Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4794/16.3T8GMR.G1
Relator: PAULO REIS
Descritores: PROVA TESTEMUNHAL
DECLARAÇÕES PRODUZIDAS EM PROCESSO DE AVERIGUAÇÕES
CONTRATO DE SEGURO
FURTO
VALOR DO VEÍCULO
VALOR REAL
VALOR CONVENCIONADO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/30/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- A prova testemunhal consiste num meio de prova legal, estando sujeita a um conjunto de normas que regulam o respetivo modo de produção em juízo e contemplam expressamente os atos a praticar para a sua utilização, prevendo ainda os casos em que os depoimentos produzidos num processo com audiência contraditória da parte podem ser invocados noutro processo contra a mesma parte.

II- Daí que as declarações produzidas por testemunha no âmbito do processo de averiguações instaurado pela ré/seguradora, ora recorrida, relativo ao sinistro em causa nos autos, não possam ser valoradas em termos probatórios no processo judicial em curso quanto a tal matéria.

III- Em ação na qual é peticionada indemnização pela perda total do veículo seguro em consequência de furto, no âmbito de um seguro facultativo com tal cobertura, provando-se que o valor do bem objeto do seguro foi fixado por acordo das partes, correspondendo ao montante do capital seguro, não tem o segurado de provar o valor do bem na data do sinistro.

IV- Como tal, não se tendo apurado o valor real do bem à data do sinistro também não há que relegar o valor da indemnização para liquidação de sentença.

V- No contexto enunciado deve a indemnização corresponder ao valor do capital seguro, atualizado de acordo com a tabela de desvalorizações periódicas automáticas adotada pela própria ré/recorrida para determinação do valor da indemnização em caso de perda total, sendo certo que foi em função desses elementos que a seguradora recebeu o respetivo prémio.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. Relatório

P. S., melhor identificado nos autos, instaurou ação declarativa sob a forma de processo comum contra X - Companhia de seguros, S.A., agora Y - Companhia de Seguros, S.A., pedindo a condenação da ré a pagar-lhe o montante global de € 91.393,01, correspondente € 66.666,67 ao veículo MH, € 2.842,58 pela devolução do prémio de seguro indevidamente cobrado, € 7.900,20 pela privação do uso, € 13.983,56 a juros vencidos desde 19 de janeiro de 2014 a 1 de setembro de 2016 ao dobro da taxa legal, tudo acrescido dos juros vincendos ao dobro da taxa legal até efetivo e integral pagamento.

Para tanto, alegou, em síntese, que a 19 de dezembro de 2011 celebrou com a ré um contrato de seguro de responsabilidade civil obrigatória com cobertura de danos próprios do veículo ligeiro de passageiros Ford Mustang com a matrícula MH, entre elas, furto ou roubo; a ré mandou um dos seus funcionários inspecionar o veículo e acordaram o valor de € 75.000 mediante o pagamento do prémio anual de € 2.581,80; o referido veículo foi furtado entre as 18h00 do dia 13 de novembro de 2013 e as 10h30 do dia seguinte, em Nice, tendo sido encerrado o processo que correu trâmites pela Justiça francesa, pretendendo, assim, que a ré lhe pague a quantia a que se obrigou, atento o contrato de seguro que havia celebrado com a mesma, referente ao veículo adquirido por compra em setembro de 2011 e que na data estava seguro na ré pela quantia de € 66.666,67, devendo ainda ser compensado em € 7.900,20 por não poder utilizar o MH sem receber um veículo de substituição, que compreende o montante diário de € 131,67 correspondente ao valor de aluguer de um veículo com as mesmas características do MH, até ao limite máximo de 60 dias; e no valor de € 2.842,58 pela devolução do prémio de seguro indevidamente cobrado, tal como melhor consta da petição inicial.

A ré contestou, contrapondo que a proposta de seguro foi encaminhada por uma sua mediadora e tramitada por um colaborador desta, o qual se deslocou à Póvoa de Lanhoso, onde foi preenchida e assinada a proposta de acordo com as indicações expressas do segurado e com os elementos fornecidos por este, designadamente, o capital de € 75.000; aquando da ocorrência do furto, o autor não contactou o escritório da mediadora, competindo-lhe anular o contrato; o veículo foi importado pelo autor em agosto de 2011 de França, em estado de usado, sendo um veículo construído em 2005 tendo declarado que o seu valor era de € 7.000 e, ainda com a matrícula francesa, teve um acidente em Portugal, pelo que, em qualquer caso, deve operar-se a redução do contrato de seguro, no sentido de se considerar que o valor do capital seguro é de € 7.000 ou igual ao valor que vier a apurar-se ter o veículo seguro.

Exercido o contraditório, e dispensada a audiência prévia, foi então proferido despacho saneador e fixado o valor da causa, após o que foi definido o objeto do litígio, com enunciação dos temas da prova, e admitidos os meios de prova.

Realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença, que decidiu o seguinte:

« (…)
Em face do exposto, o Tribunal, julgando a ação parcialmente provada e procedente, condena a Ré Y – Companhia de Seguros, S.A. a pagar ao Autor P. S. o seguinte:

a) o que vier a ser liquidado relativamente à perda total do veículo ligeiro de passageiros Ford Mustang, matrícula MH, decorrente do seu furto a 16/17 de Novembro de 2013, tendo em consideração o conteúdo dos pontos 6), 25), 26) e 28) da fundamentação de facto;
b) o que vier a ser liquidado relativamente ao valor correspondente a 41 dias de veículo de substituição, a calcular de acordo com os critérios plasmados nos pontos 9) e 11) da fundamentação de facto;
c) a quantia de € € 950,14, a título de estorno do prémio correspondente ao período entre 17 de Janeiro e 27 de Maio de 2014;
d) juros à taxa legal de 4% sobre as quantias aludidas em a), b) e c) supra, desde 19 de Janeiro de 2014 até integral e efetivo cumprimento;
e) a quantia de € 1.421,29 a título de restituição do prémio do semestre iniciado a 28 de Maio de 2014, acrescido de juros à taxa legal de 4% desde 23 de Novembro de 2016 até integral e efetivo cumprimento.

Custas a cargo do Autor e da Ré na proporção de 6/10 e 4/10, respetivamente.
Registe e notifique».

Inconformado, o autor apresentou-se a recorrer, pugnando no sentido da revogação da sentença, terminando as respetivas alegações com as seguintes conclusões (que se transcrevem):

