Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1426/22.4T8VCT.G1
Relator: MARIA LEONOR CHAVES DOS SANTOS BARROSO
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO LABORAL
ELEMENTO SUBJECTIVO
FALTA DE PAGAMENTO SUBSÍDIO FÉRIAS E NATAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/19/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
I- No recurso de contra-ordenação, o tribunal da Relação tem apenas poderes de cognição da matéria de direito, não havendo recurso sobre a decisão de facto.
II - A negligência em matéria de contra-ordenação é extraída dos factos que integram o comportamento objectivo ou de outra matéria fáctica coadjuvante.
Decisão Texto Integral:
I. RELATÓRIO

“O..., LDª interpôs recurso da decisão judicial (art. 39º RGCLSS[1]) que apreciou a impugnação judicial e confirmou a decisão da ACT que lhe aplicou a coima única de €9.300,00 (sendo solidariamente responsável pelo pagamento da coima AA), e a sanção acessória de publicidade de decisão condenatória, pela prática das seguintes contra-ordenações:
- uma contra-ordenação p.p. no artº. 264, nºs. 2, 3 e 4, do C. trabalho (não ter procedido ao pagamento do subsídio de férias de 2020 aos trabalhadores BB, CC, DD, EE, FF e GG, no prazo legalmente previsto) – coima de €9.200,00;
- uma contra-ordenação p.p. pelo artº. 263º, nº 1 e 3 do C. Trabalho (não ter procedido ao pagamento do subsídio de Natal de 2020 aos trabalhadores BB, CC, DD, EE, FF e GG, no prazo legalmente previsto) – coima de €9.200,00.
Mais foi a arguida condenada no pagamento das quantias de €2.779,59 e €2.883,50, aos citados trabalhadores.

A ARGUIDA FORMULA AS SEGUINTES CONCLUSÕES (412º CPP por remissão do art. 50º, 4 e 51º do RPCLSS):

…2- A Recorrente não se conforma com a decisão condenatória, uma vez que da prova produzida não resulta que atuou com dolo ou sequer com negligência, outrossim agiu com toda a diligência que lhe podia ser exigida.

DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE DIREITO

3- Nos termos do artigo 8.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, aplicável ex vi artigo 549.º do CT, “Só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência.” e nos termos do artigo 15.º do CP, ex vi artigo 32.º do Decreto-Lei n.º 433/82, assume-se que o agente terá agido com negligência se não proceder com cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz.
4- Da factualidade tida como no pontos 9 a 13 da SENTENÇA que a Recorrente teve todos os seus serviços encerrados durante a execução do Estado de Emergência, decretado a 20 de março de 2020, que foi sucessivamente prorrogada até 21 de abril de 2021.
5- Durante todo este período a Recorrente esteve sem atividade e/ou com atividade muito reduzida.
6- Essa situação teve impacto direto na situação financeira da Recorrente, colocando em causa a sua sobrevivência e obrigando-a a recorrer a todos os mecanismos legais ao seu dispor que pudessem ajudar a ultrapassar as referidas dificuldades financeiras.
7- A Recorrente apresentou um processo Especial de Revitalização (PER), que sob o nº 1225/21.... correu termos no Tribunal Judicial da Comarca ..., tendo em 28/04/2021 sido proferida sentença de nomeação de administrador judicial provisório e em 06/10/2021 sentença de homologação do plano de revitalização.
8- Nesse PER,  apresentado e homologado, constam os subsídios de férias e de Natal aqui em causa, e foi dado como provado tal facto.
9- A testemunha HH, contabilista certificada a prestar serviços à Recorrente, afirmou que os compromissos assumidos no âmbito do PER têm sido escrupulosamente cumpridos.
10- Entendeu o Tribunal considerar como não provado que a Recorrente se encontre a cumprir o PER sem falhar as suas obrigações perante os trabalhadores credores.
11- O PER é um processo especial, previsto no CIRE e no artigo 17.º-F alínea 11 declara-se que a “A decisão de homologação vincula a empresa e os credores, mesmo que não hajam reclamado os seus créditos ou participado nas negociações, relativamente aos créditos constituídos à data em que foi proferida a decisão prevista no n.º 5 do artigo 17.º-C, e é notificada, publicitada e registada pela secretaria do tribunal.”
12- O seu incumprimento gera os efeitos previstos nos artigo 218º do CIRE, ou seja “Salvo disposição expressa do plano de insolvência em sentido diverso, a moratória ou o perdão previstos no plano ficam sem efeito:

