Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
6229/16.2T8GMR.G1
Relator: ALCIDES RODRIGUES
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
RESPONSABILIDADE CIVIL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
ACIDENTE DE TRABALHO
SUBROGAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/10/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - O acidente provocado por uma retroescavadora na execução do carregamento e despejo de terras, consistente no atropelamento de um trabalhador que se encontrava a laborar na obra, quando a máquina executava uma manobra de marcha-atrás, no estaleiro da obra, e não numa via pública, e porque aquela manobra está indissoluvelmente relacionada com a execução da tarefa contratada e dentro da actividade e funções específicas na dita obra, (tal acidente) teve a ver com os riscos próprios de laboração inerentes ao funcionamento da máquina industrial, e não com os riscos de circulação da retroescavadora, na sua função de veículo automóvel.
II - Consequentemente, não deve o acidente ser considerado abrangido pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, mas antes pelo seguro de responsabilidade civil de laboração inerente ao funcionamento daquela máquina industrial.
III - Não é de descaracterizar o acidente de trabalho para o qual contribuiu a conduta culposa de outro trabalhador, apesar de se ter verificado negligência grosseira do sinistrado, uma vez que o acidente não proveio exclusivamente desta.
IV - Assiste à autora (seguradora laboral que satisfez os direitos do sinistrado) a prerrogativa de demandar a seguradora para a qual havia sido transferida a responsabilidade civil pela laboração da máquina interveniente no acidente para, invocando a sub-rogação legal da seguradora nos direitos do sinistrado contra o causador do acidente (o co-responsável pela eclosão do acidente), obter daquela a cobrança das importâncias desembolsadas na decorrência do referido acidente de trabalho (art. 17º, n.ºs 1 e 4 da Lei n.º 98/2009), na medida das respetivas culpas.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

“X Seguros, S.A.” (autora e aqui apelada) intentou, no Juízo Central Cível de Guimarães - Juiz 4 - do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra “Y Seguros, S.A.” (1ª R. e apelante no presente recurso) e “W Seguros, S.A.” (2ª R. e aqui apelada), pedindo a condenação da 1.ª ré ou, subsidiariamente, da 2.ª ré, a pagar à autora a quantia de € 50.478,04, acrescida dos juros de mora à taxa comercial contados desde a data de citação até integral e efectivo pagamento.

Mais pediu a condenação da 1.ª ré ou, subsidiariamente, da 2.ª, no pagamento das pensões, prestações suplementares e demais despesas com acompanhamento médico e medicamentoso que venham a ser liquidadas ao trabalhador Joaquim em data posterior à data da entrada da presente acção, a liquidar em execução de sentença, com todas as consequências legais.
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Regularmente citadas, ambas as Rés contestaram, pugnando pela improcedência da acção (cfr. fls. 81 a 87 e 226 a 228).
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Foi proferido despacho convite ao aperfeiçoamento (cfr. fls. 263 e 264), a que a autora respondeu nos termos constantes de fls. 280 a 282.
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Foi proferido o despacho a que alude o art. 596º do CPC, no qual se fixou o valor da causa, procedeu-se à identificação do objeto do processo, à enunciação dos temas da prova, bem como foram admitidos os meios de prova (cfr. fls. 283 a 286).
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Procedeu-se a audiência de julgamento (cfr. fls. 482, 483 e 487 a 488).
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Posteriormente, a Mmª. Julgadora a quo proferiu sentença (cfr. fls. 489 e a 495), nos termos da qual, julgando a presente acção parcialmente procedente, decidiu:

- condenar a ré “Y Seguros, S.A.” no pagamento à autora a quantia de € 20.191,22 (vinte mil, cento e noventa e um euros e vinte e dois cêntimos) acrescida de juros à taxa comercial contados desde a citação até integral pagamento.
- condenar a ré “Y Seguros, S.A.” no pagamento à autora de 40% dos valores pagos desde a citação até à presente data a título de pensão ao sinistrado Joaquim, quantia esta acrescida de juros à taxa comercial contados desde a data da prolação da presente sentença até integral pagamento.
- condenar a ré “Y Seguros, S.A.” no pagamento à autora 40% das pensões, prestações suplementares, despesas com acompanhamento médico e medicamentoso que a autora venha a ter que suportar com o sinistrado Joaquim por causa do acidente analisado nestes autos.
- absolver do pedido a ré “W Seguros, S.A.”.
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Inconformada, a Ré Y Seguros, S.A. interpôs recurso da sentença (cfr. fls. 501 a 513) e formulou, a terminar as respectivas alegações, as seguintes conclusões (que se transcrevem):

