Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2299/13.3TBBCL.G1
Relator: MARIA AMÁLIA SANTOS
Descritores: FACTO E DIREITO
UNIÃO DE FACTO
INDEMNIZAÇÃO À COMPANHEIRA
DANO DA MORTE DA VÍTIMA
DANO MORAL DA PRÓPRIA VÍTIMA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/23/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- A referência a que determinadas pessoas “vivem como se fossem marido e mulher” não é, nem uma expressão jurídica, nem uma conclusão, mas sim um facto, uma ocorrência da vida, que tem a ver com o modo de vida de um casal, facilmente perceptível pelas pessoas normais, com um mínimo conhecimento da realidade conjugal;

II- O artigo 496º nº3 do Código Civil, na versão introduzida pela Lei n.º 23/2010, de 30.08, preceitua que se a vítima vivia em união de facto, o direito de indemnização previsto no número anterior cabe, em primeiro lugar, à pessoa que vivia com ela.

III- Visando a autora a indemnização pelos danos não patrimoniais por morte do seu filho F. A. e havendo este falecido no estado de “unido de facto” com a companheira N. C., o titular do direito a essa indemnização é essa companheira e não a autora, nos termos do artº 496º, nº2, do Cód. Civil.
Decisão Texto Integral:
M. R., melhor identificada nos autos, intentou contra Companhia de Seguros A – sucursal em Portugal, também melhor identificada nos autos, a presente ação declarativa sob a forma de processo ordinário, pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de € 167.921,60, acrescida de juros de mora, desde a citação, à taxa legal de 4%, até integral pagamento.
No processo apenso, a Autora intentou contra a mesma Ré (outra) ação declarativa, sob a forma de processo sumário, pedindo a sua condenação a pagar-lhe a indemnização global de € 20.000,00, acrescida de juros de mora vincendos, contados à taxa legal de 4% ao ano, desde a data da citação, até efetivo pagamento.
Para fundamentar os pedidos formulados, a Autora alegou, em síntese, que no dia 15.10.2012 ocorreu um embate que vitimou mortalmente o seu filho, F. A., o qual faleceu no estado de divorciado e sem descendentes; na data do embate, o F. A. era transportado no veículo com a matrícula XX, propriedade da empresa “SC Unipessoal, L.da”, entidade patronal daquele; nessa data, o F. A. seguia sob as ordens e instruções da sua entidade patronal, no interior do mencionado veículo, com vista à prestação de serviço em Espanha; o embate deu-se em virtude de o motorista se ter despistado, quando seguia na Autopista n.º 9, no sentido Valença-Santiago de Compostela, porque seguia cansado e a velocidade superior a 160 km/h; o F. A. trazia o cinto de segurança colocado e apertado ao seu corpo, sendo que, não obstante isso, sofreu lesões graves, que lhe determinaram a morte, por choque hipovolémico; o F. A., na data do acidente, tinha apenas 40 anos, tendo a morte cortado de forma abrupta a relação de profundo amor e união que existia entre ele a sua mãe, sua única herdeira; o F. A. não teve morte imediata, tendo pressentido a iminência daquela, o que foi motivo de angústia; a Autora teve despesas de transladação e de funeral do F. A.; a proprietária do veículo acidentado transferiu para a Ré a responsabilidade civil emergente de acidente de viação, incluindo o respetivo seguro de cobertura facultativa de acidentes pessoais (seguro de ocupantes), que previa o pagamento de € 10.000,00, em caso de morte (elevado ao dobro, se, na data, o sinistrado fosse portador, como era, de cinto de segurança).
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Regularmente citada a Ré apresentou contestação, nestes autos e nos autos apensos, nas quais impugnou, por desconhecimento, a dinâmica do acidente e a relação da morte do F. A. com a produção do mesmo.
Subsidiariamente, alegou que o F. A. não seguia com o cinto de segurança colocado (o que o torna o único responsável pelos danos sofridos).
Para além disso, invocou que a Autora não é a única herdeira do F. A. e que a indemnização derivada da garantia de seguro de ocupantes encontra-se consumida pelo direito exercido pela via extracontratual.
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A Autora apresentou articulado de resposta, nestes autos e nos autos apensos, onde, em síntese, impugnou que as cláusulas constantes das condições especiais do contrato de seguro tenham sido objeto de esclarecimento, e que quaisquer cláusulas limitativas do direito à indemnização lhe são inoponíveis, afirmando ainda que as indemnizações devidas, uma por via contratual e outra por via extracontratual, são cumulativas.
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Por despacho de fls.. 229 a 230, foi determinada a apensação das ações.
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Na data da audiência de julgamento, foi apresentado articulado superveniente, o qual foi admitido, nele alegando a Ré que, com referência à data do sinistro, o falecido F. A. vivia há mais de 2 anos com N. C., sendo ela a titular do direito à indemnização exercido pela Autora na ação principal.
Regularmente notificada, a Autora impugnou a factualidade alegada, negando que a N. C. vivesse em condições análogas às dos cônjuges com o seu filho F. A..
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Tramitados regularmente os autos foi proferida a seguinte decisão:

1. Julgo a ação principal parcialmente procedente, condenando a Ré (…) a pagar à Autora (…) a quantia de € 13.491,03 (…), acrescida dos juros devidos desde a citação até integral pagamento, à taxa legal de juros civis;
2. Julgo a ação apensa parcialmente procedente e, em consequência, condeno a Ré (…) a pagar à Autora (…) a quantia de € 10.000,00 (…), a que acresce a quantia devida a título de juros vencidos e vincendos, desde a citação, até integral pagamento, à taxa legal de juros civis.
3. Absolvo a Ré (…) do demais peticionado na ação principal e na ação apensa…”.
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Não se conformando com tal decisão, veio a A. dela interpor o presente recurso de Apelação, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões:

1. Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida nos autos, na parte em que julgou a acção principal parcialmente improcedente e, bem assim, na parte em que julgou a acção apensa parcialmente improcedente.
2. A Recorrente pretende impugnar a decisão da matéria de facto, com necessidade de reapreciação da prova gravada, e também a decisão relativa à matéria de direito.
3. Os factos novos, alegados pela Ré no seu articulado superveniente, não poderão deixar de ser considerados matéria de excepção peremptória, atípica ou inominada – cfr. art. 576.º, n.º 3 do Cód. Proc. Civil.
4. Por essa razão, o ónus da prova dos mesmos impendia sobre a Ré Companhia de Seguros A – art. 342.º, n.º 1 e 2 do Cód. Civil.
5. O ponto 85 dos factos provados foi dado como provado por recurso a presunções judiciais.
6. O Tribunal recorrido não dispunha de elementos que lhe permitissem extrair, por recurso a presunção judicial, que a projecção de F. A. para o exterior da viatura se deveu ao não uso do cinto de segurança.
7. Nesta parte, a douta sentença recorrida violou a disposição do art. 351.º do Cód. Civil.
8. Deve, pois, ser revogada e substituída por Douto Acórdão que dê como não provado o ponto 85 dos factos provados.
9. No ponto 87 dos factos provados, o Tribunal recorrido deu como provado o seguinte: “Desde data indeterminada do mês de setembro de 2010 até ao óbito do F. A., este e N. C. viveram como se fossem marido e mulher.”
10. A locução “viveram como se fossem marido e mulher” não é um facto, mas uma mera conclusão.
11. Como tal, ao dar como provado, no ponto 87 dos factos provados, que “Desde data indeterminada do mês de setembro de 2010 até ao óbito do F. A., este e N. C. viveram como se fossem marido e mulher”, o Tribunal recorrido violou, além de outras, a disposição do art. 410.º do Cód. Proc. Civil.
12. Impõe-se, pois, que, na procedência deste recurso, se revogue a decisão recorrida, na parte em que deu tal facto como provado, dando-o, ao invés, por não escrito e excluído da decisão da matéria de facto, por constituir matéria conclusiva ou de direito.
13. Sem prejuízo do acima exposto e por mera cautela, a Recorrente não poderá deixar de dizer o seguinte:
14. A Autora discorda do julgamento do ponto 87 da decisão da matéria de facto, pois entende que o Tribunal recorrido deveria ter dado como provado que “Desde data indeterminada do mês de Dezembro de 2010 até ao óbito do F. A., este e N. C. viveram como se fossem marido e mulher”.
15. Ainda que assim se não entendesse, ou seja, ainda que, face à prova produzida, subsistissem dúvidas quanto à concreta data em que F. A. e N. C. iniciaram a vida em condições análogas às dos cônjuges, o Tribunal recorrido deveria, no limite, ter dado como provado que “Desde data indeterminada até ao óbito do F. A., este e N. C. viveram como se fossem marido e mulher”.
16. Os meios de prova que impunham decisão diversa são os seguintes:

