Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
330/12.9TBCMN-A.G1
Relator: FERNANDO FERNANDES FREITAS
Descritores: INSOLVÊNCIA CULPOSA
DOLO
CULPA GRAVE
DEVER DE REQUERER A INSOLVÊNCIA
OBRIGAÇÃO DE ELABORAR/DEPOSITAR AS CONTAS
NEGÓCIO RUINOSO
DISPOSIÇÃO DE BENS EM PROVEITO PESSOAL DE TERCEIROS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/17/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDÊNCIA
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- De acordo com o disposto no n.º 1 do art.º 186.º do C.I.R.E. a insolvência considera-se culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores à data do início do processo de insolvência.

II- Actua com dolo o devedor ou os administradores da pessoa colectiva que tenham agido com a intenção de obter um resultado ilícito, atendendo aos interesses que o quadro legislativo visa proteger, assim como quando tenham actuado sabendo que a obtenção deste resultado é uma consequência necessária, ou possível, do seu comportamento, e aceitam-no, não se desviando do objectivo que traçaram.

III- O conceito de culpa grave equiparar-se-á ao conceito de negligência grosseira, isto é, a prática de um acto que só uma pessoa excepcionalmente descuidada comete. Um erro imperdoável, uma incúria indesculpável, vistos em confronto com o comportamento do comum das pessoas, mesmo daquelas que são pouco diligentes.

IV- No n.º 2 do art.º 186.º do CIRE vêm taxativamente elencados certos comportamentos dos administradores que constituem presunções juris et de jure (não admitindo, por isso, prova em contrário) de insolvência culposa. Trata-se de comportamentos que afectam negativamente, e de forma muito significativa, o património do devedor, e eles próprios apontam, de modo inequívoco, para a intenção de obstaculizar o ressarcimento dos credores.

V- Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores não tenham cumprido o dever de requerer a declaração de insolvência, ou não tenham satisfeito a obrigação de elaborar as contas anuais no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na Conservatória do Registo Comercial, presunções que, porém, são ilidíveis.

VI- Para o preenchimento da alínea b) do n.º 2 do art.º 186.º do CIRE é suficiente a criação ou o agravamento artificial de passivos ou prejuízos ou a redução de lucros, posto que a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com ele especialmente relacionadas é apontado como um mero exemplo de situações passíveis de exprimir aquela conduta, como se retira do advérbio “nomeadamente”.

VII- Dispõe de bens do devedor em proveito pessoal de terceiros, para efeitos da alínea d) do supramencionado preceito legal, o administrador que, sem qualquer contrapartida, no acto da celebração de um contrato-promessa de compra e venda faz entrega a uma sociedade comercial, promitente-compradora, de 30 imóveis pertencentes à devedora, promitente-vendedora.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

A) RELATÓRIO

I.- Na sequência da declaração da insolvência da sociedade comercial “X - Empreendimentos Imobiliários, S.A.”, veio o credor “Banco ..., S.A. – Sucursal em Portugal”, requerer a qualificação da insolvência como culposa, alegando estarem verificadas as circunstâncias previstas nas al.s b) e d) do n.º 2 do art.º 186.º do CIRE.
Foi declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência por despacho proferido em 15/10/2014.
O Sr. Administrador da Insolvência (A.I.) emitiu parecer no sentido de a insolvência ser qualificada como culposa e de ser afectado pela qualificação o actual Administrador da requerida/devedora M. J..
Para justificar a qualificação de insolvência como culposa, o Sr. A.I. invocou o preenchimento das circunstâncias previstas nas als. b) e d) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, fundamentado no contrato-promessa de compra e venda que a Insolvente celebrou com a sociedade comercial “V. V. - Serviços, S. A.” prometendo-lhe vender todo o seu património pelo valor global de € 5.005.000, que esta, promitente-compradora, se comprometeu a pagar entregando, a título de sinal, a quantia de € 2.400.000, uma parte a liquidar por meio de cheque no valor de € 50.000 e outra parte - € 2.350.000 - através de encontro de contas, contrato que a Insolvente incumpriu, o que motivou a sua resolução e a propositura de uma acção judicial pela “V. V., S.A.”, que a Insolvente não contestou, sendo condenada, além do mais, no pagamento do sinal em dobro e na importância de € 500 por mês de atraso no pagamento das quantias em que foi condenada, até integral pagamento, reconhecendo-se ainda à referida “V. V., S.A.” o direito de retenção sobre as fracções prometidas-vender, até que se mostrem pagas as quantias que lhe foram arbitradas.
Não foi obtida qualquer prova concreta do fluxo financeiro associado à entrega do cheque e ao encontro de contas acima referidos.
O Ministério Público concordou com o parecer do Sr. A.I..
Apenas o administrador da devedora/insolvente, M. J., deduziu oposição, na qual refutou a factualidade e argumentos invocados pelo Sr. A.I. para fundamentar o seu parecer da qualificação da insolvência como culposa, argumentando que a situação de insolvência se deveu à crise do sector imobiliário e do sector da construção civil, não existindo nexo de causalidade entre o agravamento dos créditos sobre a insolvente pelo decurso do tempo e a sua actuação, enquanto administrador da insolvente.
Concluiu pedindo a qualificação da insolvência como fortuita.
O Sr. A.I. e o credor “Banco ..., S.A.” responderam, impugnando o alegado pelo administrador da devedora/insolvente e reafirmando a posição anteriormente assumida, acrescentando a Credora estar verificada ainda a situação prevista na al. i) do n.º 2 do art.º 186.º do CIRE.

Os autos prosseguiram os seus termos, vindo a proceder-se ao julgamento que culminou com a prolação de douta sentença decidindo:

a)- qualificar a insolvência da sociedade X - Empreendimentos Imobiliários, S.A. como culposa;
b)- declarar que é afectado pela qualificação da insolvência M. J.;
c)- decretar a inibição da pessoa identificada na al. b) para administrar patrimónios de terceiros pelo período de sete anos;
d)- declarar a pessoa identificada na al. b) inibida para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa durante o período de sete anos;
e)- determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detido pela pessoa identificada na al. b) e a sua condenação na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos;
f)- condenar a pessoa identificada na al. b) a indemnizar os credores da devedora declarada insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do respectivo património, a efectuar em liquidação de sentença.