«I.
Atento os factos alegados na P.I. e, nas contestações apresentadas por todos os intervenientes processuais, a apelante entende, salvo o devido respeito por melhor opinião, que a sentença proferida, não poderia ter dado como não provado: a). Que o atropelamento haja sucedido na Avenida Dr. …, em Joane, Vila Nova de Famalicão
II.
Pois, de acordo com o preceituado no nº. 5 do artigo 607º do C.P.C. “O Juiz aprecia
livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só podem ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.”
III.
Ora, a autora no artigo 6º da PI, a ré Y no artigo 22º e, a ré W no artigo 5º das contestações, alegaram que o acidente ocorreu “na Avenida Dr. …, em Joane, Vila Nova de Famalicão”
IV.
Além de todos os intervenientes processuais alegarem que o sinistro ocorreu na Avenida Dr. …, em Joane, Vila Nova de Famalicão, também os documentos juntos aos autos, nomeadamente o documento nº. 3 junto com a P.I., denominado inquérito efectuado pela autoridade para as condições do trabalho e o Doc. nº. 4 junto com a contestação da Apelante, denominado Relatório de Averiguação – Acidentes de Trabalho, referem que o local do acidente foi na Av. Dr. …, Joane, Vila Nova de Famalicão”.
V.
Acresce que, no despacho de saneador proferido não constava dos temas da prova, nem era questionado, o local onde ocorreu o sinistro.
VI.
Ora, tendo em consideração que tanto a autora, como ambas as rés nas suas peças processuais alegaram que o acidente ocorreu na Av. Dr. …, em Joane, Vila Nova de Famalicão e, uma vez que os documentos juntos com as peças processuais, atestam que o acidente ocorreu nesse local, então salvo o devido respeito por melhor opinião, atento o disposto nº. 5 do artigo 607º do C.P.C., não era possível dar como não provado este facto, pelo que o mesmo deverá ser dado como provado, o que desde já se requer a V. Exa.
VII.
Acresce que nos presentes autos foi dado como provado no ponto 8) “Antes do atropelamento a retroescavadora circulou em marcha-atrás com o aviso sonoro ligado, durante pelo menos 3 metros”. Ou seja, o atropelamento do sinistrado ocorreu quando a retroescavadora fazia marcha atrás, isto é, o acidente ocorre devido à função circulante da máquina e aquando da sua circulação e condução e, não devido à sua função laboral.
VIII.
De acordo com o alegado nos artigos 29º e seguintes da contestação apresentada pela apelante, atenta a decisão proferida no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 10.03.2015, proferido no Processo nº. 1533/12.1TBGRD.C1, disponível no site www.dgsi.pt, o Tribunal de Justiça da União Europeia considera que em casos semelhantes aos relatados nestes autos, o seguro que eventualmente pode responder pelos danos destes sinistros, é o seguro obrigatório de responsabilidade civil de automóveis.
IX.
Mais, mesmo o acórdão referido na sentença proferida – (STJ de 30.10.2008 Rel. João Bernardo) embora tenha voto de vencido, vai no mesmo sentido que o acórdão supra referido, ou seja o seguro que eventualmente pode responder pelos danos destes sinistros, é o seguro obrigatório de responsabilidade civil de automóveis.
X.
De acordo com o sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 10.03.2015, proferido no Processo nº. 1533/12.1TBGRD.C1. I – O acidente provocado por um tractor industrial (uma empilhadora), consistente no atropelamento de um peão quando a máquina executava uma manobra de marcha atrás, no espaço exterior circundante de um armazém, local onde se realizavam operações de carga e de descarga e que é considerado via pública, (tal acidente) deve ser considerado abrangido pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, por referência à obrigação de segurar prevista no artigo 4º, nº 1 do DL 291/2007, de 21 de Agosto.
O Acórdão do TJUE (proferido em reenvio prejudicial) no caso Vnuk, de 04/09/2014, ao considerar que o artigo 3º, nº 1 da Directiva 72/166/CEE (respeitante ao seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel) deve ser interpretado no sentido de que o conceito de ‘circulação de veículo’, para efeito dessa obrigação de segurar, abrange qualquer utilização de um veículo em conformidade com a respectiva função habitual, vincula os Tribunais de todos os Estados-membros a adoptar uma interpretação idêntica quando sejam confrontados com uma questão jurídica substancialmente semelhante quanto à interpretação dessa mesma Directiva.
XI.
A exclusão do âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel de máquinas utilizadas em funções meramente industriais (ou agrícolas), exclusão decorrente do artigo 4º, nº 4 do DL 291/2007, correspondendo essa máquina ao conceito de veículo para o efeito do artigo 1º, nº 1 da Directiva 72/166/CEE, significa que essa exclusão constante da Lei nacional só subtrai ao sistema de seguro obrigatório automóvel as utilizações daquelas máquinas ‘apenas’ (meramente) ligadas ao próprio uso industrial (ou agrícola), em si mesmo, que não apresentem qualquer margem de sobreposição com utilizações próprias da circulação de viaturas que gerassem a obrigação de segurar no quadro do seguro automóvel.
XII.
Isso sucede (a sujeição ao regime do seguro automóvel), por juntar a utilização industrial da máquina à circulação do veículo, com o atropelamento de um peão, em local considerado via pública, na sequência de uma manobra de marcha atrás.
Idêntico raciocínio, desta feita tomando em conta a exclusão do seguro obrigatório de operações de carga e de descarga (artigo 14º, nº 4, alínea c) do DL 291/2007), vale para uma manobra de marcha atrás, preparatória ou subsequente de uma operação de carga ou descarga, quando esta produz o atropelamento de um peão. Este evento não decorre directamente da operação excepcionada no referido artigo 14º, nº 4, alínea c), mas de um elemento (a circulação de um veículo) que gera a cobertura pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.
XIII.
O Tribunal de Justiça sublinha que o alcance do conceito de «circulação de veículos» não depende das características do terreno em que o veículo é utilizado e que qualquer utilização de um veículo como meio de transporte está abrangida por este conceito.
XIV.
Uma vez que resulta dos factos dados como provados que o atropelamento do sinistrado ocorreu quando a máquina em questão fazia marcha atrás, isto é, o acidente ocorre devido à função circulante da máquina e aquando da sua circulação e condução, o mesmo deveria ter sido submetido ao regime do seguro de responsabilidade civil obrigatório e não ao seguro laboral, pelo que a Y deveria ter sido absolvida do pedido.
XV.
Por fim a apelante também entende que devia ter sido dado como provado que no momento do acidente o sinistrado estava alcoolizado com uma TAS de 1,3g/l, pois também este facto é fundamental na decisão a proferir
XVI.
A Apelante alegou na sua contestação que constava do relatório disponibilizado pela autora à Y, que o sinistrado poderia estar alcoolizado no momento do acidente.
XVII.
Nesse relatório disponibilizado pela autora à Apelante denominado Relatório de Averiguação – Acidentes de Trabalho, é referido que “A verificar-se uma TAS positiva, capaz de interferir com a percepção e entendimento do sinistrado e, sendo o comportamento do sinistrado exclusivo na produção do acidente, poderá o mesmo ser descaracterizado como de trabalho nos termos do alínea B) do art. Nº. 14 da LAT, não recaindo a obrigatoriedade de reparação sobre o requerente
XVIII.
Ou seja, no relatório de averiguação que a autora solicitou ao acidente de trabalho constava expressamente a possibilidade de o sinistrado acusar uma TAS positiva o, que poderia descaracterizar o acidente como de trabalho.
XIX.
Dos documentos juntos aos autos, nomeadamente do documento junto pelo “Escala Braga – Hospital de Braga Nota de Admissão na UCI” resulta que o sinistrado apresentava no momento do sinistro uma TAS de 1,3 g/l” – Fls. 19 e 372
XX.
Consta igualmente da sentença proferida, nomeadamente na motivação que “… [elementos clínicos e exames médicos relativos aos sinistrado (dos quais resulta, entre o demais, que o mesmo apresentava uma TAS de 1,3 g/l no momento do sinistro – vd. Fls. 19 e 372., pelo que a apelante entende que esta facto pela importância que têm deveria ter sido dado como provado e levado aos factos assentes.
XXI.
E, sendo dado como provado esse facto (TAS), então terá que se equacionar, se a autora deveria ou não ter liquidado, ao abrigo do contrato de seguro de acidentes de trabalho, a verba que agora vêm, em direito de regresso, peticionar as congéneres.
XXII.
Pois, prescreve o artigo 14º da Lei nº. 98/2009 de 04/09, o empregador não tem que reparar os danos decorrentes do acidente que for dolosamente provocado pelo sinistrado, ou provier de seu acto ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei, ou provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado, ou resultar da privação permanente ou acidental do uso da razão do sinistrado.
XXIII.
Ora, a sentença proferida para atribuir 60% da responsabilidade ao sinistrado, deu como provado que: 6) Os trabalhadores, incluindo o sinistrado, foram interpelados, designadamente pelo manobrador da máquina, para se afastarem do local por onde a mesma iria andar e para se deslocarem para as caixas de saneamento que ficavam a jusante, o que todos cumpriram.
7) O sinistrado, já após, sem avisar, regressou à caixa onde estava anteriormente.
8) Antes do atropelamento a retroescavadora circulou em marcha-atrás com o aviso sonoro ligado, durante pelo menos 3 metros.
XXIV.
Se a estes factos dados como provados, for adicionado o facto de o sinistrado, no momento do acidente acusar uma TAS de 1,3 g/l., entende a apelante que atento o preceituado no artigo 14º da Lei nº. 98/2009 de 04/09, que o empregador não teria que reparar os danos decorrentes do acidente, o mesmo sucedendo com a sua seguradora, pelo que não poderá esta, com base no direito de regresso vir peticionar das suas congéneres as verbas despendidas com esse sinistro, já que a mesma, atento o disposto no citado preceito legal, não estava obrigada a liquidar a verba que liquidou ao sinistrado.
Nestes termos e nos demais de direito que V. Exas., muito doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente e a decisão recorrida ser revogada, lavrando-se acórdão, que decida no sentido aqui propalado, fazendo-se, assim, como sempre inteira JUSTIÇA.».
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Contra-alegaram a co-Ré W Seguros, S.A. (cfr. fls. 517 a 519) e a autora X Seguros, S.A. (cfr. fls. 523 a 528), pugnando pela improcedência do recurso e manutenção da sentença recorrida.
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo (cfr. fls. 530).
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Questões a decidir.

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do(s) recorrente(s), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso e não tenham sido ainda conhecidas com trânsito em julgado [cfr. artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho].

