Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
6145/17.0T8GMR-A.G1
Relator: PAULO REIS
Descritores: ESCRITURA DE JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
NULIDADE
LEGITIMIDADE PASSIVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/27/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – Em ação na qual é peticionada a nulidade de escritura de justificação notarial, não assiste legitimidade passiva a réus que não foram intervenientes na referida escritura, nem são titulares do direito que se pretende impugnar com a ação, e relativamente aos quais não é formulado qualquer pedido;

II – Sendo invocados vícios suscetíveis de afetar a fé pública de documento autêntico, por via de atos e omissões imputados ao Notário que a celebrou, mostra-se consubstanciado o interesse legítimo e direto deste último na manutenção da validade e autenticidade do documento, enquanto órgão próprio que conferiu forma legal e fé pública ao ato documentado, assim lhe assistindo interesse direto em contradizer, pelo que tem legitimidade passiva”.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de (...):

I.
H. C. e marido D. V., melhor identificados nos autos, instauraram ação declarativa sob a forma de processo comum, contra José, Joaquina, Maria e marido J. F., todos devidamente identificados nos autos, impugnando a escritura de justificação notarial celebrada em 04 de abril de 2016, no Cartório Notarial, na Rua (…), perante o notário José, pela qual a ré Joaquina justificou a propriedade do prédio referenciado na petição inicial, pedindo:

1 - Que seja declarada a nulidade da escritura de justificação, outorgada no dia 04 de abril de 2016, no Cartório Notarial, na Rua (…), perante o Notário José;
2 - Que se ordene o cancelamento:

a) da inscrição do artigo (...).º Urbano da União das freguesias de (...) e (...), do concelho de (...), em nome de Joaquina no Serviço de Finanças: (...) - (...) - 1;
b) da inscrição da aquisição do prédio (...), da freguesia de (...) ((...)), a favor de Joaquina - AP. (...) de 2016/05/24 - na Conservatória dos Registos Predial, Comercial e Automóveis de (…);
c) e de todo e qualquer outro registo, que tenha por base a escritura de justificação outorgada no dia 04 de Abril de 2016, no Cartório Notarial.

Afirmam a falsidade da declaração constante da escritura de justificação, do requerimento de notificação edital prévia e do edital na parte em que mencionam que o prédio está registado a favor de H. C., “residente em parte incerta da Europa” pois a transmissão do prédio encontra-se registada a favor da autora, ora recorrente com morada certa e indicada, alegando que quando foi outorgada a escritura de justificação, a alegada justificante contava 87 anos de idade, dependia inteiramente do auxílio de terceiros para executar as tarefas pessoas mais simples, não dispondo de capacidade para se deslocar à cidade do Porto, de querer ou entender as declarações que lhe são atribuídas na escritura de justificação e nos documentos que integram o respetivo processo de notificação prévia, sendo igualmente falsa a declaração feita pelo Notário na escritura de justificação “de que notificou a titular inscrita do prédio, nos termos do art.º 99.º do Código do Notariado”, pois tal não aconteceu, sendo tal escritura também nula porque tem por objeto um prédio urbano e o Notário não fez menção à licença de utilização nem à sua eventual dispensa.

Alegam ainda a falsidade das declarações da ré Joaquina na referida escritura de justificação, e dos abonadores que intervieram na escritura de justificação, e confirmaram a veracidade das declarações prestadas pela justificante, porquanto esta sabe e sempre reconheceu que o prédio em questão pertenceu aos seus tios, João e mulher Joaquina S. e que, por falecimento destes, o prédio passou a pertencer aos filhos de ambos, a ora autora H. C. e o seu irmão E. C. e que tanto a ré como os seus pais viveram no prédio dos autos, gratuitamente, por mero favor da autora e do seu irmão.

