Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3278/13.6TBGMR.G1
Relator: JOSÉ ALBERTO MOREIRA DIAS
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
DESPACHO LIMINAR
ALTERAÇÃO DE RESIDÊNCIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/05/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1- O despacho liminar de deferimento de exoneração do passivo restante é condição para que seja deferida a exoneração, mas constitui apenas uma promessa da concessão desse benefício, caso o devedor, durante o período de cessão, cumpra com as injunções que lhe são impostas pelo tribunal no despacho liminar.

2- Apenas findo o período de cessão, caso não tenha ocorrido a cessação antecipada do procedimento de exoneração, é que o juiz decide, em definitivo, sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante ao devedor, o que pressupõe que este tenha cumprido com as injunções impostas e, por isso, se mostre merecedor (earn) da sua concessão.

3- A recusa da exoneração do passivo restante apenas pode ser determinada quando se encontrem preenchidos um dos fundamentos taxativamente enunciados no n.º 1 do art. 243º do CIRE para a cessação antecipada do procedimento de exoneração.

4- A declaração de insolvência retira ao insolvente a possibilidade legal de mudar da residência que lhe foi fixada na sentença declarativa de insolvência, sem prévia autorização do tribunal de insolvência e sem lhe comunicar a nova morada.

5- Não existe fundamento legal para se recusar a exoneração do passivo restante ao devedor com fundamento de que este teria emigrado para Moçambique, sem pedir autorização ao tribunal e sem ter informado o último e o fiduciário da nova morada em Moçambique, quando se verifica que antes da prolação do despacho liminar de deferimento da exoneração, o tribunal já tinha conhecimento de que o insolvente emigrara sem autorização para Moçambique e ainda assim proferiu esse despacho liminar de deferimento da exoneração.
Decisão Texto Integral:
I. RELATÓRIO

Recorrente: P. D.

P. D., residente na Rua … Guimarães, instaurou ação especial de insolvência, pedindo que fosse declarada a sua insolvência e que fosse exonerado do passivo restante.

Por sentença proferida em 26/09/2013, transitada em julgado, foi declarada a insolvência do requerente P. D., tendo-lhe sido fixada a residência deste na Rua …, Guimarães.

Em 06/01/2014 proferiu-se despacho liminar de deferimento da exoneração do passivo restante e declarou-se encerrado o processo de insolvência por insuficiência da massa insolvente, constando essas decisões da seguinte parte dispositiva:

“Consequentemente, declaro que a exoneração requerida será concedida desde que durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (período da cessão), o rendimento disponível que o insolvente venha a auferir se considere cedido ao fiduciário abaixo indicado.

Durante o período de cessão fica o devedor obrigado a:

- Não ocultar ou dissipar quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado;
- Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto;
- Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos que exceda o salário mínimo nacional, aqui se incluindo qualquer subsídio de férias e de natal que aufira;
- Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respetiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego; (destacado nosso)
- Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores;
Para fiduciário nomeio o Exmo. Sr. AI, Dr. A. M..
Notifique.
(…)
*
(…)
Ora, como resulta do relatório apresentado pelo Exmo. Sr. AI, ao insolvente não é conhecida a propriedade de qualquer bem. (destacado nosso)

Assim, e ao abrigo do disposto nos arts. 230º/1/al. d), 232º/1 e 2 e 7 CIRE, declaro encerrado o presente processo de insolvência da massa.
(…)”.

Em 03/12/2019 proferiu-se decisão final quanto ao pedido de exoneração, recusando a exoneração do passivo restante ao insolvente, constando essa decisão da parte dispositiva que se segue:

“Consequentemente, ao abrigo do disposto no art. 243º/1/al. a) CIRE, recuso a exoneração do passivo restante requerida por P. D..
Custas pelo insolvente”.

Inconformado com esta decisão, o insolvente veio dela interpor o presente recurso de apelação, em que apresenta as seguintes conclusões:

Não há qualquer obrigação de comunicar o ato de emigrar do insolvente, embora o tenha feito quando teve essa oportunidade de o fazer, de forma espontânea e livre.
O veículo motorizado veio à posse do Insolvente em 2015, muito meses após a declaração de insolvência e por isso, não houve qualquer ocultação de património, acrescendo que o mesmo é do ano de 1999 e pouco ou nenhum valor comercial possui, sendo absolutamente essencial para as deslocações do insolvente em território africano.
Pretende penalizar-se o insolvente por factos ou documentos que não por si produzidos, mas antes a sua entidade patronal que é quem emite os recibos de salário e por isso, uma eventual discrepância não pode ser apontada ao insolvente, a quem os recibos nem sequer eram entregues.
As autoridades Moçambicana, a fls. 267, atestaram qual o vencimento do Insolvente.
A sentença violou o disposto no artigo 239º e 243º do CIRE
Termos em que deverá este recurso ser recebido, apreciado e julgado procedente por provado, revogando-se a sentença em crise, de modo a que seja concedida a exoneração do passivo ao Apelante.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do apelante, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.
No seguimento desta orientação a única questão que se encontra submetida à apreciação desta Relação consiste em saber se a decisão sob sindicância que recusou conceder ao insolvente a exoneração do passivo restante, padece de erro de direito.
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A- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A 1ª Instância considerou provada a seguinte facticidade (que vamos enumerar para facilitação do tratamento jurídico a dar a essa facticidade):