No caso, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal, por ordem lógica da sua apreciação, consistem em saber:

i) – Da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.
ii) - Se o seguro que responde pelos danos do sinistro objeto dos autos é o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.
iii) – Se, atento o preceituado no art. 14º da Lei n.º 98/2009, de 04/09, o empregador (bem como a sua seguradora) não estava obrigada a reparar os danos decorrentes do acidente, o que inviabiliza o peticionado “direito de regresso” (leia-se sub-rogação).
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III. Fundamentos

A sentença recorrida deu como provados os seguintes factos:

1) Às 14h30 do dia 13 de Outubro de 2010, no âmbito das suas funções de oficial de 2.ª da construção civil, no estaleiro de obra, Joaquim efectuava trabalhos numa caixa de saneamento quando foi colhido por uma máquina escavadora que fazia uma manobra de marcha-atrás.
2) A máquina referida em 1) fora alugada por “S e DS, Ld.ª” e à data conduzida e manobrada por Miguel, que efectuava o carregamento e despejo de terras, cumprindo as ordens daquela sociedade, sua empregadora.
3) Por causa do atropelamento o trabalhador sinistrado sofreu politraumatismo, nomeadamente múltiplas fracturas no úmero direito, fémur e tibis esquerda, costelas, D5 e L4, apófises transversas cervicais, e outras, que lhe determinaram uma Incapacidade Temporária Absoluta para o trabalho desde 14.10.2010 até 04.03.2012, data em que lhe foi atribuída a competente alta, com uma I.P.P de 39,996%,
4) Por conta da sentença proferida no processo que correu termos sob o nº 172/11.9TUVNF, a autora despendeu, até à data da propositura desta acção, a quantia global de € 52.695,76, correspondente às seguintes importâncias parcelares: € 7.299,00 a título de indemnização pela Incapacidade Temporária Absoluta para o trabalho entre 14.10.2010 e 04.03.2012; € 1.004,75, a título de subsídios; € 5.808,51, a título de despesas com transportes; € 28,77, a título de despesas com medicamentos; € 460,00, a título de despesas com juntas médicas; € 25,00, a título de despesas com alimentação e alojamento; € 23.511,59, a título de despesas com assistência médica; € 1.426,20, a título de despesas judiciais; € 1,33, a título de juros de mora e € 10.912,89 a título de pensões pagas entre 05.03.2012 e 30.09.2017.
5) Mais foi condenada a pagar a pensão anual vitalícia de € 2.293,66 em 1/14 e com início em 05.03.2015.
6) Os trabalhadores, incluindo o sinistrado, foram interpelados, designadamente pelo manobrador da máquina, para se afastarem do local por onde a mesma iria andar e para se deslocarem para as caixas de saneamento que ficavam a jusante, o que todos cumpriram.
7) O sinistrado, já após, sem avisar, regressou à caixa onde estava anteriormente.
8) Antes do atropelamento a retroescavadora circulou em marcha-atrás com o aviso sonoro ligado, durante pelo menos 3 metros.
9) O condutor da retroescavadora tinha possibilidade de avistar o trabalhador sinistrado na sua retaguarda, ainda que considerada a configuração do local e as dimensões da máquina.
10) Por causa do referido em 5), apesar do referido em 8) o condutor da retroescavadora não atentou, através do espelho retrovisor, se estava algum trabalhador na retaguarda da máquina.
11) No exercício da sua actividade, a autora Lusitânia celebrou com a sociedade “M. Construções Unipessoal, Ld.ª” o contrato de seguro titulado pela apólice n.º …, nos termos do qual assegurou a cobertura dos riscos emergentes da actividade de demolição e terraplanagens aos trabalhadores daquela que constassem das respectivas folhas de férias – cfr. fls. 314 ss.
12) Em 14 de Outubro de 2010 a “M. Construções Unipessoal, Ld.ª” participou à autora o sinistro ocorrido às 14h30 do dia 13 de Outubro de 2010, envolvendo o trabalhador ao seu serviço, Joaquim.
13) A máquina retroescavadora era manobrada por Miguel, no âmbito e exercício das funções determinadas pela sua empregadora, “S e DS, Ld.ª” e de acordo com instruções por esta definidas.
14) À data do atropelamento em apreço a máquina retroescavadora encontrava-se alugada à sociedade “S e DS, Lda.”, que havia transferido a responsabilidade civil pela laboração da referida máquina para a ré “Y Seguros, S.A.”, através do contrato de seguro titulado pela apólice n.º ….
15) A responsabilidade civil emergente da circulação da mesma validamente transferida para a ré “W Seguros, S.A.”, através do contrato de seguro titulado pela apólice n.º ….
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E deu como não provados os demais factos alegados, designadamente:

a) Que o atropelamento haja sucedido na Avenida Dr. …, em Joane, Vila Nova de Famalicão.
b) Que nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1) o manobrador da máquina se encontrasse a falar ao telemóvel.
*
IV. Do objecto do(s) recurso(s)

1. Da impugnação da matéria de facto.

Em sede de recurso, a apelante impugna a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo tribunal de 1.ª instância.
Sob a epígrafe “Modificabilidade da decisão de facto”, preceitua o artigo 662.º, n.º 1 do CPC, que «a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa».

Os recursos da matéria de facto podem envolver objetivos diversificados:

- Alteração da decisão da matéria de facto, considerando provados factos que o tribunal a quo considerou não provados, e vice-versa, a partir da reapreciação dos meios de prova ou quando os elementos constantes do processo impuserem decisão diversa (no caso de ter sido apresentado documento autêntico, com força probatória plena, para prova de determinado facto ou confissão relevante) ou em resultado da apreciação de documento novo superveniente (art. 662º, n.º 1 do CPC);
- Apreciação de patologias que a decisão da matéria de facto enferma, que, não correspondendo verdadeiramente a erros de apreciação ou de julgamento, se traduzam em segmentos total ou parcialmente deficientes, obscuros ou contraditórios (art. 662º, n.º 2, al. c) do CPC);
- Ampliação da matéria de facto, por ter sido omitida dos temas da prova matéria de facto alegada pelas partes que se revele essencial para a resolução do litígio (art. 662º, n.º 2, al. c) do CPC).
*
Por referência às suas conclusões, extrai-se que a recorrente pretende a alteração da resposta negativa para positiva da alínea a) da matéria de facto não provada da decisão recorrida, assim como a ampliação da matéria de facto, de modo a que dela passe a constar do elenco dos factos provados que o sinistrado apresentava no momento do sinistro uma TAS de 1,3 g/l.

A esse respeito, importa convocar o ensinamento de Abrantes Geraldes (1), nos termos do qual a decisão da matéria de facto pode apresentar patologias que não correspondem verdadeiramente a erros de apreciação ou de julgamento, podendo – e devendo – algumas delas ser solucionadas de imediato pela Relação, ao passo que outras poderão determinar a anulação total ou parcial do julgamento.

Como concretização de tais patologias enuncia o citado autor que as decisões sob recurso “podem revelar-se total ou parcialmente deficientes”, “resultante da falta de pronúncia sobre factos essenciais ou complementares”, “de modo que conjugadamente se mostre impedido o estabelecimento de uma plataforma sólida para a integração jurídica do caso”.

Verificado esse vício, para além de o mesmo ser sujeito a apreciação oficiosa da Relação, poderá esta supri-lo a partir dos elementos que constam do processo ou da gravação.

Pode, assim, “revelar-se uma situação que exija a ampliação da matéria de facto, por ter sido omitida dos temas da prova matéria de facto alegada pelas partes que se revele essencial para a resolução do litígio, na medida em que assegurem enquadramento jurídico diverso do suposto pelo tribunal a quo”, faculdade esta que nem sequer está dependente da iniciativa do recorrente, bastando que a Relação se confronte com uma omissão objetiva de factos relevantes”; nesse caso, ao invés de anular a decisão da 1ª instância, se estiverem acessíveis todos os elementos probatórios relevantes, “a Relação deve proceder à sua apreciação e introduzir na decisão da matéria de facto as modificações que forem consideradas oportunas”.
*
Começaremos a nossa análise pela requerida ampliação da matéria de facto, por ser o ponto que se nos afigura ser menos controverso.

Como se disse, pugna a recorrente (no que é acompanhada pela co-recorrida W Seguros, S.A.) que deverá ser dado como provado que, no momento do sinistro, o sinistrado apresentava uma TAS de 1,3 g/l.