Inconformado, traz o referido M. J. o presente recurso pedindo a revogação da supra transcrita decisão e se declare a insolvência como fortuita. Subsidiariamente pede a alteração da mesma decisão quanto ao período de inibição a que aludem as alíneas b) e c) do nº 2 do artº 189º do CIRE, propugnando pela sua fixação pelo mínimo legal de 2 anos.
Não foram oferecidas contra-alegações.
O recurso foi recebido como de apelação, com efeito devolutivo.
Colhidos, que se mostram, os vistos legais, cumpre decidir.
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II.- O Apelante formulou as seguintes conclusões:

A.- Como consta da douta sentença recorrida, a factualidade apurada não permite concluir que a sociedade V. V. é uma sociedade especialmente relacionada com a devedora.
B.- Como vem sendo decidido maioritariamente, a correcta interpretação do disposto o artº 186º nº 1 do CIRE (apesar da desarmonia existente na doutrina e na jurisprudência) é no sentido de que quer as situações que se encontram prevenidas nas alíneas a), b), c), d), e), f) e g) do nº 2 desse artigo, quer as situações descritas nas alíneas do seu nº 3, embora fazendo presumir a culpa (grave, nos casos que se enquadrem no aludido nº 3) dos administradores, só autorizam a qualificar a insolvência como culposa se se evidenciar a existência de nexo de causalidade entre essas faltas e o estado de insolvência.
C.- A explicação para a declaração de verificação da situação prevista na alínea b) do nº 2 do artº 186º do CIRE não se percebe.
D.- Da factualidade provada não resulta qualquer agravamento artificial de passivos, nem a celebração de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionados (como já dissemos a douta sentença excluiu expressamente a existência de espacial relacionamento entre as sociedades contratantes).
E.- Na versão da sentença não foi a celebração do contrato promessa, mas sim o seu incumprimento e a não contestação da acção, que agravaram artificialmente o passivo da insolvente.
F.- Porém, os bens imóveis prometidos vender não saíram do património da devedora (exactamente pelo incumprimento do contrato) e o crédito reclamado pela promitente compradora não foi reconhecido, o que desmente o agravamento do passivo, artificial ou não.
G.- No caso concreto, não só não existe qualquer fundamentação de facto, como há uma total ausência de fundamentação de direito justificativa do despacho proferido quanto à verificação da situação prevista na alínea b) do artº 186º do CIRE.
H.- E este dever de fundamentação das decisões judiciais tem até consagração constitucional no artº 205º nº 1 da Constituição da República Portuguesa, nos termos do qual “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na Lei”
I.- Nesta parte a decisão é nula porque não especifica os fundamentos de facto e de direito que a justificam, conforme dispõe o art.º 615º n.º 1 al. b) do Código de Processo Civil
J.- O incumprimento do contrato promessa tem justificação e ela consta da matéria factual provada; foi a impossibilidade de cumprir o contrato, vendendo os bens imóveis livres de quaisquer ónus ou encargos, como prometido, que determinou o incumprimento.
K.- A alusão que na sentença se faz à não contestação da acção intentada pela V. V. e a invocação desta falta para fundamentar a verificação da previsão das alíneas d) e f) do nº 2 do artº 186º do CIRE é incompreensível. A devedora não contestou a acção porque todos os factos invocados pela autora eram verdadeiros.
L.- Não há, consequentemente, qualquer agravamento artificial do passivo, nem celebração de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas, não se verificando a situação prevista na alínea b) do n.º 2 do art.º 186º do CIRE.
M.- “Para que opere a presunção estabelecida no artº 186º nº 2 al. d) do CIRE, necessário é que se prove que a disposição dos bens da insolvente tenha sido em proveito pessoal dos bens administradores/gerentes de facto ou de terceiro, não bastando que se tenha provado a transmissão de bens da insolvente para terceiros.”
N.- A douta sentença lança mão dos contratos referidos nos factos provados sob os n.ºs 26 (cessão de quotas) e 29 (cessão de participações sociais), para fundamentar a verificação da situação prevista na alínea d) do nº 2 artº 186º do CIRE, afirmando que tais cessões, ou nunca existiram, ou então foram negócios que tiveram como único fito favorecer a V. V..
O.- Mas os contratos referidos nos pontos 26 e 29 foram celebrados em 28-11-2008 e 12-08-2008 respectivamente, ou seja, mais de 3 anos antes do início do processo de insolvência, requerido em 24-06-2012 pela “Caixa ...” e, por isso, não podem fundamentar a qualificação da insolvência como culposa, nos termos do art.º 186º n.º 1 (parte final) do CIRE.
P.- Não pode declarar-se verificada a situação prevista na alínea d) do n.º 2 do art.º 186º do CIRE porque não há qualquer disposição de bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros, até porque os bens imóveis nunca saíram do património da devedora.
Q.- A douta sentença ainda entendeu que a factualidade relativa ao contrato promessa e ao seu incumprimento configura a previsão da alínea f) do n.º 2 do art.º 186º do CIRE,
R.- Repete-se que não houve nenhum acto de disposição de bens, na medida em que a compra e venda prometida se não concretizou.
S.- Também não houve favorecimento pessoal, nem de outra sociedade na qual tenha interesse directo ou indirecto, nem favorecimento da promitente-compradora que não tem os bens, não recebeu o sinal prestado e não viu o seu crédito, relativo ao dobro do sinal, reconhecido.
T.- Por isso, não se verifica a situação prevista na alínea f) do n.º 2 do art.º 186º do CIRE.
U.- Como é jurisprudência dominante, não é suficiente para a qualificação da insolvência como culposa, a mera alegação de algumas das situações descritas nos nºs 2 e 3 do artº 186º do CIRE
V.- É necessário alegar e provar o nexo de causalidade entre essas situações e a situação de insolvência, como decorre do nº 1 do mesmo artigo
X.- Mesmo aqueles que entendem que o incumprimento em termos substanciais da obrigação de manter a contabilidade organizada constitui uma presunção inilidível de insolvência culposa, acrescentam (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 16/04/2013) “Porém, para que tal incumprimento ocorra é essencial que as irregularidades verificadas tenham influência na percepção que se possa ter da situação patrimonial e financeira da insolvente, delas resultando o propósito de, designadamente, mediante ocultação de documentos e desrespeito pelas boas práticas contabilísticas, esconder aquela situação patrimonial e financeira.”
Y.- No caso concreto não há, por um lado, factos provados que possam sustentar que da omissão de cumprimento das obrigações referidas nas citadas alíneas e), g), h) e i) do nº 2 do artº 186º do CIRE tenha decorrido qualquer agravamento da situação de insolvência, nem, por outro lado, que manifestem o propósito de esconder a situação patrimonial e financeira.
Z.- E, assim, por falta de factualidade provada, não se pode dar como verificada que a situação de insolvência, ou o seu agravamento, delas decorra.
AA.- Se se entender que existe factualidade que permite a qualificação da insolvência como culposa (no que não se concede) o período de inibição a que aludem as alíneas b) e c) do nº 2 do artº 189º do CIRE não deve exceder o mínimo, fixando-se em 2 anos.
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III.- Como resulta do disposto nos art.os 608.º, n.º 2, ex vi do art.º 663.º, n.º 2; 635.º, n.º 4; 639.º, n.os 1 a 3; 641.º, n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, (C.P.C.), sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.