A- Por sentença datada de 26.09.2013 foi declarada a insolvência de P. D., na sequência da apresentação, por este, à insolvência;
B- Por despacho datado de 06.01.2014, a fls. 88ss foi liminarmente admitido o pedido de exoneração do passivo restante, tendo sido fixado como rendimento disponível todo o montante mensal que excedesse o salário mínimo nacional;
C- O processo de insolvência foi encerrado em 06.01.2014;
D- Em 26.11.2013, e somente na sequência de notificação para junção de CRC a fim de ser proferido o despacho referido em b), veio o insolvente informar que se encontrava emigrado em Moçambique; (cfr. fls. 69)
E- Em 08.05.2015, e na sequência de insistência do Tribunal, com cominação de cessação antecipada do incidente por falta de resposta, veio o insolvente informar não dispor de qualquer recibo referente ao vencimento por si auferido por a sua entidade patronal, em Moçambique, o não emitir; (cfr. fls. 152)
F- O insolvente nunca cedeu qualquer quantia ao Exmo. Sr. Fiduciário (cfr. relatórios a fls. 141ss, 160ss, 188ss, 223ss e 291ss):
G- Durante o período de cessão foram emitidos pela Imomais recibos de vencimento em nome do insolvente atinentes aos seguintes meses:
1- Janeiro de 2014: um recibo de vencimento assinado pelo insolvente, dele constando o pagamento da quantia de 20.000 meticais (cfr. fls. 369);
2- Fevereiro de 2014: um recibo de vencimento assinado pelo insolvente, dele constando o pagamento da quantia de 20.000 meticais (cfr. fls. 369);
3- Março de 2014: um recibo de vencimento assinado pelo insolvente, dele constando o pagamento da quantia de 20.000 meticais (cfr. fls. 358);
4- Abril de 2014: um recibo de vencimento assinado pelo insolvente, dele constando o pagamento da quantia de 20.000 meticais (cfr. fls. 358);
5- Maio de 2014: um recibo de vencimento assinado pelo insolvente, dele constando o pagamento da quantia de 20.000 meticais (cfr. fls. 352);
6- Junho de 2014: um recibo de vencimento assinado pelo insolvente, dele constando o pagamento da quantia de 20.000 meticais (cfr. fls. 352);
7- Julho de 2014: um recibo de vencimento assinado pelo insolvente, dele constando o pagamento da quantia de 20.000 meticais (cfr. fls. 347);
8- Agosto de 2014: um recibo de vencimento assinado pelo insolvente, dele constando o pagamento da quantia de 20.000 meticais (cfr. fls. 347);
9- Setembro de 2014: um recibo de vencimento assinado pelo insolvente, dele constando o pagamento da quantia de 20.000 meticais (cfr. fls. 342);
10- Outubro de 2014: um recibo de vencimento assinado pelo insolvente, dele constando o pagamento da quantia de 20.000 meticais (cfr. fls. 342);
11- Novembro de 2014: um recibo de vencimento assinado pelo insolvente, dele constando o pagamento da quantia de 20.000 meticais (cfr. fls. 363);
12- Dezembro de 2014: um recibo de vencimento assinado pelo insolvente, dele constando o pagamento da quantia de 20.000 meticais (cfr. fls. 363);
13- Janeiro de 2015: um recibo de vencimento assinado pelo insolvente, dele constando o pagamento da quantia de 20.000 meticais (cfr. fls. 368);
14- Fevereiro de 2015: um recibo de vencimento assinado pelo insolvente, dele constando o pagamento da quantia de 20.000 meticais (cfr. fls. 368);
15- Março de 2015: um recibo de vencimento assinado pelo insolvente, dele constando o pagamento da quantia de 20.000 meticais (cfr. fls. 357);
16- Abril de 2015: um recibo de vencimento assinado pelo insolvente, dele constando o pagamento da quantia de 20.000 meticais (cfr. fls. 357);
17- Maio de 2015: um recibo de vencimento assinado pelo insolvente, dele constando o pagamento da quantia de 20.000 meticais (cfr. fls. 350);
18- Junho de 2015: um recibo de vencimento assinado pelo insolvente, dele constando o pagamento da quantia de 20.000 meticais (cfr. fls. 350);
19- Julho de 2015: um recibo de vencimento assinado pelo insolvente, dele constando o pagamento da quantia de 20.000 meticais (cfr. fls. 346);
20- Agosto de 2015: um recibo de vencimento assinado pelo insolvente, dele constando o pagamento da quantia de 20.000 meticais (cfr. fls. 346);
21- Setembro de 2015: um recibo de vencimento assinado pelo insolvente, dele constando o pagamento da quantia de 20.000 meticais (cfr. fls. 341);
22- Outubro de 2015: um recibo de vencimento assinado pelo insolvente, dele constando o pagamento da quantia de 20.000 meticais (cfr. fls. 341);
23- Novembro de 2015: um recibo de vencimento assinado pelo insolvente, dele constando o pagamento da quantia de 20.000 meticais (cfr. fls. 362);
24- Dezembro de 2015: um recibo de vencimento assinado pelo insolvente, dele constando o pagamento da quantia de 20.000 meticais (cfr. fls. 362);
25- Janeiro de 2016: um recibo de vencimento assinado pelo insolvente, dele constando o pagamento da quantia de 20.000 meticais (cfr. fls. 367);
26- Fevereiro de 2016: um recibo de vencimento assinado pelo insolvente, dele constando o pagamento da quantia de 20.000 meticais (cfr. fls. 367);
27- Março de 2016: um recibo de vencimento assinado pelo insolvente, dele constando o pagamento da quantia de 20.000 meticais (cfr. fls. 356);
28- Abril de 2016: um recibo de vencimento assinado pelo insolvente, dele constando o pagamento da quantia de 20.000 meticais (cfr. fls. 356);
29- Maio de 2016: um recibo de vencimento assinado pelo insolvente, dele constando o pagamento da quantia de 20.000 meticais (cfr. fls. 351);
30- Junho de 2016: um recibo de vencimento assinado pelo insolvente, dele constando o pagamento da quantia de 20.000 meticais (cfr. fls. 351);
31- Julho de 2016: um recibo de vencimento assinado pelo insolvente, dele constando o pagamento da quantia de 20.000 meticais (cfr. fls. 345);
32- Agosto de 2016: um recibo de vencimento assinado pelo insolvente, dele constando o pagamento da quantia de 20.000 meticais (cfr. fls. 345);
33- Setembro de 2016: um recibo de vencimento assinado pelo insolvente, dele constando o pagamento da quantia de 20.000 meticais (cfr. fls. 340);
34- Outubro de 2016: um recibo de vencimento assinado pelo insolvente, dele constando o pagamento da quantia de 20.000 meticais (cfr. fls. 340);
35- Novembro de 2016: um recibo de vencimento assinado pelo insolvente, dele constando o pagamento da quantia de 20.000 meticais (cfr. fls. 361);
36- Dezembro de 2016: um recibo de vencimento assinado pelo insolvente, dele constando o pagamento da quantia de 20.000 meticais (cfr. fls. 361);
37- Janeiro de 2017: dois recibos de vencimento distintos, um não assinado, referindo o pagamento líquido de 19.400 meticais (620 em USD) (cfr. fls. 201V), outro assinado pelo insolvente, dele constando o pagamento da quantia de 20.000 meticais (cfr. fls. 365);
38- Fevereiro de 2017: dois recibos de vencimento distintos, um não assinado, referindo o pagamento líquido de 19.400 meticais (620 em USD) (cfr. fls. 202), outro assinado pelo insolvente, dele constando o pagamento da quantia de 20.000 meticais (cfr. fls. 365);
39- Março de 2017: dois recibos de vencimento distintos, um não assinado e referindo o pagamento líquido de 19.400 meticais (620 em USD) (cfr. fls. 202v), outro assinado pelo insolvente, dele constando o pagamento da quantia de 20.000 meticais (cfr. fls. 280);
40- Abril de 2017: um recibo de vencimento assinado pelo insolvente, dele constando o pagamento da quantia de 20.000 meticais (cfr. fls. 280);
41- Maio de 2017: um recibo de vencimento assinado pelo insolvente, dele constando o pagamento da quantia de 20.000 meticais (cfr. fls. 280v);
42- Junho de 2017: um recibo de vencimento assinado pelo insolvente, dele constando o pagamento da quantia de 20.000 meticais (cfr. fls. 280v);
43- Julho de 2017: um recibo de vencimento assinado pelo insolvente, dele constando o pagamento da quantia de 20.000 meticais (cfr. fls. 281);
44- Agosto de 2017: dois recibos de vencimento, ambos assinados pelo insolvente, de um deles (o remetido aos autos pelo insolvente) constando o pagamento da quantia de 20.000 meticais (cfr. fls. 281), do outro, remetido aos autos pela entidade patronal a notificação do Tribunal, constando o pagamento da quantia de 40.000 meticais (cfr. fls. 344);
45- Setembro de 2017: dois recibos de vencimento, ambos assinados pelo insolvente, de um deles (o remetido aos autos pelo insolvente) constando o pagamento da quantia de 20.000 meticais (cfr. fls. 281v), do outro, remetido aos autos pela entidade patronal a notificação do Tribunal, constando o pagamento da quantia de 40.000 meticais (cfr. fls. 339);
46- Outubro de 2017: dois recibos de vencimento, ambos assinados pelo insolvente, de um deles (o remetido aos autos pelo insolvente) constando o pagamento da quantia de 20.000 meticais (cfr. fls. 281v), do outro, remetido aos autos pela entidade patronal a notificação do Tribunal, constando o pagamento da quantia de 40.000 meticais (cfr. fls. 339);
47- Novembro de 2017: dois recibos de vencimento, ambos assinados pelo insolvente, de um deles (o remetido aos autos pelo insolvente) constando o pagamento da quantia de 20.000 meticais (cfr. fls. 282), do outro, remetido aos autos pela entidade patronal a notificação do Tribunal, constando o pagamento da quantia de 40.000 meticais (cfr. fls. 360);
48- Dezembro de 2017: dois recibos de vencimento, ambos assinados pelo insolvente, de um deles (o remetido aos autos pelo insolvente) constando o pagamento da quantia de 20.000 meticais (cfr. fls. 282), do outro, remetido aos autos pela entidade patronal a notificação do Tribunal, constando o pagamento da quantia de 40.000 meticais (cfr. fls. 360);
49- Janeiro de 2018: dois recibos de vencimento, ambos assinados pelo insolvente, de um deles (o remetido aos autos pelo insolvente) constando o pagamento da quantia de 20.000 meticais (cfr. fls. 282v), do outro, remetido aos autos pela entidade patronal a notificação do Tribunal, constando o pagamento da quantia de 40.000 meticais (cfr. fls. 366);
50- Fevereiro de 2018: dois recibos de vencimento, ambos assinados pelo insolvente, de um deles (o remetido aos autos pelo insolvente) constando o pagamento da quantia de 20.000 meticais (cfr. fls. 282v), do outro, remetido aos autos pela entidade patronal a notificação do Tribunal, constando o pagamento da quantia de 40.000 meticais (cfr. fls. 366);
51- Março de 2018: dois recibos de vencimento, ambos assinados pelo insolvente, de um deles (o remetido aos autos pelo insolvente) constando o pagamento da quantia de 20.000 meticais (cfr. fls. 283), do outro, remetido aos autos pela entidade patronal a notificação do Tribunal, constando o pagamento da quantia de 40.000 meticais (cfr. fls. 354);
52- Abril de 2018: dois recibos de vencimento, ambos assinados pelo insolvente, de um deles (o remetido aos autos pelo insolvente) constando o pagamento da quantia de 20.000 meticais (cfr. fls. 283), do outro, remetido aos autos pela entidade patronal a notificação do Tribunal, constando o pagamento da quantia de 40.000 meticais (cfr. fls. 354);
53- Maio de 2018: dois recibos de vencimento, ambos assinados pelo insolvente, de um deles (o remetido aos autos pelo insolvente) constando o pagamento da quantia de 20.000 meticais (cfr. fls. 283v), do outro, remetido aos autos pela entidade patronal a notificação do Tribunal, constando o pagamento da quantia de 40.000 meticais (cfr. fls. 348);
54- Junho de 2018: dois recibos de vencimento, ambos assinados pelo insolvente, de um deles (o remetido aos autos pelo insolvente) constando o pagamento da quantia de 20.000 meticais (cfr. fls. 283v), do outro, remetido aos autos pela entidade patronal a notificação do Tribunal, constando o pagamento da quantia de 40.000 meticais (cfr. fls. 348);
55- Julho de 2018: um recibo de vencimento assinado pelo insolvente, dele constando o pagamento da quantia de 40.000 meticais (cfr. fls. 343);
56- Agosto de 2018: um recibo de vencimento assinado pelo insolvente, dele constando o pagamento da quantia de 40.000 meticais (cfr. fls. 343);
57- Setembro de 2018: um recibo de vencimento assinado pelo insolvente, dele constando o pagamento da quantia de 40.000 meticais (cfr. fls. 338);
58- Outubro de 2018: um recibo de vencimento assinado pelo insolvente, dele constando o pagamento da quantia de 40.000 meticais (cfr. fls. 338);
59- Novembro de 2018: um recibo de vencimento assinado pelo insolvente, dele constando o pagamento da quantia de 40.000 meticais (cfr. fls. 359);
60- Dezembro de 2018: um recibo de vencimento assinado pelo insolvente, dele constando o pagamento da quantia de 40.000 meticais (cfr. fls. 359);
61- Janeiro de 2019: um recibo de vencimento assinado pelo insolvente, dele constando o pagamento da quantia de 40.000 meticais (cfr. fls. 364);
62- Fevereiro de 2019: um recibo de vencimento assinado pelo insolvente, dele constando o pagamento da quantia de 40.000 meticais (cfr. fls. 364);
63- Março de 2019: um recibo de vencimento assinado pelo insolvente, dele constando o pagamento da quantia de 40.000 meticais (cfr. fls. 353);
64- Abril de 2019: um recibo de vencimento assinado pelo insolvente, dele constando o pagamento da quantia de 40.000 meticais (cfr. fls. 353);
H- Em 01.03.2018 foi registado em nome do insolvente o direito de propriedade incidente sobre o motociclo de matrícula NE; (cfr. fls. 302)
I- Notificado para se pronunciar sobre a capacidade aquisitiva do veículo, dada a situação de insolvência e a falta de cessões, bem como para justificar a necessidade de aquisição do referido veículo, dada a situação de emigração, veio o insolvente unicamente responder que o veículo foi exportado para Moçambique, utilizando-o nas suas deslocações; (cfr. fls. 321v)
J- Ao insolvente não são conhecidos antecedentes criminais (cfr. fls.331).
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Enuncie-se que o apelante não impugnou a facticidade considerada como provada pela 1ª Instância e que se acaba de transcrever, pelo que essa facticidade se tem por definitivamente assente, sem prejuízo dos poderes de averiguação que assistem ao tribunal ad quem (arts. 11º e 236º n.º 1, 2ª parte do CIRE)(1) e, bem assim dos que lhe são atribuídos pelo art. 662º, n.º 2 do CPC.

Acresce dizer que ainda que o apelante tivesse impugnado o julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância (o que, reafirma-se, não fez), sempre se impunha a imediata rejeição desse recurso quanto a essa impugnação do julgamento da matéria de facto, por incumprimento por parte do apelante dos ónus impugnatórios previstos no art. 640º, n.º 1, als. a), b) e c) do CPC.

Destarte, sem prejuízo dos poderes oficiosos que assistem ao tribunal em geral, o qual, em sede de decisão final quanto à exoneração do passivo restante, não se encontra limitado aos factos alegados pelas partes, sequer às diligências probatórias que foram requeridas pelas últimas e, sem prejuízo dos poderes oficiosos atribuídos pelo n.º 2 do art. 662º do CPC ao Tribunal da Relação, a facticidade considerada como provada pela 1ª Instância na decisão sob sindicância, tem-se por definitivamente assente.
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B- FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA.

