua posição de matriarca da família e o apelante Manuel por ser seu filho e procurador da acima referida Cândida.

Acresce que, como ficou provado, foi o apelante Manuel quem acompanhou sempre esta Cândida, o que também permite inferir, com o grau de certeza que é dado pelo comum do acontecer, que ele teve efectivo conhecimento do óbito desta, até porque, como se sabe, os hospitais pedem sempre os contactos das pessoas mais próximas, sendo pois de presumir ter sido ele, que a acompanhou, a pessoa que o Hospital de Viana do Castelo contactou para comunicar o óbito e, consequentemente, tratar do funeral.

Se, excepcionalmente, os factos não ocorreram do modo descrito, o ónus da alegação e prova do que na realidade ocorreu, ou seja, de que o facto presumido se não verificou, é dos Apelantes que, como os autos evidenciam, de todo, o não cumpriram.
Mantém-se, pois, a decisão quanto ao supramencionado facto.
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VIII.- Nos termos que acima se deixaram referidos, altera-se a redacção das alíneas m) e n), aditando-lhe os seguintes factos:

m) A Cândida, cerca de três anos antes de falecer, padeceu de um cancro, e foram os Apelantes que a cuidaram e a levaram aos tratamentos, tendo ela passado os últimos tempos de vida entre a casa da Apelante e o Hospital de Viana do Castelo.
n) Foi a pedido da Cândida que ela veio a ser sepultada no jazigo da família dos Apelantes, no cemitério de Valença.
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IX.- Como ficou provado, munido de uma procuração pela qual Cândida lhe conferiu “os mais amplos poderes de administração civil para administrar quaisquer bens, e ainda poderes para “doar, comprar, vender ou prometer comprar e vender … quaisquer bens móveis ou imóveis…”, o ora apelante Manuel vendeu à também apelante Fernanda, sua mãe, um prédio urbano pertencente àquela, tendo a escritura pública sido celebrada dois dias depois do decesso da representada.
A questão que se coloca é a de saber se os poderes conferidos pela procuração caducaram com a morte da representada.
A procuração, que o C. C. define como “o acto pelo qual alguém atribui a outrem, voluntariamente, poderes representativos” – n.º 1 do art.º 262.º - é um negócio jurídico unilateral que, de acordo com ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, “implica liberdade de celebração e de estipulação e surge perfeita apenas com uma declaração de vontade”, não sendo necessária “qualquer aceitação para que ela produza os seus efeitos (in “Tratado de Direito Civil Português”, I, Parte Geral, Tomo IV, 2005, pág. 89).

Como refere VAZ SERRA, “Essencial à procuração é a atribuição voluntária de poderes representativos”, o que não acontece com o mandato, que pode ou não ser acompanhado desses poderes (in Revista de Legislação e Jurisprudência (R.L.J.), ano 109, n.º 3569, págs. 125 e sgs.).

ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO alerta ainda que, enquanto negócio jurídico, a procuração está sujeita aos requisitos enunciados no art.º 280.º do C.C. e às proibições estabelecidas nos artigos seguintes, defendendo dever ser considerada “suficientemente determinada uma procuração geral para administrar”, mas já “uma procuração para alienar o que o procurador entenda cairia na indeterminação” (ob. cit., pág. 90), devendo, por isso, considerar-se nula, por indeterminabilidade do seu objecto, nos termos do n.º 1 daquele art.º 280.º.

Para além das causas de extinção da procuração expressamente referidas no art.º 265.º do C.C., atento o seu carácter intuitu personae, tem de se admitir que ela igualmente se extingue por morte ou interdição do procurador ou do representado, nos termos previstos para o mandato – cfr. art.º 1174.º do mesmo Cód., aplicável por analogia aos casos em que não haja um mandato subjacente à procuração.

Só assim não será se a procuração tiver sido conferida também no interesse do procurador ou de terceiro, salvo ocorrendo justa causa, como resulta do que dispõe o n.º 3 daquele art.º 265.º.

Como escreve VAZ SERRA, estabelecendo o C.C. que a procuração não pode ser revogada sem o acordo do interessado, tem de se exigir que a irrevogabilidade “encontre na relação jurídica que está na sua base uma causa justificada”, citando FLUME que só considera justificada a irrevogabilidade “quando o procurador ou um terceiro pelo qual o procurador actua tem contra o dador de poderes uma pretensão à realização do negócio a que a procuração o autoriza” (ob. cit., págs. 125-126).
Referem RAUL GUICHARD et Al. que o interesse do procurador ou do terceiro “não há de ser um qualquer, mas sim um interesse direto, integrado numa relação jurídica vinculativa” e prosseguem defendendo que uma procuração irrevogável “tem de se fundar numa especial necessidade de protecção de uma posição ou de um direito do interessado”, devendo a irrevogabilidade ser aferida pela relação subjacente e não apenas “pelos termos da sua declaração”. Mais defendem não ser viável “ter-se por irrevogável uma procuração isolada” e nem tampouco “uma procuração geral” (in “Comentário ao Código Civil Parte Geral”, Universidade Católica Editora, pág. 647).

Escreve PEDRO PAIS DE VASCONCELOS que “A fundamentação da irrevogabilidade da procuração reside no princípio segundo o qual os poderes atribuídos no interesse de uma pessoa só podem ser revogados por essa mesma pessoa” (in “A Procuração Irrevogável”, Almedina, pág. 117).