a) Quanto a crédito relativamente ao qual o devedor se constitua em mora, se a prestação, acrescida dos juros moratórios, não for cumprida no prazo de 15 dias após interpelação escrita pelo credor;
b) Quanto a todos os créditos se, antes de finda a execução do plano, o devedor for declarado em situação de insolvência em novo processo.” redundando em insolvência do Devedor.
13- Através da sentença homologatória do PER o Devedor fica obrigado por sentença judicial a cumprir o mesmo e a pagar os créditos reconhecidos e mesmo os não reclamado, de acordo com o plano homologado por sentença.
14- No termo do disposto no artigo 17.º-A do CIRE o processo especial de revitalização destina-se a permitir à empresa que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja suscetível de recuperação, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização.
15- Apresentar-se a PER e tendo este sido homologado, reconheceu-se por sentença judicial que a  aqui Recorrente se encontrava numa situação económica difícil e/ou em situação de insolvência iminente.
16- A situação económica difícil porque passou e passa a Recorrente devido a factos totalmente externos à sua vontade, decorre de uma Pandemia e das decisões proferidas no âmbito do Estado de Emergência, que levaram a que a conduta da Recorrente não possa ser considerada nem sequer negligente.
17- Aliás, como resulta da sentença homologatória do PER junta aos autos, a Recorrente tinha dividas que ascendiam aos € 4.676.325,26, correspondente ao valor de créditos reconhecidos.
18- Relembrar que a Recorrente esteve sem atividade desde março de 2020.
19- Diz-se na douta SENTENÇA recorrida que a Apresentação da Arguida a um PER posterior ao não pagamento das remunerações em causa levanta desde logo, dúvidas quanto à verdadeira motivação da arguida para a mesma. Tanto mais que a arguida nem tratou de juntar o relatório único dos anos subsequentes a 2018 para se poder aferir o seu volume de negócios.”
20- Vejamos o PER é um processo judicial, não é uma declaração unilateral do devedor e carece da aprovação da maioria credores, e de uma decisão judicial.
21- A situação de grave dificuldade económica da empresa tem-se por demonstrada ao ter sido requerido um PER, – o qual só pode ser requerido após a empresa estar numa situação económica difícil ou na iminência da insolvência - este ter sido aprovado pelos credores, incluindo trabalhadores, e o mesmo ter sido homologado por sentença judicial.
22- Dispõe artigo 15.º do Código Penal (CP) que “Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz…”.
23- Caberia à ACT ter demonstrado que a Recorrente podia ter agindo de outra modo e fazê-lo com facto concretos.
24- Na sentença é citado João Soares Ribeiro, que refere “A culpabilidade deve ser apreciada na instrução do processo de contra-ordenação, de acordo com os factos apurados, sendo certo que, na maioria dos casos, só poderá extrair-se das regras da experiência comum dos homens ou resultar de prova prima facie extraída desses factos”.
25- Tendo em consideração as graves dificuldades financeiras atravessadas pela Recorrente, amplamente provadas pelo encerramento da sua atividade por um longo período e pelo seu recurso a um PER, o cumprimento de todas as suas restantes obrigações, que cuidado e diligência adicional lhe pode ser exigido, uma vez que a dilação do pagamento dos subsídios de férias e de Natal foi essencial para que os mesmos pudessem ser pagos e, adicionalmente contribuir, para assegurar a subsistência da Recorrente.
26- Foi graças à atuação da Recorrente que diversos postos de trabalho se mantiveram, que os trabalhadores continuaram a receber as suas retribuições e que receberão os subsídios de acordo com o plano de pagamento aprovado com o PER.
27- Como sustentado pela jurisprudência, um dos princípios basilares do direito contraordenacional é o princípio da culpa, e para que exista culpabilidade do agente no cometimento do facto é necessário que o mesmo lhe possa ser imputado a título de dolo ou negligência, consistindo o dolo «no propósito de praticar o facto descrito na lei contraordenacional» e a negligência na «falta do cuidado devido, que tem como consequência a realização do facto proibido por lei”