A 1ª Instância recusou a concessão ao apelante da exoneração do passivo restante com os seguintes fundamentos:

a) o apelante não comunicou voluntariamente que tinha emigrado, vindo-o apenas a fazer na sequência da notificação do tribunal para que procedesse à junção aos autos do seu certificado de registo criminal, para efeitos de prolação de despacho liminar referente ao pedido de exoneração;
b) o apelante não comunicou ao tribunal a alteração da sua situação patrimonial, com a aquisição motociclo de matrícula NE, tendo sido o tribunal que, em sede de diligências de apuramento dessa situação, acabou por constatar essa alteração, e notificado para se pronunciar sobre a capacidade aquisitiva desse veículo, dada a sua situação de insolvência e a falta de cessões, bem como para justificar a necessidade de aquisição dessa viatura, dada a situação de emigração, o insolvente limitou-se a informar que o veículo tinha sido exportado para Moçambique, utilizando-o nas suas deslocações, sem que tivesse dito uma única palavra sobre como terá reunido as condições necessárias à aquisição do mesmo;
c) notificado em 08/05/2015 e na sequência da insistência do tribunal, com a cominação de cessão antecipada do incidente por falta de resposta, o insolvente informou que não dispõe de qualquer recibo de vencimento referente ao vencimento que aufere, por a sua entidade patronal, em Moçambique, os não emitir. Porém, notificada a entidade patronal do insolvente, esta remeteu aos autos os recibos de vencimento do insolvente compreendidos entre janeiro de 2014 e abril de 2019;
d) os recibos de vencimento juntos aos autos não retratam fidedignamente aquela que era a remuneração efetivamente paga ao insolvente pelo trabalho desempenhado em Moçambique, antes sendo-lhe paga quantia superior, isto porque, sem que tivesse sido apresentada justificação cabal para o efeito, foram juntos aos autos, dois recibos distintos, relativos a vários meses do período de cessão, e não se afigura consentâneo com a normalidade do acontecer que o insolvente tivesse ido trabalhar para um país estrangeiro para receber quantia inferior ao salário mínimo nacional, quando o Rendimento Social de Inserção a que se poderia candidatar, caso não se tivesse ausentado do território nacional, seria de valor pouco inferior ao do seu alegado salário, além de que o insolvente adquiriu o motociclo sem apresentar qualquer justificação quanto à capacidade aquisitiva deste; e
e) a fazer fé nos recibos juntos aos autos, entre agosto de 2017 e junho de 2018, o insolvente terá recebido, em cada um desses meses, um vencimento de 60.000,00 Menticais, o que correspondia, em agosto de 2017, a 824,63 euros, e em junho de 2018, a 868,43 euros, quando o salário mínimo nacional se encontrava fixado entre 01/01/2017 e 31/12/2017 em 557,00 euros mensais, e a partir de 01/01/2018, em 580,00 euros, o que significa que entre agosto de 2017 e junho de 2018, o insolvente podia ter feito entregas ao fiduciário, o que não sucedeu, sem que aquele tivesse apresentado qualquer justificação.
Com base nestes factos e das ilações que a partir deles extraiu, conclui a 1ª Instância que o relatado em a), b), c), e d) configura violação por parte do insolvente da obrigação de não ocultação ou dissimulação de quaisquer rendimentos auferidos, bem como de informar o tribunal e o fiduciário sobre os rendimentos e património na forma e prazo que lhe foi requisitado, nos termos do art. 239º, n.º 4, al. a) do CIRE, e já o relatado em e) consubstancia a violação pelo insolvente, entre agosto de 2017 e junho de 2018, da obrigação imposta àquele pelo art. 239º, n.º 4, al. c) do CIRE de entrega imediata ao fiduciário da parte dos rendimentos objeto de cessão e, por conseguinte, recusou a exoneração do passivo restante ao insolvente.

Imputa o apelante a esta decisão erro de direito, advogando os seguintes fundamentos:

- no CIRE não existe qualquer norma que o proíba de emigrar e que o obrigue a informar que emigrou, desconhecendo aquele que isso fosse relevante e prestou essas informações logo que teve oportunidade para o fazer, fazendo-o de forma espontânea e livre;
- o veículo motorizado veio à sua posse em 2015, muitos meses após a declaração de insolvência e, por isso, não houve da parte daquele qualquer intenção de ocultação de património, até porque essa viatura é do ano de 1999 e pouco ou nenhum valor comercial possui, sendo absolutamente essencial para as deslocações do insolvente em território africano; acresce que mesmo que o insolvente tivesse indicado a existência desse veículo, não se via como é que este, estando em Moçambique, pudesse ser apreendido para a massa insolvente, ser reexportado para Portugal, para aqui ser vendido e entregue, o que além de ser de difícil execução, acarretaria custos superiores ao valor do motociclo, pelo que atentos estes circunstancialismos, não havia qualquer obrigação do mesmo de declarar a existência do motociclo;
- as ilações extraídas pelo tribunal a quo quando ao salário e aos recibos de vencimento não procedem, isto porque a informação que o apelante prestou nos autos, em 08/05/2015, de que não dispunha de recibos de vencimento, era verdadeira, o que aconteceu é que notificada a sua entidade patronal, esta logo tratou de emitir esses recibos, e a circunstância de existirem recibos em vários meses, com diversos montantes inscritos, essa irregularidade, tem de ser imputada à entidade patronal, não podendo o insolvente ser penalizado por factos ou documentos que não foram por si produzidos, além de que o vencimento do insolvente foi confirmado pelas autoridades moçambicanas, não passando as desconfianças do tribunal de que o insolvente fosse emigrar para auferir o salário que diz auferir e que isso não é consentâneo com a normalidade do acontecer e que mais consentâneo seria que o mesmo ficasse em Portugal a receber o RSI, de meras especulações.

Conclui o apelante que ao decidir recusando-lhe a exoneração do passivo restante com os fundamentos enunciados supra em a) a e), a 1ª Instância violou o disposto nos arts. 239º e 243º do CIRE.

Vejamos se assiste razão ao apelante nas críticas que assaca à decisão sob sindicância, o que reclama que se faça uma análise do instituto da exoneração do passivo restante e do respetivo formalismo processual, a fim de se apreender cabalmente a existência de fundamento (ou ausência dele) para as críticas assacadas a essa decisão.

B.1- Exoneração do passivo restante.