Por último, sustentam que os réus Maria e marido J. F. agiram com a consciência e perfeito conhecimento de que são falsos e fraudulentos os factos descritos na escritura de justificação, no pedido da notificação edital prévia e no respetivo edital, lançando mão desse expediente com a colaboração dos abonadores que recrutaram, e do notário que escolheram, para se apropriarem do prédio dos autos, ilicitamente e contra a vontade da sua real proprietária e possuidora, a autora H. C., impedindo assim a sua entrega judicial no processo de execução que lhes foi movido pela autora e marido na sequência de uma outra ação instaurada por estes instaurada e que veio a declarar a nulidade de outra escritura de compra e venda, de 25 de maio de 2005, celebrada após prévia ação de justificação judicial, tratando-se da segunda tentativa por parte destes para se apropriarem do prédio em referência, conforme melhor descrevem.

Os réus contestaram, sendo que o réu José suscitou a ineptidão da petição inicial, bem como a respetiva ilegitimidade passiva, o mesmo sucedendo com os réus Maria e marido J. F., que também arguiram a ilegitimidade do autor D. V..

Exercido o contraditório, e dispensada a audiência prévia, foi então proferido despacho saneador, em 01-05-2018, que declarou a ilegitimidade ativa do cônjuge-marido para prosseguir nos autos, absolvendo por isso e no que a respeita ao mesmo todos os réus da instância, julgando ainda procedente a exceção de ilegitimidade passiva relativamente aos réus José, Maria e J. F. para contra eles prosseguir a causa, absolvendo-os da instância.

Foi determinado o prosseguimento da ação com a autora-mulher e a ré Joaquina, nos seguintes termos:

«(…)
Os RR José, Maria e J. F. invocaram a sua ilegitimidade passiva.

De harmonia com o disposto no artigo 30º nºs. 1 e 2, do Código de Processo Civil, o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer, exprimindo-se este interesse pelo prejuízo que dessa procedência advenha. Este interesse “Tal como no campo do direito material, há que aferir, em regra, pela titularidade dos interesses em jogo (no processo), isto é, como dizem os ns. 1 e 2, pelo interesse direto (e não indireto ou derivado) em demandar, exprimido pela vantagem jurídica que resultará para o autor a procedência da ação, e pelo interesse direto em contradizer, exprimido pela desvantagem jurídica que resultará para o réu a sua perda, ou, considerado o caso julgado material formado pela absolvição do pedido, pela vantagem jurídica que dela resultará para o réu[ José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 1º, 2ª ed., Coimbra Editora, 2008, pag. 51 e 52].

Consistindo a ação de impugnação de justificação notarial um ação de simples apreciação negativa [Cfr. neste sentido, entre outros, Acórdão do STJ para fixação de jurisprudência nº 1/2008, publicado no DR, 1ª Série, nº 63, de 31.03.2008.], na jurisprudência, a legitimidade passiva recairá no sujeito do dever jurídico correspondente ao direito negado ao autor ou ao titular do direito afirmado contra este; no caso da ação destinada a obter a declaração da existência ou inexistência dum facto, o réu deve ser a pessoa diretamente interessada na versão oposta à do autor.

Ou seja, sendo a primeira outorgante, ora ré, que afirma ser única titular do direito que os autores pretendem impugnar com a presente ação, será esta a verdadeira e única titular do lado passivo da relação em causa.

Os RR Maria e J. F., nenhuma intervenção tiveram na escritura de justificação e nada de relevante para estes autos lhes vem imputado na petição inicial.

Só, por lapso, se, entende a sua inclusão na ação, uma vez que também não foi contra estes deduzido qualquer pedido

Existe correspondência entre a legitimidade para intervir como justificante, para a justificação notarial, e a legitimidade passiva para a ação de impugnação:

Donde a ilegitimidade destes RR José, Maria e J. F. para contra eles prosseguir a causa que e em tais termos são absolvidos da instância de acordo com o disposto no artº 577 e) e 576º nº1 e 2 ambos do Código de Processo Civil.

Prosseguem os autos com as partes legitimas, a saber:

A A. mulher e a Ré justificante, H. C.».

Inconformada, a autora apresentou-se a recorrer, pugnando no sentido da revogação do despacho recorrido, terminando as respetivas alegações com as seguintes conclusões (que se transcrevem):

«Primeira: - O presente recurso tem por objecto a douta decisão proferida no despacho saneador, que declarou a ilegitimidade dos Réus, José e Maria e marido J. F., e os absolveu da instância.