Este facto, malgrado ter sido expressamente mencionado na motivação da matéria de facto (2) e de ser tomado em consideração pela Mmª juiz “a quo” na apreciação e valoração do comportamento do sinistrado na eclosão do acidente referenciado nos autos (3), acabou por não ser selecionado para a matéria dos factos provados.
Ora, a referida taxa de alcoolemia (1,3 g/L) que o sinistrado apresentava aquando do sinistro resulta quer do documento de fls. 19 vº (episódio de urgência geral do Hospital de Braga, referente à admissão do sinistrado em 13/10/2010, pelas 16.30h), bem como da documentação clínica do Hospital de Braga, respeitante à “Escala” “nota de admissão na UCI”, cuja cópia consta de fls. 371 e 372.
Assim, e sem mais delongas por despiciendas, ao abrigo do disposto no art. 662º, n.º 1, do CPC, resta concluir pela procedência da requerida ampliação da matéria de facto, aditando-se à matéria de facto provada, que passará a valer como ponto 16), a seguinte factualidade:

O sinistrado Joaquim apresentava no momento do sinistro uma TAS de 1,3 g/l.
*
Relativamente à matéria objeto da al. a) dos factos não provados – “[q]ue o atropelamento haja sucedido na Avenida Dr. …, em Joane, Vila Nova de Famalicão” –, insurge-se a recorrente contra essa resposta negativa, posto que não só todas as partes alegaram que o acidente ocorreu “na Avenida Dr. …, em Joane, Vila Nova de Famalicão” (art. 6º da p.i.; art. 22º da contestação da ré Y e arts. 1º e 5º da contestação da ré W), facticidade esta que também resulta dos documentos juntos aos autos, pelo que, atento o disposto no n.º 5 do art. 607º do CPC, não era possível ao Tribunal recorrido dar como não provado este facto, propugnando que o mesmo deverá ser dado como provado.

Dir-se-ia, à primeira vista, assistir razão à recorrente na apontada impugnação da matéria de facto, visto que o facto em apreço não foi, direta ou indiretamente, impugnado por nenhuma das partes, pelo que deveria ter-se o mesmo como admitido por acordo (arts. 574º, n.º 2 e 607º, n.ºs 4 e 5, todos do CPC).

Acontece, porém, que, como se explicitou na motivação da sentença impugnada, a «conjugação de toda a prova permite concluir que o atropelamento não ocorreu numa via pública, mas antes no estaleiro da obra (…)», tendo sido, aliás, essa facticidade resultante da audiência de julgamento que foi transposta para o ponto 1 dos factos provados (4), e que não foi objeto de impugnação por nenhuma das partes.
Ora, a procedência da impugnação da matéria de facto importaria uma contradição entre a facticidade que a recorrente pretende ver como demonstrada e a que resulta já provada, não tendo esta sido impugnada, pelo que é de obviar a essa situação.

A propósito da eventual resposta contrária a matéria dada como assente no âmbito do anterior regime do Código de Processo Civil, Abrantes Geraldes (5) assinalava que o considerar determinado facto como provado ou não provado traduzia-se numa constatação apropriada à fase da elaboração da condensação, mas que podia e devia ser feita ou corrigida em qualquer momento posterior, a não ser que a incongruência já estivesse sob proteção da decisão final sobre a matéria de facto. Para tanto partia do pressuposto de que a condensação (especificação e base instrutória) mantinha a função instrumental que apenas visava facilitar a realização do julgamento e nunca comprometer, por via do caso julgado formal, a sua modificação posterior tendente a restabelecer a correspondência entre a verdade histórica e a emergente do julgamento.

Procedendo a uma transposição atualista da referida posição doutrinal e de molde a alcançar-se a justa composição do litígio, de forma mais consentânea com a realidade material em detrimento da realidade virtual potenciada pela excessiva predominância das normas adjetivas, propendemos a considerar como ajustado e adequado, no caso sub júdice, o procedimento seguido pelo tribunal recorrido no sentido de sobrelevar a realidade resultante da audiência de julgamento em detrimento duma alegação que não correspondia à efetivamente vivenciada (com eventuais repercussões ao nível substantivo).

De resto, ainda que se desse como demonstrado que o atropelamento ocorreu na Avenida Dr. …, em Joane, Vila Nova de Famalicão, sempre se imporia uma resposta explicativa no sentido de que, na altura, e por causa dos trabalhos que ali estavam a decorrer, aquela via não estava aberta ao transito publico, estando aquele local convertido num estaleiro de obra.

Nesta conformidade, resultando da prova produzida em audiência de julgamento que o atropelamento versado nos autos se deu no estaleiro de obra, e não numa via pública (como a pretendida alteração visava sugerir), é de manter inalterado o facto objeto da al. a) da matéria de facto não provada, por ter sido bem ajuizado.
*
Em conclusão, com exceção da ampliação dos factos provados nos termos supra explicitados (6), mantém-se inalterada a matéria de facto impugnada objeto da al. a) dos factos não provados.
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2. Reapreciação de direito.

2.1. – Apurar se o seguro que deve responder pelos danos do sinistro objeto dos autos é o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel (e não o seguro pelos riscos de laboração da máquina retroescavadora).

Resumidamente, defende a recorrente que, uma vez que o atropelamento do sinistrado ocorreu quando a máquina retroescavadora fazia marcha atrás, ou seja, o acidente ficou a dever-se à função circulante da máquina e aquando da sua circulação e condução, deveria o mesmo ter sido submetido ao regime do seguro de responsabilidade civil obrigatório, e não ao seguro de responsabilidade civil pela laboração da dita máquina, com a sua consequente absolvição do pedido.

Invoca, para tanto, o entendimento firmado no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 10.03.2015, proferido no processo n.º 1533/12.1TBGRD.C1 (relator Teles Pereira), nos termos do qual o «acidente provocado por um tractor industrial (uma empilhadora), consistente no atropelamento de um peão quando a máquina executava uma manobra de marcha atrás, no espaço exterior circundante de um armazém, local onde se realizavam operações de carga e de descarga e que é considerado via pública, (tal acidente) deve ser considerado abrangido pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, por referência à obrigação de segurar prevista no artigo 4º, nº 1 do DL 291/2007, de 21 de Agosto».

Este acórdão, por sua vez, alicerçou-se no decidido pelo Acórdão do TJUE (proferido em reenvio prejudicial) no caso Vnuk, de 04/09/2014, ao considerar que o art. 3º, n.º 1 da Directiva 72/166/CEE (respeitante ao seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel) deve ser interpretado no sentido de que o conceito de «circulação de veículos», para efeito dessa obrigação de segurar, abrange qualquer utilização de um veículo em conformidade com a respetiva função habitual.

Prosseguindo na sua fundamentação, o mencionado Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra explicitou:

«– A exclusão do âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel de máquinas utilizadas em funções meramente industriais (ou agrícolas), exclusão decorrente do artigo 4º, nº 4 do DL 291/2007, correspondendo essa máquina ao conceito de veículo para o efeito do artigo 1º, nº 1 da Directiva 72/166/CEE, significa que essa exclusão constante da Lei nacional só subtrai ao sistema de seguro obrigatório automóvel as utilizações daquelas máquinas ‘apenas’ (meramente) ligadas ao próprio uso industrial (ou agrícola), em si mesmo, que não apresentem qualquer margem de sobreposição com utilizações próprias da circulação de viaturas que gerassem a obrigação de segurar no quadro do seguro automóvel».
«– Isso sucede (a sujeição ao regime do seguro automóvel), por juntar a utilização industrial da máquina à circulação do veículo, com o atropelamento de um peão, em local considerado via pública, na sequência de uma manobra de marcha-atrás».
«– Idêntico raciocínio, desta feita tomando em conta a exclusão do seguro obrigatório de operações de carga e de descarga (artigo 14º, nº 4, alínea c) do DL 291/2007), vale para uma manobra de marcha-atrás, preparatória ou subsequente de uma operação de carga ou descarga, quando esta produz o atropelamento de um peão, [porquanto] este evento não decorre directamente da operação excepcionada no referido artigo 14º, nº 4, alínea c), mas de um elemento (a circulação de um veículo) que gera a cobertura pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel».
No fundo, a questão a decidir resume-se em saber se o acidente sobre que versa os autos é de qualificar como “acidente de viação”, com a consequente inclusão no âmbito de cobertura conferido pelo contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel (tal como é propugnado pela recorrente), ou, ao invés, se é antes um acidente de laboração (solução jurídica esta que foi a adotada na sentença recorrida).