«1.ª – Com todo o respeito (que é muito), o Autor não pode concordar com o decidido na sentença de que ora se recorre.
2.ª – Salvo melhor entendimento, da aplicação das normas e princípios jurídicos expostos pelo Autor e bem como na Jurisprudência infra citada, resulta que o presente recurso deverá ser considerado procedente, mesmo tendo por base a matéria de facto tal como decidida pelo Tribunal a quo.
3.ª – Não obstante assim ser, o Autor não pode deixar de impugnar, expressamente, a decisão da matéria de facto nas partes que não correspondem à verdade e que, segundo algumas interpretações do Direito aplicável (nomeadamente a realizada pelo Tribunal a quo), podem ter influência na solução jurídica do presente litígio.
4.ª – Com todo o respeito, o ora Recorrente considera que houve erro na decisão da matéria de facto, pois o Tribunal a quo não podia ter dado como provada a matéria factual constante no ponto 6 na parte “pelo preço de” e no ponto 24 na parte “dados expressamente indicados por este”.
5.ª – “o concreto valor pelo qual o veículo foi adquirido não constitui informação significativa para a apreciação do risco pelo segurador, por isso não sendo relevante para o valor a segurar” – Acórdão TRL, de 06-04-2017, processo n.º 1422/14.5TJLSB.L1-2, acessível em www.dgsi.pt.
6.ª – Na decisão de que ora se recorre, o Tribunal a quo entendeu que não era possível determinar o valor do veículo do Autor.
7.ª – No que refere a este ponto da matéria de facto, (não obstante a veracidade do seu depoimento, que sobressai inclusive de algumas dúvidas do Autor que demonstram que o mesmo não era ensaiado) tendo em conta as dificuldades inerentes da imediação e o facto de o meio provatório produzido corresponder a declarações de parte, o Autor não vem requerer que se dê, desde já, como provado que o veículo foi adquirido pelo valor de € 60.000,00 (apesar de isso corresponder à realidade).
8.ª – Na realidade, o que o Autor contesta é que se tenha dado como provado que o Mustang foi adquirido por € 29.763,50. Pois tal não corresponde à realidade dos factos.
9.ª – Atente-se que, conforme consta documentalmente dos autos (cfr. fls. 85 a 96) só a reparação dos danos que o veículo sofre na lateral esquerda e traseira foi avaliada em € 12.828,38…
10.ª – E que, com todo o respeito, a fatura não é meio suficiente para que se dê como provado, sem mais, o valor pelo qual o Autor adquiriu o veículo Mustang.
11.ª – Se na data da celebração do contrato de seguro, o veículo valesse apenas € 29.763,50 isso significaria que o Autor teria aceitado pagar um prémio (cerca de € 3.000,00) que correspondia a 10% do suposto valor do veículo. O que depois se ia repetindo, prémio após prémio…
12.ª – Ora, com todo o respeito, isso não faz qualquer sentido e viola as mais elementares regras da normalidade e da experiencia.
13.ª – Aliás, com todo o respeito, dar como provado que o Autor adquiriu o Mustang em questão “pelo preço de” € 29.763,50 corresponde a inserir conceitos jurídicos na matéria de facto. O que não se pode aceitar.
14.ª – E como (ao não valorar as declarações do Autor) o Tribunal a quo não tinha prova suficiente para dar como provado a matéria atinente ao modo de pagamento e à quantia que o Autor entregou ao stand onde adquiriu o veículo, o que deveria ter dado como provado (e que, aliás, é verdade) era que:
“6. O veículo identificado em 1), a gasolina, com 4.600 cc, foi adquirido pelo Autor em 4 de Agosto de 2010, tendo sido emitida uma fatura no valor de € 29.763,50 [resposta ao artigo 13º da petição inicial]”.
15.ª – Devendo a douta sentença de que ora se recorre ser anulada/revogada e substituída por decisão que, alterando a decisão da matéria de facto, dê como provado que:
6. O veículo identificado em 1), a gasolina, com 4.600 cc, foi adquirido pelo Autor em 4 de Agosto de 2010, tendo sido emitida uma fatura no valor de € 29.763,50 [resposta ao artigo 13º da petição inicial].
16.ª – Por outro lado, mais relevante do que saber quem indicou inicialmente o valor segurado (que, conforme infra expomos, foi a Ré) é que foi celebrado pelas partes – através de declarações de vontade claramente expressas – um contrato de seguro que foi pontualmente cumprido pelo Autor e acerca do qual a Ré nunca levantou qualquer questão, inclusive quanto ao valor segurado, sobre o qual a mesma inclusive realizou actualizações (quer antes, quer depois do sinistro).
17.ª – A prova apresentada nos presentes autos e produzida em sede de audiência de julgamento não permitia dar como provada, a parte do ponto 24: “dados expressamente indicados por este”.
18.ª – Conforme supra se transcreve, em sede de audiência de julgamento a testemunha da Ré J. M. (que foi o pessoa que interagiu directamente com o Autor na celebração do seguro in casu) inclusive disse que o valor do capital seguro “foi proposto pela companhia” de seguros, ou seja pela Ré.
19.ª – Contudo, o Tribunal a quo acabou por dar mais credibilidade a umas declarações (a fls. 321) desta testemunha realizadas sem a presença do Autor, ou de qualquer entidade minimamente imparcial e relativamente às quais a testemunha tentou avisar o Tribunal a quo acerca da forma como as mesmas tinham sido realizadas, ao dizer que as mesmas foram ditadas por um perito da Ré.
20.ª – Por outro lado, na proposta junta como documento n.º 1, da contestação, no que diz respeito à cobertura “Furto ou Roubo”, constam três asteriscos (ou seja “***”), sendo que no fundo da proposta na legenda dos “***” a Ré declara, expressamente, que:
“o capital seguro corresponde ao valor atual do veículo, em conformidade com o previsto na tabela de desvalorização constante das Condições Contratuais”.
21.ª – Acrescendo que a receção de uma proposta ou declaração inicial é um uma coisa e a sua aceitação é outra.
22.ª – Sendo que, in casu, o contrato foi outorgado mediante declaração de vontade expressa da Ré, que declarou/acordou celebrar o mesmo com um capital segurado (ou seja o valor atribuído ao veículo) de € 75.000,00.
23.ª – E não deixa de ser revelador que apesar de na parte da proposta “INDICAÇÕES EVENTUAIS” constar manuscrito “conforme documentos anexos”, na sua contestação a Ré tenha juntado (como documento n.º 1) a referida proposta desacompanhada desses documentos anexos.
24.ª – Acresce que em tal proposta também consta “VISTORIA DO VEÍCULO IDENTIFICADO NESTA PROPOSTA PARA SUBSCRIÇÃO DAS COBERTURAS DE DANOS PRÓPRIOS” [maiúsculas no original]. Constando em tal parte da proposta um “x” e um “” indicando e confirmando que “o veículo não apresenta qualquer dano, nomeadamente ao nível da carroçaria e vidros, sendo bom o seu estado”.
25.ª – Conforme é sabido, normalmente, a atribuição do valor dos veículos é atribuída/controlada por programas informáticos das seguradoras que, indicando os parâmetros do veículo, lhe atribuem um valor. E quando a veículos especiais (como o Mustang dos presentes autos) que não aparece em tais programas informáticos, as empresas de seguros verificam o veículo e atribuem-lhe um valor.
26.ª – E, in casu, conforme resulta da referida proposta, do depoimento de J. M. e das declarações do Autor, o colaborador J. M. foi verificar se o veículo estava em boas condições e tirou-lhe fotografias.
27.ª – Sendo que, com todo o respeito, mesmo que se considerasse que teria sido o Autor quem indicou o valor do veículo (o que não aconteceu) nem sequer seria ponderável pelas regras da normalidade e da experiencia que uma empresa de seguros atribuísse um seguro por danos próprios no valor de € 75.000,00 sem sequer ter verificado as condições do veículo e se o valor que lhe é atribuído é minimamente razoável.
28.ª – Pelo que, ao ter dado como provado no ponto 24 que “[posteriormente], o colaborador identificado em 21) deslocou-se propositadamente à Póvoa de Lanhoso para preenchimento e assinatura da proposta pelo Autor, constando da mesma dados expressamente indicados por este, designadamente, o capital de € 75.000 [resposta aos artigos 7º a 9º da contestação], o Tribunal a quo incorreu em erro na decisão da matéria de facto.
29.ª – Devendo a douta sentença de que ora se recorre ser anulada/revogada e substituída por decisão que, alterando a decisão da matéria de facto, dê como provado que:
24. “Posteriormente, o colaborador identificado em 21) deslocou-se propositadamente à Póvoa de Lanhoso para atestar as condições do veículo, tirar fotografias ao mesmo e recolher a assinatura da proposta pelo Autor, constando da mesma, designadamente, o capital de € 75.000”.
30.ª – Com todo o respeito, o ora Recorrente não pode concordar com o entendimento vertido na sentença de que ora de que não tendo ficado provado nos presentes autos o valor do Mustang, o mesmo terá que ser determinado em sede de liquidação de sentença.
31.ª – Tal como na situação dos presentes autos em que a cotação do Mustang não obedece a claras leis de mercado generalista, o mesmo acontecia relativamente o bem segurado (faqueiro antigo) nos Autos em que o Supremo Tribunal de Justiça, proferiu o seu Acórdão de 8 de Junho de 2017, tendo como Relator Abrantes Geraldes, que analisa a temática em questão de forma bastante esclarecedora e ajustada.
32.ª – E, também nos presentes autos, após ter sido celebrado o contrato de seguro, o Autor procedeu pontualmente ao pagamento dos respetivos prémios que a Ré calculou por referência ao valor do capital seguro. O que o Autor realizou não só nos cerca de dois anos anteriores ao furto do veículo, como nos dois anos seguintes (pois o Autor desejava e acreditava na recuperação do veículo pelas autoridades).
33.ª – E, também nos presentes autos o problema só surge quando – verificado (infelizmente) o sinistro – a Ré seguradora é chamada a pagar a indemnização contratada.
34.ª – De facto, se o Mustang nunca tivesse sido furtado, ainda hoje o Autor estaria, felizmente (diga-se), a pagar os prémios de seguro, sem que a Ré levanta-se qualquer problema quanto ao valor do veículo.
35.ª – Contudo, tendo acontecido o furto, a Ré já vem dizer que não irá proceder ao pagamento da indemnização tendo por base os valores com que vinha calculando e cobrando os prémios…
36.ª – Ora, tal como o Autor o fez, também a Ré deve cumprir a sua parte do contrato de seguro livremente celebrado entre as partes.
37.ª – Pelo que, tendo em conta o supra exposto, respeitando os princípios gerais de direito, nomeadamente o princípio da liberdade contratual e da boa-fé na celebração e cumprimento dos contratos (cfr. n.º 1, do artigo 227.º e n.º 2, do artigo 762.º, ambos do Código Civil), a Ré seguradora deve indemnizar o Autor com base no valor seguro que se mostra apurado à data do vencimento do prémio imediatamente anterior à ocorrência do sinistro, ou seja € 66.666,67.
38.ª – Acresce que, por tudo o acima e infra exposto, também se constata que a conduta da Ré é manifestamente abusiva e contraditória.
39.ª – De facto, conforme supra se expôs, antes de celebrar contrato de seguro com a Ré, o Autor deslocou-se a outras seguradoras que atribuíram ao veículo o valor de 75.000,00. E, tivesse a Ré informado que avaliava o Mustang em valor inferior a € 75.000,00, o Autor teria certamente optado por celebrar seguro com outra seguradora (nomeadamente a W).
40.ª – Sendo pacífico o valor atribuído ao Mustang, o Autor tendo em conta as regras da normalidade em seguros desta natureza, depositou a sua confiança na seguradora, criando a legítima espectativa de que o Mustang ficaria segurado por € 75.000,00.
41.ª – Confiança que o Autor manteve na Ré durante a duração do contrato de seguro em questão, pois sobre o capital seguro foram sendo feitas atualizações, quer antes, quer depois do furto, tendo sempre por referência o valor fixado na celebração do seguro.
42.ª – Conforme resulta provado nos pontos 1 a 3 da matéria de facto dada como provada, mesmo depois de o Mustang ter sido furtado, a Ré continuou a cobrar ao Autor (e este a pagar) prémios calculados tendo por base o capital segurado e respetivas atualizações.
43.ª – E, perante o não aparecimento do Mustang e a iminência de ter que proceder à prestação contratualizada, a Ré já vem sustentar que afinal o mesmo não vale o valor contratualizado…
44.ª – E a Ré chegou ao cúmulo de, ao mesmo tempo que recusa proceder ao pagamento da prestação a que está vinculada, recusa-se a devolver os prémios de seguro que recebeu após o furto do Mustang…
45.ª – Pelo que, conforme supra exposto, também in casu, a atuação da seguradora é violadora do princípio da boa-fé (cfr. n.º 1, do artigo 227.º e n.º 2, do artigo 762.º, ambos do Código Civil).
46.ª – Devendo, também com o fundamento da conduta abusiva da Ré, a sentença de que ora se recorre ser revogada e substituída por decisão que condene a Ré a indemnizar o Autor com base no valor seguro que se mostra apurado à data do vencimento do prémio imediatamente anterior à ocorrência do sinistro, ou seja € 66.666,67.
47.ª – Por outro lado, conforme é jurisprudência maioritária do Tribunais superiores, é sobre a Ré seguradora que recai o ónus de provar que o valor do interesse seguro é inferior ao do capital seguro.
48.ª – Conforme supra se expõe – não se tendo valorado nesta parte as declarações do Autor – não existe prova suficiente nos presentes autos acerca do valor de aquisição do Mustang.
49.ª – E, por isso, o Tribunal a quo deu como não provados os factos alegados no artigo 24.º da contestação da Ré. Artigo 24.º da contestação, no qual a Ré alegou sem ter conseguido provar (nem podia) o suposto valor inferior do Mustang.
50.ª – Pelo que – para dos restantes fundamentos supra exposto – também por a Ré não ter provado que o valor segurado era superior ao valor do Mustang devia a mesma ter sido condenada a indemnizar o Autor com base no valor seguro que se mostra apurado à data do vencimento do prémio imediatamente anterior à ocorrência do sinistro.
51.ª – Aliás, esta solução vai de encontro às necessidades de proteção do consumidor previstas no do Decreto-lei n.º 214/97 de 16 de Agosto.
52.ª – Ora, in casu, estando provada a existência do seguro facultativo (danos próprios) bem como a perda total, o Autor deverá ser a indemnizado pelo valor seguro, tal como este diploma legal visa garantir.
53.ª – Sendo que ao não decidir assim, o Tribunal a quo incorreu em erro em matéria de Direito, devendo a sentença de que ora se recorre ser revogada e substituída por decisão que condene a Ré a indemnizar o Autor com base no valor seguro que se mostra apurado à data do vencimento do prémio imediatamente anterior à ocorrência do sinistro, ou seja € 66.666,67.
54.ª – Por outro lado, com todo o respeito e salvo melhor entendimento, o Tribunal a quo poderia ter decidido o valor da indemnização correspondente aos “41 dias de veículo de substituição” com recurso à equidade.
55.ª – Pelo que, também no que refere a esta matéria não há necessidade de relegação da determinação da indemnização para um incidente de liquidação de sentença.
56.ª – Devendo, a sentença de que ora se recorre ser revogada e substituída por decisão que, condene, com recurso à equidade, a Ré a indemnizar o Autor pela violação do dever de lhe disponibilizar um veículo de substituição (e a inerente privação do uso), no valor diário de € 100,00 que, tendo em conta os 41 dias, totaliza o valor de € 4.100,00.
57.ª – Por outro lado, sem prescindir e subsidiariamente ao supra exposto, mesmo que se entendesse ser de determinar o valor do Mustang (e consequentemente da indemnização a pagar pela Ré) em sede de liquidação (com o que não se concorda e se expõe subsidiariamente por dever de patrocínio), tal liquidação não poderia estar limitada pelo valor da aquisição do veículo e também teria que ser liquidado o valor que a Ré teria a devolver a título de prémios que a mesma teria cobrado em excesso.
58.ª – Em suma, deverá a sentença de que ora se recorre ser revogada e substituída por decisão que condene a Ré a indemnizar o Autor:
a) pela perda total do Mustang, com base no valor seguro que se mostra apurado à data do vencimento do prémio imediatamente anterior à ocorrência do sinistro, ou seja € 66.666,67;
b) pela violação do dever de lhe disponibilizar um veículo de substituição (e a inerente privação do uso), no valor diário, fixado com recurso à equidade, em € 100,00 que tendo em conta os 41 dias totaliza o valor de € 4.100,00;
c) a título de estorno dos prémios correspondentes ao período entre 17 de Janeiro e 27 de Maio de 2014, a quantia de € € 950,14;
d) a título de juros à taxa legal de 4% sobre as quantias aludidas em a), b) e c) supra, desde 19 de Janeiro de 2014 até integral e efetivo cumprimento;
e) a título de restituição do prémio do semestre iniciado a 28 de Maio de 2014, acrescido de juros à taxa legal de 4% desde 23 de Novembro de 2016 até integral e efetivo cumprimento, a quantia de € 1.421,29.
59.ª – E, ainda que assim não se entende-se (o que ora se coloca subsidiariamente por dever de patrocínio), sempre deveria a sentença de que ora se recorre ser revogada e substituída por decisão que – para além das quantias constantes nas alíneas c), d) e e) supra – condenasse a Ré a pagar ao Autor: o valor do Mustang, matrícula MH, que vier a ser liquidado (sem estar limitado pelo valor de aquisição ou faturação), relativamente à sua perda total, decorrente do seu furto a 16/17 de Novembro de 2013; o que vier a ser liquidado relativamente ao valor correspondente a 41 dias de veículo de substituição; e o que ser liquidado do valor que a Ré tem de devolver a título de prémios cobrados em excesso.

Nestes termos e nos mais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente recurso ser considerado procedente, revogando-se a sentença ora recorrida, substituindo-a por decisão que, alterando a decisão da matéria de facto nos termos supra expostos, condene a Ré a indemnizar o Autor: a) pela perda total do Mustang, com base no valor seguro que se mostra apurado à data do vencimento do prémio imediatamente anterior à ocorrência do sinistro, ou seja € 66.666,67; b) pela violação do dever de lhe disponibilizar um veículo de substituição (e a inerente privação do uso), no valor diário, fixado com recurso à equidade, em € 100,00 que, tendo em conta os 41 dias, totaliza o valor de € 4.100,00; c) a título de estorno dos prémios correspondentes ao período entre 17 de Janeiro e 27 de Maio de 2014, a quantia de € € 950,14; d) a título de juros à taxa legal de 4% sobre as quantias aludidas em a), b) e c) supra, desde 19 de Janeiro de 2014 até integral e efectivo cumprimento; e) a título de restituição do prémio do semestre iniciado a 28 de Maio de 2014, acrescido de juros à taxa legal de 4% desde 23 de Novembro de 2016 até integral e efectivo cumprimento, a quantia de € 1.421,29.

Ou, caso assim não se entenda (o que ora se coloca subsidiariamente por dever de patrocínio), sempre deveria a sentença de que ora se recorre deve ser revogada e substituída por decisão que, alterando a decisão da matéria de facto nos termos supra expostos, – para além das quantias constantes nas alíneas c), d) e e) supra – condenasse a Ré a pagar ao Autor: o valor do Mustang, matrícula MH, que vier a ser liquidado (sem estar limitado pelo valor de aquisição ou faturação), relativamente à sua perda total, decorrente do seu furto a 16/17 de Novembro de 2013; o que vier a ser liquidado relativamente ao valor correspondente a 41 dias de veículo de substituição; e o que ser liquidado do valor que a Ré tem de devolver a título de prémios cobrados em excesso.
Fazendo-se Justiça».

A ré apresentou contra-alegações, sustentando a improcedência do recurso interposto e a consequente manutenção do decidido.