Segunda: - As justificações notariais estão reguladas na SUBSECÇÃO II - art.ºs 89.º a 101.º - da SECÇÃO II - Escrituras especiais - do Código do Notariado;
e na escritura de justificação notarial intervêm, sempre TRÊS categorias de sujeitos - o notário, o justificante e os declarantes -. Terceira: - Assim, “in casu”, constituíam obrigações do notário, José:

a) Verificar a regularidade do “auto requerimento” apresentado em nome da Ré, Joaquina, junto com a petição inicial como documento n.º 8, e verificar a sua correspondência, ou não, com a respectiva prova documental, comparando-o com o teor da certidão do registo do imóvel, emitida pela Conservatória do Registo Predial de (...);
b) recusar o pedido de notificação edital da ora Autora, porque do registo do imóvel, na Conservatória do Registo Predial de (...), consta a titular inscrita, H. C., ora Autora, casada com D. V., no regime da separação, de bens, com a Morada: 361, Rue (…), e a Localidade: França;
c) Notificar a ora Autora, titular inscrita do imóvel, do teor do requerimento mencionado na alínea a), por meio de carta registada, dirigida para a sua residência, constante do respectivo registo - 361, Rue (…), França - nos termos do disposto no art.º 249.º n.º 1 do CPC, aplicável ex vi do art.º 99.º, n.º 5 do Código do Notariado.

Quarta: - O notário não só não cumpriu qualquer das obrigações mencionadas na conclusão anterior, como fez constar da escritura, a declaração da justificante, de que “na Conservatória do registo Predial de (...), aquele imóvel está registado definitivamente a favor de H. C., casada com D. V., no regime da separação de bens - o que é verdade, - mas logo seguida da declaração “residente em parte incerta da Europa” - o que é falso; o notário fez também a seguinte menção falsa, na escritura: - “ Notifiquei nos termos do artigo 99.º do Código do Notariado os titulares inscritos bem como os seus herdeiros”

Quinta: - Os referidos actos e omissões do notário são suficientes para, por si só, fundamentarem a acção destinada a obter a declaração da nulidade da escritura de justificação.

Sexta: Cumulativamente, porém, ou não, com os fundamentos referidos na conclusão anterior, a acção de impugnação de justificação notarial pode ter por fundamento a falsidade das declarações atribuídas à justificante e confirmadas, dolosa e falsamente, pelos declarantes.

Sétima: - A Autora intentou a presente acção e, como fundamento do pedido da declaração de nulidade da escritura de justificação e dos actos de registo na Conservatória do Registo Predial do Registo Predial de (...) e nos Serviços de Finanças de (...) que dela dependem, alegou:

a) os actos e omissões ilícitos do notário, referidos nas conclusões terceira e quarta;
b) a falsidade das declarações atribuídas à justificante, Joaquina, confirmadas, dolosa e falsamente, pelos declarantes;
c) a incapacidade da justificante, Joaquina, de querer e de entender as declarações que lhe são atribuídas na escritura de justificação;
d) e imputou aos Réus Maria e marido J. F., filha e genro da Joaquina, a real autoria, o interesse e o proveito da escritura de justificação notarial, pelas razões invocadas nos art.ºs 24.º a 40.º, inclusive, da petição inicial.

Oitava: - Assim, ressalvado sempre o devido respeito e salvo melhor opinião, a presente acção teria de ser intentada contra todos os Réus:

a) Contra a Ré Joaquina, por figurar como justificante, na escritura de justificação notarial, e lhe poderem ser atribuídas as correspondentes declarações falsas, apesar da sua alegada incapacidade de querer e entender tais declarações;
b) Contra o notário, José, a quem são imputados os actos e omissões mencionados nas conclusões terceira e quarta, e lhe caber o direito e o interesse de se defender imputação de tais actos e omissões;
c) Contra os Réus Maria e marido J. F., a quem a Autora imputa, fundadamente, a real autoria, o interesse e o proveito da concepção e realização da escritura de justificação notarial, utilizando, para tanto, a Ré Joaquina, como justificante, apesar da sua alegada incapacidade de querer e entender as respectivas declarações e a sua falsidade, cabendo-lhes, assim, o direito e o interesse de se defenderem da imputação desses actos,

