Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1418/07.3TAVCT.G1
Relator: PEDRO CUNHA LOPES
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA SEGURANÇA SOCIAL
CONDIÇÃO OBJECTIVA DE PUNIBILIDADE
OMISSÃO NA ACUSAÇÃO E SENTENÇA
ABSOLVIÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/23/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) Não constando da sentença e anteriormente da acusação deduzida logo após a entrada em vigor do Ac. de Uniformização de Jurisprudência nº 6//2, publicado na 1ª Série do DR de 15/5/2008, a condição objetiva de punibilidade (notificação do arguido para pagamento de dívida fiscal, no prazo de 30 dias), impõe-se concluir pela absolvição do recorrente da prática do crime de abuso de confiança dos artºs 107º e 105º, do RGIT, de que vinha acusado.

II) 2 - Com efeito e neste caso, não seria possível debelar a falta, pelo recurso aos mecanismos da alteração substancial ou não substancial de factos (arts.º 359º e 358º C.P.P.).
Decisão Texto Integral:
1 – Relatório

Por sentença nestes autos proferida em 6 de Dezembro de 2 011, foi o arguido A. V. condenado pela prática de um crime continuado de abuso de confiança contra a segurança social, p. e p. pelos arts.º 30º/2 C.P., 105º/1 e 107º R.G.I.T.
Mais, foi o arguido/demandado condenado, solidariamente com a “TPL”, a pagar ao “Instituto da Segurança Social” a quantia de 24 290.33€ (vinte e quatro mil, duzentos e noventa euros e trinta e três cêntimos), com juros de mora à taxa legal prevista no art.º 3º D.L. n.º 73/99, 16/3, até integral pagamento.
Inconformado com esta decisão, dela recorreu o arguido.

Consta da parte das conclusões, da sua motivação:
“1. Ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, pelo qual o Recorrente e a sociedade “TPL” foram condenados em penas de multa, previsto no artigo 107º n.º 1), do RJIT, é aplicável o n.º 4 do artigo 105º do mesmo diploma legal.
2. Esta norma contém, nas suas alíneas a) e b), duas condições objectivas de puniblildade, de verificação cumulativa.
3. O Recorrente não foi, até à presente data, notificado nos termos e para os efeitos da parte final da alínea b), do n.º 4, do artigo 105º, do RJIT, quer enquanto sujeito singular, quer enquanto administrador e legal representante da sociedade “TPL”, nem resulta do processo que esta tenha sido notificada ria pessoa do Senhor Administrador nomeado no âmbito do processo de insolvência, instaurado cm 2006, que correu termos sob o n.º 3382/06.7TBVCT, do 4º Juízo Cível do Tribunal de Viana do Castelo.
4. Também não se mostra devidamerite representada nos autos, designadamente na audiência de discussão e de julgamento, o que constitui NULIDADE, nos termos do artigo 119º, atinea c), do CPP, de conhecimento oficioso, que para os devidos efeitos se invoca.
5. A falta da notificação prevista no artigo 105º, n.º 4, alínea b), «in fine”, do RJIT, configura a NULIDADE da acusação, por força do disposto no artigo 283º, n.º 3, alínea b), do CPP, que inquina todo o processo, incluindo a sentença condenatória, contaminada do mesmo vício, por insuficiência de matéria de facto para a decisão de direito, que integra a NULIDADE prevista no artigo 410º, n.º 2, alínea a), do CPP.
SEM PRESCINDIR
6. Como as próprias Testemunhas indicadas pela Acusação demonstraram perante o Tribunal recorrido, o Recorrente é um cidadão pacato e cumpridor.
7. As circunstâncias agravantes referidas na sentença recorrida não devem, no momento actual,ser relevadas: i) o Recorrente não tem condições económicas, profissionais e financeiras para pagar a dívida à Segurança Social, apesar de já ter liquidado outras dividas contraídas no mesmo período de tempo ao qual se reporta a condenação, designadamente às Finanças; ii) os crimes pelos quais foi condenado inscrevem-se no mesmo período de tempo, há mais de 10 anos, não tendo sofrido qualquer condenação posterior.