28- Nesse sentido não pode ser considerada a atuação da Recorrente culposa ou meramente negligente, uma vez que segundo as circunstâncias e a factualidade provada, não lhe era podia ser exigível uma atuação diferente da que efetivamente teve. 29- Existe diversa jurisprudência no sentido de não poder ser considerada negligente a conduta da Entidade Empregadora que por comprovadas dificuldades económicas não realizou o pagamento dos subsídios de Natal e de férias.
30- Vejamos:
31- O Tribunal da Relação de Évora refere que apesar de aceitar o preenchimento do elemento objetivo da contraordenação de que é acusada – o não pagamento, dentro dos prazos previstos, dos subsídios de férias e de Natal – relativamente ao elemento subjetivo “não se lobriga como possa o mesmo ter-se por verificado.”, uma vez que “Perante a já descrita situação económico-financeira da arguida … não se vê que falta de cuidado a mesma possa ter tido, ou com que falta de diligência tenha actuado, ou ainda que comportamento culposo possa ter assumido que a tenha levado a não pagar o subsídio de Natal de Natal em causa.
(…)
Foi, certamente, o que se verificou com a arguida: não se põe em causa que ela sabia, como qualquer outro empregador, que era sua obrigação pagar o subsídio de Natal dos trabalhadores; no entanto, para cometer a infracção não basta saber qual é a sua obrigação: é preciso mais, é também preciso que a empregadora possa cumprir essa obrigação.”
32- Concluiu o mesmo Tribunal que “Não pode afirmar-se, sem mais, que a arguida tenha agido com falta de cuidado ou com falta de diligência, ou ainda que tenha assumido um comportamento culposo que levou a não pagar o subsídio de Natal de 2012 aos trabalhadores e, por consequência, não pode concluir-se que tenha cometido a contra-ordenação decorrente desse não pagamento, por falta de verificação do elemento subjectivo da infracção, se decorre da matéria de facto que pelo menos a partir de 2010 a arguida apresentava significativos resultados líquidos negativos, que os capitais próprios vieram anualmente a decrescer…”
33- Também a doutrina tem seguido este entendimento relativamente ao elemento subjetivo, ora vejamos que “Só age negligentemente quem estava em condições de satisfazer as exigências objetivas de cuidado. (…) Para que exista culpa negligente é necessário que o agente possa, de acordo com os seus conhecimentos e as suas capacidades (…) cumprir o dever de cuidado a que estava obrigado.”
34- Não resulta da factualidade dada como provada que a Recorrente agiu sem o cuidado e a diligência que estava obrigada e que era capaz tanto mais que se deu como provado que a Recorrente esteve vários meses sem atividade e que se encontra a cumprir o PER.
35- A Recorrente não tinha receitas porque os cinemas e os bares estiveram encerrados por determinação e esta era a sua única atividade.
36- Se não tinha receitas não podia cumprir os seus compromissos.
37- Relativamente aos trabalhadores a Recorrente apenas deixou de pagar os subsídios de férias de Natal de 2020.
38- Ou seja a retribuição mensal que constitui a efetiva contrapartida pela prestação laboral foi sempre paga.
39- A Recorrente, para evitar a sua insolvência requereu um PER, o qual foi aprovado e homologado
40- Ou seja a Recorrente atuou por forma a garantir o cumprimento das suas obrigações perante os trabalhadores, o que determina que o não pagamento atempado dos subsídios de férias e de Natal, não lhe pode ser imputado a titulo de negligência, pelo que não praticou a contra ordenação prevista no artigo 264.º nº 4 do Código do Trabalho.
41- Acresce que:
42- A coima aplicada à recorrente, uma Entidade Empregadora comprovadamente em dificuldades económicas, colocando lhe um peso adicional, – diga-se a coima única em que é condenada – o que em termos objetivos prejudica amplamente os trabalhadores e restantes credores, visto que dificultará o cumprimento do PER por parte da Recorrente, uma vez que a coima indicada é consideravelmente elevada e sem consideração da factualidade existente.
43- Não tendo a Recorrente agido com culpa, e não sendo meramente negligente, não se pode subsumir a conduta da Recorrente à tipicidade das contraordenações previstas nos artigos 263º, n.º 3 e 264.º, n.º 4 do CT e punidas nos termos do artigo 554º, n.º 4, al. e) do CT.
44- Em face do exposto, deve a Recorrente ser absolvida da prática da contraordenação muito grave de não pagamento dos subsídios de férias e de Natal aos trabalhadores nos autos indicados.