Nona: - O Tribunal “a quo” devia ter interpretado as normas dos art.ºs 577, alínea e) e 576.º n.º 1 e 2, à luz do disposto no n.º 3 do art.º 30.º, todos do Código de Processo Civil, e considerar os Réus José e Maria e marido J. F., titulares do interesse relevante para o efeito da sua legitimidade, como sujeitos da relação controvertida como é configurada pela Autora.

Décima; - A douta decisão recorrida viola ou não faz correcta interpretação e aplicação das normas dos art.ºs 30.º, n.º 3; 577.º, alínea e): e 576.º n.º 1 e 2 do Código do Processo Civil, e art.º 99.º do Código do Notariado.

Pelo exposto e pelo douto suprimento, deve ser dado provimento ao presente recurso e, consequentemente, anulada a decisão recorrida e declarado que os Réus José e Maria e marido J. F. são partes legítimas, como é de justiça».
O réu José apresentou contra-alegações.

II.
Face às conclusões das alegações da recorrente e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (artigos. 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), o objeto do presente recurso circunscreve-se à questão de saber se os réus José, Maria e J. F. são ou não partes legítimas para a causa.
Corridos os vistos, cumpre decidir.

III.

1. Os factos

Os factos, as ocorrências e elementos processuais a considerar na decisão deste recurso são os que já constam do relatório enunciado em I. supra relevando ainda o seguinte:

1.1.1. Mostra-se alegado pelos autores na petição inicial, além do mais, que «o pedido do registo da inscrição referida no artigo anterior foi instruído com a escritura de Justificação outorgada no dia 04 de Abril de 2016, no Cartório Notarial, na Rua (...), perante o notário José, cuja certidão se junta e aqui se dá por integralmente reproduzida”;
1.1.2. No artigo 8.º da petição inicial foi feita a transcrição do teor da escritura de justificação, cuja certidão foi junta pelos autores como documento n.º 7 da petição inicial, e da qual consta o seguinte:

No dia quatro de Abril do ano dois mil e dezasseis, no Cartório Notarial da cidade do Porto à Rua (...), perante mim José, respectivo Notário, compareceram como outorgantes:
Primeiro: JOAQUINA, viúva, natural da freguesia de (...) ((...)), concelho de (...), onde é residente, no Lugar (...), possuidora do Bilhete de identidade número (...) de (…), NIF (...).
Segundo: - a)- F. M., (…) titular do Bilhete de Identidade número (…) de 11-01-2008;
b)- Pedro, (…) portador do Cartão de Cidadão número (…) válido até 09-07-2019;
c)-Maria S. (…) titular do Bilhete de Identidade número (…) de 21-09-2007, (…)

E PELA PRIMEIRA INTERVENIENTE FOI DITO:
Que ela, Joaquina, é dona e legitima possuidora com exclusão de outrem, do seguinte imóvel, sito na União de freguesias de (...) (Vila Nova) e (...) ((...)), concelho de (...):
Prédio urbano: - no Lugar (…), casa da habitação de um piso, logradouro, sendo a área total de novecentos e cinquenta metros quadrados (sc = 220,00 m2; sd=730,00 m2) a confrontar do Norte com Rio Fêveras; Sul e Nascente: Estrada (…) e Rua (...); Poente: "B. e Irmão, Lda”, descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) (Freguesia de (...) - (...)) sob o número … ((...)), inscrito na matriz sob o artigo ..., com o valor patrimonial tributável (e atribuído) de 32.390,00 €uros.