3. Prova Testemunhal
a) P. R., no depoimento prestado em 20/01/2017, excerto de mins. 21:24 a 37:15;
b) N. R., no depoimento prestado em 01/02/2017, excerto de mins. 08:00 a 15:47;
c) F. F., no depoimento prestado em 01/02/2017, excerto de mins. 05:00 a 07:00;
d) R. F., no depoimento prestado em 01/02/2017, excerto de mins. 05:00 a 10:50;
e) H. B., no depoimento prestado em 01/02/2017, excerto de mins. 06:12 a 11:30;
f) M. R., no depoimento prestado em 01/02/2017, excerto de mins. 05:25 a 17:00;
g) F. D., no depoimento prestado em 01/02/2017, excerto de mins. 02:30 a 05:30;
h) M. C., no depoimento prestado em 01/02/2017, excerto de mins. 04:20 a 07:40;
i) M. M., no depoimento prestado em 01/02/2017, excerto de mins. 02:30 a 04:50;
j) Maria, nomeadamente, o depoimento prestado em 01/03/2017, no excerto de mins. 06:00 a 14:00;
k) N. M., nomeadamente, o depoimento prestado em 01/03/2017, no excerto de mins. 02:30 a 08:44;
l) F. P., nomeadamente, o depoimento prestado em 01/03/2017, no excerto de mins. 01:20 a 07:40.

4. Prova Documental (além de outros documentos):

a) certidão judicial do processo de divórcio de N. C. (proc. n.º 1624/11.6TBBCL;
b) extractos das contas bancárias do falecido F. A.;
c) ofício remetido pela Junta de Freguesia de … em 29/12/2015;
d) ofício remetido pelo Centro de Emprego de Barcelos em 20 de Março de 2017;
e) mensagem de correio electrónico enviada por N. C. a P. R. em 29 de Junho de 2011.
17. A Autora entende que o conjunto dos meios de prova acima referidos, conjugado com os demais elementos instrutórios juntos aos autos, permite extrair a conclusão de que F. A. e N. C. começaram a viver juntos, em condições análogas às dos cônjuges, em Dezembro de 2010, na casa da aqui Autora, em ….
18. No limite, o conjunto dos meios de prova acima referidos permite infirmar a alegação da Ré de que a convivência em condições análogas às dos cônjuges entre F. A. e N. C. teve início em Setembro de 2010.
19. Apesar de estar onerada com o ónus da prova, a Ré Companhia de Seguros A não se dignou sequer a ouvir todas as testemunhas que arrolou, já que optou expressamente por prescindir dos depoimentos das testemunhas N. C., F. G. e A. M..
20. A partir do momento em que a Ré prescindiu da produção dessa prova, os meios de prova que apresentou para sustentar a sua versão são parcos, muito parcos, e claramente insuficientes para provar a sua versão dos factos.
21. Está junta aos autos certidão de casamento que atesta que, em 21 de Março de 2009, N. C. casou-se com F. G..
22. Por outro lado, está também junta aos autos certidão judicial do processo n.º 1624/11.6TBBCL, do 4.º Juízo Cível do extinto Tribunal Judicial de Barcelos, que corresponde a acção de divórcio instaurada por N. C., em 11 de Maio de 2011, contra o dito F. G., que culminou com a dissolução desse casamento, em 20 de Setembro de 2011.
23. Os documentos acima referidos permitem, desde logo, afastar a possibilidade de uma vida em comum entre F. A. e N. C. em período anterior a Março de 2010.
24. Para além disso, encontra-se junto à certidão judicial do processo de divórcio ( (doc. n.º 4, junto com a p.i.) relatório completo de episódio de urgência do ex-marido da N. C., datado de 4 de Maio de 2010, do qual se transcreve o seguinte excerto: “Homem, 44 anos, trazido ao SU por ingestão voluntária de Prozac (fluoxetina), cerca de 30 comprimidos, ontem por volta das 23h da noite com ideação suicida (1.ª vez), motivos passionais (refere ser muito ciumento, e ontem o episódio ocorreu após discussão com a esposa)” (sublinhado nosso).
25. Esse documento permite concluir que, pelo menos em Maio de 2010, N. C. e o então marido F. G. ainda mantinham contacto.
26. Os extractos bancários das contas de F. A. são importantes para a apreciação do mérito dos autos pois permitem ao Tribunal aferir quais os hábitos do falecido F. A., ao nível do levantamento de dinheiro e movimentação de quantias, nos anos de 2010 a 2012.
27. Esses extractos bancários não são compatíveis com a versão da Ré e de N. C., de que F. A. teria vivido no Porto, entre Março e Setembro de 2010 e reforçam a tese da Autora, de que N. C. se mudou do Porto para … em Dezembro de 2010.
28. Está junto aos autos ofício da Junta de Freguesia de … do qual resulta que, em 16 de Dezembro de 2010, a Junta de Freguesia de … emitiu uma declaração relativa à pessoa de N. C..
29. A relevância probatória desse documento releva do facto de estar em causa um documento emitido em 16 de Dezembro de 2010, ou seja, muito antes de N. C. sequer imaginar que teria de provar que vivia com o F. A. em período anterior a Outubro de 2010 e de atestar-se, nesse documento, que N. C. “vai residir”, e não que “reside”, na freguesia de Barcelos.
30. A declaração emitida pela Junta de Freguesia de … em 16 de Dezembro de 2010, porque elaborada numa altura em que não era concebível a necessidade de provar uma residência em Barcelos em período anterior a Outubro de 2010, tem, a nosso ver, um valor probatório reforçado e que não deveria ter sido desconsiderado, como foi, pelo Tribunal recorrido.
31. Esse ofício de 16 de Dezembro de 2010 permite, assim, concluir que, nessa data, N. C. tencionava ir viver para Barcelos, mas ainda não se tinha mudado para essa freguesia – daí a utilização da locução “vai residir”.
32. Os extractos de remunerações permitem também criar, de forma segura, a convicção de que F. A. nunca viveu no Porto com N. C., limitando-se a fazer visitas semanais, a partir de Agosto ou Setembro de 2010, até Dezembro de 2010 – altura em que começaram a viver juntos na casa da Autora, na freguesia de …, em Barcelos.
33. Os ofícios enviados pelo IEFP não infirmam e até confirmam a tese da Autora quanto à data da mudança de N. C. do Porto para Barcelos.
34. A mensagem de correio electrónico junta aos autos, enviada por N. C. a P. R., reforça, também ela, a tese da Autora, no sentido de que a mudança para Barcelos e início da vida em comum com F. A. se iniciou em Dezembro de 2010.
35. A decisão instrutória do Proc. n.º 621/13.1TABCL não põe em causa a tese da Autora.
36. Note-se que, tendo a prova produzida num e outro processo sido praticamente a mesma (inclusivamente, com mais prova documental junta em sede de instrução), o Tribunal de Instrução Criminal de Braga não deu como provado que F. A. e N. C. viviam juntos, em Barcelos, desde Setembro de 2010.
37. A Autora está em crer que a conjugação do depoimento da testemunha com a prova documental acima referida, a consideração da relação de proximidade com N. C., a animosidade relativamente à família da Autora e, por fim, a natureza pouco espontânea do seu depoimento (ou não viesse a mesma de papel em punho e claramente alertada para o objecto da discussão) impunham a máxima reserva na valoração do depoimento da testemunha.
38. E tais reservas não são compagináveis com a instituição de tal depoimento, praticamente, como o principal meio de prova da Autora, que permitiu ao Tribunal recorrido situar o início da convivência em comum entre F. A. e N. C. em Setembro de 2010…
39. O depoimento da testemunha F. M. não permite a prova de uma suposta vida em comum, entre N. C. e F. A., em Barcelos, a partir de Setembro de 2010.
40. A alteração de domicílio fiscal, porque efectuada em 26 de Outubro de 2010, não provaria uma convivência em condições análogas às dos conjuges por período superior a 2 (dois) anos, já que, para isso, seria necessário que tivesse data anterior a 15 de Outubro de 2010.
41. Ou seja: se esse documento atesta alguma coisa, é que F. A. e N. C. não viviam juntos há mais de 2 (dois) anos, por referência à data da morte deste último.
42. Em suma, a prova recolhida deverá ser objecto de um apurado juízo crítico.
43. De um lado, temos prova de sentido único, sem contradições e produzida por pessoas com conhecimento directo dos factos, cujas afirmações são complementadas e comprovadas por prova documental.
44. Por outro e como é normal na prática judiciária, temos uma versão oposta. Com uma nuance, contudo: a versão da Ré não se revela sustentada em meios de prova robustos e unívocos. Pelo contrário, quanto mais se aprofunda a investigação sobre os meios de prova produzidos pela Ré, maiores são as reservas quanto à sua validade.
45. Assim, a Recorrente entende que o Tribunal recorrido andou mal ao dar como provado, no ponto 87 dos factos provados, que “Desde data indeterminada do mês de setembro de 2010 até ao óbito do F. A., este e N. C. viveram como se fossem marido e mulher.”
46. Como tal, requer-se a V. Exas. que, julgando procedente o presente recurso, alterem o ponto 87 dos factos provados, dando-se como provado que “Desde data indeterminada do mês de Dezembro de 2010 até ao óbito do F. A., este e N. C. viveram como se fossem marido e mulher”.
47. Caso assim se não entenda, requer-se a V. Exas. que, julgando procedente o presente recurso, alterem o ponto 87 dos factos provados, dando como provado que “Desde data indeterminada até ao óbito do F. A., este e N. C. viveram como se fossem marido e mulher”.
48. Em caso de procedência do recurso da matéria de facto, estão reunidas as condições para que a acção principal seja julgada integralmente procedente.
49. Assim, a douta sentença recorrida violou, além de outras, a disposição do art. 496.º, n.º 1 do Cód. Civil.
50. Deve, pois, ser revogada e substituída por Douto Acórdão que julgue a acção integralmente procedente.
51. Ainda que o recurso da matéria de facto fosse julgado improcedente – o que não se aceita -, a Autora sempre discordaria, como discorda, da douta sentença recorrida.
52. Com efeito, a Autora entende que, pelo menos no que respeita aos danos morais sofridos pela própria vítima (cfr. pontos 49 a 62 dos factos provados), estes conferem um direito indemnizatório à própria vítima, que se consolida na sua esfera jurídica antes da morte.
53. E estando em causa um direito consolidado na esfera jurídica do falecido previamente à sua morte, a transmissão dos mesmos haverá que fazer-se aos seus sucessores legais (de acordo com o Direito das Sucessões), e não às sucessíveis previstos no n.º 2 do art. 496.º do Cód. Civil.
54. E sendo a Autora a herdeira legal do falecido, esta sempre teria direito a receber a indemnização devida pelo dano moral sofrido pela própria vítima, independentemente da prova de uma suposta união de facto do falecido com N. C..
55. Assim, ao decidir como decidiu, o Tribunal recorrido violou, além de outras, a disposição do art. 2133.º, n.º 1 do Cód. Civil.
56. Deve, pois, revogar-se a decisão recorrida, que deverá ser substituída por Douto Acórdão que julgue parcialmente procedente a acção, atribuindo à Autora, além do que já foi fixado em 1.ª Instância, o direito à indemnização por danos morais da própria vítima, de valor não inferior a € 25 000,00.
57. A Autora discorda ainda do montante indemnizatório fixado pelo Tribunal recorrido na acção apensa - € 10 000,00.
58. O montante peticionado - € 20 000,00 – revela-se mais compatível com a factualidade dada como provada.
59. Ao decidir como decidiu, o Tribunal recorrido violou, além de outras, as disposições dos arts. 762.º, n.º 1 e 763.º, n.º 1 do Cód. Civil.
60. Deve, pois, revogar-se a douta sentença e substituída por Douto Acórdão que julgue integralmente procedente a acção apensa.

Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado procedente, com a consequente revogação do despacho de não pronúncia recorrido e sua substituição por Douto Acórdão que esteja em conformidade com as conclusões acima formuladas, com o que se fará Justiça”.
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Pela recorrida foram apresentadas contra-alegações nas quais pugna pela manutenção da decisão recorrida.
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Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente (acima transcritas), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, as questões a decidir são:
- A de saber se deve ser alterada a decisão da matéria de facto impugnada pela recorrente;
- Se perante a matéria de facto alterada deverá ser alterada a decisão em conformidade, com a condenação da ré no pedido formulado pela A.; e
- Se mesmo perante a matéria de facto provada deve ser alterada a decisão recorrida com a condenação da ré a indemnizar a A. pelos danos não patrimoniais sofridos pelo falecido antes da sua morte.
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Foram dados como provados na 1ª instância os seguintes factos:

“§ Provenientes das petições iniciais:

1. No dia 15.10.2012, cerca das 05h50m da madrugada, ocorreu um embate, na Auto Pista nº. 9, ao quilómetro número 90 + 40, na área de Santiago de Compostela, Pontevedra, Espanha.
2. No qual foram intervenientes: – o veículo automóvel de passageiros, de marca Peugeot, de matrícula XX; – o passageiro desse veículo automóvel F. A..
3. O veículo automóvel de passageiros de matrícula XX era propriedade da sociedade SC Unipessoal, L.da.
4. Era conduzido por A. A..
5. O A. A. era empregado da sociedade SC, L.da.
6. Desempenhava, para essa sociedade, a profissão de motorista.
7. O A. A. conduzia o veículo automóvel de passageiros de matrícula XX, em cumprimento de ordens e instruções que a SC, L.da, lhe havia, previamente, transmitido.
8. Transportava operários da referida empresa, dos seus respetivos domicílios, para o seu local de trabalho, em Espanha, ao serviço da sua referida SC, Lda.
9. E o A. A. seguia, também, por um itinerário que a referida SC, Lda, lhe havia, previamente, determinado.
10. A faixa de rodagem da Auto Pista nº. 9, no local da deflagração do sinistro, encontra-se dividida em duas pistas de tráfego.
11. Através de um separador central, em terra batida.
12. Com cerca de quatro (04,00) metros de largura.
13. Uma das referidas pistas de tráfego destina-se ao trânsito de veículos automóveis que desenvolvem a sua marcha no sentido Sul-Norte, ou seja, Valença-Santiago de Compostela.
14. A outra dessas pistas de tráfego destina-se ao trânsito de veículos automóveis que desenvolvem a sua marcha no sentido Norte-Sul, ou seja, Santiago de Compostela-Valença.
15. A faixa de rodagem da sua pista de tráfego, destinada ao trânsito de veículos automóveis que desenvolvem a sua marcha no sentido Sul-Norte, ou seja, Valença-Santiago de Compostela, tem uma largura útil de 07,00 metros.
16. E encontrava-se dividida ao meio, em dois corredores de trânsito.
17. Através de uma linha, pintada a cor branca, com soluções de continuidade.
18. Cada um desses dois (02,00) corredores de trânsito tem uma largura de cerca 03,50 metros.
19. O piso da referida faixa de rodagem da Auto Pista nº. 9 e, portanto, também, o piso de toda a faixa de rodagem da sua pista de tráfego destinada ao trânsito de veículos automóveis que desenvolvem a sua marcha no sentido Sul-Norte, ou seja, Valença-Santiago de Compostela, era pavimentado a asfalto.
20. O pavimento asfáltico da faixa de rodagem da pista de tráfego da Auto Pista nº. 9, encontrava-se em bom estado de conservação.
21. Pela sua margem direita, no sentido Valença-Santiago de Compostela, a faixa de rodagem asfáltica da pista de tráfego da Auto Pista nº. 9 apresentava uma berma.
22. Também pavimentada a asfalto.
23. Com uma largura de 02,50 metros.
24. A dividir essa faixa de rodagem da Auto Pista nº. 9 da berma asfáltica situada do seu lado direito – tendo em conta o sentido Valença-Santiago de Compostela -, existia e existe uma linha, pintada a cor branca, sem soluções de continuidade.
25. A marginar essa berma do lado direito, existiam rails de proteção metálicos.
26. Junto ao separador central – em terra batida –, a faixa de rodagem da referida pista de tráfego, apresentava e apresenta uma outra berma, também pavimentada a asfalto.
27. Com uma largura de 01,20 metros.
28. Também, delimitada, em relação à faixa de rodagem da referida pista de tráfego, através de uma Linha, pintada a cor branca, sem soluções de continuidade.
29. A marginar essa berma do lado esquerdo, existiam rails de proteção metálicos.
30. O plano configurado pelo pavimento asfáltico das duas (02,00) referidas bermas asfálticas situa-se ao mesmo nível do plano configurado pelo pavimento asfáltico da faixa de rodagem da pista de tráfego da referida via.
31. No local do embate, a faixa de rodagem da Auto Pista nº. 9 apresenta-se e apresenta-se em plano horizontal – patamar -, para quem circula no sentido de marcha Valença-Santiago de Compostela.
32. No dia 15.10.2012, pelas 05,30 horas da madrugada, o veículo automóvel de passageiros de matrícula XX desenvolvia a sua marcha no indicado sentido de marcha Valença-Santiago de Compostela.
33. A uma velocidade situada entre 90 a 100 km/h.
34. Inicialmente, o veículo de matrícula XX desenvolvia a sua marcha sobre o corredor de tráfego situado mais à direita da faixa de rodagem da sua pista de tráfego – da Auto Pista nº. 9.
35. O condutor do veículo de matrícula XX havia arrancado da área da comarca de Barcelos, por volta das 03,00 horas da madrugada.
36. Ao chegar ao quilómetro número 90 + 4, da referida via – Auto Pista nº. 9 –, o A. A. perdeu o controle do veículo.
37. Por essa razão, o veículo de matrícula XX entrou em despiste.
38. Desse modo, o veículo de matrícula XX infletiu para o seu lado direito.