NESTES TERMOS:
DEVE O PRESENTE RECURSO PROCEDER, REVOGANDO-SE A DECISÃO RECORRIDA. ASSIM, VENERANDOS DESEMBARGADORES, SERÁ FEITA JUSTIÇA.

RESPOSTA EM 1ª INSTÂNCIA (413º, 1, CPP) - O Ministério Público sustenta que se encontra verificado o elemento subjectivo da infracção e que o recurso não merece provimento.
PARECER - O Ministério Público junto deste tribunal de recurso sustenta a manutenção da decisão recorrida, corroborando a posição da 1ª instância (417º, 1, 2, CPP). Acrescenta que : em processo contra-ordenacional o recurso é limitado à matéria de direito (51º nº 1 da Lei nº 107/2009 de 14/09), sem prejuízo da apreciação dos vícios previstos no art. 410º CPP; a Recorrente nem alega qualquer vicio; o direito de mera ordenação social corresponde a uma censura de natureza social e administrativa distinta da que está subjacente ao direito criminal; a negligência, nas contraordenações, consiste numa omissão do dever de cuidado a que o agente estava obrigado por lei; pese embora tenha sido dado como provado que a Recorrente passou por dificuldades financeiras, não resultou provado que tais dificuldades a tenham impedido de pagar os subsídios aos trabalhadores. Verifica-se o elemento subjectivo da infracção e  sentença deve ser mantida.
A recorrente não respondeu (417º, 2, CPP).
O recurso foi apreciado em conferência (art. 419º, CPP).

Objecto do recurso:
Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente[2], coloca-se a questão de saber se resultou provado o elemento subjectivo (negligência) das contra-ordenações pelas quais a recorrente foi condenada.

I.I. FUNDAMENTAÇÃO

A) FACTOS
A.1 FACTOS PROVADOS:

1. Aos 02 de Março de 2021 foram elaborados pela ACT – Centro do ... os autos de notícia nº CO2521500077/Processo nº ...86 e nº CO2521500079/Processo nº ...87.
2. A arguida é uma pessoa colectiva que exerce a actividade de projecção de filmes e de Vídeos (CAE 59140).
3. Tem sede no Centro Comercial ..., quinta ..., ..., ... ... e local de trabalho sito no Centro Comercial ..., em ....
4. Até ao inicio do período de férias, a arguida não procedeu ao pagamento do subsídio de férias do ano de 2020, aos seus trabalhadores, BB, CC, DD, EE, FF e GG.
5. Dos subsídios de férias não pagos, resulta um valor global liquido em dívida de €2.779,59 aos trabalhadores e €343,54 ao Instituto da Segurança Social.
6. Até ao dia 15 de Dezembro de 2020, a arguida não procedeu ao pagamento do subsídio de Natal de 2020, aos seus trabalhadores, BB, CC, DD, EE, FF e GG.
7. Dos subsídios de Natal não pagos, resulta um valor global liquido em dívida de €2.883,50 aos trabalhadores e €356,38 ao Instituto da Segurança Social.
8. Consta do Relatório Único referente ao ano de 2018 que a arguida apresenta um volume de negócios de €10.087.290,00.
9. A 20 de março de 2020, devido à pandemia COVID 19, foi publicado o Decreto n.º 2-A/2020, que procedia à execução da declaração do estado de emergência efetuada pelo Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março.
10. Com a publicação do referido decreto, e o início do estado de emergência, diversos serviços foram encerrados, sem data de reabertura prevista, incluindo todos os estabelecimentos cinematográficos, atividade esta desenvolvida pela arguida.
11. A declaração do Estado de emergência foi sucessivamente prorrogada até 21 Abril de 2021, altura em que cessou.
12. Durante o decurso de 2020 e 2021 a arguida esteve vários meses sem actividade e/ou com actividade muito reduzida.
13. Apesar do recurso às medidas apresentadas pelo Governo ao longo dos meses pandémicos, como o Lay off simplificado, a arguida apresentou um processo Especial de Revitalização (PER), que sob o nº 1225/21.... correu termos no Tribunal Judicial da Comarca ..., tendo em 28/04/2021 sido proferida sentença de nomeação de administrador judicial provisório e em 06/10/2021 sentença de homologação do plano de revitalização.
14. O pagamento dos créditos laborais está contemplado no plano de revitalização.

A. 2 FACTOS NÃO PROVADOS:

a) Face à crise financeira causada pela pandemia COVID 19 a arguida não podia ter agido de outra forma, pois a falta de pagamento dos subsídios de natal e férias decorreu desta situação excepcional fora do seu controlo e só não os pagou na altura devida porque não tinha nenhuma forma de o fazer;
b) A falta de pagamento dos subsídios foi um meio de garantir postos de trabalho e obstar à insolvência que se mostrava iminente. c) A arguida encontra-se a cumprir o PER aprovado não falhando nenhuma das obrigações assumidas com os trabalhadores credores.