QUANTO À CONDENAÇÃO CIVIL:

8. Carece a Segurança Social de legitimidade para reclamar uma indemnização por danos que não lhe causam prejuízo.
9. Os danos que decorrem da retenção das contribuições e das quotizações reflectem-se no cálculo da pensão de reforma dos trabalhadores.
10. Por isso, deve ser julgado improcedente o pedido e dele serem os Réus absolvidos.
11. Independentemente do enquadramento da punição criminal na figura do crime continuado - punição essa, no caso, comprometida por força da omissão da notificação à qual se reporta o artigo 1052º, n.º 4, alinea b), “jn fine”, aplicável “ex vi” artigo 107º, n.º 2), ambos do RJIT, como vimos acima — as prestações indevidamente retidas são periódicas, de renovação mensal.
12. Em obediência ao principio da segurança jurídica, a obrigação do pagamento de tais contribuições, individualmente consideradas, bem como os juros respectivos, prescreve no prazo de 5 anos a contar da data em que deviam ter sido cumpridas.
13. No tendo ocorrido qualquer circunstância suspensiva ou interruptiva do decurso desse prazo, a aplicar aos juros e às contribuições e quotizações em falta, encontra-se extinta, por prescrição, a responsabilidade pelo respectivo pagamento, relativamente a todas e a cada uma delas, como resulta das disposições combinadas dos artigos 129º, do Código Penal, 498º, n.º 3), 323º, n.º 1), 327 n.º 1, 561º, 310º n.º 1), alínea d) e 307º, todos do Código Civil e 107º e 105º, 3), alínea c), 5º, n.º 2 e 2lº, ns.º 1) e 2), todos do RJIT e 118º, n.º 1, alínea c), do Código Penal.
14. O Recorrente apenas tomou conhecimento do processo em 19 de Maio de 2011, sendo que, relativamente à última prestação, relativa ao mês de Maio de 2006, é essencial determinar, com o rigor exigível, além do mais que acima se deixou registado, se se venceu antes ou depois do dia 19 de Maio de 2006.

SEM PRESCINDIR

15. A insuficiência da matéria de facto para a emissão da decisão condenatória - i) quanto à responsabilidade directa do Recorrente na efectiva condução da gestão da sociedade “TPL”, ii) bem como na situação de insuficiência de liquidez desta para satisfazer aqueles pagamentos à Segurança Social, iii) quanto à instauração do processo de Insolvência e nomeação de Administrador, bem como às quantias em dívida já eventualmente pagas no âmbito de tal processo ou em processos de execução fiscal - inquina a sentença recorrida, nos termos dos artigos 374º, n.º 2) e 410º, n.º 2), alínea a,), do CPP. Por isso,
16. Deve ser revogada e substituída por outra que determina o reenvio para os Tribunais civis, previsto no artigo 86º do CPP, pois carecem de rigoroso apuramento as circunstâncias da retenção das contribuições eventualmente já pagas no âmbito da Insolvência da devedora principal e as relativas aos meses de Janeiro a Maio dc 2006.
17. Nas situações de abuso de confiança contra a Segurança Social o dano objecto do pedido indemnizatório corresponde exactamente às prestações em dívida.
18. Na situaçâo em presença não resulta suficientemente demonstrada a conduta ilícita do Recorrente, quer na omissão da entrega das contribuições e quotizações à Segurança Social, quer na situação de impossibilidade da sociedade satisfazer esse cumprimento, pelo menos no período entre Janeiro e Maio de 2006.
19. Por isso, deve a sentença ser revogada e substituída por outra que remova a condenação civil assente em facto ilícito do Recorrente quanto ao concreto período em causa, ou seja, de Janeiro a Maio de 2005.”
Contra-alegou o M.P., ainda em 1ª instância. Genericamente, referiu que a sentença recorrida julgou corretamente, não padecendo de qualquer vício.
Já neste Tribunal da Relação foi aberta vista ao Dignm.º Procurador Geral Adjunto. Este invocou terem sido cumpridas as duas notificações de que trata o art.º 105º/4 RJIT, aplicável via art.º 107º/2 do mesmo diploma legal e que a pena aplicada não merece reparo, por justa e adequada.
Notificado nos termos do disposto no art.º 417º/2 C.P.P., o arguido não respondeu.
O recurso vai ser julgado em conferência, como dispõe o art.º 419º/3, c), C.P.P.

2 – Fundamentação

Para uma melhor perceção do objeto deste recurso, reproduzir-se-á de seguida a sentença recorrida:

“Em processo comum, tribunal singular,
São arguidos:
“TPL– Gabinete de Estudos de Geotécnia e Topografia, S.A.”, com sede na Rua …, Viana do Castelo; e,
A. V., casado, nascido a …, em Viana do Castelo, filho de J. V. e de D. V. e residente na Rua …, Ponte de Lima.

Vem o arguido pronunciado por factos susceptíveis de o constituírem na prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts.105º, nº.1 e 107º do R.G.I.T. e 30º, nºs.1 e 2 e 79º, nº.1 do C.P., sendo ainda a sociedade arguida por referência ao art.7º, nºs.1 e 3 do R.G.I.T..
*
Pelo Instituto da Segurança Social, I.P. foi formulado pedido de indemnização civil contra os arguidos (cfr.fls.327 e ss.), pedindo a condenação dos mesmos a pagar-lhe a quantia de 24.290,34 euros, acrescida de juros vencidos, que calculou no montante de 12.328,05 euros, e vincendos, à taxa legal, até efectivo pagamento.
*
Os arguidos não contestaram.
*
Procedeu-se à audiência de discussão e julgamento, com observância do formalismo legal e na ausência do arguido.
*
Mantêm-se os pressupostos de validade e regularidade que presidiram à prolação do despacho que designa dia para julgamento, nada ocorrendo posteriormente que obste ao conhecimento do mérito da causa.
*
*
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:

Instruída e discutida a causa resultaram apurados os seguintes factos.