Que no entanto na Conservatória do Registo Predial de (...) aquele imóvel está registado definitivamente a favor de H. C. (ou H. C.) casada com D. V., no regime da separação de bens, residente em parte incerta da Europa, filha de João e de Joaquina S..
Que este imóvel foi doado em princípios do mês de Agosto de mil novecentos e quarenta e um, através de meras conversações verbais, pelos então titulares inscritos, ou seja, João, e mulher, Joaquina S. (ou Joaquina S.), casados no regime da comunhão geral de bens, residentes que foram no citado Lugar (…), com o encargo destes o transmitirem por sua morte (ocorridas em 11 de Maio de 1976 e 25 de Janeiro de 1991, respetivamente) a Joaquina (fideicomissária).

Que desde aquela data (Agosto de 1941) até hoje, P. M. e Maria, e Joaquina, sempre têm usufruído o mesmo prédio como coisa própria, autónoma e exclusiva, habitando-o, nele fazendo benfeitorias, dele retirando as utilidades normais de que é suscetível, sendo reconhecidos como seus donos por toda a gente, fazendo-o de boa fé por ignorarem lesar direito alheio, praticando os poderes de facto inerentes ao direito de propriedade plena na convicção de não lesarem direito de outrem, de forma ininterrupta, pacificamente e à vista de todas a gente, pelo que, na impossibilidade de poder comprovar a aquisição do identificado imóvel, resultante da doação verbal àqueles P. M. (fiduciários) com o encargo destes o transmitirem por sua morte a Joaquina (fideicomissária - com a condição de incomunicabilidade ao marido desta) pelos meios normais, justifica assim, nos termos da lei civil, de forma originária a sua aquisição por usucapião. E tudo isto por um lapso de tempo superior a vinte anos.

DISSERAM OS SEGUNDOS OUTORGANTES:

Que por serem totalmente verdadeiras confirmam as declarações prestadas pela primeira Interveniente Preveni a primeira e os segundos outorgantes de que incorrem nas penas aplicáveis ao crime de falsas declarações perante oficial público, se dolosamente ou em prejuízo de outrem as tiverem prestado ou confirmado.

ASSIM O DISSERAM E OUTORGARAM.

Notifiquei nos termos do artigo 99º do Código do Notariado os titulares inscritos bem como os seus herdeiros.
Arquivo: - a) Certidão permanente obtida via internet no dia 04 de Abril corrente [Código de Acesso: PP- (…)] disponibilizada em 04/04/2016 e válida até 04/10/2016 da qual extraí a descrição em vigor.
b) Documentos que integram o referido processo de notificação prévia.

Exibiram: - Caderneta Predial Urbana obtida via internet no dia de hoje [04-04-2016] mas oriunda do Serviço de Finanças do concelho de (...) [1] pela qual verifiquei o artigo e valor patrimonial tributável.
Esta escritura foi lida aos outorgantes e aos mesmos explicado o seu conteúdo em voz alta e na presença simultânea de todos os intervenientes. (…)».

2. O direito

A recorrente insurge-se contra o despacho saneador que declarou a ilegitimidade dos réus José, Maria e marido J. F., absolvendo-os da instância, concluindo que a ação teria de ser intentada contra todos os réus.

Como é sabido, a legitimidade das partes configura um pressuposto processual que deve ser apreciado e decidido à luz do que dispõe o artigo 30.º do Código de Processo Civil, o qual determina a aferição da legitimidade do réu pelo interesse direto em contradizer (n.º 1 do citado preceito), o qual se expressa pelo prejuízo derivado da procedência da ação (n.º 2).

Por último, esclarecendo o n.º 3 do art.º 30.º do Código de Processo Civil, que, na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.

Extrai-se de tal preceito legal, além do mais, que o legislador consagrou sem restrições o critério da determinação da legitimidade em função da titularidade da relação material controvertida com a configuração que lhe foi dada unilateralmente na petição inicial, importando como tal aferir qual é a posição relativa das partes face a tal relação.

Ponderando o critério legal definidor do interesse em demandar ou em contradizer, tal como previsto no n.º 2 do citado preceito legal, traduzido na utilidade ou prejuízo, diz-nos, a propósito, Rui Gonçalves Pinto (Notas ao Código de Processo Civil, volume I, 2.ª edição, 2015, Coimbra, Coimbra Editora, p. 64): «Este interesse afere-se em face da petição e segundo um juízo de prognose: supondo-se que o pedido seja procedente. Se em face da petição se percebe que a esfera jurídica da parte é indiferente à procedência, pois não ganha nem perde na procedência, então não tem legitimidade, sendo terceira».