39. Saiu para fora da faixa de rodagem do corredor de tráfego situado mais à direita da faixa de rodagem da sua pista de tráfego – da Auto Pista nº. 9 -, tendo em conta o sentido Sul-Norte, ou seja, Valença-Santiago de Compostela
40. Invadiu a berma asfáltica situada do lado direito do corredor de tráfego situado mais à direita da faixa de rodagem da pista de tráfego da Auto Pista nº. 9.
41. Transpôs, para o seu lado direito, essa berma asfáltica.
42. Até que o veículo foi embater, como embateu, contra os rails metálicos, situados na margem direita da Auto Pista nº. 9, tendo em conta o sentido Valença-Santiago de Compostela.
43. Após o que rodou sobre si próprio no sentido longitudinal.
44. Desse modo, capotando sobre a faixa de rodagem da Auto Pista nº. 9, destinada ao trânsito automóvel que desenvolve a sua marcha no sentido Valença-Santiago de Compostela.
45. O veículo de matrícula XX tinha capacidade para o transporte de nove (09,00) passageiros, incluindo o seu respetivo condutor.
46. Para o efeito, estava, como está, dotado de três fiadas de assentos.
47. O F. A. seguia, como passageiro, no veículo de matrícula XX, sentado, no assento situado mais à retaguarda.
48. Como consequência direta do embate, resultaram para o F. A.: 2 (dois) hematomas 4 (quatro) cm, no ombro esquerdo, epistaxis (hemorragia nasal), ampla ferida incisa na região escapular esquerda, ferida contusa no cotovelo direito, cicatriz antiga no cotovelo direito, com limitação da flexo-extensão, três placas erosivas retangulares no glúteo e na perna direitos, erosão de 3 (três) cm no tornozelo direito, sinais terapênicos próprios da sua assistência na ambulância, incisão transversal do couro cabeludo, de mastóide a mastóide, retirados ambos enxertos cutâneos, aprecia-se infiltrações hemorrágicas na região occipital, amplos focos contusivos no córtex frontal (crânio), vários focos de fratura na parrilla hemotórax de 354 c.c. bilateral, contusão do intestino delgado e do intestino grosso, hemoperitoneu de 1230 c.c., baço desgarrado/esfacelado, além de outras, que lhe causaram, de forma directa e necessária, a sua morte, por choque hipovolémico.
49. O F. A. foi transportado de ambulância para o Hospital Universitário de Santiago de Compostela.
50. Ainda vivo.
51. Em estado de consciência e lucidez.
52. No momento do embate e nos instantes que o precederam, a vítima F. A. sofreu um susto, perante a iminência do acidente e da sua incapacidade e impossibilidade de lhe escapar.
53. Teve, também, plena consciência de que, em consequência do embate que estava iminente, lhe poderiam advir lesões muito graves.
54. Como efetivamente veio a acontecer.
55. E de que as mesmas eram suscetíveis de lhe causar a morte.
56. Como também veio a acontecer.
57. Nos momentos imediatos à ocorrência do acidente, o F. A. conservou ainda a consciência e a lucidez.
58. A caminho do Hospital Universitário de Santiago de Compostela, a vítima F. A. falou com os seus companheiros de viagem, que o acompanharam.
59. A vítima F. A. sofreu dores, em consequência do choque e das lesões sofridas.
60. Sofreu, ainda, um desgosto e angústia, ao pressentir que lhe poderia advir a morte, como veio a suceder.
61. Esses sentimentos tornaram-se ainda mais intensos pelo facto de a vítima ser ainda uma pessoa muito nova, na força da sua vida, pois contava 40 (quarenta) anos de idade, pois nasceu no dia 12.09.1972.
62. Pelas 8h, já depois de ter dado entrada no Hospital Universitário de Santiago de Compostela, do dia 15.10.2012, a vítima F. A. veio a falecer.
63. A Autora é a mãe da vítima F. A..
64. A vítima faleceu no estado de divorciado, sem quaisquer descendentes (filhos).
65. A vítima não tinha efetuado testamento ou qualquer outra disposição de última vontade.
66. Era um homem, ainda jovem, saudável, alegre, bem-disposto e apegado à vida, que desejava longa.
67. E irradiava a sua alegria de viver para a sua mãe.
68. Dedicava à sua referida progenitora afeto e ternura.
69. Pois que, ao longo das suas vidas, sempre se haviam mantido muito unidos.
70. A vítima F. A. rodeava de atenção e de carinho a sua mãe.
71. Sentimentos esses de que esta carecia e que, por sua vez, retribuía ao seu filho.
72. Daí que o corte da sua vida tenha causado à Autora desgosto e angústia.
73. Que se mantém na presente data.
74. E que a vai acompanhar, ao longo de toda a sua vida.
75. O custo do funeral do F. A. importou a quantia total de € 15.871,80, aqui se incluindo o montante de € 2.049,80, satisfeito pela Autora.
76. Para a Ré, estava transferida a responsabilidade civil por danos causados a terceiros pelo veículo de matrícula XX, através de acordo de seguro, titulado pela apólice nº. …, em vigor à data do embate.
77. Esse acordo de seguro incluía as coberturas facultativas de seguro de ocupantes de viaturas/acidentes pessoais.
78. O qual garantia o pagamento da indemnização de 10.000,00 € a cada lesado, incluindo os passageiros e o condutor do referido veículo de matrícula XX.
79. Por danos decorrentes de lesões corporais sofridas, no caso de morte e/ou invalidez permanente.
80. O qual, no caso do uso de cinto de segurança, por parte da vítima cobre o dobro do referido capital, ou seja (10,000,00 € x 2) € 20.000,00.
81. De acordo com o estipulado na Cláusula 1.a – 001 – Ocupantes da viatura -, sob a epígrafe Ocupantes de viatura: «Objecto do seguro: Fica expressamente convencionado que nos termos, condições e exclusões desta cláusula, a presente apólice garante o pagamento das indemnizações fixadas nas Condições Particulares, em consequência de acidente acontecido às Pessoas Seguras: Quando se encontrem no interior do veículo designado nas condições Particulares, quer este esteja ou não em movimento; Entrando ou saindo do mesmo».
82. De acordo com a cláusula 4º, com a epígrafe «Riscos Cobertos», «1. A presente condição especial cobre os seguintes riscos: 1.1 Coberturas Principais: a): Morte.».
83. A Autora é a mãe de F. A., encontrando-se no estado de viúva.
84. O veículo com a matrícula XX encontrava-se, à data do embate, registado na Conservatória do Registo Automóvel de Lisboa, estando a aquisição inscrita a favor da SC, L.da.