Factos Provados:

1- A primeira arguida é uma sociedade anónima, com sede na Rua da …, Viana do Castelo, tendo como objecto social a prestação de serviços de geotécnica e topografia, sondagens, prospecções, ensaios de controlo de obras, fiscalização de obras, consultadoria e ensaios técnicos e laboratoriais, construção civil e obras públicas;
2- Com o início da actividade, em 1996, ficou a arguida vinculada ao cumprimento das obrigações fiscais que, na qualidade de contribuinte, lhe cabem perante a administração fiscal e a Segurança Social, tendo-lhe sido atribuído por esta última entidade o NISS …;
3- A administração da empresa, no período ora em causa, esteve a cargo do arguido, na qualidade de presidente do conselho de administração, que exercia a administração e gestão da sociedade arguida em nome e no interesse desta, procedendo, nomeadamente, ao pagamento dos impostos devidos ao estado e à Segurança Social e procedendo ao pagamento dos salários devidos aos funcionários e membros do Conselho de Administração;
4- A sociedade arguida, ao longo da sua actividade, laborou com um número variável de trabalhadores ao seu serviço, numa relação de trabalho subordinado, aos quais pagou os respectivos salários e entregou as correspondentes folhas de remuneração;
5- Nos salários que pagou aos trabalhadores, inscritos no regime geral dos trabalhadores por conta de outrem, e aos membros do conselho de administração, o arguido, actuando sempre em nome e no interesse da sociedade arguida, descontou as contribuições que relativamente a estes eram devidas à Segurança Social;
6- Reteve as contribuições respeitantes aos meses de Agosto de 2002 a Dezembro de 2003, Novembro e Dezembro de 2004, Fevereiro de 2005 a Junho de 2005, Agosto de 2005 a Maio de 2006, no valor global de € 24.290,33;
7- O arguido não efectuou a entrega destes montantes á Segurança Social dentro dos prazos legais, ou seja, até ao dia 15 do mês seguinte aquele a que se reportam, nem nos noventa dias subsequentes;
8- A quantia efectivamente retida nos salários pagos e não entregue à Segurança Social ascende a € 24.290,33 ( vinte e quatro mil, duzentos e noventa euros e trinta e três cêntimos);
9- O arguido actuou de forma livre, deliberada e consciente;
10- Em todas as circunstâncias descritas actuou o arguido de forma livre e consciente, sempre em nome, por conta e no interesse da sociedade arguida, em conjugação de esforços e de vontades, bem sabendo que ao não entregarem nos noventa dias subsequentes ao termo do prazo legalmente fixado para o pagamento das contribuições, nos cofres do estado, as importâncias que retiveram por caberem à Segurança Social, quantias que não lhes pertenciam, das quais eram meros depositários e não podiam dispor, agiram em detrimento daquela entidade;
11- Agiu o arguido, durante os lapsos temporais ora em causa, reiterando sucessivamente os mesmos propósitos, cometendo de forma homogénea os repetidos actos, favorecido pelas mesmas circunstâncias exteriores e servindo-se dos mesmos métodos que, sucessiva e repetidamente, se foram revelando aptos para atingir os fins;
12- O arguido não desconhecia que tal conduta era proibida e punida por lei;
13- O arguido tem antecedentes criminais, tendo já sido condenado pela prática: - em 27-12-03, de um crime de desobediência, em pena de multa; - em 27-11-03, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, em pena de multa; - em 20-5-03, de um crime de abuso de confiança fiscal, em pena de multa; e, - em 2003, de um crime de abuso de confiança fiscal, em pena de multa;
14- É considerado pelas pessoas das suas relações como cumpridor, boa pessoa e pacato;
15- A sociedade arguida já não labora;
16- O valor das contribuições supra referidas ainda não foi pago.
*
Factos Não Provados:

- Não provado que os demandados F. M. e L. P. tenham actuado pela forma supra descrita;
- Nenhuns outros factos de relevo lograram comprovação.
*
*
MOTIVAÇÃO:

Para formar a sua convicção relativamente aos factos provados e não provados, baseou-se o tribunal, para além do correlacionamento de toda a prova produzida:
- no teor dos depoimentos das testemunhas inquiridas, sendo que: - A. P., técnica superior da S.Social, confirmou os valores em falta e períodos em causa, referindo que aqueles se encontram por liquidar; - R. F. e F. F., que foram funcionários da empresa, confirmaram a gerência do arguido, o facto de que os salários deles foram pagos e, só no final da empresa (2006), se apercebeu, o segundo, de que aquela não teria dinheiro; atestaram ainda o habitual bom comportamento do arguido; e,
- no teor e análise dos documentos juntos aos autos, designadamente, de fls.35 a 45, 49 a 53, 56 a 120, 124 a 126, 183 1 185, 189 a 198, 204 a 207, 229 a 237, 242 a 248, 557 a 564 e 565 e s..
Tais depoimentos – tidos que foram todos como coerentes, sinceros e credíveis - e documentos, conjugados entre si e em conformidade com as regras da experiência e do normal acontecer, levaram o tribunal a convencer-se quanto aos factos que apurou.
Quanto aos factos não apurados teve-se em consideração a total ausência de prova dos mesmos.
*
*
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO:

Parte Crime:

Vem o arguido pronunciado por factos susceptíveis de o constituírem na prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts.105º, nº.1 e 107º do R.G.I.T. e 30º, nºs.1 e 2 e 79º, nº.1 do C.P., sendo ainda a sociedade arguida por referência ao art.7º, nºs.1 e 3 do R.G.I.T..
É pois em face das disposições legais aplicáveis e da matéria fáctica apurada que importa subsumir juridico-penalmente a conduta dos arguidos, com vista a verificarmos se aos mesmos pode imputar-se a prática do crime em causa.
Com a entrada em vigor do R.G.I.T., aprovado pela L.nº.15/01, de 5-6, e que revogou o R.J.I.F.N.A. (à excepção do seu art.58º), o crime de abuso de confiança em causa está agora p. e p. pelo art.107º, que no seu nº.1 estabelece que “As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos nºs.1 e 5 do artigo 105º”, ou seja, e nos termos do nº.1 do art.105º, com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
Face a tais disposições legais, apreciemos pois a conduta dos arguidos.
Ora, face aos factos apurados e à estrutura típica do crime de abuso de confiança contra a segurança social supra aludido constata-se que estão preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do mencionado crime.
Na verdade, dos factos provados resulta que o arguido A. V., como administrador da arguida “TPL” - actividade que exerceu de facto e em representação e no interesse daquela sociedade -, nos períodos supra referidos, deduziu e reteve, das remunerações pagas aos trabalhadores e aos membros do conselho de administração, as contribuições para a Segurança Social devidas pelo pagamento de tais remunerações, descontando-as nos respectivos salários e correspondentes aos períodos de tempo aludidos.
Mais se apurou que não obstante saber que estava legalmente obrigado a entregar aquelas contribuições deduzidas e retidas, não o fez o arguido, nos mencionados períodos temporais, apropriando-se daqueles montantes, que totalizam 24.290,33 €, que fez seus e usou em benefício da sociedade arguida, bem sabendo que tais quantias deduzidas lhe não pertenciam, nem à sociedade, e que apenas as tinha retido na fonte para serem entregues à Segurança Social, tendo actuado o arguido de livre vontade e consciente de que tal procedimento era censurável e legalmente punível.
Temos pois que a conduta apurada e imputada ao arguido - e, por seu intermédio e com a sua respectiva conduta, a arguida sociedade -, preenche os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto nos cits.arts., sendo ao mesmo imputável, a título de dolo directo (cfr.art.14º, nº.1 do C.P.).
Por outro lado, verifica-se também que sobre a arguida sociedade recai a responsabilidade criminal que lhe vinha imputada, uma vez que o arguido actuou em nome daquela e no seu interesse colectivo (cfr. arts.11º do C.P. e 3º, al.a), 7º, nºs.1 e 3 e 12º, nºs.2 e 3 do R.G.I.T.).

Nos termos do art.30º, nº.1 do C.P. “O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente”. Por seu turno dispõe o nº.2 do cit. art. que “Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”.
Os factos reportam-se a meses de 2002 a 2006. Ora, a dedução/retenção, não entrega e apropriação dos montantes em causa, sendo certo que se reportam a períodos mensais, ocorreu de forma essencialmente contínua e homogénea, em meses consecutivos (com apenas alguns interregnos), pelo que concluímos que houve de facto uma renovação “mensal” da resolução criminosa que determina e integra uma continuação criminosa - cfr.art.30º, nº.2 do C.P..
De facto, o que resulta dos factos apurados, é que o arguido decidiu deixar de entregar os montantes em causa, resolução que adoptou inicialmente e foi renovando e repetindo nos meses sucessivos e seguintes ao primeiro dos supra referidos e até ao respectivo termo dos períodos aludidos, conforme havia ou não, no momento, disponibilidades financeiras, sendo a sua repetida conduta facilitada face à mais difícil situação económica e financeira porque passava a sociedade e ao facto de não lhes ser de imediato exigida a respectiva entrega.
Assim, concluímos que o arguido, com a descrita conduta cometeu não vários crimes (tantos quantos os montantes mensalmente deduzidos e não entregues), mas sim um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na forma continuada, p. e p. nos termos dos arts.11º, 26º, 30º, nº.2 do C.P. e dos arts. supra cits..
Verifica-se também que sobre a arguida sociedade recaí a responsabilidade criminal que lhe vinha imputada, configurada como um crime simples, continuado, uma vez que o arguido actuou em nome daquela e no seu interesse colectivo (cfr. arts.11º do C.P. e 3º, al.a), 7º, nºs.1 e 3 e 12º, nºs.2 e 3 do R.G.I.T.).