Perante este enquadramento, e revertendo à situação dos autos, não vemos como sustentar a legitimidade processual passiva dos réus Maria e J. F..

Assim, vejamos.

Relativamente ao objeto da presente ação, delimitado pela respetiva causa de pedir e pelos pedidos formulados, verifica-se pelo alegado na petição inicial que a autora pretende obter a nulidade da escritura de justificação, outorgada no dia 04 de abril de 2016, no Cartório Notarial na Rua (...), no Porto, perante o Notário José, com o consequente cancelamento da inscrição do artigo (...).º Urbano da União das freguesias de (...) e (...), do concelho de (...), em nome de Joaquina no Serviço de Finanças: (...) - (...) – 1, da inscrição da aquisição do prédio (...), da freguesia de (...) ((...)), a favor de Joaquina - AP. (...) de 2016/05/24 - na Conservatória dos Registos Predial, Comercial e Automóveis de (...), bem como de todo e qualquer outro registo, que tenha por base a escritura de justificação outorgada no dia 04 de Abril de 2016, no Cartório Notarial, sustentando tal pretensão, no essencial, em duas ordens de fundamentos:

- a nulidade da escritura por via dos atos e omissões que considera imputáveis ao Notário que redigiu o instrumento público agora impugnado, concretamente, a falsidade da declaração constante da escritura de justificação, do requerimento de notificação edital prévia e do edital, na parte em que mencionam que o prédio está registado a favor de H. C., “residente em parte incerta da Europa” pois a transmissão do prédio encontra-se registada a favor da autora, ora recorrente, com morada certa e indicada; que quando foi outorgada a escritura de justificação, a alegada justificante contava 87 anos de idade, dependia inteiramente do auxílio de terceiros para executar as tarefas pessoas mais simples, não dispondo de capacidade para se deslocar à cidade do Porto, de querer ou entender as declarações que lhe são atribuídas na escritura de justificação e nos documentos que integram o respetivo processo de notificação prévia, sendo igualmente falsa a declaração feita pelo Notário na escritura de justificação “de que notificou a titular inscrita do prédio, nos termos do art.º 99.º do Código do Notariado”, pois tal não aconteceu, sendo tal escritura também nula porque tem por objeto um prédio urbano e o Notário não fez menção à licença de utilização nem à sua eventual dispensa;

- a falsidade das declarações da ré Joaquina e dos abonadores que intervieram na escritura de justificação, e confirmaram a veracidade das declarações prestadas pela justificante, porquanto esta sabe e sempre reconheceu que o prédio em questão pertenceu aos seus tios, João e mulher Joaquina S. e que, por falecimento destes, o prédio passou a pertencer aos filhos de ambos, a ora autora H. C. e o seu irmão E. C. e que tanto a ré como os seus pais viveram no prédio dos autos, gratuitamente, por mero favor da autora e do seu irmão.

Interpretando a pretensão da autora quando em confronto com este último segmento da causa de pedir, e independentemente da análise da qualificação jurídica do efeito pretendido, a qual não está em causa nesta sede, julgamos que a demandante pretende através dele atingir o direito invocado pela ré, Joaquina, na escritura de justificação notarial outorgada.

Nesta medida, e ponderando a titularidade da relação material controvertida com a configuração que lhe foi dada unilateralmente na petição inicial, revela-se indiscutível que a ré Joaquina é a única titular do direito que a autora pretende impugnar.

Na verdade, as escrituras de justificação notarial destinam-se ao estabelecimento de trato sucessivo, nos termos previstos no artigo 116.º, n.º 1 do Código do Registo Predial, mostrando-se reguladas nos artigos 89.º a 101.º do Código do Notariado. Neste domínio, prevê ainda o artigo 92.º, n.º 2 do Código do Notariado, a legitimidade para outorgar como justificante, a qual cabe ao pretenso titular do direito, bem como a quem demonstre ter legitimo interesse no registo do respetivo facto aquisitivo, incluindo, designadamente, os credores do titular do direito justificado, esclarecendo ainda o artigo 96.º do mesmo diploma que as declarações prestadas pelo justificante são confirmadas por três declarantes.