Consideradas as conclusões acima transcritas cumprirá:

- conhecer da nulidade arguida à sentença;
- verificar se a facticidade apurada preenche alguma das circunstâncias que concorrem para a declaração da insolvência como culposa;
- declarada culposa a insolvência reapreciar os critérios de fixação do prazo de inibição a que aludem as alíneas b) e c) do n.º 2 do art.º 189.º do C.I.R.E..
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B) FUNDAMENTAÇÃO

IV.- O Apelante invoca a nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do art.º 615.º do C.P.C. alegando não constar da sentença “qualquer fundamentação de facto” e haver “uma total ausência de fundamentação de direito justificativa … quanto à verificação da situação prevista na alínea b) do art.º 186º do CIRE (cfr. conclusão G)).
O n.º 1 do art.º 615.º do C.P.C. enuncia taxativamente as causas de nulidade da sentença. Trata-se de vícios formais, que afectam a sentença na sua estrutura (alíneas b) e c)), na sua inteligibilidade (2.ª parte da alínea c)), ou nos seus limites (alíneas d) e e)), e são distintos de outros vícios, designadamente o de erro de julgamento.
Assim, é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão - cfr. alínea b).
Trata-se, pois, da inobservância do disposto nos n.os 3 e 4 do art.º 607.º do C.P.C..
A necessidade de fundamentação da sentença decorre hoje de uma exigência constitucional, consagrada no nº. 1 do artº. 205º., da Constituição.
JOSÉ LEBRE DE FREITAS, MONTALVÃO MACHADO, e RUI PINTO referem-se à fundamentação como “um elemento fundamental na transparência da justiça, inerente ao acto jurisdicional” (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2º., 2.ª ed., pág.661), desiderato que se atinge no seu nível mais elevado quando o juiz consegue convencer as partes, a quem a decisão se dirige, da correcção da sua decisão.
Já ALBERTO DOS REIS chamava a atenção para a necessidade de a parte vencida “conhecer as razões por que o foi, para que possa atacá-las no recurso que interpuser”, e mesmo que não seja admissível o recurso, “uma decisão vale, sob o ponto de vista doutrinal, o que valerem os seus fundamentos”, que “se destinam precisamente a convencer de que a decisão é conforme à justiça (in “Comentário ao Código de Processo Civil”, vol. 2º., pág. 172).
Como vem sendo entendimento uniforme só a ausência total de fundamentação é que constitui a nulidade prevista na alínea b) do nº. 1 do artº. 615.º, referido.
Na situação sub judicio, a sentença discrimina os factos relativos ao contrato-promessa e ao incumprimento – cfr. n.os 19 a 25 e 36 a 38 – e fez a integração jurídica destes factos ao longo de página e meia.
Destarte, concorde-se ou não com a fundamentação, é irrecusável que ela existe, não enfermando, por isso, a sentença do vício que vem invocado.
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V.- O Tribunal a quo proferiu a seguinte decisão de facto:

i) julgou provado que:

1) A devedora, X - Empreendimentos Imobiliários, S.A., pessoa colectiva n.º …, foi constituída em 22/02/1992 como sociedade por quotas e com a sua sede social na Avenida …, Matosinhos;
2) O seu objecto social era “construção, ampliação, transformação, restauração e demolição de edifícios, compra, venda e revenda de imóveis adquiridos para esse fim, administração de propriedades. Aquisição de terrenos, construção e constituição de loteamentos, urbanizações e propriedades horizontais e a sua revenda no todo ou em parte.
3) Em 26/05/2010, a devedora alterou a sua sede social para a Rua …, Centro Comercial …, em …;
4) É seu administrador único desde 01/10/2007 M. J.;
5) Em 24/06/2012, o credor Banco ..., S.A. requereu a insolvência da devedora X - Empreendimentos Imobiliários, S.A.;
6) Por sentença proferida em 18/07/2014, transitada em julgada em 11/08/2014, foi declarada a insolvência da devedora X - Empreendimentos Imobiliários, S.A.;
7) O Sr. AI apresentou o relatório a que alude o art.º 155.º do CIRE em 08/09/2014;
8) Na assembleia de credores que teve lugar em 12/09/2014 foi deliberado proceder à liquidação do activo da Insolvente;
9) Foram apreendidos para a massa insolvente os bens imóveis (30 verbas) descritos no auto de apreensão de bens junto no apenso B (em 09/12/2014), situados em …, Matosinhos, com o valor patrimonial global de € 4.130.869,69;
10) Posteriormente, em 26/04/2017, foi decidido separar da massa insolvente e restituir aos adquirentes a verba n.º 29 (fracção AY do prédio urbano sito na Travessa …, com o valor patrimonial de € 3.660), apenso B - apreensão de bens;
11) Nos autos de reclamação de créditos apensos a estes (apenso C) foram reconhecidos pelo Sr. AI os seguintes créditos:
- o crédito de € 7.362.324,96 da Caixa ..., ..., S.A., sendo o montante de € 7.361.399,96 garantido por hipoteca sobre os bens imóveis descritos nas verbas n.ºs 1 a 28 do auto de apreensão de bens;
- o crédito de € 143.324,82 da Autoridade Tributária proveniente de IMI, IMT, IRC, coimas e juros, gozando de privilégio imobiliário especial e de privilégio imobiliário geral os créditos provenientes de IMI, IMT e de IRC;
- o crédito comum de € 15.081,68 de G. C. & Associados …, Lda; e
12) Não foi reconhecido pelo Sr. AI o crédito de € 7.972.500 reclamado como privilegiado com direito de retenção sobre o produto dos prédios descritos no auto de apreensão pela sociedade V. V. - Serviços, S.A.;
13) A V. V. - Serviços, S.A. impugnou a lista de créditos não reconhecidos para que lhe seja reconhecido o referido crédito e garantido, não tendo ainda sido proferida sentença de verificação e de graduação de créditos;
14) A sociedade V. V. - Serviços, S. A., pessoa colectiva n.º …, foi constituída em 06/07/2006, com a sua sede social na Avenida …, Matosinhos;
15) Em 17/06/2008, a sociedade V. V. - Serviços, S.A. alterou a sua sede social para a Rua …, Centro Comercial …., em ….;
16) Em 27/05/2010, a sociedade V. V. - Serviços, S.A. alterou a sua sede social para a Avenida … (rectificado para … em 07/03/2012) loja AX;
17) Foi seu administrador único M. J. até 19/06/2008, data em que deixou de exercer tais funções, por renúncia;
18) Em 19/06/2008, foi designado administrador S. P., por cooptação;
19) Através de contrato-promessa de compra e venda datado de 09 de Janeiro de 2010, a sociedade devedora X - Empreendimentos Imobiliários, S.A., representada por M. J., prometeu vender à sociedade V. V. - Serviços, S.A., representada por S. P., e esta prometeu comprar, os prédios agora descritos sob as verbas n.ºs 1 a 30 do auto de apreensão de bens junto ao apenso B, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, pelo preço global de € 5.005.000,00 (cinco milhões e cinco mil euros);
20) Nos termos do referido contrato promessa, o preço seria pago pela sociedade V. V. à sociedade devedora X da seguinte forma: com a assinatura do contrato, a título de sinal e princípio de pagamento, a entrega da quantia de € 2.400.000 € (dois milhões e quatrocentos mil euros), sendo a quantia de € 50.000 (cinquenta mil euros) por meio do cheque n.º 2743859238 do banco ... e o montante de € 2.350.000 (dois milhões, trezentos e cinquenta mil euros) por encontro de contas, em conta corrente entre as contraentes, designadamente pelo crédito que a sociedade V. V. detinha sobre a sociedade devedora; na data da escritura, a entrega do valor remanescente do preço, € 2.605.000 (dois milhões, seiscentos e cinco mil euros);
21) Ficou também estipulado no referido contrato promessa que a sociedade X dava a respectiva quitação do valor recebido, ou seja de € 2.400.000 € (dois milhões e quatrocentos mil euros);
22) Na cláusula terceira do contrato promessa referido estipulou-se a obrigação de a devedora X marcar a escritura pública até ao dia 20 de Março de 2010;
23) E que, com a assinatura do mesmo contrato, a V. V. entraria na posse dos prédios atrás descritos, conferindo-se pela presente tradição real e efectiva dos mesmos;
24) Por escrito com data de 12/01/2010 intitulado “Aditamento ao contrato promessa de compra e venda celebrado aos 9 de Janeiro de 2010”, a X - Empreendimentos Imobiliários, S.A., representada por M. J., e a V. V. - Serviços, S.A., representada por S. P., acordaram em proceder à alteração das alíneas b) e c) do número 2 da Cláusula Segunda do contrato promessa referido, nos termos seguintes:
b) A quantia de 53.000,00€ (cinquenta e três mil euros) por meio do cheque n.º 0943859240 do banco ....