Urge pois proceder à determinação da medida concreta da pena a aplicar aos arguidos A. V. e “TPL”, pela prática deste crime.
Assim temos que no art.105º, nº.1 se prevê uma moldura penal abstracta de pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias (cfr. também arts.13º e 15º). E, relativamente à arguida sociedade haverá ainda a considerar o estipulado nos arts.12º, nº.3 e 15º do R.G.I.T. (pena de multa de 20 a 720 dias).
Não podemos esquecer também o disposto no art.79º do C.P., que regula a punição do crime continuado.
Ora, tendo as condutas dos arguidos, singularmente consideradas, sempre a mesma moldura penal abstracta, não se descortinando uma moldura penal mais grave cabida a um acto singular (cfr. a propósito, Figueiredo Dias, "Direito Penal Português - As consequências jurídicas do crime", ed.1993, p.296), entendemos que não há que autonomizar, em especial, nenhuma dessas condutas integradoras da continuação criminosa. Saliente-se no entanto que, uma vez que a diminuição da culpa caracterizadora do crime continuado já foi considerada quando a punição daquele foi subtraída às regras de punição do concurso de crimes, os actos da continuação criminosa serão valorados como factores de agravação.
Assim, quanto ao arguido A. V.:
Nos termos do art.70º do C.P., se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Ora, não obstante a existência de antecedentes criminais do arguido e alguns de relevo, por relativos a crime de natureza equivalente, considerando que os mesmos se reportam a factos pelo menos parcialmente contemporâneos dos ora em causa e atento também o tempo já decorrido desde a data dos mesmos, afigura-se-nos que a aplicação de uma pena não privativa da liberdade é, ainda, suficiente e adequada a satisfazer as finalidades de punição, pelo que entendemos ser de optar pela aplicação de pena de multa.
Nos termos do art.71º do C.P., a determinação da medida concreta da pena deve operar-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo ainda às circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra aquele.
Assim, depõem contra o arguido o mediano grau de ilicitude dos factos, o grau de violação dos deveres que lhe eram impostos (face às obrigações que sobre o mesmo, como administrador da sociedade, impendiam), o longo período de tempo em que repetiu a conduta, a intensidade do dolo (directo), os valores das prestações em causa, com o consequente prejuízo para a Segurança Social, e a existência de antecedentes criminais de relevo.
E a seu favor militam as circunstâncias correspondentes ao tempo já decorrido desde a prática dos factos e ao facto de ser habitualmente bem comportado.
Ponderadas estas agravantes e atenuantes, considera-se ajustada à conduta do arguido:
- a pena de 200 dias de multa, à taxa diária de 8 euros (cfr. também arts.47º do C.P. e 15º, nº.1 do R.G.I.T.), o que perfaz a quantia total de 1.600 euros.
Quanto à arguida sociedade:
Relativamente a esta sociedade haverá a considerar que a mesma já não labora, mantendo-se em dívida os valores em causa.
Assim, afigura-se-nos ajustado fixar a pena de multa devida pela arguida sociedade em: - 250 dias de multa, à taxa diária de 8 euros, o que perfaz a quantia total de 2.000 euros, pela prática do crime continuado em causa.

*
*
Parte Civil:

Em conformidade com o disposto no art.129º do C.P., a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil, pelo que deverá recorrer-se a tais disposições legais, mais concretamente, ao disposto no art.483º e ss. do C.C., para aferir da responsabilidade civil dos arguidos.
São essencialmente quatro os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, como resulta do disposto no art.483º, nº.1 do C.C., a saber: o facto ilícito, o nexo de imputação subjectiva ou culpa do agente, o dano e o nexo de causalidade entre o facto do agente e o dano sofrido pelo lesado.
Ora, conforme resulta dos factos apurados e do que supra já se expôs relativamente ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, verifica-se que os arguidos/demandados A. V. e “TPL” preencheram com a sua conduta tais pressupostos, uma vez que a acção daqueles foi adequada a produzir danos para o demandante, por não terem sido entregues a este, no prazo legal, os montantes relativos às contribuições devidas e deduzidas das remunerações dos respectivos trabalhadores e membros da administração da sociedade arguida.
O mesmo não se conclui relativamente aos demais demandados, F. M. e L. P., pelo que quanto a eles o pedido não pode deixar de improceder.
Tais montantes, no valor total de 24.290,33 euros, correspondentes aos valores deduzidos, retidos e não entregues, são assim devidos ao demandante I.S.S., I.P. (cfr.arts.3º e 10º do D.L.nº.199/99, de 8-6) pelos demandados A. V. e “TPL”.
A este montante acrescem juros de mora à taxa legal peticionada, prevista no art.3º, nº.1 do D.L.nº.73/99, de 16-3 (cfr. a propósito e neste sentido Ac.R.P. de 5-11-03, in www.dgsi.pt).
*
*
DECISÃO:
Pelo exposto e sem mais considerações, decide-se julgar procedente a pronúncia e o pedido cível formulado e, em consequência:

- condena-se o arguido A. V., pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na forma continuada, p. e p. pelos arts.30º, nº.2 do C.P., 105º, nº.1 e 107º do R.G.I.T., na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de 8 euros, o que perfaz a quantia de 1.600 euros;
- condena-se a sociedade arguida “TPL– Gabinete de Estudos de Geotecnia e Topografia, S.A.”, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na forma continuada, p. e p. pelos arts.30º, nº.2 do C.P., 105º, nº.1 e 107º do R.G.I.T., na pena de 250 dias de multa, à taxa diária de 8 euros, o que perfaz a quantia de 2.000 euros; e,
- condenam-se os demandados “TPL– Gabinete de Estudos de Geotecnia e Topografia, S.A.” e A. V. a pagar ao I.S.S., I.P. a quantia de 24.290,33 euros, acrescida de juros de mora, contados à taxa legal, prevista no art.3º do D.L.nº.73/99, de 16-3, e até integral pagamento, absolvendo-se os demais demandados do pedido.
*
Vão ainda os arguidos “TPL” e A. V. condenados no pagamento das custas criminais, fixando-se a taxa de justiça devida por cada um deles em 2 U.C. e fixando-se os demais encargos no mínimo legal.
Custas cíveis pelos demandados “TPL” e A. V..
Boletins à D.G.A.J..
Deposite.
Notifique.”

2.1. – Questões a Resolver
2.1.1. – Do Crime de Abuso de Confiança sobre a Segurança Social, antes e após a alteração imposta pela L. n.º 53-A/2 006, 29/12 e do Confronto de Regimes Punitivos
2.1.2. – Da Falta da Condição Objetiva de Punibilidade no Texto da Sentença e, anteriormente, no Texto da Acusação

2.2. - Do Crime de Abuso de Confiança sobre a Segurança Social, antes e após a alteração imposta pela L. n.º 53-A/2 006, 29/12 e do Confronto de Regimes Punitivos