II. Delimitação do objecto do recurso

Face às conclusões das alegações da recorrente e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso - artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC) -, o objeto do presente recurso circunscreve-se às seguintes questões:

A) Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
B) Reapreciação jurídica da causa: verificados que se mostram os pressupostos da obrigação de indemnizar por parte da apelada, importa aferir qual o valor a atender na fixação da indemnização a pagar pela ré/seguradora; se deve relegar-se para posterior liquidação o montante da indemnização a atribuir ao autor/recorrente.
Corridos os vistos, cumpre decidir.

III. Fundamentação

1. Os factos

1.1.Os factos, as ocorrências e elementos processuais a considerar na decisão deste recurso são os que já constam do relatório enunciado em I. supra relevando ainda os seguintes factos considerados provados pela 1.ª instância na decisão recorrida:
1.1.1. Por escrito titulado pela apólice nº 0045.11.038597 Autor e Ré acordaram na transferência para a segunda, desde 19 de Dezembro de 2011, da responsabilidade decorrente da circulação do veículo ligeiro de passageiros Ford Mustang, matrícula MH, até ao montante de € 50.000.000, prevendo, também, coberturas, entre outras, de furto ou roubo, pelo capital de € 75.000, mediante o pagamento de contrapartida de € 2.581,80, a realizar com a periodicidade semestral [alínea A) do despacho em referência e documento de fls. 54 vº e 55].

1.1.2. A Ré comunicou ao Autor que o prémio anual “danos próprios”:
- para o período de 28 de Maio de 2013 a 27 de Novembro de 2013 era de € 2.069,60, correspondendo ao capital de € 66.666,67;
- para o período de 28 de Novembro de 2013 a 27 de Maio de 2014 era de € 2.030,66, correspondendo ao capital de € 58.333,34;
- para o período de 27 de Novembro de 2014 a 27 de Maio de 2015 era de € 2.178,25, correspondendo ao capital de € 52.083,34 [alínea B) do despacho em referência e documentos de fls. 11 e 12].

1.1.3. O Autor pagou a contrapartida de € 1.421,29 referente ao período de 28 de Novembro de 2013 a 27 de Maio de 2014 e idêntico montante para o período de 28 de Maio a 27 de Novembro de 2014 [alínea C) do despacho em referência].

1.1.4. Em 17 de Novembro de 2013 o Autor apresentou, no Comissariado da Polícia Central de Nice, queixa contra desconhecidos pelo furto do veículo identificado em 1) declarando que o mesmo, entre as 18h00 do dia 16 e as 10h30 desse dia, havia desaparecido da Rua ..., em Nice (Alpes Marítimos) [resposta ao artigo 9º da petição inicial].

1.1.5. Em 2 de Outubro de 2014, após investigações infrutíferas, a entidade policial remeteu o processo ao Ministério Público de Nice [resposta ao artigo 10º da petição inicial].

1.1.6. O veículo identificado em 1), a gasolina, com 4.600 cc, foi adquirido pelo Autor em 4 de Agosto de 2010, pelo preço de € 29.763,50 [resposta ao artigo 13º da petição inicial].

1.1.7. O Autor deixou de dispor do Ford Mustang desde a data referida em 4) [resposta aos artigos 12º, 20º da petição inicial].

1.1.8. O Autor comunicou à Ré o desaparecimento do veículo [resposta ao artigo 15º da petição inicial].

1.1.9. Nas condições particulares da apólice ficou estabelecida a cobertura “veículo de aluguer” com os capitais indicados nas condições gerais [resposta ao artigo 22º da petição inicial].

1.1.10. Nas condições gerais da apólice, a cobertura aludida em 9) tem a seguinte definição “veículo cujo aluguer é efetuado através da requisição emitida pelo Segurador destinado a substituir o veículo seguro durante o período da sua imobilização e/ou reparação, quer em caso de perda parcial, quer em caso de perda total” [resposta ao artigo 22º da petição inicial].

1.1.11. No artigo 2.º das condições gerais da apólice, relativamente à cobertura referida em 9), ficou previsto que:
a) a Ré facultaria o aluguer de um veículo de substituição pelo período de imobilização e/ou reparação do veículo seguro sinistrado em caso de perda parcial ou necessário à aquisição de um veículo novo pelo segurado, em caso de perda total, com o limite máximo de 30 dias por anuidade;
b) em caso de furto ou roubo, o período de desaparecimento do veículo, após participação às autoridades, era equiparado à sua imobilização;
c) por ter sido subscrito o “...”, o veículo a alugar teria como limite a classe C das empresas de aluguer se o capital seguro no início da anuidade em curso, constante do aviso recibo fosse igual ou inferior a € 15.000 ou veículo familiar da gama média se o capital seguro fosse superior a € 15.000 [resposta ao artigo 22º, 23º da petição inicial].

1.1.12. A Ré não entregou ao Autor um veículo de substituição [resposta ao artigo 24º da petição inicial].

1.1.13. Ficou previsto nas condições gerais da apólice referida em 1) que a Ré se obrigava a pagar a indemnização por furto/roubo decorridos 60 dias sobre a data da participação da ocorrência à autoridade competente se, ao fim desse período, o veículo não tivesse sido encontrado [resposta ao artigo 20º da petição inicial].

1.1.14. O Autor tinha prazer na condução e exibição do Ford Mustang [resposta ao artigo 27º da petição inicial].

1.1.15. Pretendia participar com o MT no passeio comemorativo do 50º aniversário do Ford Mustang agendado para 5 e 6 de Abril de 2014 [resposta ao artigo 28º da petição inicial].

1.1.16. Por si e através do seu Advogado o Autor insistiu pela prestação de informações pela Ré sobre o andamento do processo de averiguação, designadamente por correio eletrónico de 6 de Março de 2014 [resposta ao artigo 36º da petição inicial].

1.1.17. As comunicações referidas em 16) foram encaminhadas para o gabinete de gestão de reclamações/qualidade da Ré onde foram tratadas com a referência GQL 2014030000… [resposta ao artigo 37º da petição inicial].

1.1.18. Em 17 de Março de 2014 o gabinete aludido em 17) remeteu email ao Mandatário do Autor comunicando que a Ré estava a finalizar a instrução do processo, prevendo ter uma decisão sobre o sinistro nos dias subsequentes [resposta ao artigo 39º da petição inicial].

1.1.19. Perante a ausência de informações posteriores, em Abril de 2014 o Mandatário do Autor apresentou ao Instituto de Seguros de Portugal reclamação contra a Ré [resposta ao artigo 38º da petição inicial].

1.1.20. Em 5 de Maio de 2014, o gabinete aludido em 17) remeteu email ao Mandatário do Autor apresentando desculpas pelo descontentamento e informando que o agendamento de reunião não se concretizara por não ter havido retorno sobre o pedido da sua calendarização e que a Ré continuava a aguardar o agendamento dessa reunião com o perito averiguador [res-posta ao artigo 40º da petição inicial].

1.1.21. A proposta de seguro que deu origem à apólice identificada em 1) foi encaminhada para a Ré pela mediadora C. C., tendo sido transmitida pelo colaborador desta, J. M. [resposta aos artigos 3º, 4º da contestação].

1.1.22. A mediadora identificada em 21) foi contactada telefonicamente pelo Autor por indicação do seu irmão L. G. [resposta ao artigo 5º da contestação].

1.1.23. Na sequência do primeiro contacto telefónico, o Autor enviou à mediadora os documentos do veículo [resposta ao artigo 6º da contestação].

1.1.24. Posteriormente, o colaborador identificado em 21) deslocou-se propositadamente à Póvoa de Lanhoso para preenchimento e assinatura da proposta pelo Autor, constando da mesma dados expressamente indicados por este, designadamente, o capital de € 75.000 [resposta aos artigos 7º a 9º da contestação].

1.1.25. O veículo MH foi importado pelo Autor em Agosto de 2011, em estado de usado, mediante processo organizado pela Alfândega de Braga, a que correspondeu a declaração aduaneira de veículo nº 2011/5155.6 de 19 de Agosto de 2011 [resposta ao artigo 19º da contestação].

1.1.26. Trata-se de um veículo construído em 2005 tendo a primeira matrícula em França com o nº … em Dezembro desse ano [resposta aos artigos 20º e 21º da contestação].

1.1.27. No processo identificado em 25) o Autor declarou que o valor do veículo era de € 7.000 [resposta aos artigos 22º, 25º da contestação].

1.1.28. Em Maio de 2011, ainda com matrícula francesa, o veículo foi interveniente num acidente tendo sido reparado na oficina de J. V., denominada “… Car” sita na Travessa do …, pavilhão …, …, Póvoa de Lanhoso [resposta ao artigo 23º da contestação].

1.2. O Tribunal recorrido considerou não provados os factos alegados:
- nos artigos 2.º, 41.º da petição inicial;
- nos artigos 10.º, 24.º da contestação.

2. Apreciação sobre o objeto do recurso

2.1. Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto

O autor/apelante impugna a decisão relativa à matéria de facto incluída na sentença recorrida, alegando para o efeito, e em síntese, o seguinte:

i) O Tribunal a quo não podia ter dado como provada a matéria factual constante no ponto 6 dos factos provados na parte «pelo preço de», devendo tal ponto ser alterado, passando a ter a redação seguinte:

«O veículo identificado em 1), a gasolina, com 4.600 cc, foi adquirido pelo autor em 4 de agosto de 2010, tendo sido emitida uma fatura no valor de € 29.763,50».

ii) O Tribunal a quo não podia ter dado como provada a matéria factual constante no ponto 24 dos factos provados na parte « dados expressamente indicados por este», devendo tal ponto ser alterado, passando a ter a redação seguinte:

«Posteriormente, o colaborador identificado em 21) deslocou-se propositadamente à Póvoa de Lanhoso para atestar as condições do veículo, tirar fotografias ao mesmo e recolher a assinatura da proposta pelo Autor, constando da mesma, designadamente, o capital de € 75.000».

Tal como resulta da análise conjugada do disposto nos artigos 639.º e 640.º do CPC, os recursos para a Relação tanto podem envolver matéria de direito como de facto, sendo este último o meio adequado e específico legalmente imposto ao recorrente que pretenda manifestar divergências quanto a concretas questões de facto decididas em sede de sentença final pelo Tribunal de 1.ª instância que realizou o julgamento, o que implica o ónus de suscitar a revisão da correspondente decisão.

A impugnação da decisão relativa à matéria de facto obedece a determinadas exigências. Neste domínio, o artigo 640.º do CPC, prevê diversos ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, prescrevendo o seguinte:

«Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto

1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.

3 - O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º».

No caso vertente, verifica-se pela análise das alegações apresentadas pelo recorrente que este indica os concretos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados, nos termos enunciados supra.

Mais se verifica que o apelante especifica suficientemente a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre os pontos da impugnação da matéria de facto, tal como também decorre do anteriormente enunciado em i) e ii).

Por último, verifica-se que o apelante também especificou os concretos meios probatórios que, no seu entender, determinam uma decisão diversa da proferida, indicando os elementos que permitem minimamente a sua identificação, incluindo as concretas passagens da gravação em que baseia a discordância no que concerne aos meios de prova gravados, referenciando as passagens da gravação dos depoimentos prestados em sede de audiência final que considera pertinentes com transcrição dos excertos pertinentes.

Nestes termos, considera-se suficientemente cumprido o ónus imposto pelo artigo 640.º do CPC.

Resulta do disposto no artigo 662.º, n.º 1, do CPC, com a epígrafe Modificabilidade da decisão de facto, que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.

Tal como ressalta do preceito legal antes citado, a reapreciação da decisão proferida sobre determinados pontos da matéria de facto deve ter a mesma amplitude que o julgamento efetuado em 1.ª instância, dispondo para tal a Relação de autonomia decisória de forma a assegurar o duplo grau de jurisdição.

A este propósito, refere António Santos Abrantes Geraldes(1) que, «(…) sem prejuízo do ónus de impugnação que recai sobre o recorrente e que está concretizado nos termos previstos no art. 640º, quando estejam em causa a impugnação de determinados factos cuja prova tenha sido sustentada em meios de prova submetidos à livre apreciação, a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência.

(…) a Relação deve assumir-se como verdadeiro tribunal de instância e, por isso, desde que, dentro dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivo para tal, deve introduzir as modificações que se justificarem».

Isto mesmo tem vindo a ser sublinhado pelo Supremo Tribunal de Justiça, conforme resulta do sumário do Ac. do STJ de 24-09-2013 (relator: Azevedo Ramos) (2):

«I - Ao afirmar que a Relação aprecia as provas, atendendo a quaisquer elementos probatórios, o legislador pretende que a Relação faça novo julgamento da matéria de facto impugnada, vá à procura da sua própria convicção, assim se assegurando o duplo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto em crise.
II - A reapreciação da prova pela Relação (…), tem a mesma amplitude de poderes que tem a 1.ª instância.
III - A Relação não pode remeter para o juízo de valoração da prova feito na 1.ª instância, pois tem de fazer, com autonomia, o seu próprio juízo de valoração que pode ser igual ao primeiro ou diferente dele.
(…)».

Cumpre, assim, proceder à reapreciação da decisão proferida pela 1.ª instância relativamente à factualidade impugnada pelo recorrente.