c) O montante de 2.347.0000 € (dois milhões trezentos e quarenta e sete mil euros), por encontro de contas em conta corrente entre as contraentes, designadamente pelo crédito que a segunda contraente detém sobre a primeira contraente.
25) Acordaram ainda na cláusula segunda de tal aditamento que “Atenta a alteração referida na cláusula anterior, e à entrega efectuada nesta data do cheque supra melhor identificado, a segunda contraente procede à devolução à primeira contraente do cheque número 2743859238 do banco ... no valor de 50.000,00 €”;
26) Através do escrito intitulado Contrato de Cessão de Quotas, datado de 28 de Novembro de 2008, subscrito pela sociedade devedora X - Empreendimentos Imobiliários, S.A., representada por M. J., e pela sociedade V. V. - Serviços, S.A., representada por S. P., esta sociedade declarou vender àquela a participação que detinha na sociedade, que corresponde a 74% do total do capital social, da sociedade P. - Empreendimentos Imobiliários, Lda pelo valor de € 1.147.000,00 (um milhão e cento e quarenta e sete mil euros);
27) Em 28/11/2008, a V. V. - Serviços, S.A. não detinha qualquer participação social na P. - Empreendimentos Imobiliários, Lda, já que o seu capital social (de € 1.550.000,00) estava repartido da seguinte forma:
- quota de € 155.000,00 detida pela sociedade Y. – por cessão de quotas de R. N. em 11/11/2008;
- quota de 697.500,00 detida pela sociedade Y. – por cessão de quotas de M. J. em 11/11/2008;
- quota de 697.500,00 detida pela sociedade F. – Projectos e Engenharia Civil, Lda, por cessão de quotas de M. J. em 20/11/2008;
28) Por sentença proferida em 31/12/2008, no Processo 1109/08.8TBLSA do Tribunal da Lousã, a P. - Empreendimentos Imobiliários, Lda foi declarada insolvente;
29) Através do escrito intitulado Contrato de Cessão de Participação Social datado de 12 de Agosto de 2008, subscrito pela sociedade devedora X - Empreendimentos Imobiliários, S.A., representada por M. J., e pela sociedade V. V. - Serviços, S.A., representada por S. P., esta sociedade declarou vender àquela a participação de 240.000 acções que detinha na sociedade M. - Construção Civil e Obras Públicas, S.A. (posteriormente denominada de N., S.A.), pelo valor de € 1.200.000,00 (um milhão e duzentos mil euros);
30) Por sentença proferida em 31/03/2010, no Processo 795/09.6TBPNF do Tribunal de Caminha, a N., S.A. foi declarada insolvente;
31) Não foi facultado ao Administrador da Insolvência o documento a que se refere a alínea c) do n.º 1 do art.º 24.º do CIRE, contendo a actividade a que a insolvente se dedicou nos últimos três anos, o estabelecimento/estabelecimentos de que é/foi titular e as causas que, na óptica da devedora, levaram à situação de insolvência em que se encontra;
32) Resulta da matéria de facto contida na sentença de insolvência …. » cujas obras, «destinadas a completar os lotes em causa, encontram-se paradas pelo menos desde o ano de 2009» (factos provados T e AC);
33) O Administrador da Insolvência não conseguiu estabelecer qualquer contacto com o administrador (legal representante) da X até à elaboração do parecer previsto no art.º 188.º, n.º 2, do CIRE (em 04/12/2014), não obstante ter-lhe remetido por via postal registada com aviso de recepção, em 07/08/2014 e em 08/09/2014, comunicações (para as duas sedes conhecidas da sociedade) com o propósito de obter todos os elementos/informações/documentos necessários à compreensão da situação patrimonial, financeira e reditícia da insolvente, tendo tais missivas sido devolvidas ao remetente pelo serviço postal, a primeira com as indicações "não atendeu", "encerrado" e "avisado/objecto não reclamado" e a segunda com a indicação "desconhecido;
34) Tal administrador não se apresentou voluntariamente a prestar qualquer informação e/ou esclarecimento sobre a devedora;
35) O Administrador da Insolvência não logrou aceder e/ou proceder à consulta da contabilidade da empresa insolvente, que não lhe foi facultada;
36) A “X” não marcou a escritura pública de compra e venda dos imóveis referidos no contrato promessa aludido em 19);
37) A V. V. interpelou a “X” para o cumprimento do contrato promessa acima referido, não tendo a mesma dado qualquer resposta a tal interpelação;
38) Relativamente a tal contrato correu termos o processo nº 338/10.5TBPRD, do 2.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Paredes, que a ali Ré e ora insolvente não contestou, na qual foi proferida sentença transitada em julgado em 12/06/2012, que declarou tal contrato promessa resolvido e condenou a ora insolvente a restituir à A. o valor do sinal em dobro e a quantia diária de € 500, até integral pagamento, reconhecendo-lhe ainda direito de retenção sobre os bens até ao seu pagamento;
39) A Insolvente entrou em incumprimento das suas obrigações para com a Caixa ... , ..., S.A., pelo que esta instaurou a acção executiva n.º 2156/10.5TBMTS do 6.º Juízo Cível de Matosinhos contra a “X”;
40) A X deixou de submeter as suas contas a certificação legal por um Revisor Oficial de Contas desde 2007;
41) A devedora não elaborou nem submeteu à Autoridade Tributária, no prazo legal, as suas contas anuais a partir do ano de 2007;
42) A devedora não depositou as suas contas na Conservatória do Registo Comercial a partir do ano de 2007;
43) A matrícula da “V. V.” encontra-se cancelada e foi encerrada administrativamente por não submeter à AT as contas desde o exercício de 2008;
44) O cheque referido em 24) foi depositado na conta bancária da Insolvente.