B) ENQUADRAMENTO JURÍDICO

A recorrente refere que pretende recorrer de direito. Contudo, tece também considerações no recurso que se reportam à matéria provada, da qual discorda, e à avaliação que o tribunal a quo faz dos meios de prova.
São disso exemplo as seguintes passagens:
“…9- A testemunha HH, contabilista certificada a prestar serviços à Recorrente, afirmou que os compromissos assumidos no âmbito do PER têm sido escrupulosamente cumpridos.
10- Entendeu o Tribunal considerar como não provado que a Recorrente se encontre a cumprir o PER sem falhar as suas obrigações perante os trabalhadores credores.
…19- Diz-se na douta SENTENÇA recorrida que a Apresentação da Arguida a um PER posterior ao não pagamento das remunerações em causa levanta desde logo, dúvidas quanto à verdadeira motivação da arguida para a mesma. Tanto mais que a arguida nem tratou de juntar o relatório único dos anos subsequentes a 2018 para se poder aferir o seu volume de negócios.”
….21- A situação de grave dificuldade económica da empresa tem-se por demonstrada ao ter sido requerido um PER….
….Caberia à ACT ter demonstrado que a Recorrente podia ter agindo de outra modo e fazê-lo com facto concretos. “
Embora a recorrente não conclua seguidamente peticionando alteração da matéria de facto, importa deixar claro que o regime dos recurso em matéria contra-ordenacional abrange apenas matéria de direito e não matéria de facto - 51º, 1, RPCOLSS[3].
As razões subjacentes a este regime relacionam-se com o facto de o tribunal da Relação funcionar como instância de revista, julgando em definitivo e encontram, ainda, explicação na natureza do ilícito de mera ordenação social.
Na verdade, os tribunais de trabalho (ou os outros no regime geral) funcionam como primeira instância de recurso (impugnação judicial) das decisões proferidas pelas autoridades administrativa – 32º e 33º RPACLSS, 55º e 59º RGCO.
Por sua vez, o tribunal da Relação, em matéria contraordenacional, funciona como uma instância de revista julgando em definitivo, sendo assim mais restritiva a admissibilidade de recurso, diferentemente com o que acontece no recurso penal ou civil. Em consequência, limita-se, quer o tipo de recurso, quer o âmbito das decisões que admitem recurso, porquanto já houve um primeiro crivo, assegurado por via do recurso para os tribunais de trabalho ou outros.
Tem sido dito que as limitações impostas à admissibilidade dos recursos no domínio contraordenacional encontram o seu cerne na diferente natureza dos ilícitos de mera ordenação social. Aqui está em causa, apenas, a aplicação de sanções de natureza económica decorrentes de um juízo de censura social e administrativa por violação de um dever legal. Ao invés do que acontece no direito penal onde, por força da natureza ética e da gravidade das sanções impostas, preponderam princípios constitucionais de defesa dos arguidos, sendo a possibilidade de recurso mais ampla.
Assim, nas contraordenações a matéria de facto é inatingível no recurso para o tribunal da Relação.
É certo que o tribunal da Relação mesmo quando conheça apenas em matéria de direito, poderá ainda analisar anomalias em termos de matéria de facto. Contudo, tratam-se de vícios da sentença muito específicos e exigentes (vg- erro notório na apreciação da prova, insuficiência da matéria de facto provada, ou a contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão). Tais vícios terão de resultar evidentes do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum - 410º, 2, CPP, ex vi 41º, 1, RGCO, ex vi 60º do RPACLSS [4].No caso, tais vícios não são sequer arguidos, nem os mesmos se observam.
Assim, a matéria de facto provada e não provada que servirá de base a este tribunal ad quem é a que consta na sentença recorrida e não a que a recorrente menciona nas suas conclusões.
Feito este aparte, vejamos o elemento subjetivo da infração.
É facto assente, não contestado pela própria arguida, que praticou objectivamente duas contra-ordenações que consistiram no não pagamento do subsídio de férias de 2020 e no não pagamento do subsídio de natal de 2020 a vários trabalhadores identificados na matéria de facto.

As contraordenações estão tipificadas nos seguintes normativos:
Art. 264º, CT “ Retribuição do período de férias e subsídio”:
“ … 2 – Além da retribuição mencionada no número anterior, o trabalhador tem direito a subsídio de férias, …3 – Salvo acordo escrito em contrário, o subsídio de férias deve ser pago antes do início do período de férias e proporcionalmente em caso de gozo interpolado de férias.  4 – Constitui contraordenação muito grave a violação do disposto neste artigo.”