O processo de insolvência é um processo de execução universal, que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quanto tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores (art. 1º do CIRE).
Trata-se de um processo em que o interesse primordial prosseguido pelo legislador é a satisfação dos direitos do credor, o que é reafirmado no ponto 3º do Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18/03, onde se lê que que “o objetivo precípuo de qualquer processo de insolvência é a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores”.
Não obstante o objetivo fundamental do processo de insolvência seja a satisfação, tão eficiente quanto possível, dos direitos dos credores, o certo é que o CIRE, nos arts. 235º e segs., consagrou o denominado instituto da exoneração do passivo restante, permitindo que os insolventes, pessoas singulares, mediante o cumprimento de determinados requisitos, se libertem das dívidas que os onerem e recomecem de novo a sua vida económica.
Trata-se de um instituto que é próprio e especifico das insolvências de pessoas singulares e que, por isso, é exclusivamente aplicável aos devedores pessoas singulares, sejam ou não titulares de empresas e sendo-o, independentemente dessas pessoas singulares serem titulares de pequenas, médias ou grandes empresas (2).
O princípio básico deste instituto é o denominado “start fresh”, permitindo ao devedor, pessoa singular, que se tenha “portado bem”, exonerar-se dos seus débitos que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento desse processo, quando observe determinadas condições.
Trata-se de uma inovação no sistema jurídico nacional, que visa conjugar os interesses do insolvente, pessoa singular, com os interesses dos respetivos credores.
É assim que no Preambulo do Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18/03, se lê que: “O Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa-fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da «exoneração do passivo restante». O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não foram integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste. A efetiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de cinco anos – designado período da cessão – ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência), que afetará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento. A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta reta que ele teve necessariamente de adotar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica”.
Como resulta do que se vem dizendo e é sustentado por Luís M. Martins, o instituto da exoneração do passivo restante constitui “uma medida de proteção cujo objetivo primordial é reabilitar e dar uma segunda oportunidade ao devedor, pessoa singular, para que possa recomeçar a sua vida, evitando a indigência que nada beneficia a sociedade” (3).
No mesmo sentido escreve Luís Menezes Leitão, que a figura da exoneração do passivo traduz-se num benefício concedido ao insolvente, com a inerente possibilidade de se exonerar “dos créditos sobre a insolvência que não sejam integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste”, visando, desta forma, conceder ao devedor um fresh start, “permitindo-lhe recomeçar de novo a sua atividade, sem o peso da insolvência anterior” (4).
Para Paulo Mota Pinto, na exoneração do passivo restante há uma “colisão entre direitos ou valores constitucionalmente protegidos: de um lado, a proteção constitucional dos créditos, no quadro (…) da proteção geral do património; do outro lado, a proteção da liberdade económica e do direito ao desenvolvimento da personalidade, e, também, o princípio, próprio do Estado Social de Direito, da proteção social dos mais fracos (neste caso, tendencialmente o devedor insolvente)”, sendo a solução alcançada um sacrifício não desproporcionado do interesse do credor na satisfação do respetivo crédito (5).
Precisamente porque o instituto em causa pressupõe uma colisão de direitos constitucionalmente protegidos e a concordância prática entre eles, procurando-se, em primeira linha, salvaguardar os interesses do devedor insolvente e, bem assim os dos seus credores (estes, a título secundário), é indiscutível que o instituto da exoneração não consubstancia, sequer pode consubstanciar, “um brinde ao incumpridor” (6), pelo que o perdão das dívidas não pode ser concedido ao insolvente, pessoa singular, sem critérios mínimos de razoabilidade, sob pena de se incorrer em inconstitucionalidade material e se banalizar o próprio instituto, ao qual todos recorreriam, sem qualquer sentido de responsabilidade e sacrifício, pois que não foi manifesto propósito do legislador que a exoneração tivesse como escopo a desresponsabilização do devedor, sequer que o processo judicial possa ser uma porta aberta para atingir semelhante desiderato.
Porque assim é, compreende-se que o instituto da exoneração do passivo restante consagrado no sistema jurídico nacional, não assente num modelo de puro fresh start, mas antes no modelo derivado do earned start ou da reabilitação, segundo o qual o devedor insolvente não pode ser exonerado das suas dívidas em quaisquer circunstâncias, dado que, em princípio, os contratos são para cumprir (art. 406º, n.º 1 do CC), mas aquele terá de passar por uma espécie de período de prova (período de cessão), durante o qual parte dos seus rendimentos é afetada ao pagamento das dívidas remanescentes, isto é, que permanecem por pagar uma vez feita a liquidação da massa insolvente, e durante o qual o insolvente ficará sujeito a um conjunto de obrigações. Apenas findo esse período, e tendo ficado demonstrado que o devedor merece (earns) a exoneração, deverá ser-lhe concedido o benefício (7).
Deste modo, atenta a colisão de direitos de credores e devedor que se assiste no instituto da exoneração, a filosofia e a ratio que lhe está subjacente e porque a exoneração é rigorosamente uma nova causa de extinção das obrigações, extraordinária ou avulsa relativamente às causas de extinção das obrigações previstas no CC (arts. 837º a 874º do CC) (8), para que a exoneração do passivo restante seja concedida é necessário que antes do processo de insolvência, durante este e, bem assim até ao termo do ano subsequente ao trânsito em julgado da decisão que lhe confira a exoneração (art. 246º do CIRE), o devedor singular justifique ser merecedor de uma segunda oportunidade, que lhe permita “começar de novo”. “Neste âmbito, quem antes ou depois do procedimento não procura um trabalho remunerado, tem ou revela intenção de nada pagar, não pretende nem demonstra fazer qualquer esforço na alteração do seu estilo de vida tem que ver negada a exoneração do passivo” (9).
Precise-se que para que a exoneração do passivo restante seja concedido é necessário, além do mais, que se percorra um processo próprio, com um formalismo processual específico, em que se destacam, como principais fases: o pedido de exoneração, o despacho liminar ou inicial e o despacho final.
O pedido de concessão do benefício da exoneração do passivo restante tem de ser deduzido pelo devedor no requerimento inicial de apresentação à insolvência, ou no prazo de dez dias subsequentes à citação (art. 236º, n.º 1 do CIRE), o que significa que apenas o devedor dispõe de legitimidade para formular o pedido de exoneração.
Esse pedido de exoneração tem de ser deduzido no requerimento de apresentação à insolvência quando seja o próprio devedor a apresentar-se à insolvência e terá de ser por ele formulado no prazo de dez dias a contar da sua citação para o processo de insolvência, quando esse processo seja instaurado por terceiro.
Precise-se, no entanto, que a circunstância do devedor não deduzir o pedido de exoneração no requerimento inicial de apresentação à insolvência ou no prazo de dez dias subsequentes à sua citação para o processo de insolvência, não preclude a possibilidade deste de vir mais tarde apresentar esse pedido de exoneração, desde que o juiz, por sua “livre decisão”, o admita e desde que o pedido de exoneração não seja apresentado depois da assembleia de apreciação do relatório ou, no caso desta ter sido dispensada na sentença declaratória de insolvência, após os sessenta dias subsequentes a essa sentença (arts. 36º, n.º 1, al. n) e 236º, n.º 1, 2ª parte do CIRE) (10).
Acresce que o pedido de exoneração terá de ser rejeitado quando o devedor, aquando da apresentação de um plano de pagamentos, não declare pretender essa exoneração (art. 254º do CIRE).
Nesse requerimento, o devedor tem de declarar expressamente que preenche os requisitos para que o benefício da exoneração lhe seja concedido e que se dispõe a observar todas as condições e obrigações decorrentes da concessão do benefício (n.º 3 do art. 236º).
Perante tal pedido, o juiz apenas pode rejeitá-lo liminarmente nos casos taxativamente enunciados no art. 238º do CIRE.
Analisados os fundamentos de indeferimento liminar do requerimento de exoneração, dir-se-á que os mesmos podem ser agrupados em quatro subespécies, a saber: 1º- apresentação do requerimento de exoneração fora de prazo - al. a); 2º- casos respeitantes ao comportamento do devedor relativo à situação de insolvência e que para ela contribuíram de algum modo ou a agravaram - als. b), d) e e); 3º- situações ligadas ao passado do insolvente - als. c) e f); e 4º - condutas do insolvente no decurso do processo de insolvência – al. g) (11).
Note-se que o juiz apenas pode indeferir liminarmente o pedido de exoneração nas situações em que o requerimento de exoneração seja apresentado pelo devedor fora do prazo ou nos casos em que do processo de insolvência conste documento autêntico comprovativo da verificação de algum dos factos referidos naquele n.º 1 do art. 238º, posto que, de contrário, o despacho de indeferimento liminar só pode ser proferido após a audição dos credores e do administrador da insolvência – n.º 2 do art. 238º.
Acresce que salvo as situações das als. a) e c) do n.º 1 do art. 238º, os demais fundamentos de indeferimento liminar estão, em regra, dependentes da produção de prova, pelo que, quanto a eles, dificilmente poderá ocorrer indeferimento liminar do pedido de exoneração.
Além disso, apesar de não haver consenso jurisprudencial e doutrinal a esse respeito, dir-se-á que, atualmente, é posição jurisprudencial maioritária de que o devedor não tem de fazer prova da verificação dos requisitos do art. 238º, n.º 1 do CIRE para que seja proferido despacho liminar de admissibilidade do pedido de exoneração, cabendo antes aos interessados invocar e demonstrar que esses requisitos não se verificam (12).
Não sendo caso de indeferimento liminar do requerimento, ouvidos os credores e o administrador da insolvência (n.º 4 do art. 236º), o juiz profere despacho liminar, pronunciando-se sobre a admissibilidade do pedido de exoneração e, no caso de deferimento liminar da exoneração, fixando as condições a que a concessão desse benefício fica sujeito (art. 237º).
Trata-se de um despacho liminar, reclamando apenas do juiz uma análise e ponderação sumárias acerca da existência ou não de condições de admissibilidade ou de indeferimento da exoneração do passivo restante legalmente especificadas: admitirá o pedido quando nenhuma circunstância tida pela lei como obstáculo ao seu deferimento ocorra; indeferi-lo-á quando se verifique alguma circunstância apontada pelo art. 238º, n.º 1, como causa de indeferimento liminar (13).
Conforme pondera Assunção Cristas, “…para ser proferido despacho inicial é necessário que o devedor preencha determinados requisitos e desde logo que tenha tido um comportamento anterior ou atual pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa-fé no que respeita à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência, aferindo-se da sua boa conduta, dando-se aqui especial cuidado na apreciação, apertando-a, com ponderação de dados objetivos passíveis de revelarem se a pessoa se afigura ou não merecedores de uma nova oportunidade e apta para observar a conduta que lhe será imposta” (14).
O juiz aceita ou rejeita este pedido, com base num juízo de prognose, avaliando as possibilidades que o devedor tem de cumprir as exigências legais deste procedimento, devendo rejeitá-lo se criar a convicção de que o insolvente não é merecedor da exoneração (15).
No entanto, relembra-se, que segundo a posição jurisprudencial atualmente dominante, não é sobre o devedor que impende o ónus da prova em como não se verificam os requisitos de indeferimento liminar previstos no n.º 1 do art. 238º do CIRE, mas é antes sobre os interessados que impende o ónus da prova de que essas causas de indeferimento liminar se verificam.
O despacho inicial tem, assim, como único objetivo a aferição pelo tribunal da existência (ou não) de condições mínimas, a ser emitido segundo um juízo de prognose e prova sumária, para o pedido de exoneração do passivo restante.
Essa aferição liminar e sumária destina-se apenas a decidir se ao devedor, deve ou não, ser dada uma oportunidade de o submeter a uma espécie de período de prova (período de cessão) e, no caso positivo, fixar as obrigações a que aquele fica sujeito, durante esse período, que ascende imperativamente a cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (arts. 239º, 244º e 245º do CIRE).
Daqui resulta que o não indeferimento liminar do pedido de exoneração não significa que a exoneração venha efetivamente a ser concedida ao devedor, mas apenas que existem condições liminares para proferir o despacho inicial, em que se determina o início do período de cessão (reafirma-se, espécie de “período de prova”) de cinco anos, se fixa a parte do rendimento que o mesmo poderá reter para satisfação das suas necessidade e as do seu agregado familiar e aquela parte (rendimento disponível) que terá de ceder a uma entidade, denominada de “fiduciário”, para satisfação dos débitos que permaneçam por liquidar aos seus credores e, bem assim os comportamentos a que o mesmo fica adstrito durante esse período.
Apenas uma vez findo o período de cessão, caso não ocorra a cessação antecipada do procedimento de exoneração, é que o juiz decide, em definitivo, sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante ao devedor (arts. 239º, n.ºs 2, 3 e 4, 243º e 244º, n.º 1 do CIRE) (16).
Tal significa que o despacho inicial não concede ao devedor a exoneração do passivo restante, mas apenas lhe promete a concessão efetiva dessa exoneração caso o mesmo, ao longo dos cinco anos do período de cessão, observe os comportamentos que lhe são impostos no despacho liminar, mostrando-se merecedor (earn) desse benefício.
A concessão efetiva da exoneração depende, pois, da verificação dessas condições demonstrativas do merecimento por parte do devedor de semelhante benefício, e é decidida no despacho regulado no art. 244º, se, entretanto, não tiver havido cessão antecipada do procedimento de exoneração, nos termos do art. 243º (17).
Com efeito, ainda que seja proferido despacho liminar de admissibilidade da exoneração, poderá ocorrer a cessação antecipada do procedimento de exoneração, a requerimento de algum credor, do administrador da insolvência (apenas caso este ainda se encontre em funções), ou do fiduciário (apenas caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor), nas situações taxativamente enunciadas no n.º 1 do art. 243.
Deste modo, embora a inexistência de indeferimento liminar do requerimento da exoneração do passivo restante constitua pressuposto para a sua concessão (art. 237º, n.º 1, al. a) do CIRE), trata-se de uma mera promessa em como esse benefício será concedido ao devedor, pessoa singular, insolvente, caso aquele cumpra, ao longo dos cinco anos, as obrigações que lhe são impostas no despacho liminar de deferimento da exoneração (al. b), do n.º 1 daquele art. 237º) e se, entretanto, não ocorrer fundamento de cessação antecipada do procedimento.
Resulta do que se vem dizendo que o momento adequado para avaliar, concreta e definitivamente, se o insolvente é ou não merecedor do benefício excecional em causa, é o momento da prolação da decisão final a que alude o art. 244º do CIRE, pois só então se terão os elementos suficientes para avaliar da sua boa-fé, diligência e propósitos de vida futura (18).

Quanto à recusa de exoneração após o período de cessão, de acordo com o n.º 2 do art. 244º do CIRE, ela dá-se pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos da recusa antecipada.

Daqui resulta que o juiz não dispõe de um período discricionário de conceder, ou não, a exoneração, mas apenas pode recusar essa exoneração nos casos em que se prove verificar-se uma das situações taxativamente elencadas no n.º 1 do art. 243º que constituam fundamento para a antecipação antecipada do procedimento.

Precise-se que esses fundamentos ressumem-se a uma das seguintes situações:

1º- comportamentos do devedor, ocorridos no período de cessão, que envolvam violação dolosa ou com grave negligência das obrigações que lhe foram impostas no despacho de deferimento liminar de exoneração, desde que daí resulte prejuízo para a realização dos créditos sobre a insolvência – al. a);
2º- se apure a existência de alguma das circunstâncias referidas nas alíneas b), e) e f), do n.º 1 do art. 239º e que, por isso, seriam justificativas de indeferimento liminar do pedido de exoneração, mas apenas quando estas forem objetivamente supervenientes ao despacho de deferimento liminar da exoneração, isto é, quando se verifiquem historicamente após a prolação desse despacho liminar, ou quando forem subjetivamente supervenientes, ou seja, apesar de terem ocorrido historicamente antes da prolação desse despacho liminar, eram desconhecidas do tribunal aquando da prolação deste e só dele se tornaram conhecidas já depois da prolação desse despacho liminar – al. b) (19); ou
3º - quando a decisão do incidente de qualificação da insolvência tiver concluído pela existência de culpa grave do devedor na existência ou agravamento da situação de insolvência.