Nos termos do art. 4º, n.º 1, do Dec. Lei n.º 291/07, de 21/08, “[t]oda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos corporais ou materiais causados a terceiros por um veículo terrestre a motor para cuja condução seja necessário um título específico e seus reboques (…) deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se coberta por um seguro que garanta tal responsabilidade, nos termos do presente decreto-lei”.
O n.º 4 do citado artigo exclui do regime do seguro obrigatório os veículos que sejam “utilizados em funções meramente agrícolas ou industriais”.
Nos termos do disposto nos arts. 105º e 109º, n.º 2 do Cód. Estrada, uma retroescavadora é um veículo automóvel, sendo especificamente classificada como uma máquina industrial.
A propósito da delimitação dos conceitos de “veículo automóvel”, de “circulação de veículos” ou de “acidente de viação” que surgem nas Diretivas e no Dec. Lei n.º 291/07 será relevante atentar no Ac. do Trib. de Justiça da União Europeia (TJUE), de 4-09-14, 3ª Secção, proferido no âmbito do reenvio prejudicial n.º C-162/13 (http://curia.europa.eu/juris...), que formulou a seguinte resposta/decisão:
O artigo 3º, nº 1 da Directiva 72/166/CEE do Conselho, de 24 de Abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos EstadosMembros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, deve ser interpretado no sentido de que o conceito de «circulação de veículos» nele previsto abrange qualquer utilização de um veículo em conformidade com a função habitual desse veículo. Pode assim ser abrangida pelo referido conceito a manobra de um trator com reboque no terreiro de uma quinta para colocar esse reboque num celeiro, como aconteceu no processo principal, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar”.
Ora, o concreto veículo que interveio no sinistro a que os autos se reportam não se encontra excluído do regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil. Malgrado tratar-se de uma máquina industrial, dispunha de matrícula (7) (à semelhança da generalidade dos veículos automóveis) e tinha capacidade para circular de forma semelhante aos demais veículos automóveis.
A inclusão no referido regime sempre derivaria, aliás, do facto de a responsabilidade civil emergente da circulação da dita máquina retroescavadora se encontrar validamente transferida para a ré “W Seguros, S.A.”, através do contrato de seguro titulado pela apólice n.º ….
Sucede que, à data do atropelamento em apreço, a locatária da máquina retroescavadora havia transferido a responsabilidade civil pela laboração da referida máquina para a ré “Y Seguros, S.A.”, através do contrato de seguro titulado pela apólice n.º 45/907116.
Subsistindo dois tipos de seguro, com âmbitos de cobertura distintos – por um lado, o seguro de laboração e, por outro, o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel –, urge indagar a qual deles deverá ser reconduzido o acidente identificado nos autos, para assim podermos determinar a entidade seguradora responsável por cobrir o risco assumido pelo seguro.
A esse propósito cumpre assinalar que desde há muito que a jurisprudência nacional vem admitindo a inclusão no regime do seguro obrigatório não apenas dos acidentes com intervenção dos veículos automóveis a que é dada a comum utilização rodoviária, mas ainda de outros veículos com capacidade de circulação terrestre autónoma, designadamente tratores agrícolas ou industriais, retroescavadoras, bulldozers, cilindros de compactação, empilhadores, dumpers ou outras máquinas, desde que, como se previne no n.º 4 do art. 4º do Dec. Lei nº 291/07, não sejam utilizados em “funções meramente agrícolas ou industriais” (8).
Centrando-nos no tipo de máquina similar à mencionada nos autos (escavadora), destacamos os seguintes casos retirados dos nossos Tribunais superiores:
- Ac. do STJ de 7-11-06 (relator Paulo Sá), in www.dgsi.pt., com uma situação que envolveu uma retroescavadora que “não se encontrava na sua função específica de escavação, antes transitava pela via pública, enquanto veículo circulante, com os riscos de circulação inerentes ao comum dos veículos terrestres a motor, deve[ndo] ser caracterizado como acidente de viação o seu embate no muro de pedra do prédio dos Autores, ocasionado pela perda de controlo da máquina por parte do respectivo condutor”. “Isto não obstante a máquina circulasse de um local de trabalho para outro local de trabalho, de uma margem para a outra do rio a fim de prosseguir os trabalhos de limpeza que acabara de concluir numa delas e tivesse de passar pelo local do acidente para aceder à outra margem, pois tal situação não se distingue de outra em que se termina um trabalho e se circula, pela via pública, até ao local onde se vai dar início a um novo trabalho ou se vai estacionar a máquina”. “Caracterizado o acidente como verdadeiro acidente de viação, e só abrangendo o seguro contratado com a seguradora 2.ª Ré os riscos próprios da referida máquina industrial, “durante e por via da laboração - actividade específica - da máquina”, estipulando-se como local do risco “os locais de trabalho”, conclui[u]-se que os danos provocados no muro dos Autores não se encontram cobertos pelo contrato de seguro, que não é de responsabilidade civil do ramo automóvel, com a consequente absolvição da 2.ª Ré”.
- Ac. do STJ de 23-11-06 (relator João Bernardo), in www.dgsi.pt., onde se considerou que “está abrangido pelo seguro obrigatório um acidente em que uma máquina se desloca para trás e para a frente em terraplanagem de ampliação dum caminho público e, num desses movimentos, colhe um menor”.
- Ac. do STJ de 30-10-08 (relator João Bernardo), in www.dgsi.pt., no qual se concluiu que “está abrangido pelo regime seguro obrigatório automóvel o acidente no qual uma pessoa é atingida por uma peça que caiu duma máquina retroescavadora destinada à construção civil que seguia para um terreno onde iria ser usada na preparação do solo para construção duma casa”.
- Ac. do STJ de 25/10/2012 (relator Granja da Fonseca), in www.dgsi.pt., que considerou “acidente de viação o acontecimento não intencionalmente provocado de carácter anormal e inesperado, gerador de consequências danosas, causado por veículo ou animal em trânsito, repercutindo-se mesmo em veículos parados, como sucede em caso de acidente que envolva uma pá escavadora que, não se encontra na sua função específica de escavação, antes transita, como veículo circulante, pela via pública”.
- Ac. da RG de 15/02/2018 (relator José Alberto Moreira Dias), in www.dgsi.pt., que decidiu ser “acidente de viação o acidente provocado por uma máquina retroescavadora, que se encontrava a abrir uma vala num caminho municipal e cujo condutor, finda essa abertura, decidiu deslocar a retroescavadora para um local mais abaixo daquele em que se encontrava, a fim de picar pedra e, para o efeito, levantou as sapatas hidráulicas da retroescavadora e porque se encontrasse distraído e, também, em consequência do mau-estado da retroescavadora, passou a circular com a mesma na faixa de rodagem do caminho municipal, de forma descontrolada, percorrendo nele cerca de dez metros, altura em que foi embater com a pá da frente da retroescavadora na parte traseira de um trator, que aí se encontrava estacionado”.
Feitos estes considerandos, é altura de particularizarmos o caso submetido à nossa apreciação.
Provou-se que, no dia 13 de outubro de 2010, pelas 14h30, no âmbito das suas funções de oficial de 2.ª da construção civil, no estaleiro de obra, o colaborador Joaquim efetuava trabalhos numa caixa de saneamento quando foi colhido por uma máquina escavadora que fazia uma manobra de marcha-atrás, sendo que antes do atropelamento a retroescavadora circulou em marcha-atrás com o aviso sonoro ligado, durante pelo menos 3 metros.
A referida máquina, que havia sido alugada por “S e DS, Ld.ª”, era, à data, conduzida e manobrada por Miguel, que efetuava o carregamento e despejo de terras, cumprindo as ordens daquela sociedade, sua empregadora.
O atropelamento ocorreu no estaleiro de obra, e não numa via pública, nem numa via do domínio privado aberta ao trânsito público.
Embora o sinistrado, que efetuava trabalhos numa caixa de saneamento, tenha sido colhido pela máquina escavadora quando esta fazia uma manobra de marcha-atrás, em circulação portanto, certo é que esta manobra está indissoluvelmente relacionada com a função específica do carregamento e despejo de terras na dita obra. Isto porque, depreende-se, essa circulação da máquina escavadora era uma das operações implicadas pelo carregamento e despejo de terras.
O acidente ocorreu no exercício da função própria da máquina (implicando o seu movimento), no âmbito do cumprimento e execução da tarefa contratada e dentro da actividade e funções específicas, e não enquanto veículo circulante, com os riscos inerentes ao comum dos veículos terrestres a motor, sobretudo os derivados da sua circulação.
Diverso seria, por exemplo, no caso de deslocação da máquina escavadora, “pelo seu pé”, nas vias a que se refere o art. 2º do Código da Estrada, para o início dos trabalhos (ou mesmo no seu decurso ou subsequentemente ao termo de tais trabalhos).
Aliás, o próprio sinistrado foi colhido porque era trabalhador na dita obra e, na altura, ali se encontrava a efetuar trabalhos numa caixa de saneamento, e não porque se tratasse de um normal peão que por ali circundasse.
Considerando, pois, o concreto circunstancialismo temporal, espacial, funcional e o âmbito subjetivo dos intervenientes no acidente, afigura-se-nos que este teve a ver com os riscos próprios de laboração inerentes ao funcionamento da máquina industrial, e não com os riscos de circulação da retroescavadora, na sua função de veículo automóvel.
Secundamos, por isso, a asserção explicitada na sentença recorrida no sentido de a recorrente Y, enquanto entidade seguradora para a qual foi transferida a responsabilidade civil pela laboração da referida máquina escavadora através do contrato de seguro titulado pela apólice n.º 45/907116, ser responsável pelos danos cobertos, «pois que o sinistro ocorre precisamente quando a máquina estava a laborar e por causa dessa laboração».
E, não tendo o sinistro ocorrido “em via do domínio público do Estado ou em via do domínio privado aberta ao trânsito público”, nem provindo os riscos da máquina na qualidade de veículo circulante estradal, nenhuma responsabilidade poderá ser assacada à co-ré W, uma vez que o âmbito de incidência do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel não é aplicável ao acidente dos autos.
Nesta conformidade, resta concluir pela improcedência deste fundamento da apelação.
*
2.2. – Da preclusão do peticionado direito de regresso (rectius: sub-rogação), por o empregador (bem como a sua seguradora) não estarem obrigados a reparar os danos decorrentes do acidente, por força do preceituado no art. 14º da Lei n.º 98/2009, de 04/09.