O crime de abuso de confiança sobre a Segurança Social vem previsto no art.º 107º R.G.I.T.
Comete-o quem tiver deduzido o valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, sem que o entreguem, total ou parcialmente, às instituições da Segurança Social (referido art.º 107º). Quanto à punição, remete-se para o tipo de abuso de confiança fiscal, no caso os ns.º 1) e 5) do art.º 105º R.G.I.T.
O respetivo n.º 2) do art.º 107º remetia ainda – na lei vigente à data dos factos - para os ns.º 4), 6) e 7), R.G.I.T. – atualmente, a remissão é feita apenas para os ns.º 4) e 7), tendo desaparecido a remissão para o n.º 6.
Ou seja: trata-se de um tipo de crime distinto do de abuso de confiança fiscal, mas em que a punição e regime são convergentes; e, de facto, os ilícitos são similares, apenas divergindo porque num caso o ofendido é a Fazenda Pública e noutro, a Segurança Social.
Trata-se de um crime de omissão pura ou própria, que se consuma com a mera não entrega das prestações retidas e que eram devidas. Trata-se pois também, de um crime de mera (in)atividade.
No n.º 4) do art.º 105º R.G.I.T. sempre se previu o que se considera uma condição objetiva de punibilidade, deste crime – que sobre a data limite de pagamento tenham decorrido mais de 90 (noventa) dias. Esta condição constitui ainda pressuposto da punição, ainda que não ligada ao próprio tipo de crime ou ao seu elemento subjetivo. Outro exemplo de condição objetiva de punibilidade é a prevista no art.º 11º/1 L. n.º 454/91, 28/12, quanto à necessidade de apresentação do cheque a pagamento, nos termos e prazo previstos na Lei Uniforme Relativa ao Cheque – condição de punibilidade que sempre se viu constar das acusações e das sentenças.
A referida condição de punibilidade de ausência de pagamento por 90 (noventa) dias consta da sentença recorrida (ponto 7 da matéria de facto), assim como constava da acusação proferida (fls. 302 dos autos, acusação não proferida por artigos).
Era esta a previsão legal deste crime, à data em que os factos foram praticados – de Agosto de 2 002 a Maio de 2 006.
Porém, com a lei do Orçamento para 2 007 (L. n.º 53-A/2 006, 29/12) foi alterado o R.G.I.T. e, nomeadamente o referido art.º 105º/4 do mesmo. Passou a exigir-se o cumprimento de uma nova condição objetiva de punibilidade – a notificação do arguido, para pagar a dívida tributária, acrescida dos juros respetivos e do pagamento da coima aplicável, no prazo de 30 (trinta) dias. Ou seja: o crime só pode ser punido, a partir da entrada em vigor daquela lei, se cumprida esta condição.
Esta nova exigência do art.º 105º/4, b), R.G.I.T. era mais favorável ao arguido, pois concedia-lhe mais um prazo em que podia pagar a dívida tributária e, com isso, a possibilidade de não ser condenado, pelos crimes de abuso de confiança fiscal ou à Segurança Social – o art.º 107º/2 R.G.I.T., normativo relativo ao crime de abuso de confiança à Segurança Social continuava e continua, a remeter para o n.º 4, do art.º 105º do mesmo diploma, relativo ao crime de abuso de confiança fiscal.
Seguiu-se dissídio jurisprudencial entre os que entendiam que a nova norma era retroativamente aplicável via art.º 2º/4 C.P., porque mais favorável ao arguido e os que entendiam que não o era, por não se referir à ilicitude ou ao tipo subjetivo mas sim a uma condição objetiva de punibilidade.
Dúvidas que foram estabilizadas com o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 6/2 008, publicado na 1ª Série do D.R. de 15/5/2 008, nos termos do qual, a nova lei, que impunha nova condição objetiva de punibilidade, era retroativamente aplicável por mais favorável ao arguido, nos termos do art.º 2º/4 C.P.
A acusação nestes autos foi proferida em 3/4/2 009, logo após a entrada em vigor daquele Acórdão interpretativo, que só pode ser afastado fundamentadamente (art.º 445º/3 C.P.P.).
E, o arguido foi efetivamente notificado da concessão de tal prazo, como decorre de fls. 128/129.
Simplesmente, tal facto não constou da acusação proferida e, como tal também não consta da sentença proferida, embora tenha de facto ocorrido.
Questão que se põe agora é pois a dos efeitos de tal omissão, em termos penais, quanto à possibilidade de condenação do arguido e em termos processuais penais.

2.3. - Da Falta da Condição Objetiva de Punibilidade no Texto da Sentença e, anteriormente, no Texto da Acusação