§ Provenientes das contestações:
85. O F. A. seguia sem o cinto de segurança colocado.
86. A ausência de cinto de segurança contribuiu para os danos.

§ Provenientes do articulado superveniente:
87. Desde data indeterminada do mês de setembro de 2010 até ao óbito do F. A., este e N. C. viveram como se fossem marido e mulher.
§ Considerados nos termos dos artigos 5º/2, a) e 607º/3, do CPCiv:
88. Na data do embate havia geada e precipitação intermitente, estando o piso molhado.
89. No local do embate, o traçado é curvo orientado à esquerda, seguido dum traço reto, num plano descendente.
90. A limitação específica de velocidade no local onde se deu o embate era de 100 km/h.
91. A visibilidade do local onde se deu o embate era reduzida, devido à configuração do terreno.
92. Os pneus do veículo encontravam-se em mau estado.
93. O divórcio entre N. C. e F. G. foi decretado por decisão de 20.09.2011”.
*
E foram dados como não provados os seguintes:
“§ Provenientes das petições iniciais:
94. A Auto Pista nº. 9, no local do sinistro, configura um traçado retilíneo.
95. Com um comprimento superior a 1.000,00 metros.
96. Para quem circula pela Auto Pista nº. 9, no sentido Sul-Norte, ou seja, Valença-Santiago de Compostela, consegue avistar-se a sua faixa de rodagem, em direção ao local da deflagração do embate, numa altura em que se encontra a uma distância superior a 1.000,00 metros, antes de lá chegar.
97. O tempo estava bom e seco.
98. E o pavimento asfáltico da faixa de rodagem da pista de tráfego da Auto Pista nº. 9, encontrava-se limpo e seco.
99. Sobre a faixa de rodagem da Auto Pista nº. 9, porém, no local da deflagração do embate, na altura da eclosão do sinistro, abatia-se sobre a sua faixa de rodagem uma camada de nevoeiro.
100. Na altura da ocorrência do acidente de trânsito que deu origem à presente ação era noite cerrada.
101. A. A. imprimia ao veículo automóvel de passageiros de matrícula XX uma velocidade superior a cento e sessenta (160,00) quilómetros por hora.
102. O F. A. levava, apertado e justo ao seu corpo, o cinto de segurança.
103. O F. A. manifestou aos seus colegas o seu desgosto por pressentir que lhe ia advir a morte.
104. Os sentimentos de angústia deram-se também por se ter apercebido de que iria abandonar a sua mãe para sempre. 105. A Autora despendeu, a título de despesas de funeral, quantia superior à indicada em 75.
106. Caso usasse o cinto de segurança, o F. A. não teria sofrido as lesões corporais que apresentava”.
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Da impugnação da matéria de facto:

Insurge-se a recorrente contra a matéria de facto provada vertida nos pontos 85 e 87, o primeiro deles relacionado com o facto de o falecido F. A. seguir como passageiro na viatura sem o cinto de segurança colocado; e o segundo relacionado com o facto de o falecido, desde data indeterminada do mês de setembro de 2010 até à data do seu óbito, ter vivido com N. C. como se fossem marido e mulher.
Quanto ao primeiro ponto, diz a recorrente que ele foi dado como provado com recurso a presunções judiciais, mas que o tribunal recorrido não dispunha de elementos que lhe permitissem extrair, por recurso a presunção judicial, que a projecção do F. A. para o exterior da viatura se deveu ao não uso do cinto de segurança.
Mas sem razão, como é bom de ver.
Começamos por denunciar o facto de a recorrente não fundamentar minimamente a sua afirmação - de que o tribunal não dispunha de elementos que lhe permitissem extrair, por recurso a presunção judicial, que a projecção do F. A. para o exterior da viatura se deveu ao não uso do cinto de segurança.
Basta ler o que consta da decisão recorrida – quanto à fundamentação da matéria de facto – para concluir que o tribunal recorrido tinha ao seu dispor vários elementos factuais, que usou, para poder deles extrair a conclusão de que o falecido F. A. circulava na viatura sem o cinto de segurança colocado.
Como decorre da fundamentação daquela decisão “No que respeita à utilização do cinto de segurança, nenhuma das testemunhas ouvidas (…) foi capaz de esclarecer o Tribunal acerca desta matéria: ora disseram que estavam a dormir ou que não estavam sentados ao seu lado no momento do despiste.
Todavia, resultou da audição dessas testemunhas e do relatório de acidente de viação que a única pessoa projetada, na sequência do embate, foi o F. A., e que os restantes, que seguiam na carrinha despistada, encontravam-se com o cinto de segurança colocado, tendo sobrevivido (sem lesões graves).
Por presunção judicial (ancorada nas regras de experiência comum), a projeção do F. A., em contraponto com a permanência de todos os restantes ocupantes na viatura nos respetivos lugares, e a ponderação de que todos os demais passageiros foram sujeitos a idênticas forças dinâmicas (como a velocidade e o movimento próprio despiste), permite, com segurança, extrair que aquela foi motivada pela ausência de cinto de segurança (já que, doutro modo, teria funcionado o sistema de retenção).
A mais, na fotografia de 149/verso, do apenso, mais percetível na consulta eletrónica do processo (ou a fls. 391, do processo principal), encontra-se retratada a terceira fila de assentos, onde o F. A. seguia. Através do seu confronto, é possível conferir que o assento, onde estava sentado o F. A., encontrava-se equipado com cinto de segurança, não sendo visível qualquer estrago naquele, a propiciar a conclusão acerca do não funcionamento do sistema de retenção. Aliás, no processo de levantamento do sinistro efetuado pelas autoridades policiais espanholas, inexiste qualquer menção a sinais de rompimento do cinto ou de danos no sistema de retenção, o que seria expectável que fosse realizado, caso tivesse havido, pois que o relatório é muito detalhado, inclusive no que se refere ao estado do veículo e posição dos ocupantes no seu interior.
Acresce ainda que, na informação da triagem hospitalar (documento de fls. 605 a 606, traduzido a fls. 1025), encontra-se referido que o F. A. não fazia uso de cinto de segurança, sendo que, tratando-se dum elemento coevo da verificação do embate, que teve de ser transmitido pela vítima (que estava viva à data de entrada no Hospital) ou por alguém que o acompanhava, constitui fator que reforça o funcionamento da presunção judicial”.
Ou seja, existem vários elementos nos autos – por nós verificados e de que o tribunal se serviu –, a confirmar que deles é possível extrair a ilação de que o sinistrado não tinha colocado o cinto de segurança no momento do acidente, pelo que é de manter como provado o ponto 85 da matéria de facto.
*
Quanto ao ponto 87, começa a recorrente por aduzir que a locução “viveram como se fossem marido e mulher” não é um facto, mas uma mera conclusão, pelo que o Tribunal recorrido violou, além de outras, a disposição do art. 410.º do Cód. Proc. Civil, o que impõe que se dê por não escrito e excluído da decisão da matéria de facto tal facto, por constituir matéria conclusiva ou de direito.
Mas também sem razão, por considerarmos que a expressão vertida no ponto em discussão não é nem “matéria de direito” nem “matéria conclusiva”.
Não é matéria de direito, desde logo, porque ela não é usada na lei, nomeadamente no artº 496º nº 3 do CC – preceito convocado para a análise da situação sub judice, o qual se refere a “união de facto”, questão bem diferente -, podendo ela ser usada também – como o é geralmente – como uma expressão do domínio comum.
Efetivamente, considera-se que uma dada expressão contém “matéria de direito” ou uma apreciação de direito, quando ela contém uma valoração segundo a interpretação ou a aplicação da lei, ou quando contém um juízo, indução ou conclusão jurídica (situação equiparada, em termos de solução jurídica, a “matéria de direito”).
Pelo contrário, são factos "as ocorrências concretas da vida real" (Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, pág. 406), isto é, os "fenómenos da natureza, ou manifestações concretas dos seres vivos, nomeadamente os actos e factos dos homens" (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, 1950, pág. 209).
Concordamos com a afirmação da doutrina mais avalizada de que a distinção entre o que deve entender-se por matéria de facto e por matéria de direito - ou, mais genericamente, matéria com significação jurídica - não é tarefa fácil, como nos dá conta José Alberto dos Reis (CPC anotado, 1950, Vol. 3º, pág. 206.), sendo embora necessária a distinção, uma vez que às partes apenas incumbe provar os factos, cabendo ao juiz indagar, interpretar e aplicar as regras de direito.
Tem-se entendido, em termos práticos, que os factos são as ocorrências da vida real, os eventos materiais e concretos; as questões de direito envolvem a interpretação ou aplicação da lei. Ora, só os factos são objecto de prova; os aspectos jurídicos do caso podem ser objecto de decisão, de interpretação, de argumentação e de justificação, mas não podem ser provados.
Já ensinava J. Alberto dos Reis (“Código de Processo Civil Anotado”, vol. III, 4.ª edição, pág. 206) que (…) “É questão de facto tudo o que tende a apurar quaisquer ocorrências da vida real, quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior; É questão de direito tudo o que respeita à interpretação e aplicação da lei”.
Mas também segundo Anselmo de Castro (“Direito Processual Civil Declaratório”, Vol. III, Almedina, 1982, pág. 268 a 270), “…são de equiparar a factos os juízos que contenham subsunção a um conceito jurídico geralmente conhecido, ou seja, os que contendo a enunciação do facto pelos próprios caracteres gerais da lei, sejam de uso corrente na linguagem comum, caso em que (…) deverão tomar-se no sentido corrente ou comum, ou no próprio sentido em que a lei os tome, quando coincidente, desde que as partes não disputem sobre eles…”
Ora, tomando por base estes princípios, temos de convir que a referência a que determinadas pessoas “vivem como se fossem marido e mulher” não é, nem uma expressão jurídica, nem uma conclusão, mas sim um facto, uma ocorrência da vida, que tem a ver com o modo de vida de um casal, facilmente perceptível pelas pessoas normais, com um mínimo conhecimento da realidade conjugal. Não será difícil perceber, para uma pessoa normal, o que significa viver como se de um casal se tratasse, ou como se de marido e mulher se tratasse, afigurando-se fastidioso enumerar uma realidade tão simples, ou até mesmo embaraçoso descrever, com pormenor, os atos da vida de um casal, para se poder concluir que o são.
Aliás, a demonstração dessa realidade está sobejamente motivada na fundamentação da matéria de facto, o que significa que a matéria em causa foi perfeitamente apreendida pelo foro cognitivo-sensorial das testemunhas ouvidas, sendo como tal passível, como foi, de objecto de instrução e prova, realidade que a recorrente não põe em causa enquanto tal.
Aliás, como resulta dos autos, Autora e Ré estão de acordo que o falecido F. A. e a N. C. viveram em comum desde o Natal de 2010, e ambas convergem que essa convivência teve natureza análoga à dos cônjuges desde aquela data (o que foi também confirmado pela maioria das testemunhas inquiridas a esse respeito), situando-se apenas a sua divergência no período antecedente, com início em Setembro desse ano.
É a própria recorrente, aliás, que pretende que essa expressão se mantenha no facto provado em 87, mas com referência a dezembro de 2010 ou, em último caso, sem referência a qualquer data, o que significa que aceita que a expressão que impugna não reveste a qualidade que lhe atribui.
Conclui-se assim de todo o exposto que a expressão inserida no ponto 87 não reveste natureza jurídica nem conclusiva.
*
Como se disse, pretende a recorrente que esse ponto seja alterado, sendo dado provado que “Desde data indeterminada do mês de Dezembro de 2010 até ao óbito do F. A., este e N. C. viveram como se fossem marido e mulher”, ou, caso assim se não entenda, caso subsistam dúvidas quanto à concreta data em que F. A. e N. C. iniciaram a vida em condições análogas às dos cônjuges, deverá ser dado como provado que “Desde data indeterminada até ao óbito do F. A., este e N. C. viveram como se fossem marido e mulher” – aduzindo em abono da sua tese, quer os depoimentos das testemunhas que indica, quer os documentos juntos aos autos (também por si indicados).
Diz que o conjunto dos meios de prova referidos, conjugados com os demais elementos instrutórios juntos aos autos, permite extrair a conclusão de que F. A. e N. C. começaram a viver juntos, em condições análogas às dos cônjuges, em Dezembro de 2010, na casa da Autora, em Barcelos.