Art. 263º, CT “Subsídio de Natal”:
“1 - O trabalhador tem direito a subsídio de Natal de valor igual a um mês de retribuição, que deve ser pago até 15 de Dezembro de cada ano. ….
3 - Constitui contraordenação muito grave a violação do disposto neste artigo.”

Assim, conclui-se pela verificação do elemento objectivo.
No entanto, ao preenchimento da contraordenação não basta o comportamento objectivo de não pagar o subsídio, sendo necessário que acresça a censurabilidade do acto (elemento sujectivo), pois a culpa é pressuposto da pena/coima.
(Artigo 548.º CT (Noção de contra-ordenação laboral) Constitui contra-ordenação laboral o facto típico, ilícito e censurável que consubstancie a violação de uma norma que consagre direitos ou imponha deveres a qualquer sujeito no âmbito de relação laboral e que seja punível com coima.”
A censurabilidade abrange a actuação mais grave cometida com dolo e a menos grave cometida com negligência. Pese embora em geral esta última actuação menos censurável só seja punida nos casos expressamente previstos na lei, nas contra-ordenações laborais a negligência é sempre punível - 550º CT, 1º e 8º, RGCOC[5].
No caso vem posta em causa a imputação de negligência que é imputada à arguida.
A negligência é assim definida no art. 15º do CP (Negligência), por remissão dos art.s 32º RGCOC e  549º CT:
“Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz: a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; ou b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto.”
No primeiro caso estamos no domínio da negligência consciente, no segundo caso estamos no domínio da negligência inconsciente. De comum temos a omissão de um dever de cuidado ou de diligência, sendo nessa omissão que radica a culpa -António Beça Pereira, Regime Geral das Contra-Ordenações, anotado, Almedina, 12ª ed., p 55.
A recorrente sustenta que não agiu com culpa porque terão sido as graves dificuldades económicas que a terão levado a não pagar os subsídios aos trabalhadores.
Argumenta assim:
25- Tendo em consideração as graves dificuldades financeiras atravessadas pela Recorrente, amplamente provadas pelo encerramento da sua atividade por um longo período e pelo seu recurso a um PER, o cumprimento de todas as suas restantes obrigações, que cuidado e diligência adicional lhe pode ser exigido, uma vez que a dilação do pagamento dos subsídios de férias e de Natal foi essencial para que os mesmos pudessem ser pagos e, adicionalmente contribuir, para assegurar a subsistência da Recorrente.

…28- Nesse sentido não pode ser considerada a atuação da Recorrente culposa ou meramente negligente, uma vez que segundo as circunstâncias e a factualidade provada, não lhe era podia ser exigível uma atuação diferente da que efetivamente teve.
29- Existe diversa jurisprudência no sentido de não poder ser considerada negligente a conduta da Entidade Empregadora que por comprovadas dificuldades económicas não realizou o pagamento dos subsídios de Natal e de férias. “

Ora, em primeiro lugar, esta matéria de que foram as graves dificuldades financeiras que impediram o pagamento dos subsídios não ficou provada e, nos termos acima assinalados, não há recurso da matéria de facto para o tribunal da Relação em caso de recurso de contra-ordenação.

O tribunal a quo considerou, aliás, não provado que:

a) Face à crise financeira causada pela pandemia COVID 19 a arguida não podia ter agido de outra forma, pois a falta de pagamento dos subsídios de natal e férias decorreu desta situação excepcional fora do seu controlo e só não os pagou na altura devida porque não tinha nenhuma forma de o fazer;
b) A falta de pagamento dos subsídios foi um meio de garantir postos de trabalho e obstar à insolvência que se mostrava iminente. c) A arguida encontra-se a cumprir o PER aprovado não falhando nenhuma das obrigações assumidas com os trabalhadores credores.

Na sentença, com respeito a este aspecto, argumentou-se que:

“Quanto à matéria dada como não provada entendemos que a prova produzida, não se afigurou consistente e decisiva, pois não se pode olvidar que as declarações e depoimentos prestados neste particular não são totalmente desinteressados e uma parte considerável da factualidade alegada carecia de prova documental – não é o simples facto de ter sido apresentado PER que leva a concluir pela inexistência de total capacidade financeira para liquidar aos trabalhadores os subsídios em falta. Aliás, se analisarmos pormenorizadamente a cronologia fáctica dada como provada apercebemo-nos que a apresentação do PER em juízo é posterior ao levantamento do auto de notícia, o que gera, desde logo, dúvidas quanto à verdadeira motivação da arguida para a mesma. Tanto mais que a arguida nem tratou de juntar o relatório único dos anos subsequentes a 2018 para se poder aferir o seu volume de negócios.
De resto, inexiste prova documental que possa corroborar a testemunhal relativa ao cumprimento das obrigações relativas aos trabalhadores que constam do PER – desconhecemos que quantia foi paga em relação aos créditos aqui em causa - e, ainda que a nosso ver seja irrelevante para a decisão, quanto ao sentido de voto dos trabalhadores visados na decisão sub judice
 ….
Como ensinava Eduardo Correia (Direito Criminal, I, Almedina, 1971, pág. 433) a razão de ser da punição da negligência reside na circunstância de o agente “não ter querido, em face do conhecimento de que certos resultados são puníveis preparar-se para – sempre que uma conduta que projecta seja adequada para os produzir – representar esses resultados (negligência inconsciente) ou para os representar justamente (negligência consciente)”.
A propósito do artigo 550.º do CT, pergunta João Soares Ribeiro (Contra-Ordenações Laborais, 3.ª edição, Almedina, 2011, pág. 329) se haverá nas contra-ordenações uma presunção de negligência. E responde em termos que nos parecem totalmente correctos: “Pensamos que não. A culpabilidade deve ser apreciada na instrução do processo de contra-ordenação, de acordo com os factos apurados, sendo certo que, na maioria dos casos, só poderá extrair-se das regras da experiência comum dos homens ou resultar de prova prima facie extraída desses factos.”
No caso presente não se comprovou que apesar das dificuldades financeiras enfrentadas a arguida não tivesse nenhuma forma de cumprir as obrigações aqui em causa perante os seus trabalhadores.
Por conseguinte, impõe-se concluir pelo preenchimento da tipicidade subjectiva. “
Em suma, entendeu-se que os factos objectivos permitiam depreender a negligência da arguida, ademais não se comprovando a incapacidade financeira da arguida para liquidar aos trabalhadores os subsídios em falta.
Temos assim duas questões para resolver: (i) saber em que termos deve estar plasmado na matéria de facto o elemento subjectivo, se tem de lá estar reproduzida a fórmula legal ou doutrinal mormente “não agiu com o cuidado devido” ou se aquele é extraído dos factos;(ii) saber se os factos em causa são indicativos de negligência.
Sobre a primeira questão esta Relação já se pronunciou diversas vezes no sentido de que a negligência em matéria de contra-ordenação é extraída dos factos que integram o comportamento objectivo, posição que subscrevemos - ac.s da RG de 05-04-2018 (sumário… “O elemento subjetivo da conduta da arguida pode presumir-se da descrição do elemento objetivo.”; ac. de 5-03-2020 (“ sumário Quer na decisão final da autoridade administrativa, quer na decisão judicial proferida no recurso de impugnação judicial daquela, a verificação objectiva da conduta que integra a descrição típica do ilícito contra-ordenacional permite concluir, por presunção natural, judicial ou de experiência, que o agente agiu, por acção ou por omissão, pelo menos negligentemente.”, ac. de 4-03-2021sumário… A verificação objectiva da conduta que integra a descrição típica do ilícito contra-ordenacional permite concluir, por presunção natural, judicial ou de experiência, que o agente agiu, por acção ou por omissão, pelo menos negligentemente.”), www.dgsi.pt
Na verdade, introduzir na matéria de facto fórmulas genéricas ou conceitos indeterminados é colocar a conclusão e o direito no sítio errado (mormente fazendo constar que o infrator não agiu com cuidado ou diligência, ou representou como possível o facto mas não se conformou, ou não chegou a representar o facto, etc…). Ademais, tratam-se de fórmulas vazias que nada acrescentam.
