Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
56/17.7T8BGC.G1
Relator: HEITOR GONÇALVES
Descritores: IMPUGNAÇÃO DE JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
LEGITIMIDADE ACTIVA
HERDEIRO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/15/2018
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. Um contrato promessa de partilhas traduz a tácita vontade dos seus outorgantes em aceitarem a herança.

2. Uma ação de impugnação de justificação notarial, porque visa a defesa de interesses do acervo hereditário ainda por partilhar, terá de ser intentada por todos os herdeiros nos termos do nº1 do artigo 2091º do Código Civil;

3. Sendo essa ação proposta apenas por alguns dos herdeiros, verifica-se a preterição do regime do litisconsórcio necessário activo (artº 33º, nº1, do C. P. C.), pois o conceito de interessado à luz do artigo 101º, nº1, do Código do Notariado, é nesse caso a herança ilíquida e indivisa.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I. J. R., O. R., R. R. e B. R., nesta ação intentada contra J. D. pedem que seja declarada: i) ineficaz para efeitos de Registo Predial a escritura pública de justificação outorgada pela Ré em 30 de Agosto de 2012, no Cartório Notarial sito na Av.ª …, em Bragança, a cargo do Notário Dr. Manuel, exarada a fls. 57 e seguintes do Livro 243, para escrituras diversas; ii) inexistente o facto da posse e o direito de propriedade justificado pela Ré na referida escritura pública, relativamente ao prédio ali identificado, da freguesia de (...), Localidade de Valverde; iii) e seja declarada nula e de nenhum efeito a referida escritura de justificação notarial.

Os autores impugnam a veracidade das declarações exaradas na escritura de justificação notarial, e alegam que o imóvel objecto foi possuído pela sua Avó S. N. enquanto proprietária até à data da morte (1982), e depois pelo marido Belmiro até 1993, e que agora lhes pertence por serem os beneficiários do testamento por aquela outorgado, vontade reiterada igualmente pelo marido Belmiro.

Na contestação, a ré excepcionou a preterição do litisconsórcio necessário activo (por estarem desacompanhados de A. C., todos herdeiros do falecido R. S.) e passivo e alegaram que a casa lhe foi doada em 1982 por S. N., habitando nela desde essa, cuidando da sua manutenção e conservação, tudo à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém.

II. A sentença final julgou procedente a acção, declarando nula e de nenhum efeito a escritura de justificação outorgada no Cartório Notarial de Bragança em 30.08.2012, e inexistente o facto da posse e o direito de propriedade justificado pela Ré na referida escritura pública, relativamente ao prédio ali identificado.

A ré interpôs recurso, terminando com as seguintes conclusões:

a) a douta matéria dada como provada, assim como a dada como não provada apresenta vícios que deveriam determinar “VOLTE FACE”. Aliás, tal matéria não corresponde ao que se passou na audiência de julgamento.
b). Na verdade, nem todos os meios de prova produzidos foram devidamente valorados e a decisão aqui em crise, na nossa humilde opinião, não fez uma correta interpretação e aplicação do direito ao caso concreto e, portanto, à matéria de facto apurada em audiência de discussão e julgamento.
c). Acresce que não foi explicado, detalhadamente, para cada um dos factos provados e não provados os meios de prova, que determinaram a sua fixação por parte do Tribunal a quo. Antes, assiste-se a uma explicação generalista e insuficiente para que a Ré possa apreender claramente a motivação do Tribunal, bem como carregada de considerações de ordem pessoal de que o julgador se deverá subtrair, pois a este caberá apenas e somente decidir do pedido levado a juízo, com objetividade.
d) A Exmª Senhora Juiza a quo não extraiu devidamente do depoimento das testemunhas e dos restantes meios de provas, aquilo que importava provar para efeitos de indagação no factualismo assente e não convenceu - pelo menos a apelante- da justeza da decisão.
e) Tanto que a decisão proferida sobre cada um dos concretos pontos de fato, que a recorrente pretende ver alterada, perante toda prova produzida não foi a possível de alcançar. Antes, a decisão factual do Tribunal a quo baseia-se numa livre convicção, mas não objetivada numa fundamentação compreensível, não tendo nós dúvidas de que as provas indicadas impõem uma outra convicção.
f) A convicção obtida pelo Tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, uma impossibilidade probatória, uma violação de regras de experiência comum, uma patentemente errada utilização de presunções, ou seja, estamos perante uma incorreção decisória como também perante a imperatividade de uma diferente convicção.
g) o trabalho que caberá a esse Venerando Tribunal fazer, na sindicância do apuramento dos factos realizado em 1.ª instância, traduz-se fundamentalmente em analisar o processo de formação da convicção do julgador, e concluir, no caso em apreço, pela irrazoabilidade de se ter dado por provado o que se deu por provado e por não provado o que se deu por não provado.
h) Acresce no que toca à prova oral que, in casu, as más relações das testemunhas da A. com a Ré, é facto comum.
i) Para além disso, há que notar que se muitos se tratam de testemunhos de pessoas que se encontraram emigradas durante anos e anos ou simplesmente noutra região do país e que dificilmente têm conhecimento direto dos factos sobre os quais depuseram ou de depoimentos interessados, conforme bem se fez notar.
j) Mais, as testemunhas não foram coincidentes ao afirmar que a Ré e o marido nunca viveram na casa de S. N. e Belmiro juntamente com estes, nem sequer quando Belmiro casou com a filha da Ré, ao contrário do que se afirma na douta sentença, conforme se a demonstrou com a exposição da prova gravada.
k) Por fim, a Ré também não admitiu, em sede de declarações de parte, que foi a explosão que danificou parte da casa, que determinou a sua ida para casa da irmã, ao contrário do que vem dado por assente.
l) Repousando nos concretos pontos que se querem ver alterados, diga-se quanto aos PONTOS 7, 8, 9 e 20 DOS FACTOS PROVADOS que o prédio inscrito sob o artigo 122º é distinto do prédio inscrito sob o artigo 222º, atendendo desde logo às coordenadas da localização dos mesmos.
m) Mais, o prédio inscrito sob o artigo 222º conta com uma área total de terreno de 605m2, sendo 494,45 m2 a área descoberta, mas esta área descoberta não se trata do terreno baldio “rossio do sequeiro”, pois este terreno, ao contrário de que vem veiculado, não se encontra junto ao prédio em discussão. Na verdade, o prédio aqui em causa conta com terreno, mas não este. Até porque o “rossio do sequeiro”, detém artigo próprio, i.e. o artigo 389º da mesma freguesia e concelho.
