Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
74/17.5T8BCL.G1
Relator: ANA CRISTINA DUARTE
Descritores: DIVÓRCIO
RESPONSABILIDADE PARENTAL
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/23/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 - A competência do tribunal deve ser determinada face à relação jurídica, tal como autor a configura na petição inicial.

2 - A competência internacional pressupõe que o litígio, tal como o autor o configura na acção, apresenta um ou mais elementos de conexão com uma ou várias ordens jurídicas distintas do ordenamento do foro.

3 - As regras comunitárias – in casu, o Regulamento (CE) nº 2201/2003 de 27 de novembro, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental – prevalecem sobre as normas nacionais, designadamente as constantes nos arts 62.º e 72.º do CPC.

4 - É a afirmação do princípio do primado do direito comunitário e da sua prevalência sobre o direito nacional.

5 - Estabelecendo o art.º 3.º, n.º1, do Regulamento (CE) 2201/2003, três critérios gerais fundamentais que definem a competência internacional de um Estado-Membro para poder conhecer de uma acção de divórcio, sendo um o da residência habitual, o outro o da nacionalidade de ambos os cônjuges, e, o terceiro, o do domicilio comum (apenas para o Reino Unido e Irlanda), verificando-se um deles (o da nacionalidade de ambos os cônjuges) e apontando ele para Portugal, ter-se-á que julgar o tribunal português onde a acção foi interposta como o competente (internacionalmente) para a julgar.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

M. T., emigrado em França, onde reside, e com residência em Portugal em …, Esposende, intentou ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, contra M. M., residente em Andorra, alegando que se casaram em 7 de fevereiro de 1981, em …, Esposende e que há três anos que se encontram separados, tendo o autor abandonado o lar, fazendo cada um a sua vida, ele em França e ela em Andorra, com economias separadas e sem qualquer contacto entre ambos.

Foi proferido despacho liminar que julgou verificada a incompetência absoluta dos tribunais portugueses para a apreciação da presente ação e, em conformidade, absolveu a ré da instância.

O autor interpôs recurso, tendo finalizado a sua alegação com as seguintes

Conclusões:

1 – O autor, ora apelante, esteve emigrado em Andorra, com a sua família, e não em França, como se refere na douta decisão recorrida.
2 – Há três anos separou-se da ré e emigrou para França, continuando a ré emigrada em Andorra.
3 – Apesar de emigrado, o autor tem residência em Portugal, na freguesia de …, desta comarca, na Rua de …, como foi alegado.
4 – Tendo casado naquela freguesia e localizando-se aí os bens comuns do casal, é aí que se vão produzir os efeitos do divórcio.
5 – É jurisprudência nos Tribunais Superiores que, embora emigrado e tendo o autor também residência em Portugal, pode propor a ação de divórcio no Tribunal da comarca da sua residência em Portugal.
6 – O disposto no n.º 2 do artigo 995.º do CPC é a consagração daquela jurisprudência ao consignar que “o cônjuge que esteja ausente do continente ou da ilha em que tiver lugar a conferência…pode fazer-se representar por procurador com poderes especiais”.
7 – A douta decisão recorrida violou o disposto no artigo 75.º e 995.º, n.º 2 do CPC.
Termos em que deverá ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a douta decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que ordene o prosseguimento dos autos com marcação da tentativa de conciliação a que alude o artigo 931.º do CPC, assim se fazendo JUSTIÇA.

O recurso foi admitido como de apelação, a subir nos próprios autos e com efeito devolutivo.

Citada a ré, em …, Esposende, para os termos da ação e do recurso, veio esta dizer que está na disposição de converter o processo em divórcio por mútuo consentimento, requerendo a designação de data para realização da 1.ª conferência.
Este requerimento obteve a concordância do autor.
Não foram oferecidas contra alegações.
Foi proferido despacho a mandar notificar o autor para informar se desiste do recurso, pois nesse caso poderão requerer o divórcio nos moldes aceites por ambos, na CRC, sendo que, se não houver desistência do recurso, o tribunal tramitará esta instância. Mais se indeferiu a requerida tentativa de conciliação, face ao esgotamento do poder jurisdicional após a declaração de incompetência.
O autor declarou que desiste do recurso na suposição de que será designado dia para a tentativa de conciliação.
Foi ordenada a subida dos autos.
Foram colhidos os vistos legais.