B.2- Caso presente.

B.2.1 – Emigração para Moçambique.

Sustenta-se na decisão sob sindicância que o apelante ao emigrar, sem ter comunicado voluntariamente esse facto ao tribunal, sequer ao fiduciário, violou o dever enunciado no art. 239º, n.º 4, al. d) (e não, como aí por manifesto lapso de escrita se escreve), o que, nos termos do art. 243º, n.º 1, al. a) ex vi art. 244º, n.º 2 do CIRE, constituiria fundamento de recusa do pedido de exoneração.

Contrapõe o apelante que no CIRE não existe qualquer norma que o proíba de emigrar e que o obrigue a informar o tribunal e/ou o fiduciário que emigrou, mas, antecipe-se, desde já, sem razão.

Com efeito, na sentença que declara a insolvência impõe-se imperativamente identificar o devedor insolvente, com indicação da sua sede ou residência (al. b), do n.º 1 do art. 36º do CIRE).

O principal objetivo desta imposição legal de fixar a residência ao insolvente é o de permitir estabelecer a localização daquele, retirando-lhe a possibilidade legal de mudar livremente de residência, de modo a assegurar que esteja sempre contactável para o cumprimento das obrigações para ele decorrente da declaração de insolvência, nomeadamente no que respeita aos deveres de apresentação e colaboração (20).

Esta imposição legal foi cumprida na sentença que declarou a insolvência do apelante, onde foi fixada residência ao último na Rua …, Guimarães (cfr. fls. 21).

O apelante foi notificado dessa sentença, pelo que tomou conhecimento desse facto.
Por conseguinte, contrariamente ao pretendido pelo apelante, não é certo que o CIRE não o proíba de emigrar e que não o obrigue a informar o tribunal e/ou o fiduciário em como o emigrou, uma vez que por via da declaração de insolvência, o mesmo fica impedido legalmente de mudar de residência e, consequentemente, de emigrar, dado que tal implica necessariamente uma mudança de residência, apenas podendo, inclusivamente, fazê-lo mediante prévia autorização do tribunal de insolvência.
Tal significa que o apelante, por via de ter sido declarado insolvente, não só teria de comunicar ao tribunal da insolvência em como tinha emigrado e indicando a nova morada no estrangeiro, como, inclusivamente, tinha de pedir prévia autorização ao tribunal de insolvência para o poder fazer.

Acresce dizer que uma vez encerrado o processo de insolvência, cessada essa proibição legal do apelante de mudar de residência e de, consequentemente, poder emigrar, sem prévia autorização e comunicação ao tribunal da insolvência, nos casos de exoneração do passivo restante, como é o caso dos autos, nos termos do disposto no art. 239º, n.º 4, al. c) do CIRE, proferido despacho liminar de exoneração, uma das obrigações que impende sobre o devedor, durante o período de cessão, é o de precisamente informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de dez dias após a respetiva ocorrência.
Esta imposição legal visa naturalmente permitir ao tribunal e ao fiduciário contactar o devedor na nova residência ou no novo posto de trabalho, terem conhecimento do atual paradeiro deste, do nome e morada da sua atual entidade empregadora (tratando-se de mudança de domicílio e/ou de emprego) e das novas condições de emprego, designadamente, salariais (que assim o apelante era obrigado a comunicar dentro daquele prazo de dez dias sobre a data em que essa alteração salarial ocorreu), a fim de verificarem se as condições impostas ao apelante, durante o período de cessão, incluindo em termos de cessão de rendimento disponível, estão ou não a ser cumpridas, nomeadamente, face a essas novas condições de emprego, nomeadamente, salariais e, bem assim para eventualmente indagarem junto da entidade patronal e das autoridades do novo paradeiro do apelante informações sobre a situação profissional, patrimonial e financeira deste, tendo em vista as finalidades do instituto da exoneração (21).
Mais uma vez, esta obrigação do apelante encontra-se expressamente explanada no despacho de deferimento liminar de exoneração de fls. 88 a 93, proferido em 06/01/2014, de que o apelante foi notificado nos termos legais.
Decorre do que se vem dizendo que tendo, por sentença datada de 26/09/2013, sido declarada a insolvência do apelante, onde lhe foi fixada residência na Rua … Guimarães, este, até 06/01/2014, data em que foi encerrado esse processo de insolvência (als. A e C da matéria apurada e sentença de fls. 20 a 23), encontrava-se legalmente impedido de mudar dessa residência, incluindo, naturalmente de emigrar, sem prévia autorização do tribunal de insolvência e de comunicar a nova morada no estrangeiro ao tribunal, e a partir desse dia 06/01/2014, por via do despachado de admissão liminar do pedido de exoneração (cfr. alínea B da matéria apurada), cessada essa proibição de mudança de residência, o apelante encontrava-se obrigado a comunicar ao tribunal de insolvência e ao fiduciário qualquer mudança de domicilio ou de condição de emprego, no prazo de dez dias após a respetiva ocorrência, tendo, consequentemente, dentro desse prazo de dez dias, de indicar ao tribunal e ao fiduciário a nova morada e, caso seja esse o caso, a nova entidade empregadora, respetiva morada e havendo mudança de salário, o montante deste.
Como referido, o apelante foi notificado da sentença de insolvência e, bem assim do despacho liminar de exoneração, onde constam essas obrigações, pelo que não pode alegar desconhecimento das mesmas até porque, para além de se tratar de obrigações legais e do desconhecimento da lei não aproveitar a quem quer que seja, essas obrigações constavam expressamente consignadas das identificadas decisões de que foi notificado, pelo que se incumpriu tais obrigações, forçoso será concluir que o fez, pelo menos, a título de negligência grave.

Decorre do que se vem dizendo, improcederem os argumentos aduzidos pelo apelante nesta sede.

Porém, independentemente da improcedência dos enunciados argumentos aduzidos pelo apelante, impõe-se concluir que a circunstância do apelante ter emigrado para Moçambique sem prévia autorização do tribunal de insolvência e sem sequer comunicar, no prazo de dez dias, a nova morada em Moçambique, contrariamente ao sustentado pelo tribunal a quo, não configura qualquer violação pelo apelante dos deveres que lhe foram impostos durante o período de cessão.

Com efeito, tal como resulta da alínea D) dos factos apurados e de fls. 74 e 77 dos autos, o tribunal tomou conhecimento que o apelante se encontrava emigrado em Moçambique, e o apelante confirmou esse facto (fls. 77), ainda antes da prolação do despacho liminar de exoneração.

Deste modo, reafirma-se, o apelante incumpriu, pelo menos, com negligência grave, a imposição legal de se ausentar da residência que lhe tinha sido fixada na sentença declaratória da insolvência sem prévia autorização do tribunal de insolvência e sem indicar ao último, uma vez obtida essa autorização, a nova morada no estrangeiro.

Dir-se-á que o incumprimento desses deveres, com culpa grave por parte do apelante, poderia eventualmente constituir fundamento legal para o indeferimento liminar do pedido de exoneração, nos termos da al. g), do n.º 1 do art. 238º do CIRE.

Porém, sendo o incumprimento desses deveres conhecidos há data em que o tribunal proferiu o despacho liminar de deferimento de exoneração, sem que, na perspetiva desse tribunal, esse incumprimento fosse de molde a indeferir liminarmente esse pedido de exoneração, não só o caso julgado formal operado por esse despacho liminar impede agora, em sede de despacho final, que o tribunal decida diversamente, recusando a exoneração, como o incumprimento desse dever por parte do apelante não ocorreu durante o período de cessão e, consequentemente, não emerge de qualquer obrigação que tivesse sido imposta ao último no despacho em que o tribunal admitiu liminarmente o pedido exoneração (tratando-se antes, de incumprimento de dever por parte do apelante anterior à prolação desse despacho de deferimento liminar da exoneração e que não impediu o tribunal de proferir o mesmo em sentido favorável à pretensão do apelante).
Significa isto que o incumprimento da obrigação do apelante de não se ausentar da morada que lhe tinha sido fixada na sentença que declarou a insolvência e, de consequentemente, não se ausentar dessa residência, emigrando para Moçambique, sem prévia obtenção de autorização do tribunal e sem indicar a nova morada, em Moçambique, ao tribunal, não integra a violação do dever a que alude o art. 239º, n.º 4, al. d), do CIRE não constituindo, por conseguinte, fundamento legal para, nos termos da al. a), do n.º 1 do art. 243º ex vi art. 244º, n.º2, todos do CIRE, se recusar a exoneração do passivo restante ao insolvente.
Termos em que, ainda que não com os fundamentos de recurso aduzidos pelo apelante, procede a apelação nesta parte, impondo-se revogar o despacho recorrido na parte em que recusou a exoneração do passivo restante ao apelante por via deste ter emigrado para Moçambique, sem comunicar esse facto ao tribunal.

B.2.2- Motociclo.

Na decisão sob sindicância recusou-se a exoneração do passivo restante, nos termos do disposto no art. 244º, n.º 2 ex vi arts. 243º, n.º 1, al. a) e 239º, n.º 4, al. a), todos do CIRE, com fundamento de que o apelante não comunicou ao tribunal a alteração da sua situação patrimonial, com a aquisição do motociclo de matrícula NE, tendo sido o tribunal que, em sede de diligências de apuramento dessa situação, acabou por constar a mesma, e notificado para se pronunciar sobre a capacidade aquisitiva desse veículo, dada a sua situação de insolvência e a falta de cessões, bem como para justificar a necessidade de aquisição dessa viatura, dada a situação de emigração, o insolvente limitou-se a informar que o veículo tinha sido exportado para Moçambique, utilizando-o nas suas deslocações, sem que tivesse dito uma única palavra sobre como terá reunido as condições necessárias à aquisição desse motociclo.
Imputa o apelante erro de julgamento a essa decisão, advogando que o veículo veio à sua posse em 2015, muitos meses após a declaração de insolvência e, por isso, não houve da sua parte qualquer intenção de ocultação de património, até porque essa viatura é do ano de 1999 e pouco ou nenhum valor comercial tem, sendo absolutamente essencial para as suas deslocações em território africano.
Mais advoga que ainda que aquele tivesse indicado a existência desse veículo, não se vê como estando o mesmo em Moçambique, pudesse ser apreendido para a massa insolvente, ser reexportado para Portugal, para aqui ser vendido e entregue, o que além de ser de difícil execução, acarretaria custos superiores ao valor do próprio motociclo.
Conclui que atentos estes circunstancialismos, não havia da sua parte qualquer obrigação de declarar a existência do motociclo.
Analisados os enunciados argumentos, não resistimos em dizer que os mesmos não passam de argumentos falaciosos e antes demonstram que o apelante não apreendeu o verdadeiro significado e filosofia inerente ao instituto da exoneração do passivo restante, o qual, conforme acima amplamente se explicou, não é um “brinde” ao devedor, uma forma simples de eliminar os seus débitos, desobrigando-o perante os credores dos compromissos financeiros que tem para com os últimos, mas antes está-se perante a concessão de um benefício que pressupõe uma aprendizagem (learn) da parte do devedor para, no futuro, gerir de forma responsável a sua vida económica e financeira, o que pressupõe que cumpra com determinadas obrigações que lhe são impostas pelo tribunal no despacho liminar de deferimento da exoneração, tendentes a fazê-lo empreender esse caminho de aprendizagem e de responsabilidade e que, apenas uma vez empreendido e cumprido, será demonstrativo em como é merecedor (earn) desse recomeçar de vida futuro liberto dos compromissos financeiros que antes o atormentavam e estrangulavam económica e financeiramente.
Uma das obrigações que impende sobre o apelante durante o período de cessão é a “de não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património, na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado (art. 239º, n.º 4, al. a) do CIRE).
Esta obrigação legal (e as demais previstas nesse n.º 4 do art. 239º) que impendem sobre todo e qualquer devedor que requeira a exoneração do passivo restante e que tenha visto liminarmente deferida essa sua pretensão, têm de constar expressamente consignadas no despacho de deferimento liminar de exoneração para que o devedor fique bem ciente dessas obrigações a que fica vinculado durante o período de cessão, e esse ónus foi integralmente cumprido pelo tribunal.