n) Mais, a Ré não se apropriou de qualquer prédio propriedade da junta de freguesia.
Antes, foi solicitado e emitido pela Camara Municipal alvará de construção n.º 47/16, em nome da Ré, que titula o licenciamento da operação de uma vedação que incide sobre o referido artigo. Foi ainda emitida uma declaração pela Junta de Freguesa de (...), Município, de não oposição à vedação, considerando a Ré proprietária do artigo matricial 389º.
o) Em consequência e na suposição dos prédios inscritos sob os artigos 122º e 222º tratarem-se de uma duplicação matricial, foram erroneamente dados como provados os factos constantes dos pontos 7, 8, 9 e 20.
p) Quanto aos pontos 1, 2, 3, 4 e 5 constantes dos factos não provados tais factos não poderiam ter sido dados como não provados, conforme se fez notar com a transcrição dos depoimentos levada a cabo ao longo das alegações de recurso (….)
q) Mais, ao atentar na douta sentença, no que toca à motivação da Exma. Juíza do Tribunal a quo, podemos verificar que é concluído que a Ré nunca viveu com o marido em casa de S. N. e Belmiro, porque ninguém viu tal a acontecer. Como ninguém viu, se foi igualmente dito o contrário?
r) Conforme resulta da prova gravada, a Ré morou naquela casa. Embora existam dúvidas por parte de alguns, que são compreensíveis, dado o largo lapso temporal, acerca do ano exato em que tal posse começou a ser exercida, esta deu-se, sem qualquer dúvida.
s) A D. J. D., nas suas declarações de parte, apesar da sua idade avançada, bem elucidou o tribunal a quo de todos os contornos da doação que lhe fora feita em 1982, de como habitara aquela casa, de como cuidara de S. N., sua irmã e seu marido Belmiro e posteriormente à morte da irmã de Belmiro e de sua segunda mulher, D..
t) Para além disso, deixou bem patente de como sempre agiu convicta daquela casa ser sua e de ser sua, por lhe a terem dado. Esclareceu ainda que a sua irmã lhe pediu inicialmente para se mudar para a sua casa, pois tinha medo do seu filho que era violento com esta e não por a sua casa ter sido destruída por uma bomba.
u) Refere-se ainda que a exiguidade da casa não o permitia! Nunca, ao longo dos tempos, houve notícia de viverem quatro pessoas numa casa com apenas um quarto? Com o devido respeito, são inúmeros os casos e no antigamente, ainda mais abundantes.
v) A este respeito, importa também atentar nos testemunhos transcritos quanto a esta parte, de forma a não se pode dar como não crível para o tribunal viverem naquela casa dois casais!
w) Afirma-se ainda, sem mais, que não havia razões para S. N. doar à irmã a casa de habitação que era sua e do seu marido como condição de aquela tomar conta deste.
Como é que tal se pode concluir? Como se pode aferir das motivações ou falta delas para fazer uma doação? É um ato livre e pessoal de disposição de património.
x) Também não se compreende, com o devido respeito, como se julga completamente incredível a doação em causa ter sido feita “de boca”, no mesmo ano em que se praticou ato formal. Na verdade, é completamente possível, atendendo à época a que se reportam os factos. Até porque outras transmissões a que se faz referencia nos presentes autos foram levados a cabo da mesma forma.
y) Por sua vez, M. P., apesar de já não estar há vários anos com a Ré, em virtude de se ter deslocado para Espanha, afirmou sem qualquer dúvida, visitá-la sempre no imóvel aqui em causa, descrevendo inclusive os compartimentos do mesmo e dizendo que sempre conhecera aquela casa como sendo a casa da D. J. D..
z) O facto de desconhecer as pessoas S. N., Belmiro e D. não tornam o seu conhecimento, o qual aliás atestou na escritura de justificação notarial em causa, não sério ou incongruente. Passaram-se muitos anos!
aa) A. J., completamente alheio à ação, sem qualquer interesse na mesma, referiu no seu depoimento não ter dúvidas de que sempre viu a D. J. D. a habitar aquela casa, vendo-a a tratar de todas as lides diariamente. Aliás, fez obras na mesma a pedido desta e apresentou um orçamento para restantes obras necessárias, as quais não foram possíveis, por falta de disponibilidade financeira. De qualquer forma as obras que foram feitas foi a D. J. D. que pagou.