Analisando a decisão recorrida, verifica-se que os concretos pontos da matéria de facto que o apelante considera incorretamente julgados têm a seguinte redação:

i) O veículo identificado em 1), a gasolina, com 4.600 cc, foi adquirido pelo Autor em 4 de Agosto de 2010, pelo preço de € 29.763,50 (ponto 6 dos factos provados);
ii) Posteriormente, o colaborador identificado em 21) deslocou-se propositadamente à Póvoa de Lanhoso para preenchimento e assinatura da proposta pelo autor, constando da mesma dados expressamente indicados por este, designadamente, o capital de € 75.000 (ponto 24 dos factos provados).

Começando pela matéria enunciada em i), sustenta o apelante, além do mais, que o concreto valor pelo qual o veículo foi adquirido não constitui informação significativa, não relevando para o valor a segurar. Ainda assim, e apesar de alegar que a referência à aquisição do veículo «pelo preço de» corresponde a conceito jurídico, sustenta que deve ser alterada parcialmente a correspondente matéria de facto por entender que a decisão proferida a propósito não corresponde à realidade e ponderando a eventual influência na solução jurídica do litígio, tanto mais que o Tribunal a quo entendeu que não era possível determinar o valor do veículo do autor na altura do sinistro.

A sentença recorrida não esclarece expressamente qual o valor probatório do facto em causa, ainda que resulte implícito do teor da alínea a) do dispositivo da sentença (na parte em que relegou a determinação do valor da perda total do veículo para o que vier a ser liquidado) ser o preço de aquisição do veículo um dos elementos que o Tribunal a quo considera pertinentes para o cálculo do aludido valor. Mais resulta do segmento final do impugnado ponto 6 dos factos provados que tal matéria foi enunciada em resposta ao artigo 13.º da petição inicial.

Analisando o teor da petição inicial facilmente se verifica que a circunstância atinente ao preço de aquisição do veículo não consta do ponto 13.º do aludido articulado. Trata-se, assim, de matéria que não foi alegada pelas partes, concretamente pelo autor. Deste modo, ainda que se entenda que a circunstância atinente ao “preço” do veículo constitui, manifestamente, expressão de uso corrente, como tal inteiramente compreensível no contexto da restante matéria de facto, podendo como tal integrar a fundamentação de facto da sentença à luz das regras vinculativas extraídas do direito probatório material, cumpre averiguar se tal facto, aditado pelo Tribunal a quo à matéria de facto provada, se inclui nos poderes de cognição daquele Tribunal em matéria de facto.

Sob a epígrafe «Ónus de alegação das partes e poderes de cognição do tribunal», dispõe o artigo 5.º do CPC, no n.º 1, o seguinte: «Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas; acrescenta o n.º 2 que: Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz: a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa; b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar; c) Os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções».

Decorre deste regime que se incluem nos poderes de cognição do tribunal determinados factos não alegados pelas partes nos respetivos articulados: os factos instrumentais que resultem da instrução da causa; os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar; os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.

Explica Lopes do Rego (3), em anotação ao artigo 264.º do anterior Código de Processo Civil, a qual se mantém atual na parte relativa à qualificação dos factos - que o regime se baseia numa fundamental distinção entre factos essenciais e factos instrumentais, esclarecendo, a propósito, o seguinte: «Os factos essenciais são os que concretizando, especificando e densificando os elementos da previsão normativa em que se funda a pretensão do autor ou do reconvinte, ou a excepção deduzida pelo réu como fundamento da sua defesa, se revelam decisivos para a viabilidade ou procedência da acção, da reconvenção ou da defesa por excepção, sendo absolutamente indispensáveis à identificação, preenchimento e substanciação das situações jurídicas afirmadas e feitas valer pelas partes. Os factos instrumentais destinam-se a realizar a prova indiciária dos factos essenciais, já que através deles se poderá chegar, mediante presunção judicial, à demonstração dos factos essenciais correspondentes - assumindo, pois, em exclusivo uma função probatória e não uma função de preenchimento e substanciação jurídico-material das pretensões e da defesa».

Ora, mesmo à luz do entendimento vertido na decisão recorrida, afigura-se manifesto que o facto atinente ao preço de aquisição do veículo matrícula MH (doravante designado apenas por MH) não permite configurar um facto essencial no contexto do objeto da presente ação, posto que se assim não fosse não teria o Tribunal a quo necessidade de relegar a fixação do valor da prestação a fixar em posterior liquidação, nos termos do artigo 609.º, n.º 2, do CPC. É certo que se consignou na sentença recorrida que o valor a tomar em consideração na determinação da indemnização em caso de perda total deve partir do preço pago em agosto de 2010, pela aquisição. Porém, analisadas as questões essenciais que foram vertidas no ponto II (i) dos temas da prova, atinente às «Circunstâncias relacionadas com o valor do MH», observa-se que figuraram apenas as questões atinentes ao acordo quanto ao valor do capital a segurar (artigos 2.º e 3.º da petição inicial; artigos 3.º a 9.º da contestação) - por um lado - e, por outro, as circunstâncias que se reportavam ao valor real do veículo, tal como alegadas em sede de contestação pela ré/recorrida, e não ao preço de aquisição do veículo (artigos 19.ª a 24.º da contestação). E compreende-se que assim seja porquanto o valor pelo qual um veículo é adquirido não pode deixar de configurar apenas um mero indicador, mais ou menos seguro, para se poder alcançar o valor efetivo do dano. Assim, tal como se salienta de forma elucidativa no Ac. TRL de 6-04-2017 (relatora: Maria Teresa Albuquerque) (4), «não será nunca o concreto valor pago pelo tomador de seguro que pode determinar o capital seguro, desde logo porque o veículo pode ter sido oferecido, pode ter sido adquirido por um preço mais baixo do que o comercial (por ex em campanhas promocionais), ou pode ter sido adquirido por um preço superior ao do seu valor comercial (por ex quando comprado em segundo mão). Ou pode ter sido adquirido no estrangeiro, por um preço significativamente mais baixo para o comprador, mas em função de despesas e incómodos que o mesmo não queira repetir no caso de uma perda total», para concluir a propósito que «[o] concreto valor pelo qual o veículo foi adquirido não pode ser relevante para o valor a segurar - e, tão pouco e, consequentemente, para o valor do objecto seguro após o sinistro» (5).

Daí que se conclua que o facto aditado pelo Tribunal a quo, atinente ao preço de aquisição do veículo MH, não segue o regime dos factos essenciais, podendo eventualmente servir para a formação da convicção sobre os demais factos. Neste enquadramento, e independentemente da relevância a atribuir a esse facto em sede de fundamentação de direito, admite-se que tal circunstância - ainda que não concretamente alegada pelas partes - possa fazer parte do elenco dos factos provados, desde que venha a ser efetivamente confirmada (atenta a impugnação deduzida), por permitir configurar um facto instrumental resultante da instrução da causa.

No que concerne à impugnação aludida em i) supra, reportada ao ponto 6.º dos “factos provados” - apenas quanto ao preço pelo qual foi o veículo MH foi adquirido pelo autor em 4 de Agosto de 2010, decorre da motivação da sentença recorrida que a decisão relativa à indicada matéria de facto se baseou, no essencial, no seguinte:

«Se é certo que o capital do seguro correspondeu a € 75.000 no momento da celebração do contrato, esse não é o valor do Ford Mustang pertencente ao Autor: o documento alusivo à sua aquisição indica o montante de € 29.763,50, não havendo senão as declarações de parte do demandante a indicar o valor de € 60.000, as quais não podem ser valoradas sem elementos objetivos que teriam de existir, como já referimos, designadamente, extrato bancário do qual resultasse a mobilização do montante em causa; um outro fator que nos leva a duvidar do valor indicado pelo demandante diz respeito à circunstância de o mesmo se encontrar desempregado no período da aquisição, com subsídio de desemprego que rondava € 1.904,10/1.967,57 por mês e a viver em França, onde o custo de vida é mais elevado; existe ainda a discrepância associada ao valor indicado no processo de atribuição da matrícula; assim, perante a fatura, não temos dúvida em fixar o valor da compra em € 29.763,50 como ficou a constar do ponto 6) da fundamentação de facto.»

Quanto à discordância manifestada relativamente a esta matéria, verifica-se que o recorrente alude ao depoimento do autor P. S., prestado em sede de audiência final no dia 31 de outubro de 2018, sustentando ainda que a fatura por este apresentada não é meio suficiente para que se dê como provado, sem mais, o valor pelo qual o autor adquiriu o veículo Ford Mustang. Invoca tudo aquilo que o autor narrou ao Tribunal que lhe aconteceu, ou seja, que o Stand onde comprou o veículo só aceitava faturar metade do preço do veículo, que é algo que também acontece em Portugal todos os dias, sendo ademais revelador do verdadeiro valor do veículo que o prémio pago pelo autor era de cerca de € 3.000,00 e, portanto, se na data da celebração do contrato de seguro, o veículo valesse apenas € 29.763,50 tal significaria que o autor teria aceitado pagar um prémio (cerca de € 3.000,00) que correspondia a 10% do suposto valor do veículo, o que depois se ia repetindo, prémio após prémio, o que não faz qualquer sentido e viola as mais elementares regras da normalidade e da experiencia. Acrescenta que o Tribunal a quo também não sabe com quem o autor vivia em França e partilhava as suas despesas nem se o autor poupou (e durante quanto tempo) para adquirir o referido veículo, não sendo raro o facto de muitos emigrantes portugueses em países como a França e a Suíça trabalharem muitas horas (às vezes com dois empregos) para obterem rendimentos elevados, poupando tudo o que podem, para depois adquirirem bens, sobretudo veículos automóveis para trazerem e mostrarem em Portugal. Sublinha ainda que para o autor receber um subsídio de desemprego de € 1.967,57 certamente o salário que auferia antes era bem superior a este valor, o qual duplicava nas férias e no natal. No que se refere ao valor atribuído para efeitos de atribuição de matrícula, para além de a DAV (declaração aduaneira de veículo) não ter sido preenchida pelo autor (como ressalta da própria letra), tal documento não é idóneo para a prova do valor da aquisição, o que, aliás, até resulta do valor ridículo em questão para a aquisição de um Mustang (€ 7.000,00). Por último, conclui que ao decidir não valorar o depoimento no autor na parte em que o mesmo expôs as quantias (em cheque e dinheiro) que entregou ao Stand, o Tribunal a quo não podia dar como provado qual o modo de pagamento e a quantia que o autor entregou ao Stand onde adquiriu o veículo pelo que não tinha prova suficiente para dar como provado tal matéria nos moldes que foram reproduzidos no ponto 6 dos factos provados.

No contexto probatório em apreciação estamos perante meios de prova sujeitos à livre apreciação do Tribunal. Assim, mesmo no que concerne ao depoimento do autor, verifica-se que as declarações prestadas pelo autor relativamente à matéria em apreciação não permitem consubstanciar qualquer confissão. Na verdade, reapreciado o depoimento e declarações de parte prestados pelo autor em sede de audiência não pode considerar-se confessado pelo autor o facto ora impugnado, na parte atinente ao preço de €29.763,50 que o Tribunal a quo considerou ter sido o valor pelo qual o autor adquiriu a viatura Ford Mustang, porquanto se verifica que, além de afirmar um facto pretensamente mais favorável à ré, nos termos do artigo 352.º do Código Civil (CC), a saber, que o Stand emitiu a fatura que juntou ao processo, no valor de € 29.763,50, e que tal valor terá sido pago por meio de cheque, igualmente afirmou que o Stand apenas emitiu fatura correspondente a metade do valor pago, sendo tal exigência feita pelo Stand que não queria faturar a outra metade do valor, a qual foi paga em dinheiro, afirmando em vários pontos do seu depoimento que o automóvel custou €60.000,00 facto que, no contexto da ação, é manifestamente favorável ao depoente, tornando ineficaz uma eventual confissão quanto ao valor de €29.763,50 à luz do princípio da indivisibilidade da confissão previsto no artigo 360.º do CC (6).

Nos termos do artigo 466.º, n.º 3, do CPC, o Tribunal aprecia livremente as declarações de parte, salvo se as mesmas constituírem confissão, afigurando-se manifesto que em tal valoração não poderá o Tribunal deixar de ter presente o manifesto interesse das partes no desfecho da lide. Neste quadro, importa confrontar as declarações prestadas pelas próprias partes com outros elementos de prova. E foi isso que fez o Tribunal a quo para concluir que «o documento alusivo à aquisição do veículo indica o montante de € 29.763,50, não havendo senão as declarações de parte do demandante a indicar o valor de € 60.000, as quais não podem ser valoradas sem elementos objetivos que teriam de existir, como já referimos, designadamente, extrato bancário do qual resultasse a mobilização do montante em causa; um outro fator que nos leva a duvidar do valor indicado pelo demandante diz respeito à circunstância de o mesmo se encontrar desempregado no período da aquisição, com subsídio de desemprego que rondava € 1.904,10/1.967,57 por mês e a viver em França, onde o custo de vida é mais elevado; existe ainda a discrepância associada ao valor indicado no processo de atribuição da matrícula».