A única questão a resolver prende-se com a competência do tribunal português para conhecer desta ação.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Na decisão recorrida foram fixados os seguintes factos:
1 – O autor, M. T. reside em …, França.
2 – A ré, M. M., reside em …, Andorra.
3 – Autor e ré tinham a casa de morada de família em França (há, aqui, um claro lapso, pois resulta da petição inicial, que a casa de morada de família era em Andorra, onde a ré continuou a viver, tendo o autor emigrado para França), onde residiam habitualmente.
Está também assente nos autos, que autor e ré são portugueses – cfr. certidão do assento de casamento a fls. 4 dos autos - e que ambos, encontrando-se emigrados em França e Andorra, respetivamente, mantêm residência em Portugal, a do autor, a indicada na petição inicial e a da ré, aquela onde foi citada por agente de execução.

Vejamos, então.
A decisão sob recurso julgou, oficiosamente, verificada a incompetência absoluta dos tribunais portugueses. Invocou o disposto nos artigos 62.º e 72.º do CPC. Podia fazê-lo, ao abrigo do disposto nos artigos 96.º, a) e 97.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.
A questão é a de saber se, de facto, os tribunais portugueses são internacionalmente incompetentes para conhecer desta ação de divórcio.
Em primeiro lugar, cabe referir que é em face do pedido formulado pelo autor e pelos fundamentos em que o mesmo se apoia, e tal como a relação jurídica é pelo autor delineada na petição, que cabe determinar a competência do tribunal (cfr. Manuel de Andrade, “in Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, pág. 91).
E, nos termos do artigo 37.º, n.º 2 da Lei n.º 62/2013 (LOSJ), de 26/08 “A lei de processo fixa os fatores de que depende a competência internacional dos tribunais judiciais”, sendo que a competência se fixa no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente (artigo 38.º, n.º 1).
Ora, no âmbito da lei de processo – Código de Processo Civil – é o artigo 62.º que define os fatores de atribuição da competência internacional. No entanto, o artigo 59.º logo adianta que há que salvaguardar aquilo que se encontra estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, referindo expressamente que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos naquele artigo 62.º, mas sem prejuízo do que se encontra naqueles estabelecido.
Ou seja, no âmbito da aferição da competência internacional dos tribunais portugueses, importa salvaguardar o que se encontra estabelecido em regulamentos europeus e outros instrumentos internacionais, que vinculem internacionalmente o Estado Português, reconhecendo-se, assim, o primado do direito internacional convencional ao qual o Estado Português se encontre vinculado sobre o direito nacional, designadamente a prevalência do direito comunitário sobre o direito nacional.
Isso mesmo resulta do artº 8º, da CRP: “1.As normas e os princípios de direito internacional geral ou comum fazem parte integrante do direito português. 2. As normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português. 3. As normas emanadas dos órgãos competentes das organizações internacionais de que Portugal seja parte vigoram directamente na ordem interna, desde que tal se encontre estabelecido nos respectivos tratados constitutivos. 4. As disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo Direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de Direito Democrático”.
Daí que, caindo determinada situação no âmbito de aplicação de um concreto Regulamento, as normas deste último prevalecem sobre as normas de direito interno que regulam a competência internacional - cfr. Dário Moura Vicente, in Direito Internacional Privado, vol. I, página 249 (citado no Acórdão da Relação de Lisboa de 20/09/2011, processo n.º 546/09.5TMLSB.L1-1, relator António Santos, in www.dgsi.pt).
É o caso quando o Tribunal português é chamado a conhecer de uma causa em que haja um elemento de conexão com a ordem jurídica de outro Estado contratante. Deverá, então, ignorar as regras de competência internacional da lex fori, antes devendo aplicar as regras uniformes do Regulamento - Cfr. Mota Campos, in Revista de Documentação e Direito Comparado, nº 22, 1986, pág. 144, citado no Ac. do STJ de 4/3/2010, in www.dgsi.
No caso de que nos ocupamos, e em face do alegado pelo apelante na petição inicial, manifesto é que a questão decidenda apresenta diversos elementos de conexão (quanto ao local do casamento, nacionalidade de autor e ré, residência de ambos os sujeitos processuais e lugar da prática por um dos sujeitos processuais de factos relevantes) que se relacionam, quer com o ordenamento jurídico português, quer com a ordem jurídica francesa, quer com a ordem jurídica de Andorra.
Estamos, portanto, perante litígio ao qual se aplica o Regulamento (CE) 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro, relativo à competência, ao reconhecimento, e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental que, no artigo 3.º, sob a epígrafe de “Competência Geral“, e inserido no respectivo capítulo II, Secção 1 (com o título de Divórcio, Separação e Anulação do Casamento), estabelece o seguinte:

“1- São competentes para decidir das questões relativas ao divórcio, separação ou anulação de casamento, os tribunais do Estado­Membro:

a) Em cujo território se situe:
- a residência habitual dos cônjuges, ou
- a última residência habitual dos cônjuges, na medida em que um deles ainda aí resida, ou
- a residência habitual do requerido, ou
- em caso de pedido conjunto, a residência habitual de qualquer dos cônjuges, ou
- a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido pelo menos, no ano imediatamente anterior à data do pedido, ou
- a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido, pelo menos, nos seis meses imediatamente anteriores à data do pedido, quer seja nacional do Estado-Membro em questão quer, no caso do Reino Unido e da Irlanda, aí tenha o seu “domicilio”;
b) Da nacionalidade de ambos os cônjuges, ou, no caso do Reino Unido e da Irlanda, do “domicilio” comum"
2. Para efeitos do presente regulamento, o termo “domicilio” é entendido na acepção que lhe é dada pelos sistemas jurídicos do Reino Unido e da Irlanda.
Diz por seu lado o artº 6º, do mesmo Regulamento, que, qualquer dos cônjuges que tenha a sua residência habitual no território de um Estado-Membro, ou seja nacional de um Estado-Membro ou, no caso do Reino Unido e da Irlanda, tenha o seu “domicílio” no território de um destes dois Estados-Membros, só por força dos artigos 3.º, 4.º e 5.º pode ser demandado nos tribunais de outro Estado-Membro.
Em face das normas referidas, manifesto é que, do artº 3º, nº1, decorrem três critérios gerais fundamentais que definem a competência internacional de um Estado-Membro para poder conhecer de uma acção de Divórcio, sendo um o da residência habitual (que por sua vez se sub-divide em 5 outros critérios, todos eles interligados ao conceito de residência habitual), o outro o da nacionalidade de ambos os cônjuges, e, finalmente, o terceiro, o do domicilio comum (mas neste caso aplicável apenas ao Reino Unido e Irlanda) – veja-se o Acórdão da Relação de Lisboa supra citado.
Mais resulta, de todas as supra apontadas normas que, verificando-se concomitantemente diversos critérios ao dispor do requerente/autor, pode ele de qualquer um deles lançar mão, desde que, em todo o caso, a sua opção não brigue com o disposto no artº 6 º (não poder o demandado, desde que com residência habitual no território de um Estado-Membro, ou nacional de um Estado-Membro, ser demandado nos tribunais de outro Estado-Membro, a não ser que tal possibilidade resulte dos artigos 3.º, 4.º e 5.º do Regulamento).
Os critérios de competência em matéria matrimonial são de aplicação alternativa, o que significa que não existe nenhuma hierarquia e, consequentemente, nenhuma ordem de precedência entre eles – cfr “Guia prático para a aplicação do Regulamento Bruxelas II-A”, da Comissão Europeia, in http://ec.europa.eu/justice/civil/files/brussels_ii_practice_guide_pt.pdf, com referência ao acórdão do TJUE de 16 de julho de 2009, Hadadi/Hadadi, no processo C-168/08, Colet. 2009, p. I-6871 em que o TJUE teve de decidir se essa hierarquia existia, respondendo que “O sistema de repartição de competências instituído pelo Regulamento em matéria de dissolução do vínculo matrimonial não visa excluir a pluralidade de foros competentes. Pelo contrário, prevê-se expressamente a existência paralela de vários foros competentes hierarquicamente equiparados”. Daí que “os tribunais dos Estados-Membros da nacionalidade dos cônjuges são competentes ao abrigo desta norma, podendo estes últimos escolher o tribunal do Estado-Membro em que pretendem instaurar o processo”.
Ora, afastado o critério da residência habitual – um dos cônjuges em França e o outro em Andorra – teremos que nos socorrer do critério da nacionalidade pois, conforme resulta dos autos e foi alegado pelo autor, ambos os cônjuges têm a nacionalidade portuguesa, verificando-se, portanto, o critério da nacionalidade de ambos os cônjuges, tal como o refere o n.º 2, do art.º 3.º, do Regulamento (CE) 2201/2003 de 27 de novembro.
Resulta do exposto que, ainda que por razões diversas das apresentadas nas alegações de recurso, ter-se-á que julgar o tribunal português onde a acção foi interposta como competente (internacionalmente) para a julgar, procedendo a apelação e devendo, em consequência os autos prosseguirem os seus ulteriores trâmites legais.


III. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se julgar a apelação procedente, revogando-se a decisão recorrida e declarando-se o tribunal onde a ação foi instaurada, competente para conhecer da mesma, devendo os autos prosseguir os seus trâmites legais.
Sem custas.
***
Guimarães, 23 de novembro de 2017


Ana Cristina Duarte
João Diogo Rodrigues
Anabela Tenreiro