bb) M. F., filha da Ré, relatou mais uma vez com pormenor todas as circunstancias atinentes à tomada de posse do imóvel em causa pela sua mãe.
cc) Mais se diga, quanto á alegada deficiência da sua irmã e que pelos vistos a torna incapaz de casar sem mais, para o tribunal a quo, que esta não foi esclarecida nem quanto à sua natureza, nem quanto à sua gravidade, não podendo tirar-se daí quaisquer conclusões ou ilações.
dd) Foi igualmente esclarecido que a filha mais nova da D. J. D. trata-se de M. F., que aos 20 anos deixou de viver com a mãe, por ter casado e se mudado para o Porto. Logo, a Ré não criou os seus filhos na casa alvo de justificação notarial, enquanto necessitados de cuidados, mas aí os recebeu sempre.
ee) É igualmente notório que a D. J. D. exerceu a sua posse sem oposição de ninguém. Até porque nunca lá ninguém viu ninguém a não ser ela (cfr. declarações de parte da Ré, entre os minutos 20min 36- 25min 26s).
ff) Quanto ao fornecimento de energia e água, logo que tal foi possível a Ré requereu os ditos serviços em seu nome, pagando as respetivas faturas. Até porque na verdade, já anteriormente esse encargo era seu.
gg) E não se sabendo a que prédio recetor do fornecimento diz respeito a fatura junta aos autos, não se pode concluir sem mais, que dirá respeito à casa situada no “fundo do povo” e não ao imóvel em casa nos autos.
hh) Há altura as faturas não faziam referencia concreta ao imóvel em questão, sendo uma impossibilidade lógica fazer prova absoluta do facto da dita fatura e outras dizerem respeito aquela casa.
ii) No entanto, e atendendo que a água canalizada apenas ficou disponível no lugar de (...), em momento muito mais tardio à tomada de posse da D. J. D., faz todo o sentido que a tenho requerido no ano de 2006.
jj) Quanto á eletricidade, em 1994, deu-se mudança de operador, de Electricidade UNIVERSAL para Electricidade COMERCIAL.
kk) Quanto à interpelação feita à Ré, de facto, por carta datada de 29.08.2002, cujo remetente foi o Ilustre Causídico Dr. A. R., foi a Ré interpelada sobre a ocupação da casa de habitação que foram pertença de S. N. e Belmiro, a mando dos ora Autores e na sequencia de tal interpelação, a Ré dirigiu-se ao escritório do referido colega, com quem reuniu. No entanto, deu-se nessa altura o tema por finalizado.
ll) Ora, se realmente estivéssemos perante uma ocupação indevida, a questão ficaria resolvida naquele momento? Não se levariam a cabo outras diligências para restituição da posse? Aguardar-se-ia até este momento para agir contra uma ocupação dita indevida? Isto sim, é difícil de compreender!
mm) QUANTO AOS FACTO 6 DADO COMO NÃO PROVADO, a Ré J. D. explicou ainda que por questões de saúde e idade viu-se forçada a ter que ir viver para casa da sua filha M. F. em 2013, Rio Tinto. Apesar disso, juntamente com a sua filha, vão com alguma frequência a sua casa em Bragança, cuidar da sua manutenção e buscar o correio. Sim, porque recebe nessa morada o seu correio, como sempre aconteceu (cfr. depoimento de AFONSO, entre 32min08-32min38s, depoimento de C. M., aos 6min14-7min 8s e depoimento de A. F., aos 29min34s-30min 41s).
nn) Quanto ao PONTOS 7 DADO COMO NÃO PROVADO, provada que esteja a doação verbal, entende-se que não se vislumbrasse qual a necessidade de instituir a Ré herdeira, a menos que fossemos todos juristas e julgássemos ainda assim necessário.
oo) QUANTO AO PONTO 8 DADO COMO NÃO PROVADO, não é contemplado no objeto da ação, escudando-nos de nos pronunciarmos quanto ao mesmo. O distinto tribunal “a quo” é chamado a pronunciar-se unicamente acerca da escritura de justificação notarial, outorgada pela Ré em 30 de agosto de 2012, que recai sob o artigo 222, ocorrendo excesso de pronúncia gerador da nulidade prevista na 2ª parte da alínea d) do nº1 do artigo 615º do C.P.C. Por isso e nessa parte, a decisão em causa é nula, o que se invoca.