O recorrente invoca não ter sido notificado nos termos do disposto no art.º 105º/4, b), R.G.I.T., daí retirando a nulidade da acusação nos termos do disposto no art.º 283º/3, b), C.P.P., que inquina todo o processo e nomeadamente a sentença proferida, por insuficiência de matéria de facto para a decisão de direito, nulidade prevista no art.º 410º/2, a), C.P.P.
Como se viu já, não tem razão quanto ao pressuposto com que inicia o seu raciocínio. É que, contrariamente ao por si referido e como decorre de fls. 128/129, o arguido foi notificado para efetuar o pagamento da sua dívida fiscal, no prazo de 30 (trinta) dias. Materialmente, está pois cumprida esta condição objetiva de punibilidade.
Porém, a mesma não consta do teor da sentença, como já não constava do teor da acusação. Como se disse, esta foi proferida num momento em que já estava em vigor o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 6/2 008 e em que era já jurisprudencialmente seguro que a nova lei que impôs esta nova condição objetiva de punibilidade (L. n.º 53-A/2 006, 29/12) era de aplicação retroativa e assim, deveria aplicar-se mesmo aos casos cuja factualidade lhe era anterior, como sucede no caso dos autos.
Ora, do preenchimento ou não de uma condição objetiva de punibilidade depende também o juízo condenatório ou absolutório, sobre o arguido.
Nas palavras de Jescheck, “Tratado de Derecho Penal”, Ed. Bosch, Barcelona, pág. 763,
“As condições objetivas de punibilidade são circunstâncias que se encontram em relação imediata com os factos, mas não pertencem nem ao tipo de ilícito, nem à culpa” – tradução nossa.
Mas, como diz o mesmo autor mais à frente, a fls. 769,
“Não obstante, as condições objetivas de punibilidade participam de todas as garantias do Estado de Direito impostas aos elementos do tipo – tradução também nossa.
Ou, como diz Teresa Beleza, “Direito Penal”, 2º Vol., Ed. “A.A.F.D.L.”, págs. 367/368, referindo-se também às condições objetivas de punibilidade,
Mas já se pode dizer que fazem parte do tipo em sentido de tipo de garantia (…); isto porque, em última análise, elas vão fundamentar concretamente certas situações em que uma pessoa é realmente punida, existindo pois as mesmas razões de garantia dos direitos individuais.”
Ora, uma das garantias principais do processo crime é a do respeito pelo princípio do contraditório (arts.º 32º/5 C.R.P.) e 6º/3, b), c) e d), C.E.D.H.). Contraditório que só pode ser plenamente exercido se do texto acusatório e depois da sentença constarem todos os “factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança” – cfr., para a acusação o art.º 283º/3 C.P.P. e, para a sentença, o art.º 374º/2 C.P.P.
Aliás e no caso paralelo do crime de emissão de cheque sem provisão, sempre foi indiscutível que a condição objetiva de punibilidade quanto ao prazo e forma de apresentação a pagamento do mesmo deve constar da acusação e da sentença.
E, com efeito, ao lado dos factos referentes ao tipo objetivo, subjetivo e imputabilidade, as condições objetivas de punibilidade podem também levar à condenação ou absolvição de um arguido. É que, o arguido pode ter interesse em contraditá-la, quer quanto à sua real efetivação, quer quanto à sua regularidade.
A falta deste elemento de facto na sentença, mesmo que constante do processo, leva pois à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, o que levaria à anulação do julgamento e seu reenvio, para nova audiência (arts.º 410º/2, a) e 426º C.P.P.).
Chegados aqui, cabe porém perguntar – após novo julgamento, tal facto poderia passar a incluir a matéria de facto provada?
Pensamos que não, com a argumentação deduzida no Ac. Rel. Évora, de 25/10/2 016, Gomes de Sousa, em “www.dgsi.pt.
Com efeito, os arts.º 358º e 359º C.P.P. pressupõem que, antes da alteração, se esteja ainda na presença de um crime. É que a alteração não substancial de factos pressupõe uma alteração ou concretização de factos, mas num tipo de crime já existente e que persiste. A alteração substancial de factos, prevista no art.º 1º/f, C.P.P., pressupõe que um novo facto altere o tipo de crime imputado ou a agravação dos limites máximos da sanção aplicável.
Ora, o que sucede é que, neste momento e sem a mencionada condição objetiva de punibilidade, os factos constantes da acusação não constituiriam crime. E, os mecanismos processuais ínsitos aos arts.º 358º e 359º C.P.P. não são uma forma de criminalizar condutas, mas de alterar o tipo ou crime em sentido fáctico, já indiciado. O que não sucede, no caso dos autos.
Ou seja: à factualidade constante dos autos não pode acrescentar-se-lhe a citada condição objetiva de punibilidade, nem através das comunicações a que aludem os arts.º 358º e 359º C.P.P.
Isto, não obstante parecer a mesma preenchida, como já se descreveu supra.
Assim é, que a acusação deveria ter sido rejeitada quando do seu recebimento, por os factos que dela constavam não constituírem crime, por faltar a citada condição objetiva de punibilidade – art.º 311º/3, d), C.P.P.
Considera-se que a mesma não será nula, nos termos do disposto no art.º 283º/3, b), C.P.P., pois contém ainda uma narração sintética dos factos, ainda que incompleta – no mesmo sentido, o Ac. Rel. Lisboa 1/10/2 008, Carlos Almeida, em www.dgsi.pt.
De qualquer forma, a acusação deve conter os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança (art.º 283º/3 C.P.P.); porém, isso não sucede no caso dos autos, por ausente da narrativa a citada condição objetiva de punibilidade, aplicável via confronto de regimes para aplicação do mais favorável, como se determinou no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 6/2 008. Estamos assim, perante irregularidade, que afeta o valor do próprio ato – no caso, a acusação.
Mas que, como se disse se não subsume a nulidade da acusação, sendo que mesmo na afirmativa estaria sanada pelo decurso do prazo (arts.º 283º/3, 120º e 121º C.P.P.).
Pelo que e porque a citada irregularidade não pode, pelo que se disse, ser ultrapassada pelo disposto nos arts.º 358º e 359º C.P.P., deve a mesma levar à improcedência da acusação e assim, à absolvição do arguido – cfr. o citado Acórdão da Rel. de Lisboa, de 1 /10/2 008.
Termos em que, procede nesta parte o recurso interposto, ficando pois prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas no mesmo.
**
Termos em que,

3 – Decisão

a) se julga procedente o recurso apresentado pelo arguido A. V. e, por via disso, altera-se a decisão recorrida absolvendo-se o mesmo do imputado crime de abuso de confiança à Segurança Social, p. e p. pelos arts.º 107º e 105º R.G.I.T.
b) Sem custas.
c) Notifique.

(Pedro Cunha Lopes)
(Fátima Bernardes)