Sustenta a recorrente que, se aos factos (já) provados que levaram o Tribunal recorrido a atribuir 60% da responsabilidade ao sinistrado na eclosão do acidente, acrescentarmos o facto objeto de ampliação da matéria de facto, no sentido de o sinistrado apresentar uma TAS de 1,3 g/l no momento do sinistro, atento o preceituado no artigo 14º da Lei n.º 98/2009, de 04/09, «o empregador não teria que reparar os danos decorrentes do acidente, o mesmo sucedendo com a sua seguradora, pelo que não poderá esta, com base no direito de regresso, vir peticionar das suas congéneres as verbas despendidas com esse sinistro, já que a mesma, atento o disposto no citado preceito legal, não estava obrigada a liquidar a verba que liquidou ao sinistrado».

Vejamos como decidir.

O acidente mencionado nos autos ocorreu em 13 de outubro de 2010, pelo que o regime jurídico aplicável é o da Lei n.º 98/2009 (Nova LAT-NLAT), de 4 de Setembro (diploma que regulamenta o regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais, incluindo a reabilitação e reintegração profissionais, nos termos do artigo 284.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro), que entrou em vigor em 1 de janeiro de 2010, conforme resulta do n.º 1 do seu artigo 187.º e do artigo 188.º.

O art. 3.º da NLAT consagra o direito à reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho aos trabalhadores por conta de outrem, reparação essa que é da responsabilidade do empregador e/ou da empresa seguradora para a qual tenha sido transferida essa responsabilidade – cfr. art. 79.º da NLAT.

Por sua vez, o artigo 8.º, n.º 1, da NLAT define acidente de trabalho como “aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte”.

Ocorre, porém, descaracterização do acidente de trabalho quando o acidente, embora mantendo as características de um acidente de trabalho, não dá lugar à sua reparação, pretendendo-se sancionar as faltas consideradas indesculpáveis de quem trabalha, ou quando for devido a forças inevitáveis da natureza.
O art. 14º da NLAT enuncia as situações em que não há direito à reparação, embora estejam preenchidos os requisitos que permitem qualificar determinado evento como sendo um acidente de trabalho.

Aí se prescreve, na parte que aqui interessa, que:

«1 - O empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que:

a) For dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu acto ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei;
b) Provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado;
c) Resultar da privação permanente ou acidental do uso da razão do sinistrado, nos termos do Código Civil, salvo se tal privação derivar da própria prestação do trabalho, for independente da vontade do sinistrado ou se o empregador ou o seu representante, conhecendo o estado do sinistrado, consentir na prestação.
2 - Para efeitos do disposto na alínea a) do número anterior, considera-se que existe causa justificativa da violação das condições de segurança se o acidente de trabalho resultar de incumprimento de norma legal ou estabelecida pelo empregador da qual o trabalhador, face ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento ou, tendo-o, lhe fosse manifestamente difícil entendê-la.
3 - Entende-se por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão».
Para que o acidente de trabalho seja, no caso previsto no citado art. 14º, n.º 1, al. a), descaracterizado é necessária a verificação cumulativa dos seguintes requisitos: (a) existência de condições de segurança estabelecidas pela entidade patronal ou previstas na lei; (b) violação, por ação ou por omissão, dessas condições, por parte da vítima; (c) que a atuação desta seja voluntária, ainda que não intencional, e sem causa justificativa; (d) que exista um nexo de causalidade entre essa violação e o acidente (9).

No que concerne à causa excludente do direito à reparação a que se reporta a al. b), do n.º 1 do art. 14º da NLAT – afigurando-se ser esta a que releva no caso ajuizado –, não obstante a diferente terminologia usada em relação à redação da Base VI, nº 1, al. b) da Lei n.º 2127, crê-se que o âmbito tutelador da norma se mantém essencialmente inalterado. Agora, falando-se em negligência grosseira, quis-se acentuar a falta do dever objetivo de cuidado, traduzida num comportamento temerário, em alto e relevante grau. O que corresponde à falta grave e indesculpável (10).
Em geral, considera-se temerário um comportamento perigoso, arriscado, imprudente, audacioso, arrojado, intrépido, que não tem fundamento; o comportamento daquele que atua com coragem, mas de um modo imprudente, correndo riscos desnecessários (11).
O legislador consagrou que, para que provoque a descaracterização do acidente (e para além deste ter de resultar exclusivamente desse comportamento negligente, sem o concurso de qualquer outra ação), há-de tratar-se de negligência grosseira.
A negligência grosseira pressupõe uma gravidade acentuada, senão mesmo excecional.
Essa modalidade de negligência corresponde a uma negligência particularmente grave, qualificada, atento, designadamente, o elevado grau de inobservância do dever objetivo de cuidado e de previsibilidade da verificação do dano ou do perigo.
Trata-se de uma negligência temerária, configurando uma omissão fortemente indesculpável das precauções ou cautelas mais elementares (12).
É sabido que a negligência ou mera culpa consiste, grosso modo, na omissão de diligência exigível do agente para evitar o evento, distinguindo a doutrina a culpa consciente da culpa inconsciente, atendendo a primeira à circunstância do agente prever a produção do evento como possível, mas por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria acreditar que tal evento não se verificará, e, por isso, não tomou as providências necessárias para o evitar. Já a culpa inconsciente, advém da imprudência, descuido, imperícia, inaptidão, em que o agente não chega sequer a conceber a possibilidade do evento se verificar, podendo e devendo prevê-lo e evitá-lo na sua verificação se tivesse usado da diligência devida (13).