ii) julgou não provados “quaisquer outros factos relevantes para a boa decisão da causa, designadamente os factos alegados nos art.ºs 3.º (a partir de “optou”), 5.º (a partir de “já que”), 6.º (a partir de “sempre”), 10.º, 15.º e 28.º da oposição deduzida por M. J.”.
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VI.- Feita a transcrição da facticidade provada, vejamos o direito aplicável.

1.- O processo de insolvência é um processo de execução universal cuja finalidade é a satisfação dos interesses dos credores, ou através de um plano de insolvência que permita a recuperação da empresa, ou através da liquidação do património do insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores.
No tráfego comercial os agentes económicos actuam num sistema de interligação pelo que quando um elemento “falha” as consequências económicas reflectem-se em todos os outros que com ele tiveram relações comerciais.
De acordo com o disposto nos art.os 64.º, n.º 1, alínea b) e 78.º, ambos do Código das Sociedades Comerciais, os gerentes ou administradores das sociedades comerciais estão obrigados a observar deveres de lealdade, para o que devem ponderar, para além dos interesses da sociedade, também os interesses dos outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade dela, tais como os seus trabalhadores, clientes e credores, respondendo para com estes quando, pela inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinadas à protecção dos credores, o património social se torne insuficiente para a satisfação dos respectivos créditos.
Assim é que de acordo com o disposto no n.º 1 do art.º 186.º do C.I.R.E. (como o serão todas as disposições legais infra citadas sem a menção do Diploma Legal respectivo), a insolvência se considera culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores à data do início do processo de insolvência.
Há dolo quando o devedor ou os administradores da pessoa colectiva tenham actuado com a intenção de obter um resultado ilícito, atendendo aos interesses que o quadro legislativo visa proteger, assim como quando tenham actuado sabendo que a obtenção deste resultado é uma consequência necessária, ou possível, do seu comportamento, e aceitam-no, não se desviando do seu objectivo.
O conceito de culpa grave pode equiparar-se ao conceito de negligência grosseira, isto é, a prática de um acto que só uma pessoa excepcionalmente descuidada comete. Um erro imperdoável, uma incúria indesculpável, vistos em confronto com o comportamento do comum das pessoas, mesmo daquelas que são pouco diligentes.
Para efeitos do C.I.R.E., são considerados administradores (não sendo o devedor uma pessoa singular) aqueles a quem incumba a administração ou a liquidação da entidade ou património em causa, designadamente os titulares do órgão social que para o efeito for competente – cfr. alínea a) do n.º 1 do art.º 6.º.
No n.º 2 do referido art.º 186.º vêm taxativamente (pelo menos no entendimento que se crê ser maioritário) elencados comportamentos que constituem presunções juris et de jure (não admitindo, por isso, prova em contrário) de insolvência culposa.
Refere o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 570/2008, de 26/11/2008, que nas mencionadas “situações típicas de insolvência culposa”, o legislador prescinde de “uma autónoma apreciação judicial acerca da existência de culpa como requisito da adopção das medidas restritivas previstas no artigo 189.º do CIRE contra os administradores julgados responsáveis pela insolvência”, pelo que, “uma vez demonstrado o facto nelas enunciado, fica, desde logo, estabelecido o juízo normativo de culpa do administrador, sem necessidade de demonstração do nexo causal entre a omissão dos deveres constantes das diversas alíneas do n.º 2 e a situação de insolvência ou o seu agravamento” (ut Proc.º 217/08, 3.ª Sec., Cons.º Vítor Gomes, in www.tribunalconstitucional.pt, igualmente consultável em www.direitoem dia.pt).
Trata-se de comportamentos que afectam negativamente, e de forma muito significativa, o património do devedor, e eles próprios apontam, de modo inequívoco, para a intenção de obstaculizar o ressarcimento dos credores.
De acordo com o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 70/2012, as previsões das alíneas a) a g) “reportam-se directamente a actos de gestão que é de presumir terem concorrido materialmente para a situação de insolvência (ou para o seu agravamento), e as alíneas h) e i) “incidem sobre formas de incumprimento que produzem ou podem produzir “efeitos de ocultação” sobre a real situação patrimonial e financeira do devedor, com todos os riscos que tal coenvolve, dificultando ainda uma actuação célere e eficaz do administrador da massa insolvente” (ut Proc.º 651/11, 2.ª Sec., Cons.º Joaquim de Sousa Ribeiro, in www.tribunalconstitucional.pt).
Nos termos do disposto no n.º 3 do referido art.º 186.º, a culpa grave presume-se quando o administrador: 1) não tenha cumprido o dever de requerer a declaração de insolvência; ou 2) não tenha satisfeito a obrigação de elaborar as contas anuais no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na Conservatória do Registo Comercial.
Estas presunções são, como é comumemente aceite, juris tantum, ilidíveis por prova em contrário, nos termos do n.º 2 do art.º 350.º do C.C..
Admite-se, pois, que o administrador da insolvente faça a prova de que, apesar de não haver cumprido aquele dever de apresentação à insolvência, ou as obrigações de elaborar as contas anuais, de as submeter à devida fiscalização, ou de as depositar na conservatória do registo comercial, não foi isso que provocou ou agravou o estado de insolvência da devedora.
Sendo a culpa grave apenas presumida, defende a maioria da jurisprudência e da doutrina que ela é insuficiente para qualificar a insolvência como culposa, por faltar um dos requisitos referidos no n.º 1 daquele art.º 186.º, impondo-se então demonstrar o nexo de causalidade entre a omissão culposa dos referidos dever e obrigação e a criação ou agravamento da situação de insolvência - cfr., v.g., Luis A. Carvalho Fernandes e João Labareda (in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 2.ª ed., págs. 719 e 720), e Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões (in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas”, Almedina, 2013, págs. 505 a 509) e os Acórdãos desta Relação de Guimarães de 02/11/2017 (ut Proc.º 32/14.1TBVMS-A.G1) e de 01/02/2018, que se funda em doutrina e jurisprudência aí profusamente citadas (ut Proc.º 5091/16.0T8VNF-B.G1, ambos in www.dgsi.pt).
Ainda que, de um modo geral, os gerentes e os administradores de uma sociedade comercial estejam obrigados aos deveres de cuidado, de lealdade e de boa gestão, que passa pelo cumprimento de todas as obrigações legais e contratuais – cfr. art.os 64.º e 78.º do Código das Sociedades Comerciais – só devem ser responsabilizados aqueles que pratiquem os actos que constituam infracção ao cumprimento destes deveres (bem vistas as coisas, as acções elencadas nas alíneas a) a g) do n.º 2 do art.º 186.º reconduzem-se ao âmbito daqueles deveres).
Como refere o Acórdão do S.T.J. de 05/09/2017, “Em sede de qualificação da insolvência, importa analisar os actos e omissões do devedor: a sua actuação. Os actos que são decisivos para a qualificação da insolvência, como fortuita ou culposa, assentam em presunções ilidíveis umas, inilidíveis outras, mas sempre radicando em actuações volitivas, conscientes, deliberadas do devedor insolvente.
Um dos actos que, no direito insolvencial, como no direito civil, revela acentuado desvalor jurídico e ético-negocial é a simulação – art. 240º do Código Civil – por implicar um fingimento, um deliberado conluio, um pacto doloso, tendo os pactuantes simuladores a intenção deliberada de enganar terceiros, no caso os credores.
Olhar a actuação dos devedores sob o prisma do resultado final, mesmo que, por força da sua censurável actuação, não seja nefasto: ponderar o acto em si mesmo, deixando de apreciar e valorar a actuação dos insolventes, relevando apenas o resultado, levaria a considerar, que, não tendo havido prejuízo final para os credores, a insolvência deveria ser considerada fortuita, não querida; se os credores, porventura, tiverem sido prejudicados a insolvência deveria considerar-se culposa. Cremos que este critério é inaceitável.” (ut Proc.º 733/14.4TYPRT-C.P1.S1, in https://www.direitoemdia.pt/document/s/7280aa).
2.- O Tribunal a quo considerou que o ora Apelante adoptou os comportamentos referidos nas alíneas b); d); f); e); g); h); e i) do n.º 2, e nas alíneas a) e b) do n.º 3, do art.º 186.º acima referido.