Essa conclusão de culpa deverá ser alcançada e deduzida dos factos objectivos integradores da infracção, ou de outros coadjuvantes, dos quais decorra que, em termos normais, segundo as regras da experiência comum, podemos concluir que aquele agente concreto agiu com culpa, isto é, poderia e deveria ter agido de outra maneira. Assim, por exemplo, se um condutor, aproximando-se de um sinal vertical de stop num cruzamento, que ali está bem visível, simplesmente não se detém no sinal e prossegue na condução, será de concluir que agiu, pelo menos, com negligência. O seu comportamento objectivo (não parar) indica, segundo as regras normais, que, no mínimo, não foi diligente. Se interferiu alguma circunstância anormal (ex. o carro ficou sem travões) então terá de ser o agente a provar essa factualidade excepcional, pois, segundo a normalidade das coisas, quem não se detém ao sinal de stop poderia fazê-lo.
Portanto não se trata de uma responsabilização objectiva do agente, mas sim do modo como se afere a culpa, a extrair de materialidade fáctica.
Passando, agora, à segunda questão de saber se os factos permitem concluir pela negligência concordamos com o juízo do tribunal a quo.
É certo que ficou comprovado que devido à pandemia COVID 19 em 2020 e 2021 a arguida esteve vários meses sem actividade e/ou com actividade muito reduzida. Mas tal é insuficiente para se extrair que a ré não tinha recursos para pagar os subsídios.
Ademais, como se referiu, foi dado como não provado que a falta de pagamento dos subsídios de natal e férias decorresse da situação excepcional e fora do seu controlo de crise financeira causada pela pandemia COVID 19 e que a arguida só não os tivesse pago, na altura devida, porque não tinha nenhuma forma de o fazer, ou que a falta de pagamento dos subsídios tivesse sido um meio de garantir postos de trabalho.
Ao invés, comprovou-se que a arguida não pagou, a diversos trabalhadores, quer os subsídios de férias, quer de natal no ano de 2020. A apresentação do PER em juízo é posterior aos factos e ao levantamento do auto de notícia, sendo a nomeação de administrador provisório datada de 28/04/2021.
Como é sublinhado na decisão, a arguida não juntou aos autos o relatório único dos anos subsequentes a 2018 para se poder consultar o seu volume de negócios e, portanto, aferir da impossibilidade de pagamento dos subsídios. Não existem elementos contabilísticos concretos que estejam provados quanto ao ano em causa, que sejam demonstrativos de incapacidade de cumprir. As empresas têm obrigações legais para com os trabalhadores, não bastando alegar genericamente graves dificuldades financeiras para se eximir ao pagamento e para afastar a censurabilidade indiciada pela materialidade de não pagamento sucessivo dos subsídios de férias e de natal.
O acórdão da RE de 6-12-2017 citado pela recorrente tem pressupostos fácticos diferentes dos que ora analisamos. Os factos (não pagamento de subsídio de natal) datam de 2012 e existiam nos autos muitos elementos contabilísticos objectivos e concretos que demonstravam uma situação de insuficiência económica anterior (basta atentar nesta parte do respectivo sumário “ ….se decorre da matéria de facto que pelo menos a partir de 2010 a arguida apresentava significativos resultados líquidos negativos, que os capitais próprios vieram anualmente a decrescer (€ 413.087,25 em 2010, € 205.518,20 em 2011 e € 23.011,41 em 2012) e, inversamente, o passivo a aumentar (€ 58.7841,21 em 2010, € 811.838,71 em 2011 e € 865.164,54 em 2012), constatando-se ainda que no ano de 2012 (ano do pagamento do subsídio de Natal em falta) tinha um capital próprio (de € 23.011,41) inferior ao devido por subsídio de Natal (€ 32.897,00)…..”).
Ora, este não é caso dos autos em que apenas se provou interrupção de actividade, sem sequer terem sido comprovados os resultados concretos líquidos do ano em causa, ou do anterior. Consultado o articulado de impugnação judicial da decisão administrativa condenatória constata-se, aliás, que a alegação de falta de recursos económicos é muito genérica.
Dado o exposto, é de manter o decidido.

I.I.I. DECISÃO

Pelo exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se na íntegra a decisão recorrida.
Custas a cargo da recorrente, fixando em três ucs a taxa de justiça.
Notifique.
Após trânsito em julgado, comunique a presente decisão à Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT).
Guimarães, 19-01-2023

Maria Leonor Chaves dos Santos Barroso (relatora)
Francisco Sousa Pereira
Antero Dinis Ramos Veiga


[1] Regime Processual das Contra-Ordenações Laborais e da Segurança Social regulado na Lei 107/2009, de 14/09.
[2] Segundo os artigos 403º, 1, 412º, 1, CPP, aplicável ex vi artigo 50º, 4, Lei 107/2009, de 19-9 (doravante, RPACOLSS), o âmbito do recurso e a área de intervenção do tribunal ad quem é delimitado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente e extraídas da sua motivação do recurso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, designadamente a verificação dos vícios previstos no art. 410º, 2, CPP.
[3] Salvo se a própria lei dispuser em sentido contrário.
[4] Com interesse nesta matéria versando ela versando ac. RP de 22-05-2019; ac. RG de 19-04-2018, in www.dgsi.pt.
[5] Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, DL 433/82, de 27-10 com sucessivas alterações.