Neste domínio, procedemos à audição integral da gravação do depoimento prestado pelo autor em sede de audiência, confirmando-se ainda que não foram apresentados no processo elementos de prova objetivos que permitissem considerar suficientemente demonstrado o valor de €60.000,00 que o autor alega ter pago pelo veículo MH. Complementarmente, cumpre ainda salientar que o autor aludiu de forma vaga à circunstância de ter pago em dinheiro o valor que não foi faturado pelo Stand, em Nice, França. Ora, atendendo à diferença entre o valor que consta da fatura de fls. 308 v.º, traduzida a fls. 309 (€ 29.763,50) e o valor que o autor alega ter pago pelo veículo MH (€60.000,00), revela-se manifesto que a entrega em dinheiro do remanescente que ficou por comprovar documentalmente não se revela minimamente verosímil à luz das mais elementares regras da experiência comum e segundo juízos de probabilidade e de normalidade social, visando concretizar as questões suscitadas, e segundo o princípio da livre apreciação da prova, atendendo ao valor substancial ainda em causa. Releva ainda a falta de qualquer justificação atendível para o facto de não pretendendo o Stand faturar parte do valor do veículo tenha, ainda assim, emitido uma fatura no valor de € 29.763,50 tal como se mostra documentado nos autos. É certo que as circunstâncias enunciadas na motivação da decisão da matéria de facto a propósito da situação de desemprego do autor no período da aquisição e da discrepância associada ao valor indicado no processo de atribuição da matrícula não se revelam decisivas para a delimitação do facto em causa, considerando que os fundamentos invocados a propósito das mesmas também são suscetíveis de relevar no juízo formulado a propósito do valor considerado pelo Tribunal a quo (€ 29.763,50). Porém, no confronto entre a versão apresentada pelo autor em sede de declarações de parte e o teor da fatura que foi junta pelo autor/recorrente na sequência de tal depoimento e no contexto das declarações por este prestadas, importa considerar que o referido documento, não tendo sido impugnado, faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, nos termos do artigo 376.º, n.º1, do CC, valendo como elemento de prova a ser valorado livremente pelo tribunal, em conjunto com as declarações de parte do autor.

Neste enquadramento, julgamos que o referido documento constitui um princípio de prova relevante que não foi credivelmente abalado por outros meios de prova, permitindo assim formular uma convicção idêntica à do Tribunal a quo no que concerne ao juízo de verosimilhança suficiente para sustentar uma adequada confirmação das questões de facto enunciadas no âmbito do ponto 6.º dos “Factos provados” - no que concerne ao preço pelo qual foi o veículo MH foi adquirido pelo autor em 4 de agosto de 2010 - devendo o mesmo manter-se na matéria de facto provada.

Pelo exposto, mostra-se acertada a apreciação efetuada pela 1.ª instância no que respeita ao facto enunciado no ponto 6 dos “Factos provados”, devendo o mesmo manter-se na matéria de facto provada.

Sustenta o apelante que o Tribunal a quo não podia ter dado como provada a matéria factual constante no ponto 24 dos factos provados na parte «dados expressamente indicados por este», devendo tal ponto ser alterado, passando a ter a redação seguinte: «Posteriormente, o colaborador identificado em 21) deslocou-se propositadamente à Póvoa de Lanhoso para atestar as condições do veículo, tirar fotografias ao mesmo e recolher a assinatura da proposta pelo Autor, constando da mesma, designadamente, o capital de € 75.000».

Relativamente a esta matéria, decorre da motivação da sentença recorrida que a decisão relativa à indicada matéria de facto se baseou, no essencial, no seguinte: «[n]o que tange ao valor do capital do seguro, temos o depoimento de J. M. prestado em sede de audiência e aquele que escreveu durante a averiguação, neste último caso, no sentido de ter sido o Autor a indicar o valor. Essa é a hipótese mais verosímil na medida em que o veículo em causa foi fabricado e teve a primeira matrícula em 2005, na data da celebração do contrato tinha 6 anos, sendo que a referida testemunha mencionou um único contacto com o Ford Mustang, coincidente com a assinatura da proposta pelo demandante, o que retira credibilidade à realização de uma eventual simulação para obter o seu valor de mercado (atualmente a … tem uma modalidade de avaliação que toma por referência o nº de chassis do veículo, mas à data não se encontrava disponível); a indicação do valor pelo Autor é mais consentânea com a existência de contactos telefónicos e os cuidados necessários a atestar o bom estado do veículo». A este propósito, verifica-se que o Tribunal a quo valorou essencialmente a «cópia das declarações de fls. 321, prestadas pela testemunha J. M., em 11 de Abril de 2014, com as quais foi confrontado e serviu para alicerçar a convicção na fixação dos pontos 21) a 24) da fundamentação de facto», enunciando ainda o seguinte, quanto ao depoimento prestado por esta testemunha: «J. M., marido da anterior, recordava-se do Ford Mustang, tendo sido o mediador do contrato de seguro (embora a esposa seja a responsável pela mediação, tiraram o curso juntos e à data encontrava-se grávida, não podendo fazer deslocações); tratou-se de um depoimento confuso e em contradição com as declarações de fls. 321, cuja letra e assinatura reconheceu como suas, particularmente, no que diz respeito à indicação do valor do seguro por referência ao do veículo que afirmou ter sido proposto pela Ré, quando naquele documento refere claramente que foi o Autor quem o indicou; mencionou que foi o único seguro de danos próprios de veículos usados que celebrou, tendo tirado fotografias e atestado que se encontrava em bom estado, referindo que o escritório de apoio ao mediador indicava a necessidade de atestar esse bom estado e levar câmara para tirar fotografias, recordando que o fez à beira da estrada; precisou que viu o veículo – no momento em que o fotografou – quando levou a proposta de seguro para o Autor assinar, já depois de o mesmo ter aprovado o valor do prémio (por sua vez, estranhou o montante – cerca de € 3.000 –, no entanto, o demandante disse que “quanto maior, melhor”), na sequência de simulação que não foi feita por si (implicitamente, atribuiu a sua realização a J. D., que seria a pessoa que inseria os dados no computador)».

Quanto à discordância manifestada relativamente a esta matéria verifica-se que o apelante pretende se reaprecie o depoimento da testemunha J. M., o que foi efetuado. Para o efeito, alude a diversas passagens do depoimento prestado em sede de audiência por esta testemunha para concluir que «o próprio colaborador da Ré que negociou o seguro in casu com o Autor quem referiu, em sede de audiência de julgamento, que foi a Ré quem indicou o valor do veículo na altura da celebração do contrato, valor que, neste tipo de seguro corresponde ao capital segurado (perda total do veículo). Sustenta ainda que «o Tribunal a quo acabou por dar mais credibilidade a umas declarações (a fls. 321) desta testemunha realizadas sem a presença do Autor, ou de qualquer entidade minimamente imparcial».

Por último, pretende ainda a reponderação do teor da proposta junta como documento n.º 1, da contestação, no que diz respeito à cobertura “Furto ou Roubo”, constam três asteriscos (ou seja “***”), sendo que no fundo da proposta na legenda dos “***” a Ré declara, expressamente, que: «o capital seguro corresponde ao valor atual do veículo, em conformidade com o previsto na tabela de desvalorização constante das Condições Contratuais», acrescendo que em tal documento consta ainda a referência a «VISTORIA DO VEÍCULO IDENTIFICADO NESTA PROPOSTA PARA SUBSCRIÇÃO DAS COBERTURAS DE DANOS PRÓPRIOS», constando em tal parte da proposta um “x” e um “✓” indicando e confirmando que «o veículo não apresenta qualquer dano, nomeadamente ao nível da carroçaria e vidros, sendo bom o seu estado», o que é consentâneo com o depoimento da testemunha J. M., sublinhando que conforme resulta da referida proposta, do depoimento de J. M. e das declarações do Autor, o colaborador J. M. foi verificar se o veículo estava em boas condições e tirou-lhe fotografias.

Com vista à reapreciação da matéria de facto agora em apreciação e a formar um juízo autónomo e fundamentado foram revistos e analisados os concretos meios probatórios indicados pelo recorrente bem como os indicados na motivação da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida. Concretamente, foi ouvida a gravação dos depoimentos do autor e da testemunha J. M., os quais foram devidamente enquadrados à luz dos documentos juntos aos autos, entre os quais, a proposta de seguro de fls. 45 a 47 e a cópia das declarações de fls. 321 - prestadas pela testemunha J. M., em 11 de abril de 2014 no âmbito do processo de averiguações instaurado pela ré/seguradora, ora recorrida, relativo ao sinistro em causa nos presentes autos. Analisámos ainda os depoimentos prestados pelas testemunhas J. A. - perito averiguador de uma empresa contratada pela ré/seguradora, tendo efetuado várias diligências após a participação do sinistro - e C. C. - mediadora de seguros - estas por terem sido instadas sobre circunstâncias relacionadas com a matéria impugnada.

Feita a reapreciação crítica e concatenação de todos os referidos meios de prova não se alcança fundamento suficiente para dar como provada a matéria que foi vertida no ponto 24.º dos “Factos provados”, no que concerne aos concretos aspetos agora em apreciação. E, neste domínio, tudo começa com a apreciação feita pelo Tribunal a quo a propósito do depoimento da testemunha J. M., relativamente ao qual se verifica ter aquele tribunal valorado essencialmente a «cópia das declarações de fls. 321, prestadas pela testemunha J. M., em 11 de abril de 2014», no processo de averiguações determinado pela ré/recorrida. Tais declarações serviram, como se viu, para alicerçar a convicção do Tribunal a quo, designadamente sobre a matéria vertida no ponto 24.º da matéria de facto provada. Ora, quanto a este ponto observa-se que o recorrente questiona a credibilidade conferida pelo Tribunal a quo a tais declarações, por terem sido realizadas sem a sua presença ou de qualquer entidade imparcial, sustentando, além do mais, o seguinte: «[a]liás, no que se refere a tais declarações percebe-se que - durante o seu depoimento - a testemunha tenta avisar o Tribunal a quo acerca da forma como as mesmas tinham sido realizadas, ao dizer que as mesmas foram ditadas por um perito da Ré.

O que tentou fazer sem se prejudicar pessoalmente, ou seja sem ter de admitir, em sede de audiência de julgamento, que tais declarações ditadas por um perito da Ré, não corresponderiam à verdade.

Contudo, o Tribunal a quo entendeu dar mais credibilidade a tais declarações que não foram prestadas na sua presença (pelo que, quanto à valoração das mesmas em segunda instância não se verificam as dificuldades inerentes à imediação)».

Reapreciada a prova testemunhal e documental produzida, através da audição integral da gravação do depoimento prestado pela testemunha J. M. em sede de audiência final e da ponderação do que consta do teor do documento junto aos autos a fls. 321 - apresentado como reproduzindo declarações prestadas pela mesma testemunha, J. M., em 11 de abril de 2014, no âmbito do processo de averiguações instaurado pela ré/seguradora, ora recorrida, relativo ao sinistro em causa nos presentes autos -, julgamos assistir razão ao recorrente na medida em que a ponderação do valor probatório de tal documento, nos termos que constam da motivação da decisão da matéria de facto constante da decisão recorrida, é suscetível de colidir com regras vinculativas extraídas do direito probatório (7). Na verdade, o referido documento escrito destina-se a reproduzir o depoimento de testemunha recolhido em sede de averiguação do sinistro, configurando-se assim como um depoimento testemunhal apresentado por escrito e não como um documento com relevo probatório autónomo. Ora, a prova testemunhal consiste num meio de prova legal, tal como previsto no artigo 392.º do CC, o qual está sujeito a um conjunto de normas que regulam o respetivo modo de produção em juízo, prevendo expressamente os atos a praticar para a sua utilização.

Neste domínio, cumpre salientar desde logo a regra que resulta do disposto no artigo 500.º do CPC nos termos do qual as testemunhas depõem na audiência final, presencialmente ou através de teleconferência, sujeito ao regime expressamente previsto no artigo 516.º do CPC, exceto nos casos também legalmente previstos e caso se verifiquem os necessários pressupostos, em qualquer caso sempre com observância dos formalismos também expressamente previstos nos correspondentes preceitos - cfr. os artigos 419.º, 420.º, 422.º, 502.º, 507.º, 508.º, 510.º, 511.º, 512.º, 513.º, 517.º, 518.º, 519.º e 520.º, todos do CPC.

Acresce que o artigo 421.º do CPC com a epígrafe «Valor extraprocessual das provas» enuncia expressamente os casos em que os depoimentos e perícias produzidos num processo com audiência contraditória da parte podem ser invocados noutro processo contra a mesma parte, o que não corresponde à situação agora em apreciação posto que o depoimento terá sido prestado perante o perito averiguador que procedeu à averiguação do sinistro por iniciativa e sob a responsabilidade da ré, ora recorrida.

Conforme se refere no Ac. TRP de 6-10-2014 (relatora: Maria José Costa Pinto) (8), «[o]s depoimentos prestados perante o perito averiguador que procedeu à averiguação do sinistro por incumbência da seguradora, constituem depoimentos testemunhais escritos que não têm valor probatório porque obtidos fora do condicionalismo prescrito no Código de Processo Civil». De forma idêntica, concluindo que os depoimentos produzidos perante alguém contratado por uma seguradora para fazer as averiguações de um acidente de viação não podem ser invocados num processo judicial, cfr. o Ac. TRL de 15-03-2012 (relator: Pedro Martins) (9).