De facto, para descaracterizar o acidente não basta que este seja imputável, ainda que exclusivamente, a mera negligência do sinistrado. Como escreve Carlos Alegre em anotação ao art. 7º, n.º 1, al. b), da Lei n.º 100/97, “ao qualificar a negligência de grosseira, o legislador está a afastar implicitamente a simples imprudência, inconsideração, irreflexão, impulso leviano que não considera os prós e os contras.” (14).
A negligência grosseira deve ser apreciada em concreto, em face das condições da própria vítima e não em função de um padrão geral, abstrato, de conduta.

Assim, para que se verifique a apontada exclusão da responsabilidade emergente de acidente de trabalho é necessária a prova de que ocorreu um acto ou omissão temerários em alto e relevante grau por parte do sinistrado, injustificados pela habitualidade ao perigo do trabalho executado, pela confiança na experiência profissional ou pelos usos e costumes da profissão, e, além disso, que o acidente tenha resultado exclusivamente desse comportamento (15), isto é, que tal comportamento seja a causa única do acidente; tal não acontecerá no caso de concorrência de culpa da entidade patronal ou do seu representante, ou quando seja possível concluir que, mesmo sem tal comportamento, o acidente sempre se verificaria (16).

No caso em apreço, e com o devido respeito por opinião contrária, julgamos que a argumentação explanada pela recorrente sobre o ponto objeto da ampliação da matéria de facto – nos termos do qual se deu como provado que o sinistrado Joaquim apresentava no momento do sinistro uma TAS de 1,3 g/l. –, tendente à comprovação da descaracterização do acidente, por culpa do sinistrado, enferma de uma petição de princípio.

Com efeito, interpretada, na sua globalidade, a sentença impugnada, nela constatamos ter sido, desde logo, tomada em consideração a taxa de alcoolemia apresentada pelo sinistrado no momento do sinistro, o que foi decisivo para a demonstração do ponto 7 dos factos provados, tido como relevante na repartição de culpas dos intervenientes no acidente.

A esse propósito, na motivação da matéria de facto a Mmª juiz “a quo” aduziu a seguinte fundamentação:

«Já o sinistrado, ouvido em julgamento, afirmou que nunca dali saiu nem foi avisado para sair.
O seu depoimento foi contudo muito pouco sólido, estando ademais contrariado por documentação e outros depoimentos.

A título de exemplo, o sinistrado referiu que estava dentro da caixa de saneamento até à cintura, tendo sido a máquina que, no atropelamento, o retirou da caixa. Contudo, a caixa só tinha a profundidade/altura de 35 cm, como resulta do inquérito de fls. 14 ss., não fazendo sentido aquela asserção (…). Por outro lado, o depoente afirmou que estava a trabalhar na referida caixa com a máquina a laborar a cerca de dois metros. Ora, ninguém que esteja no pleno uso das suas faculdades se deixa ficar a trabalhar a tão curta distância de uma máquina daquelas dimensões a laborar, sendo pois de concluir que o lesado só o terá feito porque a elevada TAS não lhe permitiu outro discernimento. É também de referir que o depoente inicialmente negou ter consumido álcool ao almoço, tendo depois dito que só bebeu a caneca de vinho habitual, o que aquela TAS desmente, a menos que esta caneca de vinho habitual seja de dimensões bastante superiores às das canecas individuais habituais. Terá sido também por esta razão que o mesmo não ouviu os avisos sonoros que a máquina efectua quando anda em marcha-atrás» (sublinhado nosso).

E, pronunciando-se expressamente sobre a repartição de culpas, já em sede de apreciação de direito, aduziu a seguinte fundamentação:

«Ora, da factualidade apurada resulta que houve efectivamente alguma contribuição do manobrador da máquina para o atropelamento, já que o mesmo tinha possibilidade de avistar o trabalhador sinistrado na sua retaguarda, atenta a configuração do local. Sucede porém que, na medida em que os trabalhadores haviam saído previamente do local, convencendo-se o mesmo de que nenhum ali regressaria ou restaria, aquando das manobras que efectuou com a máquina não atentou senão no pavilhão ali existente, não tendo prestado atenção à retaguarda.

Nessa medida pode afirmar-se que o referido condutor não actuou com a diligência média, podendo e devendo ter agido de outro modo, mais concretamente olhando à retaguarda no momento da marcha-atrás, ao invés de atentar unicamente nas laterais.
Note-se que aquele local onde a máquina laborava não estava vedado, não sendo por isso defensável que o manobrador da máquina pudesse desatender em absoluto à possibilidade de existir alguém no local.
É certo que o fez por estar convencido de que não estava ninguém naquele local, dados os avisos e movimentações prévias de trabalhadores, mas essa circunstância vale apenas para a repartição de culpas nos termos do art. 570º do CC, e não para o isentar absolutamente da culpa.
Julgo ainda poder afirmar-se que a contribuição do lesado para o sinistro terá sido de 60%, sendo de 40% a contribuição do manobrador, já que aquele estava advertido para a presença da máquina, que ademais podia avistar e avistou, ao contrário deste, que tinha razões para se convencer, como convenceu, de que nenhum trabalhador permanecia no local, e que não avistou, apesar de poder ter avistado, o lesado».

Como decorre da exposição antecedente, tendo feito uma análise que temos por adequada e ajustada à luz dos factos apurados, a Mmª juiz “a quo” não deixou de assinalar que o manobrador da máquina retroescavadora não estava totalmente isento de responsabilidades na produção do acidente, como de resto resulta dos pontos 9 e 10 dos factos provados (que nos dispensamos de reproduzir ou de desenvolver, visto a fundamentação da sentença recorrida supra citada retratar com fieldade tais factos, valorando-os devidamente para efeitos de violação do dever de cuidado que impendia sobre o manobrador).

Por sua vez, na determinação da contribuição de culpa do lesado para o sinistro – tomando em linha de consideração a TAS que este apresentava e que influiu decisivamente na sua conduta ao ponto de, não obstante ter sido interpelado, designadamente pelo manobrador da máquina, para se afastar do local por onde a mesma iria andar e para se deslocar para as caixas de saneamento que ficavam a jusante, posteriormente, sem avisar, ter regressado à caixa onde estava anteriormente –, não deixou de lhe atribuir uma proporção superior à do manobrador (repartição essa com a qual concordamos).

Ora, como vimos, para que se pudesse concluir pela descaracterização do acidente de trabalho nos termos previstos na alínea b) do n.º 1 do art. 14º da LNAT, seria necessário que o mesmo proviesse exclusivamente de negligência grosseira do trabalhador.

Inverificado este pressuposto, posto que o manobrador não está isento de culpa na eclosão do atropelamento, não é possível denegar o direito à reparação do acidente (no âmbito infortunístico-laboral), ao abrigo do sobredito normativo, pelo que sempre seria de julgar inviável a invocada (exceção) de descaracterização do acidente como de trabalho (17).