Na verdade, conforme se lê no despacho de deferimento liminar de exoneração deduzido pelo apelante, proferido a fls. 88 a 93, consigna-se expressamente nele que:
Durante o período de cessão fica o devedor obrigado a:

- Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisita;
(…)”.

O apelante foi notificado deste despacho e, por isso, por mais que não fosse, não pode alegar desconhecimento dessa sua obrigação, pelo que se a incumpriu fê-lo, pelo menos, a título de negligência grave, havendo, inclusivamente, indícios claros nos autos, pelos fundamentos que infra se explanarão, que o fez a título doloso.
Acontece que conforme resulta da matéria apurada sob as alíneas H) e I) e resulta corroborado, pelo teor de fls. 302, 317 e 318 dos autos, na sequência das diligências instrutórias oficiosamente determinadas pela 1ª Instância, com vista a apurar a situação profissional, patrimonial, económica e financeira do apelante, veio a apurar-se que este é proprietário do motociclo de matrícula NE, da marca “Yamaha”, modelo XT 600 E (DJ502), com 595 cm3 de cilindrada (cfr. fls. 302), pelo que com cópia de fls. 302 notificou-se o mesmo “para, em dez dias, se pronunciar, mormente, justificando quer a necessidade de aquisição de automóvel se se encontra a residir em Moçambique, quer a capacidade financeira para a respetiva aquisição” (fls. 302), ao que o apelante se limitou a responder: “Vem esclarecer quanto ao veículo NE se trata de um motociclo que foi exportado para a República Popular de Moçambique e que serve para o insolvente efetuar as suas deslocações” (fls. 321 verso), omitindo qualquer menção quanto aos meios económicos que lhe permitiram a aquisição desse motociclo e, inclusivamente, diremos nós, perante a informação que prestou a fls. 321 verso, que lhe permitiram suportar o custo com o processo administrativo inerente a essa exportação e de transporte dessa viatura de Portugal para Moçambique, tudo, apesar de nos termos do disposto na al. a), do n.º 4 do art. 239º do CIRE, se lhe impor essa obrigação de prestar essas informações ao tribunal, no prazo de dez dias, conforme este lhe determinou, dessa sua obrigação constar expressamente consignada, relembra-se, no despacho que deferiu liminarmente o seu pedido de exoneração do passivo restante e do tribunal lhe ter expressamente determinado, no despacho de fls. 317, para, “no prazo de dez dias” se pronunciar quanto ao documento de fls. 302 e justificar “quer a necessidade de aquisição de automóvel (…), quer a capacidade financeira para a respetiva aquisição”.
Argumenta o apelante que essa viatura é do ano de 1999 e pouco ou nenhum valor comercial possui.
No entanto, refira-se, que se trata de matéria nova que aquele tinha de ter tido oportunamente alegado junto do tribunal a quo, o que não fez, pelo que se trata de questão nova (a matéria de facto ora alegada pelo apelante em sede de recurso), de que o tribunal de recurso não pode conhecer.
No entanto, sempre se dirá, que um motociclo da marca “Yamaha”, modelo “XT 600 E (DJ02), com 595 cm3 de cilindrada, não é certamente um motociclo qualquer e que o respetivo valor comercial não será certamente nulo ou praticamente nulo, até porque naturalmente que o apelante não se iria dar ao incómodo de estar a exportar de Portugal para o longínquo Moçambique um motociclo de “pouco ou nenhum valor comercial”, suportando os inerentes incómodos e, sobretudo, os necessariamente pesados custos administrativos e de transporte que uma exportação dessa natureza imperiosamente implica, até porque tal versão dos factos não tem qualquer arrimo possível à luz das regras da lógica e da experiência comum.
Advoga o apelante que não existia da sua parte qualquer obrigação de declarar a existência do motociclo e que não vê como é que este, estando em Moçambique, pudesse ser apreendido para a massa insolvente, procedendo-se à respetiva reexportação, o que demandaria custos que, na sua perspetiva, seriam superiores ao valor do próprio motociclo.
A propósito deste argumentário, diremos que as questões que o apelante ora suscita não são as que o mesmo devia ter suscitado, sequer as que se impõem suscitar.
Na verdade, a violação pelo apelante da obrigação da al. a), do n.º 4 do art. 239º do CIRE, não deriva daquele não ter declarado ao tribunal e/ou ao fiduciário a existência do motociclo, mas sim de uma vez detetada pelo tribunal a existência desse motociclo, tendo sido notificado para explicar, no prazo de dez dias, de onde lhe adveio a sua capacidade financeira para adquirir esse veículo, nenhuma explicação ter apresentado.
Por outro lado, há que precisar que não é ao apelante que incumbe apreciar da relevância ou a ausência dela das informações que lhe foram solicitadas pelo tribunal, mas sim é a este último que cabe fazer essa aferição e concluído que seja pelo tribunal da pertinência de tais informações (a qual é, aliás, indiscutível no caso presente), uma vez notificado o apelante para, no prazo de dez dias, as prestar, porque o mesmo se encontra, durante o período de cessão, nos termos legais (art. 239º, n.º 4, al. a) do CIRE), obrigado a prestá-las, e, inclusivamente, encontrava-se expressamente advertido dessa sua obrigação, mediante a consignação expressa da mesma no despacho de deferimento liminar de fls. 88 a 93, despacho esse que lhe foi notificado, outra solução não lhe restava que não fosse prestar as informações em causa, independentemente do juízo que fizesse sobre a pertinência ou impertinência de tais informações para os autos, designadamente, para a exoneração do passivo restante, do valor comercial que essa viatura pudesse ter (ou não ter) e do custo da reexportação desta de Moçambique para Portugal e da consequente viabilidade ou conveniência de se proceder a essa reexportação.
Aliás, cumpre precisar que ante tudo o que se vem enunciando a questão que o apelante devia ter equacionado e tinha de equacionar, e que foi a que a 1ª Instância indubitavelmente equacionou e que nós também equacionamos, é a seguinte: como é que um devedor, como é o caso do aqui apelante, que no requerimento em que se apresentou à insolvência, afirma não ter qualquer património, estar desempregado desde 2010, vivendo desde 24/07/2012, com o subsídio social de desemprego, no montante de escassos de 11,18 diários, com “muitas dificuldades” (cfr. petição inicial de fls. 3 a 7 e sentença declarativa da insolvência de fls. 20 a 22), ainda assim conseguiu granjear dinheiro para emigrar para Moçambique, país onde trabalha desde janeiro de 2014 a abril de 2019, mas onde, em função dos seus recibos de vencimento juntos aos autos, até agosto de 2017, pretende receber um salário mensal de escassos 20.000,00 Menticais (cfr. alínea G da matéria apurada) – versão dos factos esta em que, aliás, persiste nas suas alegações de recurso, onde inclusivamente pretende que até outubro de 2017 a sua remuneração mensal ilíquida ascendia a 20.000,00 Menticais e que “a partir de outubro de 2017, passou para 40.000MT (ou seja, 577,14 euros)” – cfr. fls. 418 –, e ainda assim granjear dinheiro para comprar o motociclo de marca Yamaha, modelo XT 600E (DJ02), com 595 cm3 de cilindrada (cfr. fls. 302) e exportá-lo de Portugal para Moçambique e suportar os pesados custos administrativos e de transporte que essa exportação necessariamente implicou?
Era essa a pergunta que, salvo o devido respeito, lhe foi dirigida pelo tribunal e à qual o apelante se encontrava obrigado a responder, no prazo de dez dias, sobre a notificação que lhe foi dirigida nesse sentido, mas cuja resposta silenciou, permanecendo, assim, essa pergunta ainda atualmente por responder e, refira-se, sem resposta a não ser que se conclua que o salário mensal por ela auferido não é o que consta dos recibos de vencimento, mas antes bastante superior.
Sustenta o apelante não ter havido da sua parte qualquer intenção de ocultação do património, mas antes o que aconteceu é que esse veículo veio à sua posse em 2015, muito meses após a declaração de insolvência, deixando intuído que se teria esquecido das obrigações que sobre si impendiam em sede de incidente de exoneração do passivo restante.
No entanto, conforme já demonstrado, o instituto da exoneração do passivo restante não é um “brinde” ao devedor, pelo que naturalmente que este não se pode esquecer da sua situação de insolvência, dos débitos que permanecem por liquidar aos seus credores, dos compromissos que assumiu quando requereu que lhe fosse concedido o benefício da exoneração do passivo restante e das obrigações legais que sobre si impendem em sede desse instituto durante o período de cessão, que se encontravam, relembra-se, no caso, expressamente explanadas no despacho de deferimento liminar de exoneração de fls. 88 a 93, de que o mesmo encontrava-se devidamente notificado.
Por conseguinte, o apelante encontrava-se devidamente ciente dessas suas obrigações, as quais, contudo, incumpriu, violando o disposto no art. 239º, n.º 4, al. a) do CIRE, ao não ter cuidado em informar o tribunal, no prazo de dez dias, sobre os seus rendimentos e património, não indicando os meios económicos que lhe permitiram adquirir o motociclo e suportar os custos da exportação deste de Portugal para Moçambique.
Dir-se-á que essa violação perpetrada pelo apelante foi, pelo menos, por ele cometida com negligência grave, pese embora, como já referido, esteja fortemente indiciado nos autos que aquele, inclusivamente, a poderá ter perpetrado a título doloso.