Como tal, as declarações produzidas pela testemunha J. M. no âmbito do processo de averiguações instaurado pela ré/seguradora, ora recorrida, relativo ao sinistro em causa nos presentes autos, não podem ser invocadas nem valoradas no presente processo. Daqui resulta que as referidas declarações, reproduzidas no documento junto aos autos a fls. 321, não podiam servir para prova da matéria vertida no ponto 24.º da matéria de facto provada, agora impugnada pelo apelante.

Neste domínio, verifica-se que o Tribunal a quo desvalorizou o depoimento prestado pela testemunha J. M. em sede de audiência final por entender, no essencial, que se tratou de «um depoimento confuso e em contradição com as declarações de fls. 321, cuja letra e assinatura reconheceu como suas, particularmente, no que diz respeito à indicação do valor do seguro por referência ao do veículo que afirmou ter sido proposto pela Ré, quando naquele documento refere claramente que foi o Autor quem o indicou». Como tal, não podendo tal escrito ser valorado na decisão da matéria de facto, cumpre atender apenas aos restantes meios de prova disponíveis e que foram equacionados na decisão recorrida.

Depois de ouvirmos o depoimento prestado em audiência final pela testemunha J. M. - que foi quem tratou da mediação do contrato de seguro em causa nos presentes autos (embora fosse a esposa, aqui testemunha C. C., a responsável pela mediação, encontrava-se grávida, não podendo fazer deslocações) - verificamos que do mesmo efetivamente decorre que o valor seguro foi proposto pela companhia de seguros ou, pelo menos, indicado após análise e aprovação por parte desta, esclarecendo, além do mais, que a documentação do referido seguro foi emitida pelo escritório/balcão da companhia de seguros que apoiava a atividade do mediador, através do Sr. J. D., que era o seu contacto na seguradora, e que nem o cliente nem o mediador tinham autonomia para decidir os valores acordados, nem este último tinha acesso ao programa informático que permitia realizar as simulações dos valores dos veículos a segurar e o tratamento dos processos. Referiu que, depois de recebido o primeiro contacto do cliente interessado no seguro, a esposa solicitou os documentos e os dados relevantes da viatura por email, os quais foram encaminhados para o apoio/intermediário que tinham na seguradora, o referido Sr. J. D.. Mais decorreu do referido depoimento que só posteriormente, após análise dos elementos pelo responsável, que era o seu contacto na seguradora, é que foi emitida a proposta para o cliente assinar, após o que se deslocou à Póvoa do Lanhoso com a proposta do contrato para o cliente assinar. Referiu ainda que achava que quando levou a proposta para o cliente assinar já aquela continha o valor em causa. Esclareceu ainda que por indicação da seguradora tirou fotografias ao veículo, para atestar as perfeitas condições do veículo, que depois enviou para a seguradora.

No que respeita à testemunha C. C., decorre efetivamente do respetivo depoimento que acabou por não ter intervenção direta na contratação do seguro. Porém, com relevância para a matéria em apreciação, também esta testemunha confirmou que o Sr. J. D. era o seu intermediário na companhia de seguros e que este era funcionário da seguradora, orientando todos os seguros e clientes angariados pela declarante e dando todo o apoio nas simulações e no tratamento do processo. Esclareceu expressamente que o Sr. J. D. era funcionário da X e trabalhava num balcão da companhia de seguros em Valongo/Rio Tinto. Confirmou ser procedimento habitual enviar os dados dos veículos por email para o Sr. J. D. fazer a simulação dos valores dos veículos.

Note-se, por outro lado, que a testemunha J. A., perito averiguador de uma empresa contratada pela ré/recorrida acabou por referir desconhecer se o veículo em causa nos presentes autos estava ou não listado no sistema informático já existente e utilizado pela seguradora à data a que se reporta a proposta de seguro em causa nos presentes autos, confirmando que tal sistema permitia fazer a simulação do valor dos veículos tendo por base o modelo e o ano do veículo. Referiu ainda que, normalmente, os veículos estão todos “listados”.

Relativamente às declarações prestadas pelo autor P. S., confirma-se que referiu que foi a seguradora, através do mediador J. M. que lhe deu o valor do capital seguro ainda que em momento posterior do seu depoimento tenha admitido que pudesse na altura ter referido ou comentado com o mediador o valor da cotação que lhe tinha sido dado por outra seguradora, a W, em resultado de diligências feitas anteriormente junto de várias companhias de seguro, e que tal valor correspondia a €75.000,00. Julgamos, porém, que tal referência não se revela suficiente ou decisiva para dar como provada a matéria que ficou consignada no ponto 24 dos factos provados a propósito da expressa indicação e preenchimento pelo autor dos dados da proposta, designadamente o capital de €75.000,00, considerando que mesmo uma eventual sugestão do valor por parte do tomador do seguro poderá ser aceite pelo segurador após a necessária ponderação. De resto, como se viu, os restantes meios de prova produzidos e anteriormente analisados permitem que se considere provada a concreta matéria de facto proposta pelo recorrente por ser mais provável que tais factos tenham ocorrido do que a hipótese oposta.

Porém, analisada a proposta de seguro de fls. 45 a 47 verificamos que da mesma não consta qualquer referência ao «capital de € 75.000» tal como ficou consignado no ponto da matéria de facto agora em apreciação, dela constando contudo as seguintes referências concretas: «Valor actual do veículo €75.000,00» e «O capital seguro corresponde ao valor atual do veículo, em conformidade com o previsto na tabela de desvalorização constante das Condições Contratuais».

Nestes termos, importa julgar parcialmente procedente a impugnação deduzida, alterando-se o ponto n.º 24 dos factos provados na medida do que ficou provado e atendendo ao que resulta da proposta de seguro (documento de fls. 45 a 47).


Em consequência, determina-se que o ponto 24 dos factos provados passe a ter a seguinte redação:

24. Posteriormente, o colaborador identificado em 21) deslocou-se propositadamente à Póvoa de Lanhoso para atestar as condições do veículo, tirar fotografias ao mesmo e recolher a assinatura da proposta pelo autor, constando da mesma, designadamente: «Valor actual do veículo €75.000,00» e «O capital seguro corresponde ao valor atual do veículo, em conformidade com o previsto na tabela de desvalorização constante das Condições Contratuais».

2.2. Reapreciação jurídica

Atenta a parcial procedência da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, resulta evidente que os factos a considerar na apreciação da questão de direito são os que se mostram enunciados sob os n.ºs 1.1.1 a 1.1.28 supra, com as enunciadas alterações relativamente ao ponto 1.1.24 (10).

Deste modo, o quadro fáctico relevante com vista à subsequente subsunção jurídica é distinto daquele que serviu de base à prolação da sentença recorrida, por força das alterações agora decididas em sede de impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

Tal como resulta do supra enunciado em I., pretende o autor/recorrente com a presente ação ser indemnizado pelos danos sofridos em consequência do alegado furto do veículo ligeiro de passageiros Ford Mustang, matrícula MH, invocando para o efeito a existência de contrato de seguro celebrado com a ré, abrangendo a cobertura de furto ou roubo, e afirmando que o veículo lhe foi furtado entre as 18h00 do dia 16 e as 10h30 do dia 17 de novembro de 2013.

A ré contestou, aceitando o contrato em causa mas impugnando, por desconhecimento, se ocorreu ou não o furto e as circunstâncias em que tal eventualmente ocorreu; sustenta que a proposta de seguro foi encaminhada por uma sua mediadora e tramitada por um colaborador desta, o qual se deslocou à Póvoa de Lanhoso, onde foi preenchida e assinada a proposta de acordo com as indicações expressas do segurado e com os elementos fornecidos por este, designadamente, o capital de € 75.000; aquando da ocorrência do furto, o autor não contactou o escritório da mediadora, competindo-lhe anular o contrato; o veículo foi importado pelo autor em agosto de 2011 de França, em estado de usado, sendo um veículo construído em 2005 tendo declarado que o seu valor era de € 7.000 e, ainda com a matrícula francesa, teve um acidente em Portugal, pelo que, em qualquer caso, deve operar-se a redução do contrato de seguro, no sentido de se considerar que o valor do capital seguro é de € 7.000 ou igual ao valor que vier a apurar-se ter o veículo seguro.

O Tribunal a quo começou por qualificar o contrato celebrado entre o autor e a ré como um contrato de seguro que teve em vista não apenas a transferência para esta do risco pelos danos causados a terceiros pela circulação do veículo ligeiro de passageiros Ford Mustang, matrícula MH, correspondente ao seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, mas também de sinistros decorrentes, entre outros, de furto ou roubo, cobertura facultativa para a qual foi fixado o capital inicial de € 75.000,00 tomado em consideração para o cálculo da retribuição da ré/seguradora, o prémio devido pelo primeiro, que era de € 2.581,80 para o primeiro semestre de vigência. Como tal, entendeu a decisão recorrida estar em causa nos autos a responsabilidade civil contratual da seguradora perante o seu segurado face à obrigação por aquela assumida de indemnizar este pelos danos/prejuízos na viatura causados, entre outros, por furto, posto que na base de qualquer crédito indemnizatório emergente do contrato de seguro está o sinistro, enquanto realização do risco previsto no contrato de seguro, desencadeador, pela sua própria natureza, da garantia subjacente ao seguro. Mais salientou o Tribunal a quo ter o autor logrado fazer prova da ocorrência do facto fortuito causal dos danos apurados no veículo - objeto seguro na ré -, por se ter provado que, em 17 de novembro de 2013, o autor participou o furto do Ford Mustang à autoridade policial de Nice, imputando-o a desconhecidos, declarando que o mesmo desaparecera da Rua ..., Alpes Marítimos, nessa cidade, entre as 18h00 do dia 16 e as 10h30 desse dia e ainda que, não obstante as investigações policiais, o veículo em causa não foi recuperado.

Em consequência, concluiu - e bem - que cabia à ré, ora recorrida, indemnizar o autor pela perda total do veículo no prazo de 60 dias, contados a partir do momento da participação do furto às autoridades competentes para a sua investigação, ou seja, até 16 de janeiro de 2014.

A conclusão antes enunciada não vem posta em causa no presente recurso, mostrando-se tal enquadramento jurídico assumido por ambas as partes, as quais não colocaram em causa o contrato de seguro celebrado entre autor e ré, nem a cobertura de furto assumida por esta, o mesmo sucedendo quanto à qualificação efetuada pelo Tribunal a quo relativamente aos pressupostos da obrigação de indemnizar a cargo da ré, nem os fundamentos de facto e de direito subjacentes a tal juízo.

Mostrando-se verificados os pressupostos da obrigação de indemnizar por parte da recorrida, o objeto da presente apelação circunscreve-se a aferir qual o valor a atender na fixação da indemnização a pagar pela ré/seguradora ou se deve relegar-se para posterior liquidação o montante da indemnização a atribuir ao autor tal como decidiu a sentença recorrida.

Tal como decorre dos factos provados, o contrato de seguro em apreciação garante a cobertura facultativa por “furto ou roubo” pelo capital de € 75.000,00 mediante o pagamento de contrapartida de € 2.581,80, a realizar com a periodicidade semestral. Mais resultou apurado que a ré comunicou ao autor que o prémio anual “danos próprios”: - para o período de 28 de Maio de 2013 a 27 de Novembro de 2013 era de € 2.069,60, correspondendo ao capital de € 66.666,67; - para o período de 28 de Novembro de 2013 a 27 de Maio de 2014 era de € 2.030,66, correspondendo ao capital de € 58.333,34; - para o período de 27 de Novembro de 2014 a 27 de Maio de 2015 era de € 2.178,25, correspondendo ao capital de € 52.083,34.

Trata-se, assim, nessa parte, de um típico «seguro de danos», na classificação prevista no Título II do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (RJCS), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de abril, o qual tem por objeto uma coisa determinada (artigo 123.º do RJCS).

Como conteúdo típico do referido contrato temos que «o segurador cobre um risco determinado do tomador do seguro ou de outrem, obrigando-se a realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato, e o tomador do seguro obriga-se a pagar o prémio correspondente» (artigo 1.º do RJCS).

Tal como decorre do preceituado no artigo 128.º do RJCS, a prestação devida pelo segurador ao abrigo de um contrato de seguro de danos está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro, precisando por seu turno o artigo 130.º, n.º1 do RJCS que, no seguro de coisas, o dano a atender para determinar a prestação devida pelo segurador é o do valor do interesse seguro ao tempo do sinistro. Estes preceitos refletem o denominado princípio indemnizatório, nos termos do qual a prestação devida pela seguradora ao abrigo de contrato de seguro de danos está, em regra, limitada pelo valor do dano decorrente do sinistro, sendo este, por seu lado, determinado pelo valor atualizado da coisa segurada e tendo como limite máximo o capital acordado (11). Porém, como salienta ainda o citado aresto, «[e]mbora vigore no regime do contrato de seguro de danos o princípio indemnizatório (art. 439º do Cód. Com. e art. 128º da LCS), nos termos do qual a Seguradora apenas responde pelo valor do dano realmente causado, tal não afasta a possibilidade de as partes estabelecerem acordo prévio quanto ao valor do bem para esse efeito (valor estimado)».