Neste domínio, é hoje pacífico na jurisprudência o entendimento de que a legitimidade passiva para intervir na ação de impugnação de escritura de justificação notarial cabe ao justificante [neste sentido, cf. entre outros, Ac. TRG de 11-07-2012 (relator: António Sobrinho), p. 3072/10.6T8VCT-G1; Ac. TRL de 10-11-2011 (relator: Maria João Areias), p. 242/09.3TCFUN.L1-7; Ac. TRP de 22-04-2010 (relator: Teles de Menezes), p. 2391/06.0TJVNF.P1, todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.].

Ora, no caso em apreciação, os réus Maria e J. F. não foram outorgantes na referida escritura de justificação notarial, nem são titulares do direito que a autora pretende impugnar com a presente ação.

Acresce que não vem formulado qualquer pedido específico contra estes réus, pelo que não se vislumbra que a alegação feita a propósito da invocada atuação destes réus - Maria e marido J. F. - com consciência e perfeito conhecimento da falsidade dos factos descritos na escritura de justificação, no pedido da notificação edital prévia e no respetivo edital, para se apropriarem do prédio dos autos, ilicitamente e contra a vontade da sua real proprietária, ou mesmo a invocada utilização da ré Joaquina, como justificante, apesar da sua alegada incapacidade de querer e entender as respetivas declarações e a sua falsidade, permita consubstanciar qualquer hipotético prejuízo decorrente para estes réus da eventual procedência da ação, atento o objeto desta, delimitado necessariamente pelo pedido concretamente formulado e com o alcance do caso julgado decorrente do mesmo.

Deste modo, e porque não se mostra deduzido qualquer pedido contra os réus, Maria e J. F., não se vê que a procedência da ação possa acarretar qualquer prejuízo para estes réus em termos de definição do direito, não bastando para tal um alegado interesse em se defenderem da imputação de tais atos.

Pelo exposto, não existe fundamento para os réus Maria e J. F. serem demandados na presente ação.

Em consequência, devem os mesmos ser considerados partes ilegítimas, com a consequente improcedência da apelação nesta parte.

A recorrente defende ainda a legitimidade do réu José, na qualidade de Notário, a quem são imputados os atos e omissões, assistindo-lhe o interesse em se defender de tais imputações.

Também aqui se verifica que na ação em apreciação não foi formulado qualquer pedido específico contra o réu José, o que parece afastar, à partida, um hipotético prejuízo decorrente para este da procedência da ação.

Porém, tal como se viu, a presente ação não se limita a impugnar a escritura com base na falsidade das declarações da ré Joaquina e dos abonadores que intervieram na escritura de justificação e confirmaram a veracidade das declarações ali prestadas pela justificante, suscitando ainda a nulidade da escritura por via dos atos e omissões, incluindo alegadas falsidades, que a ora recorrente considera imputáveis ao Notário que redigiu o instrumento público agora impugnado.

As justificações notariais devem especialmente celebrar-se por escritura pública, tal como impõe o artigo 80.º, n.º 2, al. a) do Código do Notariado, assumindo assim a natureza de documento autêntico de acordo com a classificação prevista no artigo 363.º do Código Civil, com a epígrafe Modalidades dos documentos escritos, o qual prevê, no n.º 2, o seguinte: «Autênticos são os documentos exarados, com as formalidades legais, pelas autoridades públicas nos limites da sua competência ou, dentro do círculo de actividade que lhe é atribuído, pelo notário ou outro oficial público provido de fé pública; todos os outros documentos são particulares».

Como consequência fundamental, o artigo 371.º n.º 1 do Código Civil, atribui-lhes força probatória plena, estabelecendo que os mesmos «fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora; os meros juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador».