Assiste, assim, à autora (seguradora laboral que satisfez os direitos do sinistrado) a prerrogativa de demandar a recorrente para, invocando a sub-rogação legal da seguradora nos direitos do sinistrado contra o causador do acidente (o co-responsável pela eclosão do acidente), nos termos do art. 592º do Cód. Civil, obter da demandada a cobrança das importâncias desembolsadas na decorrência do referido acidente de trabalho (art. 17º, n.ºs 1 e 4 da Lei n.º 98/2009 (18), «correspondente a 40% do valor da indemnização pago e, bem ainda, das pensões a liquidar».
A sentença recorrida merece, assim, plena confirmação, improcedendo as conclusões da apelante.
*
Sumário (ao abrigo do disposto no art. 667º, n.º 3 do CPC):

I - O acidente provocado por uma retroescavadora na execução do carregamento e despejo de terras, consistente no atropelamento de um trabalhador que se encontrava a laborar na obra, quando a máquina executava uma manobra de marcha-atrás, no estaleiro da obra, e não numa via pública, e porque aquela manobra está indissoluvelmente relacionada com a execução da tarefa contratada e dentro da actividade e funções específicas na dita obra, (tal acidente) teve a ver com os riscos próprios de laboração inerentes ao funcionamento da máquina industrial, e não com os riscos de circulação da retroescavadora, na sua função de veículo automóvel.
II - Consequentemente, não deve o acidente ser considerado abrangido pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, mas antes pelo seguro de responsabilidade civil de laboração inerente ao funcionamento daquela máquina industrial.
III - Não é de descaracterizar o acidente de trabalho para o qual contribuiu a conduta culposa de outro trabalhador, apesar de se ter verificado negligência grosseira do sinistrado, uma vez que o acidente não proveio exclusivamente desta.
IV - Assiste à autora (seguradora laboral que satisfez os direitos do sinistrado) a prerrogativa de demandar a seguradora para a qual havia sido transferida a responsabilidade civil pela laboração da máquina interveniente no acidente para, invocando a sub-rogação legal da seguradora nos direitos do sinistrado contra o causador do acidente (o co-responsável pela eclosão do acidente), obter daquela a cobrança das importâncias desembolsadas na decorrência do referido acidente de trabalho (art. 17º, n.ºs 1 e 4 da Lei n.º 98/2009), na medida das respetivas culpas.
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V. Decisão

Perante o exposto acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso de apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas da apelação a cargo da apelante (art. 527º do CPC).
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Guimarães, 10 de julho de 2018

Alcides Rodrigues
Espinheira Baltar
Eva Almeida


1. Cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4ª ed., pp. 291/293.
2. Cfr. fls. 492: «Na formação da sua convicção, a mais da factualidade aceite por acordo, o tribunal atendeu desde logo à documentação junta a fls. (…) 19 (verso) a 64, 353 a 358, 361 a 402 e 434 a 455 [elementos clínicos e exames médicos relativos ao sinistrado (dos quais resulta, entre o demais, que o mesmo apresentava uma TAS de 1,3 g/l no momento do sinistro – vd. fls. 19 e 372) (…)». – sublinhado nosso.
3. Como se referiu na motivação (cfr. fls. 493 v.º), «o depoente afirmou que estava a trabalhar na referida caixa com a máquina a laborar a cerca de dois metros. Ora, ninguém que esteja no pleno uso das suas faculdades se deixa ficar a trabalhar a tão curta distância de uma máquina daquelas dimensões a laborar, sendo pois de concluir que o lesado só o terá feito porque a elevada TAS não lhe permitiu outro discernimento. É também de referir que o depoente inicialmente negou ter consumido álcool ao almoço, tendo depois dito que só bebeu a caneca de vinho habitual, o que aquela TAS desmente, a menos que esta caneca de vinho habitual seja de dimensões bastante superiores às das canecas individuais habituais. Terá sido também por esta razão que o mesmo não ouviu os avisos sonoros que a máquina efectua quando anda em marcha-atrás».
4. «Às 14h30 do dia 13 de Outubro de 2010, no âmbito das suas funções de oficial de 2.ª da construção civil, no estaleiro de obra, Manuel Joaquim Moreira de Miranda efectuava trabalhos numa caixa de saneamento quando foi colhido por uma máquina escavadora que fazia uma manobra de marcha-atrás» (sublinhado nosso).
5. Cfr. Temas da Reforma do Processo Civil, II vol., 2ª ed. revista e ampliada, Almedina, 1999, pp. 230/231.
6. Por se tratar de uma modificação muito limitada, dispensamo-nos de transcrever de novo toda a factualidade provada, devendo considerar-se aditado aquele ponto nos seus precisos termos.
7. Cfr. documentos de fls. 73 v.º e 77 vº.
8. Cfr. Ac. do STJ de 17-12-15 (Relator Abrantes Geraldes), in www.dgsi.pt.
9. Cfr. Ac. do STJ de 26.09.2007 (relatora Maria Laura Leonardo) e Ac. da RP de 15.05.2017 (relatora Paula Leal de Carvalho), ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
10. Ac. da RP de 23/01/2006 (Relator Ferreira da Costa), CJ, T. I, p. 226.
11. Cfr. Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vol. XXXI, Editorial Enciclopédia, L.da, Lisboa, Rio de Janeiro, Agosto de 1978, p. 175, Dicionário da Língua Portuguesa, Dicionários Editora, 7.ª edição, Porto Editora, p. 1730 e Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Academia da Ciências de Lisboa, Verbo, 2º Vol., pp. 3534.
12. Ac. do STJ de 10/10/2007 (relator Pinto Hespanhol), disponível in www.dgsi.pt.
13. Cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 6ª ed., pp. 542 e 543.
14. Cfr. Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, 2.ª edição, p. 63.
15. Ac. do STJ de 10/10/2007 (relator Pinto Hespanhol), disponível in www.dgsi.pt.
16. Cfr. Cruz de Carvalho, Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Legislação Anotada, 2.ª Edição, Livraria Petrony, Lisboa, 1983, pp. 51 e 52.
17. No tocante aos requisitos enunciados na al. a) do n.º 1 do art. 14º da LNAT não decorre da materialidade fáctica provada que o acidente foi dolosamente provocado pelo sinistrado ou que tenha provindo de seu acto ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador (não está sequer comprovado, por exemplo, a existência de regulamento interno que proibisse ou restringisse a execução de qualquer tarefa sob o efeito de álcool) ou previstas na lei (o colaborador sinistrado, à data, não se encontrava a manobrar nenhum veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, pelo que não incorreu no preenchimento do tipo legal crime p. e p. pelo art. art. 292.º, n.º 1, do Código Penal).
18. Prevê o citado normativo que: «1 - Quando o acidente for causado por outro trabalhador ou por terceiro, o direito à reparação devida pelo empregador não prejudica o direito de acção contra aqueles, nos termos gerais. (…) 4 - O empregador ou a sua seguradora que houver pago a indemnização pelo acidente pode sub-rogar-se no direito do lesado contra os responsáveis referidos no n.º 1 se o sinistrado não lhes tiver exigido judicialmente a indemnização no prazo de um ano a contar da data do acidente». Se o dano sofrido pelo trabalhador foi causado por terceiro, o lesado pode diretamente demandar o responsável, nos termos gerais da responsabilidade extracontratual, como prescreve o art. 17º, n.º 1 da LNAT. Pode, porém, suceder que o trabalhador lesado não demande o terceiro responsável pela ocorrência do acidente, designadamente por se encontrar já ressarcido pelo empregador (ou pela seguradora para a qual foi transferida a responsabilidade emergente de acidente de trabalho); nesse caso, cabe então ao empregador – ou à seguradora, como sucede no presente caso –, demandar o terceiro (ou a seguradora para a qual foi transferida a responsabilidade civil), exigindo-lhe o que deveria ter pago ao trabalhador (art. 17º, n.º 4 da NLAT). Outrora qualificado como direito de regresso, é, agora, qualificado como sub-rogação. - cfr. sobre o tema, Pedro Romano Martinez, Direito do Trabalho, 2015 - 7ª ed., Almedina, pp. 883/885.