De forma idêntica, refere o Ac. do STJ de 13-07-2017 (relator: Manuel Tomé Soares Gomes) (12):

«I. No âmbito de uma ação em que se pretenda a indemnização pelos danos resultantes de um sinistro coberto por contrato de seguro, incumbe ao segurado o ónus de provar, além da ocorrência e circunstâncias do sinistro, a consequente perda ou dano dos bens segurados, como factos constitutivos que são do direito invocado, nos termos do art.º 342.º, n.º 1, do CC e como decorre, de resto, do artigo 100.º, n.º 2 e 3, do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (RJCS), aprovado pelo Dec.-Lei n.º 72/2008, de 16-04.
II. No domínio do seguro de coisas, o dano a atender é o valor do interesse seguro ou da privação do uso do bem à data do sinistro, dentro dos limites do capital de seguro, nos termos prescritos nos artigos 128.º e 130.º, n.º 1 e 3, do RJCS, salvo quando as partes tenham acordado o próprio valor do interesse seguro atendível (valor acordado), que, neste caso, será o devido, em conformidade com o disposto no artigo 131.º, n.º 1, do mesmo diploma. Por sua vez, à R. seguradora cabe provar os factos excludentes da sua responsabilidade, nos termos do art.º 342.º, n.º 2, do CC».

Na verdade, o artigo 131.º, n.º1, do RJCS prevê expressamente que, «sem prejuízo do disposto no artigo 128.º e no n.º 1 do artigo anterior, podem as partes acordar no valor do interesse seguro atendível para o cálculo da indemnização, não devendo esse valor ser manifestamente infundado», consagrando assim a prevalência do princípio da liberdade contratual.

No caso, o valor seguro consignado na apólice aquando da contratação do seguro, em 19 de dezembro de 2011 foi de €75.000,00, o qual, aliás, corresponde ao valor do veículo, nos termos da proposta que lhe deu origem. Tal valor foi sendo atualizado, nos termos das comunicações que foram efetuadas pela ré/recorrida, para € 66.666,67 (relativamente ao período de 28 de maio de 2013 a 27 de novembro de 2013, correspondendo ao prémio de € 2.069,60), € 58.333,34 (relativamente ao período 28 de novembro de 2013 a 27 de maio de 2014, correspondendo ao prémio de € 2.030,66) e € 52.083,34 (para o período de 27 de novembro de 2014 a 27 de maio de 2015, correspondendo ao prémio de € 2.178,25).

Para além destes factos, e tal como resulta dos factos provados, não se apurou o valor do bem à data do sinistro. Assim, observa-se que a ré/recorrida, na contestação, excecionava o sobresseguro, isto é, alegava que o valor do veículo «não ultrapassa os €7.000,00» e, por isso, «o valor do veículo é muito inferior ao do capital constante da apólice» valendo tão-somente €7.000,00 - cfr. o alegado sob os pontos 24 a 31 da contestação - decorrendo da análise dos factos provados e do ponto 1.2 supra, a ré/recorrida não logrou demonstrar esse valor.

Acresce que, conforme já concluímos supra, o concreto valor pelo qual o veículo foi adquirido não pode ser relevante para o valor a segurar e, consequentemente, para o valor do objeto seguro após o sinistro.

O Tribunal a quo seguiu de perto a fundamentação vertida no Ac. TRP de 13-06-2013 (relator: Leonel Serôdio) (13), no qual se salienta que no plano dos princípios, a indemnização deve corresponder numa primeira linha ao valor do seguro, sendo certo que foi em função dele, que o segurador recebeu o prémio. Ora, tal como se defendeu ainda no aresto antes citado, não decorre do princípio do indemnizatório, «ainda que conjugado com o n.º1 do art. 342º do CC, que estabelece que cabe àquele que invocar um direito a prova dos factos constitutivos, que seja sempre o segurado que tem o ónus de provar o valor da coisa ao tempo do sinistro.

A repartição do ónus da prova deve fazer-se de harmonia com a previsão traçada na norma jurídica que serve de fundamento à pretensão deduzida mas "não se trata... de lançar o ónus da prova do facto sobre a parte que o invocou", pois o ónus "imposto a quem alega o direito não se estende a todos os factos que interessam à vigência actual desse direito mas somente aos factos constitutivos dele" (…).

Assim sendo, tendo de se distinguir as situações consoante a forma como foi fixado o valor do bem no contrato, ou seja, se o valor foi indicado pelo tomador de seguro ou antes foi fixado por acordo entre tomador e seguradora.

Como decorre do citado art.131º do RJCS e do art. 405º do CC nada impede que as partes estipulem o valor do bem objecto do contrato e quando assim ocorre (…), ainda que não tenha sido acordado que esse era o valor a indemnizar em caso de furto, o segurado não tem de provar qual o valor do bem, precisamente por este ter sido fixado por acordo das partes.

Por isso, o segurado apenas tem de provar, como elemento constitutivo do seu direito que o valor do bem objecto do seguro, foi fixado por acordo das partes ou pelo segurador. (…) (14).

O segurado só tem de provar o valor do bem na data do sinistro quando o valor tenha sido indicado por ele aquando da celebração do contrato».

Em face dos argumentos agora enunciados, não nos merece reparo o entendimento seguido na decisão recorrida a propósito da repartição do ónus da prova e considerando o enquadramento legal antes enunciado.

Porém, o Tribunal a quo considerou que o valor de € 75.000,00 resultou da indicação do autor/recorrente, em 19 de dezembro de 2011, no momento do preenchimento da proposta do seguro. E, não obstante o cálculo dos prémios e as desvalorizações periódicas terem tido em consideração o valor indicado, entendeu que tendo tal valor sido indicado pelo recorrente, o montante a tomar em consideração devia partir do preço pago pelo autor, ora recorrente, em agosto de 2010, pela aquisição. Daí que, mesmo não se tendo apurado o valor do bem à data do sinistro, entendeu o Tribunal a quo relegar o valor da prestação para liquidação, aplicando o disposto no artigo 609.º, n.º 2 do CPC.

Contra este entendimento insurge-se o recorrente, defendendo, no essencial, que, conforme é jurisprudência maioritária dos tribunais superiores, é sobre a ré seguradora que recai o ónus de provar que o valor do interesse seguro é inferior ao do capital seguro, o que não logrou demonstrar, devendo ser condenada a indemnizar o recorrente com base no valor seguro que se mostra apurado à data do vencimento do prémio imediatamente anterior à ocorrência do sinistro, ou seja € 66.666,67, solução que vai de encontro às necessidades de proteção do consumidor, previstas no DL n.º 214/97 de 16-08 e respeita os princípios gerais de direito, nomeadamente o princípio da liberdade contratual e da boa-fé na celebração e cumprimento dos contratos. Salienta que foi pacífico o valor atribuído ao Mustang, pelo que, de acordo com as regras da normalidade em seguros desta natureza, o recorrente depositou a sua confiança na seguradora, criando a legítima espectativa de que o Mustang ficaria segurado por €75.000,00, confiança que manteve durante a duração do contrato de seguro em questão, pois sobre o capital seguro foram sendo feitas atualizações, quer antes, quer depois do furto, tendo sempre por referência o valor fixado na celebração do seguro e, tal como resulta provado nos pontos 1 a 3 da matéria de facto dada como provada, mesmo depois de o Mustang ter sido furtado, a ré continuou a cobrar ao autor (e este a pagar) prémios calculados tendo por base o capital segurado e respetivas atualizações, sendo que só perante o não aparecimento do Mustang e a iminência de ter que proceder à prestação contratualizada é que a recorrida vem sustentar que afinal o mesmo não vale o valor contratualizado.

Decorre do antes enunciado que a decisão recorrida se baseou em matéria de facto entretanto alterada. Como se viu, o segurado apenas tem de provar, como elemento constitutivo do seu direito, que o valor do bem objeto do seguro foi fixado por acordo das partes ou pelo segurador, cabendo então sobre a seguradora/recorrida o ónus de provar que, na data do furto, o valor real do bem era inferior ao valor constante da apólice. Com efeito, tal como refere o Ac. TRG de 4-04-2013 (relatora: Isabel Rocha) (15), «Se o segurado intenta acção contra a seguradora com fundamento no contrato de seguro de danos próprios que com esta celebrou, pedindo o pagamento de indemnização baseada no capital seguro, tal como estipulado pelas partes naquele contrato, compete à Ré seguradora o ónus de alegar e provar, por ser facto modificativo do direito arrogado, que o capital seguro excede o valor do interesse seguro» (16).

No caso resultou provado que, por escrito titulado pela apólice nº 0045.11.038597 autor e ré acordaram na transferência para a segunda, desde 19 de dezembro de 2011, da responsabilidade decorrente da circulação do veículo ligeiro de passageiros Ford Mustang, matrícula MH, até ao montante de € 50.000.000, prevendo, também, coberturas, entre outras, de furto ou roubo, pelo capital de € 75.000, mediante o pagamento de contrapartida de € 2.581,80, a realizar com a periodicidade semestral (ponto 1.1.1.dos factos provados). Mais consta dos factos discriminados como provados que a proposta de seguro que deu origem à apólice identificada em 1) foi encaminhada para a ré pela mediadora C. C., tendo sido transmitida pelo colaborador desta, J. M. (ponto 1.1.21 dos factos provados). A mediadora identificada em 21) foi contactada telefonicamente pelo Autor por indicação do seu irmão L. G.. Na sequência do primeiro contacto telefónico, o Autor enviou à mediadora os documentos do veículo (ponto 1.1.23. dos factos provados). Por último, verifica-se que, posteriormente, o colaborador identificado em 21) deslocou-se propositadamente à Póvoa de Lanhoso para atestar as condições do veículo, tirar fotografias ao mesmo e recolher a assinatura da proposta pelo autor, constando da mesma, designadamente: «[v]alor actual do veículo €75.000,00» e «[o] capital seguro corresponde ao valor atual do veículo, em conformidade com o previsto na tabela de desvalorização constante das Condições Contratuais». Destes factos resulta claramente que da proposta de seguro que deu origem à apólice já constava de forma expressa a indicação do valor do veículo como correspondendo ao do capital seguro acordado e contante da apólice, sendo que tal proposta foi apresentada ao segurado, ora recorrente, pelo mediador de seguros utilizado pela recorrida/seguradora para a celebração do contrato, com essas indicações, a fim de ser assinada. Ora, o mediador de seguros utilizado pela seguradora para celebrar o contrato parte da organização de meios de que a seguradora se serve para o exercício da sua atividade, pelo que o risco da atuação dele sempre deveria ser arcado pela seguradora (independentemente de ele ser ou não representante da seguradora) (17). Por outro lado, e como salienta o Ac. TRG de 19-09-2019 (relator: Afonso Cabral de Andrade) (18), «[c]onstando do contrato o valor do bem, como sendo o capital seguro (…), deve-se presumir que esse valor emerge do acordo das partes, até prova em contrário». Como tal, perante a matéria dada como provada, resta concluir que o valor do bem objeto do seguro foi fixado por acordo das partes.

Deste modo, tendo ficado provado que o valor do bem objeto do seguro foi fixado por acordo das partes, não era ao segurado/recorrente que competia demonstrar o valor do bem na data do sinistro.

Como se viu, a ré/recorrida alegou que o valor do veículo «não ultrapassa os €7.000,00» e, por isso, «o valor do veículo é muito inferior ao do capital constante da apólice» valendo tão-somente €7.000,00. Contudo, não provou essa factualidade pelo que não há fundamento para relegar para posterior liquidação o montante da indemnização a atribuir ao autor relativamente à perda total do veículo MH. Mas mesmo que assim não fosse, sempre se justificaria entrar em linha de conta com o determinado pelo artigo 334.º do CC pois tal como salienta o Ac. TRL de 18-04-2013 (relator: Pedro Martins), antes referenciado, «[a]s seguradoras não podem, sob pena de abuso de direito (art. 334 do CC) na modalidade do venire contra factum proprium, opor aos tomadores o valor real depois do sinistro ter ocorrido para evitarem sobreindemnizações, se antes de celebrarem o contrato nada fizeram para o apurar, como o que evitaria celebrar o contrato com sobresseguro (e com os inerentes sobreprémios), apesar de o poderem ter feito com facilidade, se tivessem actuado com um mínimo de diligência que a boa fé lhes impunha (art. 227 do CC)».

Tal como decorre do artigo 1.º do DL n.º 214/97 de 16-08, este diploma institui regras destinadas a assegurar uma maior transparência nos contratos de seguro automóvel que incluam coberturas facultativas relativas aos danos próprios sofridos pelos veículos seguros. Nesse âmbito, prevê ainda no artigo 2.º que o valor seguro dos veículos deverá ser automaticamente alterado de acordo com a tabela referida no artigo 4.º, sendo o respetivo prémio ajustado à desvalorização do valor seguro. Por último, estatui o artigo 4.º, n.º1 do DL n.º 214/97 de 16-08, que as empresas de seguros que contratem as coberturas facultativas relativas aos danos próprios sofridos pelos veículos seguros devem elaborar a tabela de desvalorizações periódicas automáticas a que se refere o artigo 2.º para determinação do valor da indemnização em caso de perda total, incluindo, necessariamente, como referências, o ano ou o valor da aquisição em novo, ou ambos, sem prejuízo do disposto no número seguinte.