pp) Quanto ao PONTO 10 DOS FACTOS PROVADOS terá, atendendo igualmente a todo o exposto, ser dado como não provado. A Ré foi instituída herdeira verbalmente do prédio inscrito sob o artigo 222 em 1982 e do mesmo retirou todas as utilidades, conforme já exposto. Ai viveu, cozinhou, dormiu, recebeu as suas visitas e as obras que levou a cabo foram as possíveis e que certamente não levaria caso não estivesse convicta da casa ser sua.
qq) Resulta assim de todo o exposto que os factos 7,8, 9 e 20 dos factos provados não poderiam ser dados como provados e que os factos não provados, deviam, pelo contrário ser considerados provados.
rr) A sentença em recurso, não tendo apurado corretamente a realidade fáctica subjacente à causa, não fez igualmente uma correta aplicação da matéria das mais elementares normas de direito ao caso aplicáveis.
ss) Na verdade, a Ré adquiriu por usucapião, o direito de propriedade sobre o prédio urbano correspondente ao artigo 222º, da freguesia de (...), concelho de Bragança, declarando, para tanto, que, no ano de 1982, a irmã S. N. lho doou verbalmente e que, desde então, entrou na posse do mesmo e vem dele gozando, na convicção de que dele é dona, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém.
tt) No cumprimento do ónus da prova que lhe competia, veio a provar ter levado a cabo o exercício de poderes de facto sobre a coisa pelo lapso temporal devido. AÍ cozinhou, pernoitou, recebeu correspondência, visitas, familiares e amigos e até via televisão, a qual também era sua (cfr. depoimento de AFONSO, aos 11min 19s - 11min35s).
uu) Tratou ainda da manutenção do imóvel, inclusive levando a cabo obras de conservação, sempre na convicção plena do dito imóvel lhe pertencer e retirando do referido imóvel todas as utilidades por ele proporcionadas.
vv) Adquiriu assim a posse pela prática reiterada, com publicidade, dos atos materiais correspondentes ao exercício do direito.
ww) Durante o longo período de tempo decorrido, desde 1982 até agora, nenhum dos AA. da ação se arrogou da propriedade do imóvel, não se deslocou até ao mesmo ou levou a cabo qualquer ato de manutenção/conservação.
xx) Mais, conforme já exposto, o prédio objeto da escritura, corresponde ao prédio urbano que sempre foi a casa de habitação de S. N. e Belmiro, não se tratando de uma duplicação de artigos matriciais sobre a mesma realidade, embora com características diferentes.
yy) Vêm-se cumpridos todos os pressupostos necessários à aquisição por via da usucapião pela Ré da propriedade sobre o prédio urbano identificado na escritura de justificação, havendo absoluta conformidade entre a realidade substantiva e a realidade notarial.
zz) Assim, sendo não há motivo válido para ser declarado nulo e ineficaz o referido ato notarial.
aaa) Por tudo quanto vimos a deixar exposto, efetivamente, veio a ser proferida sentença - a recorrida - que na nossa humilde opinião não foi elaborada de forma criteriosa, não valorando corretamente a prova produzida em consequência, nem fazendo uma correta aplicação do direito ao caso concreto e, portanto, à matéria de facto apurada em audiência de discussão e Julgamento.
bbb) Tal sentença, embora douta, deu por provados factos que não na verdade não foram provados, e deu por não provados, factos que pelas mais diversas formas se viram provados, influindo significativamente no desfecho da ação; e por tudo isto não convenceu da justeza da decisão, merecendo os reparos que o apelante lhe aponta.
ccc) No nosso entender, a Ré cumpriu com o ónus da prova que lhe competia, para mais, tendo em conta que estamos perante uma doação verbal, feita em 1982, em que a palavra valia, que estamos localizados numa pequena aldeia, onde de acordo com os usos e costumes vivenciados na mesma e própria qualidade de vida, não se pode estranhar a um ponto de considerar impossível, viver quatro pessoas numa casa com um quarto ou, se doar uma casa de “boca”, ou ainda a sogra ir viver para casa do genro, a fim de cuidar deste, bem como uma sobrinha casar com um tio.