No limite, diz que o conjunto dos meios de prova acima referidos permite infirmar a alegação da Ré de que a convivência em condições análogas às dos cônjuges entre F. A. e N. C. teve início em Setembro de 2010.
Mas não podemos concordar com a recorrente.
Auditados todos os depoimentos testemunhais indicados, deparamo-nos com uma situação “de confronto entre as testemunhas” que também foi devidamente percecionada pelo tribunal recorrido: Temos de um lado as testemunhas da A. – filhos, noras, amigos e vizinhos, a defender e a sustentar a tese da A., de que só a partir do Natal de 2010, o falecido e a N. C. encetaram uma vida em comum como marido e mulher -, e temos do outro lado, as testemunhas da ré – as amigas da N. C., a defenderem e a sustentarem que eles iniciaram a vida em comum em Setembro de 2010.
Trata-se de depoimentos de pessoas com ligações muito próximas a ambas as partes, nitidamente interessadas em defender a tese da parte que as indicaram, sendo certo que estão em causa interesses económicos de alguma monta – além da animosidade própria dos familiares envolvidos.
Concluiu-se, no entanto, na decisão recorrida, pela versão dos factos trazida aos autos pela ré, cotejando os depoimentos das testemunhas F. D. e F. M. por ela arroladas, com os documentos (oficiais) juntos aos autos, e que, em nossa opinião foram fundamentais para sustentar a versão da recorrida.
Confirmaram ambas as testemunhas ao tribunal que o falecido F. A. e a N. C. partilhavam residência desde Setembro de 2010, ainda no Porto, vivendo ambos como se de marido e mulher se tratassem, facto que foi contrariado pelo depoimento das testemunhas da A. Mas esse facto foi confirmado pelo documento junto aos autos a fls. 1364 – quanto a nós decisivo - , consistente num pedido de alteração de domicílio fiscal apresentado pela referida N. C. para a Quinta …, em Barcelos, em 28.10.2010.
Ora, como bem se refere na decisão recorrida, “Ponderando as regras da experiência comum, não se compagina com padrões de normalidade (e é nesse plano que se movem as decisões judiciais) que a N. C. se apresentasse a alterar o seu domicílio fiscal para a morada do F. A., que ele ainda partilhava com a mãe, caso, dum lado, não tivesse aí já residência e, doutro lado, se não estivesse essa residência autorizada pela Autora (e isto, ponderando também o quadro sociocultural da família da F. A., em que a Autora, viúva, tinha o papel de dona da casa). O domicílio fiscal deve coincidir com o local onde a pessoa tem o seu centro de vida instalado e a sua alteração não é desprovida de implicações para o visado. A N. C. tinha estabelecida a sua vida no Porto antes de iniciar a sua residência na Quinta …, rompendo a modificação promovida por aquela com um estado anterior…”.
Por isso conclui: “Assim sendo, associando o pedido de alteração do domicílio fiscal ao depoimento de F. D., entende-se demonstrado que F. A. e N. C. viveram desde data indeterminada de setembro de 2010, em comunhão de mesa, cama e habitação. O facto de o F. A. e a N. C. terem vivido sob teto alheio até meados de 2011 em nada altera essa conclusão: a dona da casa era a mãe da Autora; mas aqueles já partilhavam o seu dia-a-dia, não se reduzindo a sua relação a contactos esporádicos, próprios do namoro. Assim como o facto de a N. C. ser casada, ao tempo que começou o início da sua vida em comum com o F. A.. O divórcio da N. C. e de F. G. só tem lugar em 20.09.2011, tendo sido efetuado o pedido de apoio judiciário para a instauração desse processo em 11.03.2011 (cfr. fls. 1209), ninguém questionando que, nesta data, a N. C. e o F. A. já viviam como se fossem marido e mulher (basta ver que, na petição do divórcio, a N. C. já se dá como residente na Quinta …, em Barcelos – cfr. fls. 1198 a 1200)…”.
Ora, damos a nossa total concordância à avaliação que foi feita na decisão recorrida quanto aos elementos probatórios existentes nos autos – sobretudo aos documentos mencionados, que examinamos com redobrado cuidado, dada a discrepância existente entre os depoimentos testemunhais produzidos – pelo que, aderindo à decisão proferida sobre a realidade subjacente ao facto 87, confirmamos a sua manutenção como provado.
Improcedem, assim, nesta parte, as conclusões da apelação da recorrente.
*
E perante a matéria de facto provada, outra não poderia ser a decisão recorrida.
Improcedente que foi a impugnação da matéria de facto por parte da recorrente, no que respeita ao ponto 87 da matéria de facto provada – e que contendia com a relação pessoal que o falecido F. A. mantinha com a companheira N. C., há mais de 2 anos, “como marido e mulher”, é de manter a decisão recorrida que conferiu àquela a indemnização devida pela morte do falecido F. A., nos termos e ao abrigo do disposto no artº 496º do CC.
Como consta da decisão recorrida, prevê-se naquele artº que a indemnização pela perda do direito à vida, como bem absoluto que é, apesar de irrecuperável, deve ser compensado, assim como a indemnização pelos danos morais que a morte de alguém é suscetível de provocar nos contemplados nessa disposição legal e a indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pela própria vítima até à sua morte.
Ora, o artigo 496º nº3 do Código Civil, na versão introduzida pela Lei n.º 23/2010, de 30.08, preceitua que se a vítima vivia em união de facto, o direito de indemnização previsto no número anterior cabe, em primeiro lugar, à pessoa que vivia com ela.
E concretizando o que se deve entender por “união de facto”, esclarece-se na decisão recorrida que na Lei n.º 7/2011, de 11.05, alterada pela Lei n.º 23/2010, de 29.02 - que adotou medidas de proteção das uniões de facto -, prescreve o artigo 1º nº 2 desse diploma legal, que a união de facto é a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos.
Acrescentando-se que embora a lei não contenha uma definição desse conceito – do que seja a “união de facto” -, pela referência nela feita “às condições análogas às dos cônjuges”, estar-se-á perante uma situação de facto consubstanciada numa convivência de leito, mesa e habitação (mas sem o manto formal do casamento); trata-se duma vivência factual sociologicamente tida por análoga (idêntica) às dos cônjuges (Ac RL, de 08.05.2012, disponível em www.dgsi.pt.).
E esclarece-se: “Como se escreveu em sede de fundamentação da decisão da matéria de facto, sabendo-se que existem formas múltiplas de funcionamento dos núcleos familiares (quer em termos pessoais, quer em termos patrimoniais), há pontos que, verificando-se, dissipam quaisquer dúvidas quanto à convivência marital do F. A. e da N. C.: tinham residência comum, onde pernoitavam juntos e tomavam refeição juntos, que mantiveram desde data indeterminada de setembro de 2010. Apesar de terem alterado o respetivo domicílio, a mudança foi sempre efetuada pelos dois, o que é relevador do projeto de vida em comum que mantinham desde aquela data. Entende-se, por isso, verificar-se entre N. C. e o falecido uma relação de união de facto há mais de 2 (dois) anos, desencadeadora da atribuição de efeitos jurídicos, um deles o previsto no citado artigo 496º nº 3, do CCiv. Em consequência, a unida de facto afasta a ascendente do direito à indemnização.
Isto porque constituiu opção legislativa, com a introdução do n.º 3, a atribuição aos unidos de facto do lugar que caberia ao cônjuge se este existisse. E na leitura da norma do artigo 496º nº 2 do CCiv, resulta que, existindo cônjuge, este eliminará o segundo grupo de legitimados aí previsto (ou seja, os ascendentes)…”.
E justificando a opção legislativa, acrescenta-se: “Escrevem Pires de Lima/Antunes Varela, com a colaboração de H. Mesquita, Código Civil Anotado, vol. I, Coimbra, Coimbra Editora, 1987, 4.ª ed. rev. e aum., p. 500, em anotação a esse preceito, que «[d]os nºs 2 e 3 deste artigo e da sua história (vide Antunes Varela, "Das Obrigações em Geral", 5ª ed., vol I, nº 159) resulta, por um lado, que no caso de a agressão ou lesão ser mortal, toda a indemnização correspondente aos danos morais (quer sofridos pela vítima, quer pelos familiares mais próximos) cabe, não aos herdeiros por via sucessória, mas aos familiares, por direito próprio (jure proprio), nos termos e segundo a ordem do disposto no nº 2». Na esteira destes autores, sendo de privilegiar a intensidade do sofrimento na direta proporção da maior ligação afetiva entre determinados familiares e a vítima, o que conduz a que haja lugar a um chamamento sucessivo das classes previstas no artigo 496º/1. Sobrevindo ao falecido cônjuge ou unido de facto, são estes os titulares ao direito à indemnização por danos não patrimoniais com origem na morte da vítima, eliminando as restantes classes de legitimados.
Só na falta da primeira classe é que os referidos no segundo grupo têm direito a essa indemnização, ou seja, só quando não há cônjuge ou unida de facto ou descendentes da vítima é que os ascendentes passam a ter direito à indemnização (vd., sobre caso semelhante, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24.05.2007, disponível em www.dgsi.pt).
Assim, sem embargo a profunda dor que o evento lhe causou e o desgosto em que (certamente) mergulhou, a Autora não dispõe de legitimidade substantiva para demandar a Ré pelo tipo de danos ora em questão, improcedendo a ação no que se refere às quantias indemnizatórias pedidas a título de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos pela própria vítima (imediatamente antes da morte), a título de indemnização pela perda do direito à vida do F. A. e a título de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos pela Autora com a morte do filho”.
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A A. recorrente insurge-se contra este último segmento da decisão recorrida, considerando que pelo menos o dano decorrente do sofrimento que antecedeu a morte do seu filho se integrou no património da vítima, transmitindo-se, nos termos gerais, aos sucessores do falecido, entre os quais se conta a recorrente como mãe, nos termos do artº 2133º nº 1 do CC.
Mas também aqui sem razão, cremos.
Sob a epígrafe danos não patrimoniais, dispõe o artº 496º, do Cód. Civil:

“1. Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
2 - Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem.
3 - Se a vítima vivia em união de facto, o direito de indemnização previsto no número anterior cabe, em primeiro lugar, em conjunto, à pessoa que vivia com ela e aos filhos ou outros descendentes.
4 - O montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos dos números anteriores.”
Para o caso em análise releva o nº 4 do artº transcrito, o qual se reporta aos critérios que presidem ao cálculo da indemnização e aos danos indemnizáveis.
Efetivamente, a lei distingue no nº 4 entre os danos não patrimoniais sofridos pela vítima e os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos dos números anteriores.
E têm-se suscitado a esse respeito a questão de determinar quem é detentor, e com que fundamento, da titularidade do direito à indemnização pelos danos sofridos pela própria vítima antes de falecer, colocando-se o problema de saber se se está perante um direito que ainda se integra no património da falecida vítima e se transmite, por via sucessória, aos seus herdeiros ou, por uma “via sucessória especial” às pessoas referidas no n.º 2 do art. 496º C. Civil ou se, diversamente, se trata de um direito próprio das pessoas mencionadas no dito n.º 2 do art. 496º que, como tal, lhes é atribuído diretamente.
Como acima deixamos dito – citando a decisão recorrida -, há um ponto em que não encontramos qualquer divergência: o nº 2 e agora também o nº 3 do artº 496º, delimita o âmbito dos beneficiários por direito próprio (iure próprio) da indemnização por danos não patrimoniais, em caso de morte da vítima, ou seja, mesmo para aqueles que defendem que a indemnização pela perda da vida da vítima se transmite, por via sucessória aos seus herdeiros (cfr. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, II, tomo II, 2010, pág. 521), é liquido que apenas têm direito à referida indemnização (iure próprio) os familiares e pessoas referidas nos nºs 2 e 3, como é liquido que “os familiares do 2º grupo (os ascendentes) só terão direito a essa indemnização se não houver cônjuge nem descendentes da vitima e que os do 3º grupo (irmãos ou sobrinhos) só serão chamados na falta de qualquer familiar dos grupos anteriores” (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. 1º, 3ª ed., pág. 519), conclusão a que não obsta a redação introduzida no preceito pela Lei nº 23/2010, de 30/8, que veio colocar no primeiro grupo a pessoa que vivia com a vítima em união de facto; e isto independentemente da morte da vítima causar sofrimentos e desgosto a outros familiares ou pessoas não abrangidas pelos nºs 2 e 3.
Pois como referem P. Lima e Antunes Varela (Código Civil anotado, vol. 1º, 2ª ed., pág. 435.), pode “naturalmente suceder que a morte da vítima cause ainda danos não patrimoniais a outras pessoas não comtempladas na graduação que faz o nº 2, tal como pode acontecer que esses danos afetem as pessoas abrangidas na disposição legal por uma forma diferente da ordem de precedências que o legislador estabeleceu. Mas este é um dos aspetos em que as excelências da equidade tiveram que ser sacrificadas às incontestáveis vantagens do direito estrito.”
Resta, pois, a indemnização pelo dano morte e pelos danos morais alegadamente suportados diretamente pela própria vítima no processo de lesão que conduziu à morte (embora a recorrente apenas questione o seu direito a estes últimos), que consideramos deverem ter o mesmo tratamento jurídico, já que ambos se situam na esfera jurídica do falecido – quer os decorrentes da sua morte, quer os decorrentes do momento que a antecedeu.
Nesta matéria, a doutrina tem divergido; consideram uns que o direito à indemnização pela perda da vida da vítima do facto danoso é um direito próprio dos familiares da vítima destacados no nº 2 do artº 496º (Antunes Varela, ob. cit., págs. 515-519 e Oliveira Ascensão, Direito Civil, Sucessões, pág. 47.) e defendem outros que tal indemnização se integra no património da falecida vítima e se transmite por via hereditária, segundo as regras gerais (Inocêncio Galvão Telles, Direito das Sucessões, 5ª ed., págs. 75-79 e Menezes Cordeiro, ob. cit. págs. 516-525, entre outros); os argumentos, num e noutro sentido, evidenciam a autoridade dos respetivos subscritores e os autores sublinham com propriedade e profundidade aqueles que abonam em favor da sua tese.
A questão mostra-se, no entanto, amplamente debatida pela jurisprudência, sendo certo que a orientação do Supremo Tribunal de Justiça aprova o decidido pela 1ª instância.
Também não encontramos razões para dela divergir pois, como resulta claro das regras da vida e da sua essência, o ressarcimento dos danos do falecido – quer sejam os da sua morte, quer sejam os que a antecederam - serão necessariamente atribuídos a terceiros; o que para a lei importou foi determinar quem pode beneficiar da indemnização e daí o critério fixado no artigo 496.º nº 2 do Código Civil que, no que toca a esse dano, delimita os titulares.
Ora, em jeito de conclusão, visando a autora a indemnização pelos danos não patrimoniais por morte do seu filho F. A. e havendo este falecido no estado de “unido de facto” com a companheira N. C., o titular do direito a essa indemnização é essa companheira e não a autora, nos termos do artº 496º, nº2, do Cód. Civil.
Havendo sido esse o sentido da decisão recorrida, resta confirmá-la.
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Do montante indemnizatório pedido nos autos apensos:
Discorda também a A. do montante indemnizatório fixado pelo Tribunal recorrido na acção apensa - € 10 000,00 -, dizendo que o montante peticionado – de € 20 000,00 – revela-se mais compatível com a factualidade dada como provada.
Acontece que a factualidade provada – ponto 85 da matéria de facto - relacionada com a falta de cinto de segurança do falecido na altura do acidente – não sofreu alteração, pelo que, à luz da matéria de facto provada, a decisão recorrida não merece também alteração nesta parte.
Pois como da mesma conta, o direito à prestação fixada no contrato é apenas de € 10.000,00, já que se provou que o falecido F. A. não trazia cinto de segurança, não beneficiando da majoração resultante da sua utilização.
Improcedem, assim, na totalidade, as conclusões de recurso da apelante.
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Decisão:

Pelo exposto, Julga-se improcedente a Apelação e confirma-se a decisão recorrida.
Custas (da Apelação) a cargo da recorrente.
Notifique.
Guimarães, 23.11.2017.


Sumário do acórdão:

I- A referência a que determinadas pessoas “vivem como se fossem marido e mulher” não é, nem uma expressão jurídica, nem uma conclusão, mas sim um facto, uma ocorrência da vida, que tem a ver com o modo de vida de um casal, facilmente perceptível pelas pessoas normais, com um mínimo conhecimento da realidade conjugal;
II- O artigo 496º nº3 do Código Civil, na versão introduzida pela Lei n.º 23/2010, de 30.08, preceitua que se a vítima vivia em união de facto, o direito de indemnização previsto no número anterior cabe, em primeiro lugar, à pessoa que vivia com ela.
III- Visando a autora a indemnização pelos danos não patrimoniais por morte do seu filho F. A. e havendo este falecido no estado de “unido de facto” com a companheira N. C., o titular do direito a essa indemnização é essa companheira e não a autora, nos termos do artº 496º, nº2, do Cód. Civil.