Vejamos:

Como acima se demonstrou, o apelante emigrou para Moçambique, sem solicitar prévia autorização ao tribunal e sem indicar a sua nova morada nesse país e sem informar o tribunal desse facto, de que apenas veio a dar conhecimento quando o tribunal o notificou para que juntasse aos autos o seu certificado de registo criminal.
Acresce que apesar de em Moçambique exercer atividade profissional remunerada de janeiro de 2014 a abril de 2019 (cfr. alínea G da matéria apurada), conforme evidenciam os autos, o apelante não veio informar o tribunal desse facto, sequer a identidade da sua entidade patronal e o salário que auferia como contrapartida dessa sua atividade em Moçambique.
Acresce ainda, que notificado pelo tribunal para que indicasse, no prazo de dez dias, a sua morada em Moçambique, os seus contactos e qual a sua atividade profissional que se encontrava a desempenhar nesse país, juntando aos autos recibos comprovativos dos rendimentos mensais auferidos (cfr. fls. 138), o apelante veio, em 22 de abril de 2015, indicar apenas a sua morada em Moçambique, sustentando que “neste momento não se encontra a desempenhar qualquer atividade, uma vez que o projeto ou atividade para o qual foi contratado terminou, estando o seu regresso a Portugal agendado para Junho de 2015” (cfr. fls. 147), vindo, de resto, na sequência das insistências do tribunal, para, sob pena de cessação antecipada do incidente de exoneração, informar os seus contactos e esclarecer durante que período esteve efetivamente a desempenhar uma atividade remunerada em Moçambique e qual o valor da retribuição que auferiu, juntando aos autos os competentes comprovativos (cfr. fls. 149), reiterar essa informação inverídica, afirmando que “exerceu a atividade profissional cerca de ano e meio, auferindo cerca de 19.400 meticais, não dispondo de recibo por a entidade patronal não o emitir” (cfr. fls. 152), o que reafirmou a fls. 188 verso, acabando, apenas por reconhecer essa inverdade em 22/05/2017, na sequência da notificação do tribunal para que, no prazo de dez dias, identificasse nos autos todas aquelas que foram as suas entidades patronais em Moçambique, especificando os respetivos endereços, as datas para que elas trabalhou e as funções por si desempenhadas (cfr. fls. 190 e 191), ao informar que “A única entidade patronal que teve e tem na República Popular de Moçambique é a sociedade X, Lda. (…) – fls. 200 a 201.
Os factos que se acabam de enunciar são bem ilustrativos em como o apelante, uma vez declarada a sua insolvência, se esqueceu totalmente do seu estado de insolvência; das obrigações que tinha para com os seus credores e que permaneciam por incumprir; das obrigações que assumiu perante o tribunal quando requereu que lhe fosse concedido o benefício da exoneração do passivo restante e que este lhe impôs no despacho de deferimento liminar de exoneração de fls. 88 a 93, posto que começou por omitir ao tribunal que tinha emigrado para Moçambique, omitiu-lhe que trabalhava nesse país, indo ao ponto de faltar ao dever de verdade para com o tribunal, negando que ainda estivesse aí a trabalhar (incorrendo por três vezes nessa inverdade), quando continuava comprovadamente, nesse país, a exercer atividade remunerada, facto esse que acabou apenas por reconhecer perante a pressão que sobre ele foi sendo exercida pelo tribunal.
O que se acaba enunciar indica fortemente que a ausência de resposta do apelante à notificação que lhe foi dirigida pelo tribunal para, no prazo de dez dias, explicar de onde lhe adveio a capacidade financeira para adquirir o motociclo foi um ato doloso da parte daquele.
No entanto, independentemente de ter existido ou não dolo da parte do apelante, ante os factos supra enunciados e analisados, é indiscutível que o mesmo agiu, pelo menos, com negligência grave, ao não dar qualquer justificação ao tribunal sobre os meios financeiros que lhe permitiram adquirir o motociclo, conforme este legitimamente lhe determinou que fizesse no prazo de dez dias, mas que o apelante incumpriu, nada dizendo a esse respeito.
Aqui chegados, tal como ponderou a 1ª Instância, é indiscutível que o apelante, pelo menos, com negligência grave, com essa conduta omissiva, perante a notificação do tribunal, incumpriu o dever a que se encontrava adstrito, durante o período de cessão, a que alude a al. a), n.º 4 do art. 239º do CIRE.
Contudo, conforme decorre do art. 243º, n.º 1, al. a) ex vi art. 244º, n.º 2 do CIRE, para que esse incumprimento do apelante seja fundamento de recusa da exoneração do passivo restante é necessário que, em consequência do mesmo, tenha resultado prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência, o que é o caso.
Na verdade, a única explicação plausível ante os factos já enunciados e analisados para o apelante dispor meios económicos, como dispôs, para comprar o motociclo e para suportar os custos de exportação desse motociclo de Portugal para Moçambique é o facto da remuneração mensal por ele auferida em Moçambique ser bem superior àquela que é mencionada nos seus recibos de vencimento juntos aos autos, excedendo necessariamente o salário mínimo nacional vigente em Portugal, já que não se antolha à luz das regras da lógica e da experiência da vida outro modo para o apelante ter granjeado esses meios financeiros, quando o mesmo, em Portugal, apenas tinha dívidas, não tinha património e vivia com confessadas graves dificuldades económicas, do subsidio social de desemprego.
Logo, é indiscutível que por via do incumprimento, pelo menos, com culpa grave, do dever que sobre ele impendia e que se encontra consignado na al. a), do n.º 4 do art. 239º do CIRE, o apelante prejudicou a satisfação dos créditos da insolvência, dado que o mesmo, durante o período de cessão, encontrava-se obrigado a ceder o rendimento disponível ao fiduciário, correspondente à parte excedente do salário mínimo nacional português, para satisfação dos débitos da insolvência que permaneciam por satisfazer, desviando o apelante esse rendimento disponível para a satisfação de outras necessidades suas, incluindo para a aquisição do motociclo.

Deste modo, resulta do que se vem dizendo que ao recusar a exoneração do passivo restante com este fundamento, a decisão recorrida não padece manifestamente dos erros de direito que o apelante lhe assaca, improcedendo a apelação nesta parte.

B.2.3- Vencimento do apelante.