IV. Cumpre decidir.

Em primeiro lugar importa resolver o recurso interposto da decisão intercalar sobre a excepção de ilegitimidade doa autores; seguidamente caberá apreciar as questões do recurso da sentença final, caso não se considerem prejudicadas, as quais se prendem com a evocada nulidade da sentença prevista na al. d) do nº1, do artigo 615º do CPC, e com a impugnação da decisão sobre a matéria de facto provada dos pontos 7, 8, 9, 10 e 20, e da não provada constante dos pontos 1, 2, 3, 4 e 5.

1. Recurso interposto da decisão intercalar.

Com a abolição do regime de agravos deixou de haver lugar a recursos retidos.

Relativamente às decisões intercalares passíveis de impugnação autónoma, como são as elencadas no nº2 do artigo 644º, do CPC, os recursos sobem imediatamente (nos próprios autos ou em separado – artº 645º).

As decisões interlocutórias não passíveis de recurso autónomo, podem ser impugnadas no recurso que venha a ser interposto da decisão final nos termos e nas condições previstas nos nºs 3 e 4 do artigo 644º, do CPC. Isto é, em vez da retenção de recursos, passou a ver um regime de impugnação diferida de algumas decisões intercalares.

Esse regime de impugnação diferida era o aplicável ao despacho exarado pelo Sr. Juiz no final dos articulados que negou procedência à ilegitimidade arguida pela ré com fundamento na preterição do litisconsórcio necessário. Sucede, porém que o recurso foi admitido com subida diferida - “subindo com o recurso que vier a ser interposto da decisão que puser termo à causa (artigos 627º, nºs 1 e 2, 629º, nº1, 631º, nº1, 638º, nº1, 644º, nº 3, todos do Cód. P. Civil)”- e a reclamação dobre a retenção do recurso foi desatendida por esta Relação (cfr. apenso), vicissitudes processuais que criaram a legítima expectativa à recorrente de a questão ser apreciada na Relação sem necessidade de deduzir outra impugnação no recurso interposto da sentença final.

E a questão consistia em saber se fora preterido o litisconsórcio necessário em função da circunstância de os AA. estarem desacompanhados de sua mãe Aida, cônjuge do autor da herança ilíquida e indivisa deixada por R. R., dizendo a ré que é na qualidade de interessados nessa herança que os AA. intentaram a ação.

Vejamos então o mérito desse recurso.

Segundo o alegado na p.i., o prédio objecto de justificação notarial integrava a herança ilíquida e indivisa de S. N., falecida em 14.04.1985, e de seu cônjuge Belmiro, falecido em 14 de outubro de 1993.

Como à S. N. sobreviveu o filho R. S., por morte deste em 2016 operou-se a transmissão para os filhos e mulher do direito de suceder na herança deixada por sua mãe?

Assim seria caso tivesse morrido sem ter aceitado ou repudiado a herança, em face do que dispõe o nº1 do artigo 2058º do Código Civil: «Se o sucessível chamado à herança falecer sem a haver aceitado ou repudiado, transmite-se aos seus herdeiros o direito de a aceitar ou repudiar».

Mas a outorga em 4 de agosto de 1985 do contrato promessa de partilhas por morte de S. N. (contrato válido nos termos do artº 2124º e ss do Código Civil, embora não esteja propriamente em causa a discussão da sua eficácia) traduz indubitavelmente a válida e tácita vontade de aceitação dessa herança por banda dos seus outorgantes (R. R. e Belmiro) – cfr. nºs 1 e 2 do artigo 2056º do Código Civil.
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Por consequência, os autores e sua mãe Aida são interessados nessa herança ilíquida e indivisa deixada por S. N., uma vez que uma fracção ou quota da mesma integra a herança deixada por R. S., o mesmo se poderia dizer relativamente aos herdeiros legais de Belmiro (do qual os demandantes não são seus herdeiros testamentários, depois de ter revogado em 11.02.1988 o testamento que os beneficiava), pois até à partilha não podem ser considerados donos ou comproprietários de qualquer bem que integre o acervo hereditário, porquanto a «contitularidade do direito à herança significa tanto como um direito a uma parte ideal, não de cada um dos bens de que se compõe a herança, mas sim da própria herança em si mesma considerada» (Pereira Coelho, Direito das Sucessões, 2ª ed. 1966-1967).