Ora, destinando-se a função notarial a dar forma legal e conferir fé pública aos atos jurídicos, nos termos que decorrem do disposto no artigo 1.º, n.º 1 do Código do Notariado, compreende-se que as funções do Notário, ao redigir o instrumento público, não se circunscrevam às de mero documentador dos atos praticados, cabendo-lhe ainda, designadamente, indagar, interpretar e adequar a vontade das partes ao ordenamento jurídico, esclarecendo-as do seu valor e alcance (artigo 4.º, n.º 1 do Código do Notariado), podendo prestar assessoria às partes na expressão da sua vontade negocial (artigo 1.º, n.º 2 do Código do Notariado).

No domínio específico do caso em apreciação, vem imputada ao réu José a autoria do documento que consubstancia a justificação notarial impugnada, na qualidade de Notário que celebrou a referida escritura pública e presidiu ao ato, requerendo-se na petição inicial a nulidade da referida escritura de justificação por via de alegados atos e omissões - incluindo pretensas falsidades que a ora recorrente considera imputáveis ao referido réu - e não somente com base no conteúdo das declarações prestadas pela ré Joaquina e abonadores que intervieram na escritura de justificação, confirmando a veracidade das declarações prestadas pela justificante.

Assim sendo, dúvidas não restam de que os vícios invocados são suscetíveis de afetar a fé pública do documento autêntico, permitindo desta forma configurar um interesse legítimo e direto do réu José, enquanto Notário, na manutenção da validade e autenticidade do documento, como órgão próprio que conferiu forma legal e fé pública ao ato documentado(1).

Em consequência, deve o réu José ser considerado parte legítima na ação, pelo que procede a apelação nesta parte.

Cumpre, assim, conceder parcial provimento à apelação e revogar a decisão recorrida na parte em que declarou a ilegitimidade do réu José, confirmando-a na parte em que absolveu da instância os réus Maria e marido J. F..

Sumário:

I – Em ação na qual é peticionada a nulidade de escritura de justificação notarial, não assiste legitimidade passiva a réus que não foram intervenientes na referida escritura, nem são titulares do direito que se pretende impugnar com a ação, e relativamente aos quais não é formulado qualquer pedido;
II – Sendo invocados vícios suscetíveis de afetar a fé pública de documento autêntico, por via de atos e omissões imputados ao Notário que a celebrou, mostra-se consubstanciado o interesse legítimo e direto deste último na manutenção da validade e autenticidade do documento, enquanto órgão próprio que conferiu forma legal e fé pública ao ato documentado, assim lhe assistindo interesse direto em contradizer, pelo que tem legitimidade passiva.


IV.

Pelo exposto, acorda-se em conceder parcial procedência à apelação, em consequência do que se revoga a decisão recorrida na parte em que declarou a ilegitimidade do réu José, declarando-o parte legítima e confirmando no mais tal decisão.
Custas por recorrente e recorrido José, em partes iguais.
(...), 27 de setembro de 2018

Paulo Reis (relator)
Espinheira Baltar
Eva Almeida


1. No sentido de que para se pôr em causa a fé pública de um documento autêntico com base na sua falsidade ou nulidade tem de a ação ser proposta (também) contra a autoridade pública que presidiu ao ato (no caso o Notário), já que o documento autêntico constitui prova plena das declarações prestadas pelos outorgantes perante a entidade documentadora, sendo impensável que uma ação deste tipo pudesse ser julgada sem que essa autoridade pública não tivesse a possibilidade de defender-se, não sendo necessário que haja preceito legal a impor a necessidade expressa de ser demandado o Notário quando se ataque a autoridade dos seus atos por vícios imputáveis ao próprio e já não aos próprios outorgantes ou a terceiros, decidiu o Ac. TRP de 10-05-2005 (relator: Mário de Sousa Cruz), p. 0522204 disponível em http://www.dgsi.pt.; Já no Ac. TRG de 17-09-2009 (relator: Raquel Rego) p. 562/07.1TBCMN.G1, disponível em http://www.dgsi.pt., concluiu-se que a possibilidade de intervenção do Notário no processo não configurava uma situação de litisconsórcio necessário mas concebendo-se tal demanda em sede de litisconsórcio voluntário.