i) Nos termos do disposto naquele n.º 2, considera-se culposa a insolvência quando os administradores da devedora tenham:

b) Criado ou agravado artificialmente passivos, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionados;
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto.

No entendimento do Tribunal a quo o não cumprimento do contrato-promessa e a não contestação da acção proposta pela promitente-compradora, agravou artificialmente o passivo da Insolvente, já que esta foi condenada a restituir o sinal em dobro e a pagar a quantia de € 500 (por cada dia de atraso), tendo aquela promitente-compradora, “V. V.”, reclamado um crédito no valor de € 7.972.500, considerando assim preenchida a alínea b).
Por outro lado, entendeu o Tribunal a quo que, ou os acordos de cessão de quotas, foram simulados, por não ter havido cessão, ou então tiveram como único objectivo favorecer a referida “V. V.” já que esta não detinha qualquer quota na sociedade comercial “P.”, sendo que, de qualquer modo, as quotas desta e as acções da “M.” (posteriormente designada “N., S.A.”) “nada valiam, atenta a declaração de insolvência” pouco tempo após as referidas cessões.
E, prossegue ainda o Tribunal a quo, “a entrega dos bens com a simultânea e o subsequente incumprimento do contrato-promessa é um acto de disposição de bens que reverteu em proveito da V. V., que no processo de insolvência da X veio invocar um crédito privilegiado com direito de retenção…” fazendo, assim, “o administrador da Insolvente uso contrário ao interesse desta, em proveito de terceiro”.
Considera, assim, o Tribunal a quo estarem verificadas as situações previstas nas alíneas d) e f).
Obtempera, porém, o ora Apelante que, tendo os contratos de cessão de quotas e de cessão das acções (referidos em 26 e 29 da matéria de facto) sido celebrados em 28/11/2008 e 12/08/2008, não podem ser considerados para efeito de qualificação da insolvência por terem sido praticados mais de três anos antes da propositura da acção.
E, de facto, um dos pressupostos da qualificação da insolvência como culposa é a de que os actos tenham sido praticados “nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência” – cfr. n.º 1 do art.º 186.º.
O processo de insolvência foi requerido em 24/06/2012 (cfr. supra n.º 5), pelo que os referidos contratos não poderão aqui ser valorados já que, à excepção da coincidência da soma dos valores de ambas as cessões ser igual ao valor do “encontro de contas em conta corrente” (€ 2.347.000) estes autos não fornecem elementos bastantes para se poder concluir que o preço da compra das quotas e das acções foi pago através do referido “encontro de contas” (muito embora tudo o indique que seja).
Relativamente à suprarreferida alínea b), como refere o Acórdão da Relação de Évora de 16/05/2019, “O fundamento inilidível da insolvência culposa em vista nesta previsão é a criação ou agravamento artificial de passivos ou de redução de lucros da devedora contemplando a segunda parte da previsão exemplos de atos de empobrecimento do devedor suscetíveis de preencher o conceito indeterminado – criação ou agravamento artificial – antes prefigurado, como claramente resulta da expressão nomeadamente.”, e reforça deixando referido que “A criação ou agravamento artificial de passivos ou de redução de lucros da devedora, relevante para efeitos de qualificação da insolvência como culposa carece de apreciação casuística e não exige necessariamente o benefício dos administradores da devedora ou de pessoas com eles especialmente relacionados; injustificadas vantagens que exemplificam o artifício mas não o esgotam. Assim, e ainda que não se demonstre nos autos que a devedora, na pessoa do seu gerente, praticou atos com vista a obter vantagens para o próprio ou para pessoas com ele especialmente relacionadas, …, tal não obsta à criação ou agravamento artificial do passivo da devedora o que, para efeitos da questão em apreciação, basta à qualificação da insolvência como culposa.” (ut Proc.º 525/13.8TBSLV-C.S1.E1, in https://www.direitoemdia.pt/document/s/3560dc).
Esta interpretação está conforme com o elemento literal da norma, estando ainda em conformidade com a sua ratio, e, por isso, a ele se adere.
Na situação sub judicio não há elementos suficientes para se poder afirmar que o contrato-promessa era ruinoso já que se não consegue saber se o valor da prometida compra – 5.005.000,00 – correspondia ao valor real dos trinta prédios prometidos vender, não sendo igualmente claro se o montante do “encontro de contas” corresponde ao valor das quotas e das acções que haviam sido cedidas cerca de dois anos antes (elemento fáctico essencial já que uma das sociedades havia sido declarada insolvente mais de um ano antes - 31/12/2008 -, vindo a outra a sê-lo escassos dois meses depois da celebração do aditamento ao contrato-promessa).
Não se tem, pois, por preenchida a referida alínea b).
Relativamente à alínea d) - a disposição dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros – refere o Acórdão do S.T.J. de 15/02/2018, que o proveito do terceiro exigido nesta alínea “é compaginável com todas as situações em que os bens do insolvente são afetados (disponibilizados) ao terceiro, ou seja, a previsão legal é preenchida não apenas quando por negócio jurídico a titularidade do direito sobre os bens do insolvente é transferida para o terceiro, mas também quando, independentemente disso, é consentido a este que use, goze e frua os bens, que deles retire as respetivas utilidades em benefício próprio. Neste caso o insolvente fica, na prática, numa situação equivalente à de não ser proprietário desses bens, ou de não ter qualquer direito de gozo dos mesmos” e prossegue referindo que “só há que falar em proveito quando o ato de disposição se traduz na outorga de um benefício sem uma justa ou legítima correspondência prestacional” (ut Proc.º 7353/15.4T8VNG-A.P1.S1, Cons.º José Rainho, in www.dgsi.pt).
Na situação sub judicio ficou provado que o Apelante, enquanto administrador da Insolvente, entregou os 30 bens imóveis à promitente-compradora, no acto da celebração do contrato-promessa, ficando ela própria, consequentemente, impedida de deles retirar as utilidades respectivas, e sem, ao que se pode extrair do contrato-promessa, obter daí qualquer contrapartida.
Destarte, forçoso é concluir que este comportamento do Apelante integra, a previsibilidade vertida naquela alínea d).
Relativamente à alínea f) - o administrador da pessoa colectiva tiver feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenha interesse directo ou indirecto – o Acórdão da Relação do Porto de 16/10/2012 decidiu ser subsumível a esta alínea “a actuação de um gerente de uma sociedade insolvente que, em período de ausência de meios financeiros que permitam mantê-la em actividade, concedeu e manteve créditos a favor de uma outra sociedade de que é sócia e gerente a sua mulher de valores que variaram entre cerca de 343.000€ e cerca de 44.000€” (ut Proc.º 248/08.0TYVNG-A.P1, in www.dgsi.pt e t.b. em www.direitoemdia.pt).
Por sua vez, o Acórdão da Relação de Lisboa de 20/09/2018, entendeu que “a constituição fictícia de créditos de sócios, destinada a dissipar activos da sociedade a favor de terceiros, seus administradores de facto, preenche as condutas tipificadas no artigo 186.º, n.º 2, alíneas b), d) e f) do CIRE” (ut Proc.º 25.459/15.8T8SNT-A.L1-6, in www.dgsi.pt e www.direitoemdia.pt).
Na situação sub judicio, a valoração do acto de entrega dos bens à promitente-vendedora já acima foi feita, não havendo outro suporte fáctico passível de ser integrado nesta alínea f).