Uma vez aceite a herança, quem pode intervir como partes são os respectivos titulares, estabelecendo o nº1 do artigo 2091º, nº 1, do Cód. Civil, que “fora dos casos declarados nos artigos anteriores, e sem prejuízo do disposto no art. 2078º, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros”. Ou seja, fora os casos previstos nos artigos 2075.º, 2078.º e 2087.º a 2089.º do Código Civil, as ações que visem a defesa de interesses do acervo hereditário ainda por partilhar terão de ser intentadas por todos os herdeiros, e é o que sucede com a acção de impugnação de justificação notarial, tratando-se por isso de uma situação de litisconsórcio necessário activo (artigo 33º, nº1, do CPC).

Considerando que o nº1 do artigo 101.º do Código do Notariado prevê a faculdade de qualquer interessado impugnar em juízo o facto justificado, conclui a decisão recorrida que não ocorre a preterição de litisconsórcio necessário quando o autor figura na demanda desacompanhado dos demais herdeiros. Não acompanhamos essa posição, pois como refere o ac. do TRG de 07.12.2016 (p. 1718/15.9T8CHV.G1) esse normativo não contém “regra alguma substantiva relativamente ao exercício individual de direitos da herança por parte dos herdeiros, nem resulta do seu elemento literal que, quando o "interessado" é uma herança, qualquer um dos herdeiros pode agir desacompanhado dos outros».

Só através da intervenção de todos os herdeiros fica assegurado todo o efeito útil da decisão, tal como salienta o acórdão do TRC de 21 de Fevereiro de 2018:

«Com efeito, sendo julgada procedente a ação, o tribunal limitar-se-ia, como refere Paulo Pimenta, «a não declarar a inexistência do direito» (Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, pág. 39). Neste caso, o efeito útil normal consiste na não declaração da inexistência do direito impugnado em relação a todos os herdeiros, mas isso só pode ocorrer se todos os herdeiros estiverem na ação. Se assim não fosse, cada um dos outros herdeiros poderia, separadamente, instaurar uma nova ação de impugnação contra o réu e, caso fosse procedente, inviabilizava o efeito produzido com a decisão obtida na primeira ação a favor do réu. Daí que se afirme que a ação só produz o seu efeito útil se for instaurada por todos os herdeiros».
Pelo exposto, impõe-se a absolvição da ré da instância nos termos do artigo 278º, nº1/d, do Código de Processo Civil.

Decisão.

Em face das considerações expendidas, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o recurso interposto da decisão intercalar proferida no despacho saneador absolvendo-se a ré da instância.
Consequentemente, considera-se prejudicada a apreciação do mérito do recurso da sentença final.
Custas pelos recorridos.
TRG, 15 de Novembro de 2018

Heitor Gonçalves
Amílcar Andrade (vota vencido conforme declaração junta)
Maria da Conceição Bucho

Declaração de Voto:

No caso dos autos, a acção intentada pelos Autores configura-se como uma acção de impugnação judicial de escritura de justificação notarial, intentada ao abrigo do disposto no artº 101º do Cód. Notariado, uma vez que se pretende:
que tal escritura seja declarada ineficaz para efeitos de Registo Predial; inexistente o facto da posse e o direito de propriedade justificado pela Ré na referida escritura pública, e seja declarada nula e de nenhum efeito a referida escritura.
Estas acções em que se impugna o facto justificado notarialmente constituem acções de simples apreciação negativa, visto com elas apenas se pretender a declaração da inexistência do direito arrogado na escritura, que, no caso dos autos, é o direito de propriedade ali referido.
A justificação notarial pode ser impugnada por qualquer interessado nos termos do artigo 101º do Código do Notariado.
Os interessados, para efeitos de impugnação da justificação, são os titulares de uma relação jurídica ou direito que possa ser afectado, posto em crise pelo facto justificado. Efectuada escritura de justificação, para efeitos de primeira inscrição no registo, pode impugná-la aquele que tiver um direito incompatível com o invocado pelo justificante ou qualquer outro interesse juridicamente relevante.
Como se julgou num acórdão da Relação do Porto, sobre a matéria, “lavrada escritura de justificação notarial para se obter a primeira inscrição de um prédio no registo predial, só goza de legitimidade, como interessado para impugnar em juízo o facto justificado, quem se arrogar a titularidade de um direito incompatível com o invocado pelo justificante ou tiver outro interesse juridicamente relevante”. (Acórdão de 09/02/93, em www.djsi.pt, n.ºconvencional JTRP00007550. No mesmo sentido o acórdão da mesma Relação de 27/11/2003, n.º convencional JTRP00036029.
Podemos, pois, concluir que o termo “interessado” utilizado no n.º 1 do artigo 101.º do Código do Notariado tem de entender-se como todo aquele a quem a lei confere o direito de impugnar em juízo o facto justificado, remetendo para as normas que disciplinam a legitimidade processual, não conferindo essa legitimidade a quem mostrar um qualquer interesse na impugnação.
Com efeito, «em acção de impugnação de escritura de justificação notarial, a legitimidade activa radica em quem alegar uma qualquer relação ou direito que seja posto seriamente em crise pela justificação notarial do réu. O artº 101º C. Notariado fala em «qualquer interessado em impugnar em juízo o facto justificado» dizendo-nos a este respeito o Ac. Rel Porto in CJ-22/5/182 que se trata dos titulares de qualquer relação jurídica que possa ser, afectado pelo facto justificado. Repare-se que esta acção não se destina a afirmar a propriedade do autor mas a apenas a impugnar o facto justificado, cabendo ao réu o ónus da prova do direito que invocou na justificação notarial…» - Cfr. Ac RP de 27-11-2003, Rel. Pires Condesso, proc. 0335511, in dgsi.pt. Ao art. 101.º do Código do Notariado basta «algum interessado» para impugnar em juízo o facto justificado.
Ora, qualquer herdeiro de uma herança revela interesse directo em agir, ainda que não peticione o bem para a herança, pelo que para os efeitos do que vai no art. 101.º do Código do Notariado, tem legitimidade activa.
Assim, apesar de não peticionarem a ocorrência de efeito jurídico positivo para a herança, pois que com a procedência da acção de impugnação de justificação notarial, obterão apenas a declaração de ineficácia de um negócio cujo objecto é alegadamente património da herança, têm os Autores legitimidade para propor esta acção de impugnação de justificação notarial.
Não há aqui, preterição de litisconsórcio necessário activo, por virem os Autores agir desacompanhados dos outros herdeiros.
Também não se verifica aqui similitude de situações com o citado Ac. do TRG de 07.12.2016 (p. 1718/15.9T8CHV.G1), onde os Autores para além dos pedidos próprios de uma acção de impugnação de justificação notarial, formulam também pedido através do qual reivindicam para a herança a propriedade de vários imóveis.
Mas esse não é o caso dos autos.
Como se constata nos factos vertidos na petição inicial da presente acção, os Autores nada reivindicam para a herança. O que pretendem é salvaguardar bens que alegadamente pertencem à herança ilíquida e indivisa deixada por S. N., sendo que os Autores apenas se limitam a exercer um direito que lhes é conferido pelo nº1 do artº 2078º do Código Civil, assistindo-lhes legitimidade para a presente acção.
Deste modo, confirmaria a sentença recorrida.
Guimarães, 15 de Novembro de 2018-11-08

Amílcar José Marques Andrade