O Ac. do S.T.J. de 03/06/1997, que define a procuração como “um negócio jurídico autónomo, uma declaração unilateral de vontade, que procede do representado e é dirigido a um terceiro”, decidiu que a irrevogabilidade “tem de resultar da relação jurídica basilar, pelo que para haver mandato de interesse comum não basta que o mandatário ou o terceiro tenham um interesse qualquer, é necessário que este interesse se integre numa relação jurídica vinculativa, isto é, que o mandante (tendo o mandatário o poder de praticar actos cujos efeitos se produzem na esfera jurídica daquele) queira vincular-se a uma prestação a que o mandatário ou terceiro tenham direito” (in B.M.J. n.º 468, págs. 361-369).

No mesmo sentido foi o Ac. do S.T.J. de 27/09/1994, ao referir que “o mandato só pode ter sido conferido também no interesse de terceiro se existir uma relação jurídica basilar dele, na qual se integre o interesse do terceiro, por forma a que este tenha direito a uma prestação de obrigação de que seja devedor o mandante” (in C.J., Acórdãos do S.T.J., ano II, tomo III-1994, págs. 68).

Finalmente, refere o Ac. do S.T.J. de 13/07/2010 que, não definindo a lei “o que seja o interesse do procurador ou de terceiro que se deva considerar relevante para afastar o princípio geral da caducidade do mandato por morte do mandante”, relevante é que “da relação basilar, que está na origem da decisão do “dominus”, resulte a existência de um interesse conferido no interesse do mandatário, ou representante, ou de terceiro, que incorpore um direito subjectivo que transcenda o mero interesse do mandante ou do representado” (ut Proc.º 67/1999.E1.S1, in www.dgsi.pt).
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X.- Na situação sub judicio, não se provou, minimamente, que na base da procuração conferida pela Cândida tivesse estado a vontade de que fosse vendida ou doada à ora Apelante a casa de habitação que lhe pertencia (identificado em h) da facticidade provada).
Tal intenção ou vontade não transparece, sequer, dos dizeres da procuração nem, em boa verdade, a facticidade apurada consente a presunção de ter sido vontade dela que os “herdeiros de sangue”, ou seja, os seus familiares, fossem afastados pelos “herdeiros do coração” (tendo em conta a versão dos Apelantes, que não a dos Autores).
A sua provada dedicação aos Apelantes e aos demais elementos do agregado familiar (filhos e marido da Apelante), mesmo à luz do direito natural, tornaram-na credora do tratamento que estes, na hora da doença, lhe dispensaram, cumprindo o dever de gratidão que tinham para com ela.

De resto, o contrato oneroso celebrado, ou seja, a venda (que os Apelantes nunca alegaram dissimular uma doação), contradiz frontalmente o invocado “espírito de gratidão”, que pressupunha um negócio gratuito a favor da apelante Fernanda (artigo 18º da contestação), pelo que a outorga da venda não poderia deixar de ser vista como violação consciente do interesse da mandante (se se provasse ter sido esse efectivamente o seu interesse) “em agradecer e pagar” àquela “todos os serviços prestados” (artigo 24º da contestação).

Os amplos poderes de administração conferidos pela procuração tão-somente inculcam a intenção de libertar a representada Cândida da prática dos actos e acções normalmente relacionados com os bens e haveres, atendendo à sua idade avançada (contava então com 83 anos) e à doença de que fora acometida.

A referida procuração, na parte em que confere poderes para “doar, comprar, vender, ou prometer comprar e vender permutar e arrematar quaisquer bens móveis ou imóveis, no todo ou em parte, nos termos e condições que estime convenientes”, na medida em que abrange a universalidade dos bens, é nula, por indeterminabilidade do objecto, nos termos do art.º 280.º do C.C., e, de qualquer modo, nunca poderia ser considerada irrevogável porque é excessivamente limitadora do exercício do direito de propriedade, quer na vertente da aquisição de bens, quer na vertente da sua disposição, direito que é constitucionalmente garantido – cfr. art.º 62.º da Constituição. Sendo de natureza análoga aos «direitos liberdades e garantias», apenas pode sofrer as restrições previstas na lei - cfr. art.os 17.º e 18.º da Constituição.
Ora, como ficou provado, a venda foi outorgada já depois da morte da representada, evento que fez extinguir a procuração, pelo que o acto de disposição do bem é ineficaz em relação aos Autores, herdeiros daquela, que a não ratificaram (antes à mesma se opõem), conforme dispõe o n.º 1 do art.º 268.º do C.C..

Decidiu, pois, acertadamente o Tribunal a quo ao declarar ineficaz relativamente aos Autores o aludido contrato de compra e venda, celebrado pela escritura pública datada de 28/04/2015, destarte não merecendo provimento a pretensão recursiva dos Apelantes.
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C) DECISÃO

Considerando tudo quanto vem de ser exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o presente recurso de apelação, consequentemente confirmando e mantendo a decisão impugnada.
Custas pelos Apelantes.
Guimarães, 10/05/2018
(escrito em computador e revisto)

(Fernando Fernandes Freitas)
(Alexandra Rolim Mendes)
(Maria Purificação Carvalho)