Como refere a sentença recorrida, a ré, ora recorrida, tem uma dessas tabelas na medida em que a fez repercutir nos semestres ocorridos entre 28 de Maio de 2013 e 27 de Maio de 2015, já que aquele capital inicial decresceu sucessivamente para € 66.666,67, € 58.333,34 e € 52.083,34.

Deste modo, o mais elementar sentido de justiça equitativa impõe que a indemnização deva corresponder ao valor do seguro, atualizado de acordo com a tabela de desvalorizações periódicas automáticas adotada pela própria ré/recorrida para determinação do valor da indemnização em caso de perda total, sendo certo que foi em função desses elementos que a seguradora recebeu o respetivo prémio.

Daí que no contexto antes enunciado e uma vez demonstrada a verificação do sinistro - o veículo objeto do seguro foi furtado não tendo sido recuperado, pelo que ocorreu a sua perda total - esteja a ré/recorrida indemnizar o autor/recorrente com base no valor seguro que se mostra apurado à data do vencimento do prémio imediatamente anterior à ocorrência do sinistro (19), correspondendo ao capital de € 66.666,67 (para o período de 28 de maio de 2013 a 27 de novembro de 2013), tal como reclama o recorrente, não subsistindo fundamento para relegar para posterior liquidação o montante da indemnização a atribuir ao autor.

Procedem, assim, nesta parte, as conclusões do apelante.

Discorda, por último, o apelante da decisão recorrida, na parte em que relegou para execução de sentença o valor da indemnização devida no âmbito das cobertura facultativa que o recorrente contratou com a ré/recorrida, respeitante ao aluguer de veículo de substituição, sustentando, em suma, que o Tribunal a quo poderia ter decidido o valor da indemnização correspondente aos «41 dias de veículo de substituição» com recurso à equidade, no valor diário de €100 que, tendo em conta os 41 dias, deverá totalizar o valor de € 4.100,00.

Tal como resulta da decisão recorrida, o Tribunal a quo concluiu que se impunha a fixação de indemnização pecuniária por equivalente uma vez que não foi oferecida ao recorrente a prestação em causa, sendo que as partes acordaram que a existência de sinistro do qual derivasse a perda parcial ou total do veículo objeto do seguro, implicaria para a ré/recorrida a obrigação de facultar, através de requisição, uma viatura de aluguer destinada a suprir a falta daquele durante o período de imobilização, sendo que, em caso de furto, o período de desaparecimento desde a participação às autoridades, constituía um evento equivalente que obrigaria a recorrida a essa prestação por 30 dias, por anuidade. Ponderou então que o autor/recorrente participou o furto em 17 de novembro de 2013, que a anuidade se iniciava a 28 de novembro seguinte e que a ré/recorrida deveria cumprir a sua prestação até 16 de janeiro de 2014, para concluir que que o período referente à anuidade de 2012/2013 correspondia a 11 dias e o da anuidade de 2013/2014 aos trinta dias, tudo no total de 41 dias.

A conclusão antes enunciada também não vem posta em causa no presente recurso, mostrando-se tal enquadramento jurídico assumido por ambas as partes, as quais não colocaram em causa a qualificação efetuada pelo Tribunal a quo relativamente aos pressupostos da obrigação de indemnizar a cargo da ré, tendo por base o valor correspondente a 41 dias de veículo de substituição.

No entanto, a sentença recorrida entendeu não dispor dos elementos para a determinação desse valor por dois motivos:

i) a prestação principal ainda não se encontra liquidada e desconhecem-se os critérios de desvalorização, não sendo possível precisar, de momento, se a viatura de referência deverá corresponder a veículo familiar de gama média ou se até à classe C;
ii) desconhecem-se, igualmente, os valores médios do custo do aluguer de viaturas de qualquer das duas categorias.

Ora, relativamente ao fundamento enunciado em i), entendemos já não subsistir razão para relegar o montante da indemnização pela perda total do veículo MH para posterior liquidação, porquanto estão devidamente definidos os critérios de desvalorização, atendendo ao capital seguro que se mostra apurado à data do vencimento do prémio imediatamente anterior à ocorrência do sinistro (correspondendo ao capital de € 66.666,67), enquanto elemento necessário para permitir concluir que a viatura de referência deve corresponder a veículo familiar da gama média, à luz dos critérios definidos no artigo 2.º das Condições Gerais da apólice (20), relativamente à cobertura “veículo de aluguer”, no qual ficou previsto, além do mais, o seguinte:

«a) a Ré facultaria o aluguer de um veículo de substituição pelo período de imobilização e/ou reparação do veículo seguro sinistrado em caso de perda parcial ou necessário à aquisição de um veículo novo pelo segurado, em caso de perda total, com o limite máximo de 30 dias por anuidade;
b) em caso de furto ou roubo, o período de desaparecimento do veículo, após participação às autoridades, era equiparado à sua imobilização;
c) por ter sido subscrito o “...”, o veículo a alugar teria como limite a classe C das empresas de aluguer se o capital seguro no início da anuidade em curso, constante do aviso recibo fosse igual ou inferior a € 15.000 ou veículo familiar da gama média se o capital seguro fosse superior a € 15.000».

Porém, relativamente ao fundamento enunciado em ii), resulta indiscutível não assistir razão ao recorrente, porquanto, tal como decorre da decisão recorrida, desconhecem-se os valores médios do custo do aluguer de viaturas da referida categoria. Nessa medida, cumpre concluir que os elementos de factos disponíveis são insuficientes para a quantificação ou determinação do valor da indemnização em causa. Deste modo, ainda que se aceite que o cálculo da correspondente indemnização deva ser efetuado com base na equidade, considerando que não pode ser averiguado o valor exato dos danos, entendemos que os referidos elementos são relevantes para o efeito, posto que o juízo equitativo tem de assentar em elementos de facto. Assim, tal como salienta Laurinda Guerreiro Gemas (21), «[n]ão sendo feita prova de factos que permitam fundar o juízo equitativo, mormente quantificar o valor do uso, a determinação do montante indemnizatório poderá ser relegada para incidente de liquidação, onde, no limite, também pode intervir a equidade».

Tais elementos, e outros complementares, não constam dos autos e, em nosso entender, será possível apurá-los em incidente de liquidação, sendo por isso aplicável a faculdade prevista no artigo 609.º, n.º 2, do CPC.

Por conseguinte, ainda que por fundamentos não integralmente coincidentes, cumpre confirmar a decisão recorrida na parte em que condenou a ré/recorrida no que vier a ser liquidado relativamente ao valor correspondente a 41 dias de veículo de substituição, a calcular de acordo com os critérios plasmados nos pontos 9) e 11) da fundamentação de facto, importando determinar, através de prova complementar, os valores médios do custo do aluguer de viaturas correspondentes a veículo familiar da gama média.

Termos em que procede parcialmente a apelação.

Sínteses conclusiva:

I - A prova testemunhal consiste num meio de prova legal, estando sujeita a um conjunto de normas que regulam o respetivo modo de produção em juízo e contemplam expressamente os atos a praticar para a sua utilização, prevendo ainda os casos em que os depoimentos produzidos num processo com audiência contraditória da parte podem ser invocados noutro processo contra a mesma parte;
II - Daí que as declarações produzidas por testemunha no âmbito do processo de averiguações instaurado pela ré/seguradora, ora recorrida, relativo ao sinistro em causa nos autos, não possam ser valoradas em termos probatórios no processo judicial em curso quanto a tal matéria;
III - Em ação na qual é peticionada indemnização pela perda total do veículo seguro em consequência de furto, no âmbito de um seguro facultativo com tal cobertura, provando-se que o valor do bem objeto do seguro foi fixado por acordo das partes, correspondendo ao montante do capital seguro, não tem o segurado de provar o valor do bem na data do sinistro;
IV - Como tal, não se tendo apurado o valor real do bem à data do sinistro também não há que relegar o valor da indemnização para liquidação de sentença;
V - No contexto enunciado deve a indemnização corresponder ao valor do capital seguro, atualizado de acordo com a tabela de desvalorizações periódicas automáticas adotada pela própria ré/recorrida para determinação do valor da indemnização em caso de perda total, sendo certo que foi em função desses elementos que a seguradora recebeu o respetivo prémio.

IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente a apelação, em consequência do que se revoga parcialmente a sentença recorrida, condenando-se a ré/recorrida a pagar ao autor o valor de € 66.666,67 correspondente à indemnização pela perda total do veículo ligeiro de passageiros Ford Mustang, matrícula MH, decorrente do seu furto a 16/17 de novembro de 2013, e confirmando-se, no mais, a decisão recorrida [alíneas b), c), d), e e), da parte dispositiva da sentença].
Custas por apelante e recorrida/apelada, na proporção de metade.
Guimarães, 30 de janeiro de 2020
(Acórdão assinado digitalmente)

Paulo Reis (relator)
Espinheira Baltar (1.º adjunto)
Luísa Duarte Ramos (2.º adjunto)



1. Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2013, p. 224-225.
2. P. n.º 1965/04.9TBSTB.E1.S1 – 6.ª Secção, disponível em www.dgsi.pt
3. Cfr. Lopes do Rego, Comentário do Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 1999, p. 200-201.
4. P. n.º 1422/14.5TJLSB.L1-2, disponível em www.dgsi.pt.
5. Em idêntico sentido, cfr., ainda, entre outros, o Ac. TRG de 18-01-2018 (relatora: Sandra Melo) p. 355/15.2T8VVD.G1; acessível em www.dgsi.pt.
6. Preceito que dispõe o seguinte: «Se a declaração confessória, judicial ou extrajudicial, for acompanhada da narração de outros factos ou circunstâncias tendentes a infirmar a eficácia do facto confessado ou a modificar ou extinguir os seus efeitos, a parte que dela quiser aproveitar-se como prova plena tem de aceitar também como verdadeiros os outros factos ou circunstâncias, salvo se provar a sua inexactidão.»
7. Como salienta Abrantes Geraldes, ob. cit. p. 226, «Tal como o tribunal de 1ª instância, também a Relação tem poderes que tanto podem determinar a assunção de factos segundo regras imperativas de direito probatório, como a desconsideração de outros factos cuja prova tenha desrespeitado essas mesmas regras».
8. P. 323/12.6TUPRT.P1, disponível em www.dgsi.pt.
9. P. n.º 662/2002.L1-2, disponível em www.dgsi.pt.
10. Agora com a seguinte redação: 1.1.24. Posteriormente, o colaborador identificado em 21) deslocou-se propositadamente à Póvoa de Lanhoso para atestar as condições do veículo, tirar fotografias ao mesmo e recolher a assinatura da proposta pelo autor, constando da mesma, designadamente: «Valor actual do veículo €75.000,00» e «O capital seguro corresponde ao valor atual do veículo, em conformidade com o previsto na tabela de desvalorização constante das Condições Contratuais».
11. Cfr. o Ac. do STJ de 8-06-2017 (relator: Abrantes Geraldes), p. 7087/15.0T8STB.E1.S1 – 2.ª Secção, disponível em www.dgsi.pt.
12. P. 5232/13.9TBMTS.P1.S1 - 2.ª Secção, disponível em www.dgsi.pt.
13. P. 4438/11.0TBVNG.P1, disponível em www.dgsi.pt.
14. Em idêntico sentido, cfr., ainda o Ac. TRP de 27-04-2015 (relator: Manuel Domingos Fernandes) p. 249/14.9TJPRT.P1; acessível em www.dgsi.pt.
15. P. 35/11.8TCGMR.G1, disponível em www.dgsi.pt.
16. Em idêntico sentido, cfr., ainda, entre outros, os Acs. TRL de 22-11-2018 (relator: Pedro Martins) p. 18262/17.2T8LSB.L1-2; TRL de 25-10-2018 (relatora: Ondina Carmo Alves) p. 178/17. 4T8MTJ. L1-2; TRL de 18-04-2013 (relator: Pedro Martins) p. 2212/09.2TBACB.L1-2; e TRP de 15-06-2004 (relator: Henrique Araújo) p. 0420961; todos acessíveis em www.dgsi.pt.
17. Cfr. o Ac. TRL de 22-11-2018 (relator: Pedro Martins), antes referenciado.
18. P. 8110/17.9T8VNF.G1, disponível em www.dgsi.pt.
19. Neste sentido, cfr., entre outros, os Acs. TRG de 26-09-2019 (relatora: Conceição Sampaio) p. 314/18.3T8FAF.G1; TRL de 25-10-2018 (relatora: Ondina Carmo Alves) p. 178/17. 4T8MTJ. L1-2; TRL de 19-06-2014 (relatora: Isoleta Costa) p. 791/13.9TVLSB-8; TRC de 6-11-2007 (relator: Freitas Neto) p. 356/07.4YCBR; todos acessíveis em www.dgsi.pt.
20. Tal como consta do ponto 1.1.11. dos “Factos provados”.
21. Cfr., Laurinda Guerreiro Gemas, A Indemnização dos Danos Causados por Acidentes de Viação – Algumas Questões Controversas, revista Julgar n.º 8 - Maio/Agosto 2009, Edição da ASJP, Coimbra Editora, pgs. 52.