A decisão sob sindicância recusou a exoneração do passivo restante, com fundamento na violação pelo apelante do dever de não ocultar ou dissimular rendimentos que aufira, isto é, no disposto na al. a) do n.º 4 do art. 239º do CIRE, ex vi arts. 243º, n.º 1, al. a) e 244º, n.º 2, do mesmo Código, sustentando que os recibos de vencimento juntos aos autos não retratam fidedignamente aquela que era a remuneração efetivamente paga ao insolvente pelo trabalho desempenhado em Moçambique, antes sendo-lhe paga quantia superior, isto porque, sem que tivesse sido apresentada justificação cabal para o efeito, foram juntos aos autos, dois recibos distintos, relativos a vários meses do período de cessão, e não se afigura consentâneo com a normalidade do acontecer que o insolvente tivesse ido trabalhar para um país estrangeiro para receber quantia inferior ao salário mínimo nacional, quando o Rendimento Social de Inserção a que se poderia candidatar, caso não se tivesse ausentado do território nacional, seria de valor pouco inferior ao do seu alegado salário, além de que o insolvente adquiriu o motociclo sem apresentar qualquer justificação quanto à capacidade aquisitiva deste.
Essa decisão recusou igualmente a exoneração do passivo restante ao insolvente com fundamento no incumprimento pelo mesmo do dever da al. c), do n.º 4 do art. 239º do CIRE, ex vi arts. 243º, n.º 1, al. a) e 244º, n.º 2 do mesmo diploma, sustentando que a fazer fé nos recibos juntos aos autos, entre agosto de 2017 e junho de 2018, o insolvente terá recebido, em cada um desses meses, um vencimento de 60.000,00 Menticais, o que correspondia, em agosto de 2017, a 824,63 euros, e em junho de 2018, a 868,43 euros, quando o salário mínimo nacional se encontrava fixado entre 01/01/2017 e 31/12/2017 em 557,00 euros mensais, e a partir de 01/01/2018, em 580,00 euros, o que significa que entre agosto de 2017 e junho de 2018, o insolvente podia ter feito entregas ao fiduciário, o que não sucedeu, sem que aquele tivesse apresentado qualquer justificação.
Insurge-se o apelante quanto a estas decisões, imputando-lhes erro de direito, advogando que as ilações extraídas pelo tribunal a quo quando ao seu salário e aos recibos de vencimento não procedem, isto porque a informação que o apelante prestou nos autos, em 08/05/2015, de que não dispunha de recibos de vencimento, era verdadeira, o que aconteceu é que notificada a sua entidade patronal, esta logo tratou de emitir esses recibos, e a circunstância de existirem recibos em vários meses com salários distintos, essa irregularidade, tem de ser imputada à entidade patronal, não podendo o insolvente ser penalizado por factos ou documentos que não foram por si produzidos, além de que o vencimento do insolvente foi confirmado pelas autoridades moçambicanas, não passando as desconfianças do tribunal de que o insolvente fosse emigrar para auferir o salário que diz auferir e que isso não é consentâneo com a normalidade do acontecer e que mais consentâneo seria que o mesmo ficasse em Portugal a receber o RSI, de meras especulações.
A este propósito diremos que o apelante não impugnou o julgamento da matéria de facto considerada provada pela 1ª Instância e muito menos, conforme já enunciado, mediante o cumprimento dos ónus impugnatórios prescritos no art. 640º, n.º 1 do CPC, pelo que essa matéria se tem como definitivamente assente.
Logo, o apelante não pode agora colocar em crise a facticidade das alíneas G.44 a G.54 dos factos provados, das quais resulta apurado que entre agosto de 2017 a junho de 2018, o mesmo auferiu um vencimento mensal de 60.000,00 menticais, com o argumento que o seu vencimento mensal é aquele que foi confirmado pelas autoridades moçambicanas.
Aliás, a esse propósito diremos que as autoridades moçambicanas, assim como as portuguesas, apenas podem confirmar o vencimento que lhes é declarado e não aquele que é efetivamente auferido pelos contribuintes, como é o caso do aqui apelante, cujo salário declarado, tal como se veio, em definitivo, a provar não tem correspondência com o que era por ele efetivamente auferido, o que diga-se, não é de estranhar, conhecido que é o fenómeno da evasão fiscal, sobretudo, em determinados setores de atividade e em determinados países, cuja máquina fiscal ainda não está suficientemente oleada.
Acresce que o apelante não pode pretender que a informação que prestou nos autos, em 08/05/2015, de que não dispunha de recibos de vencimento, era verdadeira, e o que aconteceu é que uma vez notificada a sua entidade patronal, esta logo tratou de emitir esses recibos, a quem são imputáveis as irregularidades apontadas pelo tribunal a quo quanto a esses recibos, quando se verifica que esta sua versão dos factos se quedou por apurar e que o mesmo não impugnou o julgamento de facto realizado pela 1ª Instância.
Significa isto, que a facticidade considerada como provada pela 1ª Instância se tem como definitivamente assente, com a seguinte especialidade.
A 1ª Instância, em sede de subsunção jurídica da facticidade apurada, conclui que os recibos de vencimento do apelante identificados na alínea G.1 a G.64, não retratam fidedignamente aquela que era a remuneração efetivamente recebida pelo mesmo pelo trabalho que desempenha em Moçambique, antes lhe sendo paga uma quantia superior.
No entanto, a 1ª Instância não levou essa facticidade ao elenco dos factos provados.
Conforme acima já referido, em sede de processo de insolvência, incluindo de incidente de exoneração do passivo restante, o tribunal não se encontra submetidos aos factos alegados pelas partes, sequer às diligências probatórias por estas requeridas, vigorando, nesta sede, o princípio do inquisitório (art. 11º do CIRE).
Deste modo, não existia qualquer obstáculo processual que o tribunal a quo tivesse concluído pela prova, tal como fez em sede de subsunção jurídica dos factos provados, que os recibos de vencimento do apelante identificados na alínea G.1 a G.64, não retratam fidedignamente aquela que era a remuneração efetivamente recebida pelo insolvente pelo trabalho que desempenhava em Moçambique, antes lhe sendo paga uma quantia superior.
Por outro lado, verificando-se que o tribunal a quo não levou aquela facticidade ao elenco dos factos provados, dada a relevância dessa facticidade para o desfecho dos presentes autos, nos termos do disposto no art. 662º, n.º 2, al. c) do CPC, impõe-se ao tribunal ad quem exercer os seus poderes de substituição, dando como provada (ou não provada) essa e outra facticidade que tenha como relevante para o thema decidendum, quando a prova constante dos autos permita, com segurança, fazer esse julgamento de facto. De contrário, terá de anular a decisão recorrida e determinar a ampliação do julgamento de facto a essa (e a outra) facticidade que tenha como relevante.
Assente nestas premissas é indiscutível que os autos contêm todos os elementos de prova de molde a permitir esse julgamento de facto.
Com efeito, contrariamente ao pretendido pelo apelante, não é certo que a ilação extraída pelo tribunal a quo, quando pondera não se afigurar “consentâneo com a normalidade do acontecer que o insolvente anuísse a ir trabalhar para um país estrangeiro para receber uma (…) quantia inferior a metade do salário mínimo nacional. O rendimento social de inserção a que se poderia candidatar caso não se tivesse ausentado do território nacional seria de valor pouco inferior ao do seu alegado salário”, “não passa de meras especulações”, posto que o ponderado pela 1ª Instância é um dado assente nas regras da lógica e da experiência da vida e mal estariam os tribunais se não se socorressem dessas regras da lógica, da experiência da vida e da ciência no apuramento/julgamento dos factos em julgamento.
Com efeito, ninguém emigra para ganhar menos de metade do salário mínimo nacional vigente no seu próprio país de origem e para auferir pouco mais que aquele que o seu próprio estado nacional lhe garantiria através de apoios sociais caso permanecesse no país, até porque emigrar tem custos severos em termos pessoais, familiares, sociais económicos.
É o ausentar-se para um país estrangeiro, que não é o seu, com o desenraizamento familiar e social que a isso está inerente - a saudade, a lonjura da sua terra natal e família, ausências no quotidiano e nos momentos significativos do seu agregado familiar nuclear (quando a mulher e os filhos permaneçam no país de origem) e alargada (as festas de aniversário dos pais, as comunhões e casamentos dos irmãos e dos sobrinhos, os funerais, etc., etc.); os comportamentos xenófobos e de desconfiança de que os emigrantes recorrentemente são vítimas por parte dos nacionais dos países para onde emigram e onde raras vezes são integrados ou totalmente integrados e onde, a maioria das vezes, os próprios emigrantes também não se querem integrar, por sentiram que não são dali.
Acresce que para emigrar é necessário dinheiro, desde logo para a passagem.
Porque assim é, não podemos deixar de subscrever integralmente o explanado pela 1ª Instância e concluir que, o que se acaba de referir, aliado às discrepâncias verificadas ao nível dos recibos de vencimento do apelante e, bem assim ao facto daquele ter emigrado para Moçambique, sem disso dar conta ao tribunal, de nesse país ter trabalhar desde janeiro de 2014, facto que, como demonstrado, através dos dados objetivos já explanados, aquele tentou a todo o custo ocultar e escamotear ao tribunal, indo ao ponto de faltar à verdade por três vezes sucessivas, de, nesse país ter granjeado meios económicos que lhe permitiram adquirir um motociclo, que exportou de Portugal para Moçambique, sem querer explicar ao tribunal os meios económicos que lhe permitiram fazer essa aquisição e exportação, apesar de notificado para que o fizesse, força a que se conclua que os recibos de vencimento do apelante identificados na alínea G.1 a G.64, não retratam fidedignamente aquela que era a remuneração efetivamente recebida pelo insolvente pelo trabalho que desempenhava em Moçambique, antes lhe sendo paga uma quantia mensal superior ao salário mínimo vigente em Portugal.

Nesta conformidade, ordena-se que se adite ao elenco dos factos considerados provados na decisão sob sindicância, a seguinte facticidade, que se julga como provada:

“H- Os recibos de vencimento identificados na alínea G.1 a G.64, não retratam fidedignamente aquela que era a remuneração efetivamente recebida pelo insolvente pelo trabalho que desempenhava em Moçambique, antes lhe sendo paga uma quantia mensal superior ao salário mínimo vigente em Portugal”.
Posto isto, ao prestar ao tribunal informações falsas sobre o seu vencimento mensal, quando este excedia o salário mínimo nacional e ao não entregar a parte excedente ao fiduciário, o apelante dolosamente incumpriu os deveres enunciados nas als. a) e c), do n.º 4 do art. 239º do CIRE, prejudicando em consequência desse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência, o que nos termos do disposto nos arts. 243º, n.º 1 e 244º, n.º 2 do CIRE é fundamento para lhe ser recusada a exoneração do passivo restante.
Resulta do que se vem dizendo, que ao recusar a exoneração do passivo restante ao apelante, a decisão sob sindicância não padece dos erros de direito que este lhe assaca, improcedente a apelação nesta parte.
Aqui chegados, impõe-se concluir pela parcial procedência da presente apelação, impondo-se revogar o despacho recorrido, na parte em que recusou a exoneração do passivo restante ao apelante por via de ter emigrado para Moçambique sem comunicar esse facto ao tribunal e, no mais, confirmá-lo, incluindo a decisão de mérito nele proferida, que recusou ao apelante a exoneração do passivo restante.
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Decisão:

Nesta conformidade, os Juízes Desembargadores desta Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, acordam em julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência:

1- ordenam que se adite ao elenco dos factos provados no despacho recorrido, a seguinte facticidade, que julgam como provada:
“H- Os recibos de vencimento identificados na alínea G.1 a G.64, não retratam fidedignamente aquela que era a remuneração efetivamente recebida pelo insolvente pelo trabalho que desempenhava em Moçambique, antes lhe sendo paga uma quantia mensal superior ao salário mínimo vigente em Portugal”.
2- revogam o despacho recorrido na parte em que recusou a exoneração do passivo restante ao apelante por via de ter emigrado para Moçambique sem comunicar esse facto ao tribunal;
3- no mais, confirmam o despacho recorrido, incluindo a decisão de mérito nele proferida, que recusou ao apelante a exoneração do passivo restante.
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Custas pelo apelante, uma vez que apesar da parcial procedência da apelação, a decisão de mérito que lhe recusou a exoneração do passivo restante permanece incólume (art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
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Notifique.
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Guimarães, 05 de março de 2020
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores:

Dr. José Alberto Moreira Dias (relator)
Dr. António José Saúde Barroca Penha (1º Adjunto)
Dr. José Manuel Alves Flores (2º Adjunto)



1. Catarina Serra, “Lições de Direito da Insolvência”, Almedina, págs. 573 e 574, onde escreve que “(…) atendendo ao art. 11º e a algumas menções específicas no regime de exoneração (cfr., por exemplo, art. 236º, n.º 1, 2ª parte), o juiz mantém a disponibilidade dos seus poderes de averiguação, tendo mesmo o dever de, antes de decidir, procurar obter a máxima informação sobre o caso concreto”.
2. Maria do Rosário Epifânio, “Manual de Direito da Insolvência”, 7ª ed., Almedina, págs. 379 e 380.
3. Luís M. Martins, ob. cit., pág. 535.
4. Luís Menezes Leitão, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 4ª ed., págs. 236 e segs. Em sentido idêntico, Catarina Serra, “O Novo Regime Português da Insolvência – Uma Introdução”, 2008, 3ª ed. Almedina, págs. 102 e 103.
5. Paulo Mota Pinto, “Exoneração do Passivo Restante: Fundamento e Constitucionalidade”, no “III Congresso de Direito da Insolvência”, Almedina, 2015, págs. 187 e 194.
6. Alexandre de Soveral, “Um Curso de Direito de Insolvência”, 2016, 2ª ed., pág. 584.
7. Catarina Serra, ob. cit., pág. 559.
8. Catarina Serra, ob. cit., pág. 561.
9. Luís M. Martins, ob. cit. pág. 535. No mesmo sentido, vide Ac. RP. de 06/04/2017, Proc. 1288/12.0TJPRT.P1, in base de dados da DGSI.
10. Maria do Rosário Epifânio, ob. cit., págs. 382 e 383.
11. Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., págs. 854 e 855.
12. Ac. STJ. 19/04/2012, Proc. 434/11.5TJCBR-D.C1.S1; de 06/07/2011, Proc. 7295/08.TBBRG.G1.S1; RP. 20/12/2011, Proc. 740/10.6TBPVZ-D.P1; RL. 17/11/2011, Proc. 921/11.5TJLSB-E.L1-8, in base de dados da DGSI.
13. Ac. RP. de 06/04/2017, Proc. 1288/12.0TJPRT.P1, in base de dados da DGSI.
14. Assunção Cristas, “Novo Direito da Insolvência”, in Revista da Faculdade de Direito da UNL, 2005, ed. especial, pág. 264.
15. Ac. RP. de 09/01/2006, Proc. 0556158, in base de dados da DGSI.
16. Ac. RC. de 03/06/2014, Proc. 747/11.6TBTNV-J.C1, in base de dados da DGSI.
17. Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação da Empresa Anotado”, 3ª ed. Quid Juris, pág. 853.
18. Ac. RL. de 12/12/2013, Proc. 1367/13.6TJLSB-C.L1-&, in base de dados da DGSI.
19. Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., pág. 867 e Ac. RC. de 30/06/2015, Proc. 1140/11.6TBLRA.C1, in base de dados da DGSI.
20. Carvalho Fernandes e João Labareda.
21. Catarina Serra, ob. cit., pág. 570, onde escreve que todas as obrigações do n.º 4 do art. 239º “são, de alguma forma, instrumentais ao procedimento de exoneração”.