ii) Não contesta o ora Apelante ter tido comportamentos que integram as alíneas e); g); h); e i), do referido n.º 2, ou seja, de ter exercido, a coberto da personalidade colectiva da Insolvente, uma actividade em proveito de terceiros (in casu a “V. V.”) e em prejuízo daquela; de prosseguir, no interesse de terceiros uma exploração deficitária, não obstante saber que ela conduziria inevitavelmente a uma situação de insolvência; de ter incumprido em termos substanciais a obrigação de manter a contabilidade organizada; e de ter incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração com o Administrador da Insolvência (com o qual nunca contactou, ficando este impedido de consultar a contabilidade da Insolvente, que lhe não foi facultada).
E também não contesta ter incumprido o dever de requerer a declaração de insolvência da Devedora e, bem assim, incumprido a obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, e de as submeter à devida fiscalização, e de as depositar na C.R.C. (com efeito, deixou de submeter as contas da Insolvente a certificação legal por um ROC e de as submeter à Autoridade Tributária e de as registar na C.R.C. desde 2007), destarte incorrendo nas condutas passíveis de censura, descritas nas alíneas a) e b) do n.º 3 do já mencionado art.º 186.º.

iii) Conclui-se, pois, que a insolvência foi merecidamente considerada culposa, tanto mais que a adopção de um dos comportamentos tipificados no n.º 2 era, de per se, suficiente para a qualificação da insolvência como culposa, conforme foi decidido.
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VII.- Das medidas que lhe foram aplicadas, na decorrência da declaração da insolvência como culposa, e da sua identificação como afectado por esta declaração, o Apelante apenas contesta a que fixou os períodos de inibição, constante das alíneas c) e d) do dispositivo da sentença.

As referidas medidas estão previstas nas alíneas b) e c) do n.º 2 do art.º 189.º d CIRE, e, como referem CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, a sua imposição revela “uma atitude de desconfiança quanto à actuação, na área económica, em relação a quem, pelo seu comportamento, com dolo ou culpa grave, de algum modo contribuiu para a insolvência” (in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, Reimpressão, págs. 624 e 626). No mesmo sentido se pronunciou CATARINA SERRA (in “O Novo Regime Português da Insolvência”, Almedina, 4ª. edição, pág. 121).
Na fixação do período em que irá vigorar a proibição o juiz deve atender à gravidade do comportamento das pessoas abrangidas e à sua relevância na verificação da situação de insolvência, ou no seu agravamento, de acordo com o que tiver sido provado.
O Tribunal a quo justificou a sua decisão deixando referido que “Da factualidade apurada resulta que a conduta do administrador da insolvente é muitíssimo censurável porque preenche 6 situações das 9 previstas no n.º 2 do art.º 186.º do CIRE.
Além disso, violou o dever de requerer a insolvência da devedora, o que agravou tal situação de insolvência, prejudicando os seus credores, sobretudo a Caixa ... (agora substituída pela sociedade MM., S.A., a quem cedeu o seu crédito, a quem foi reconhecido um crédito superior € 7.000.000 euros)”.
Muito embora o número de alíneas que agora se considerou preenchidas não seja tão elevado, o comportamento global do Apelante não deixa de ser altamente censurável, havendo contribuído em muito larga medida para a situação de insolvência da sua administrada, ora Insolvente.
Mantém-se, pois, também quanto a esta parte a decisão.
Conclui-se, assim, que a pretensão do Apelante não pode ser merecedora de provimento.
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C) DECISÃO

Considerando quanto vem de ser exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar totalmente improcedente o presente recurso de apelação, consequentemente confirmando e mantendo a decisão impugnada.
Custas da apelação pelo Apelante.
Guimarães, 17/10/2019

Fernando Fernandes Freitas
Alexandra Rolim Mendes
Maria Purificação Carvalho