Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
82/17.6T8VPC-B.G1
Relator: AFONSO CABRAL DE ANDRADE
Descritores: INIBIÇÃO DO PODER PATERNAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/04/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. Um pai que: a) ao invés de velar pela segurança do seu filho o agride na face e mesmo a pontapé, fazendo-o cair no chão; b) frequentemente agarrava o menor com bastante força, levava-o para o quarto e fechava a porta à chave, deixando-o bastante tempo a chorar; c) apesar de estar desempregado, nunca cuidava do filho nem brincava com ele, levando-o para casa da mãe; d) quando o menor ainda em tenra idade chorava durante a noite, ralhava-lhe e gritava-lhe, e não revelava qualquer carinho; e) quando o menor tinha apenas 1 ano de idade, e em altura em que se encontrava aos cuidados do pai durante o dia pois a mãe trabalhava, foi encontrado desidratado, desnutrido e com princípios de anemia, tendo dado entrada no Hospital, onde permaneceu internado; f) que não visitou o filho enquanto esteve internado; g) que dizia que o menor era responsabilidade da mãe; h) condutas estas que duraram cerca de 6 anos até ter sido criminalmente condenado em pena de prisão e em proibição de contactos com o filho, e que com tudo isto causou ao seu filho alterações do foro emocional (tristeza, ansiedade, alteração do sono, baixa de auto-estima e perturbação da articulação verbal), enurese, perturbações do sono, dores, angústia, humilhação, tristeza, intranquilidade e ansiedade, tendo-se tornado numa criança triste e nervosa, não tem condições para exercer as responsabilidades parentais, devendo ser judicialmente inibido.
2. Não altera a solução o facto de tais comportamentos terem parado com a prisão do progenitor, ocorrida há 5 anos, porque os comportamentos descritos revelam ausência de amor pelo filho, e revelam igualmente traços de personalidade que não são compatíveis com o cumprimento dos deveres de pai.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I- Relatório

O Ministério Público propôs a acção de inibição do exercício das responsabilidades parentais, contra AA, pedindo se decrete a inibição total do exercício das responsabilidades parentais do requerido relativamente ao seu filho menor BB, nascido em .../.../2010, em ..., residente na Rua ..., ....

Alega, quanto a factos relevantes para decisão da causa que: a) o menor BB, a sua mãe CC e o pai viveram juntos até ao dia .../.../2016, data em que a mãe do menor e este se refugiaram numa casa abrigo, por força das agressões perpetradas, em ambos, pelo progenitor; b) na sequência das ditas agressões, a progenitora apresentou queixa e foi instaurado o competente processo crime, que correu termos sob o n.º207/16.... no Tribunal Judicial ..., no qual foi o requerido condenado, por sentença já transitada em julgado, na pena de 3 anos e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução, pela prática de um crime de violência doméstica na pessoa de CC, mãe do BB e na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução, pela prática de um crime de violência doméstica, na pessoa do seu filho BB, e na pena acessória de proibição de contactos com o seu filho BB, pelo período de 2 anos; c) que desde Maio de 2016 até à presente data que o menor não tem qualquer contacto com o seu pai; crescendo e vivendo aos cuidados da sua mãe e da sua avó paterna, DD, com quem reside, onde se encontra integrado, sendo estas que lhe proporcionam as necessárias condições de saúde, educação e equilíbrio emocional; que o requerido nunca fomentou o desenvolvimento físico, intelectual e moral do filho BB, antes pelo contrário, agredindo-o e insultando-o com frequência, o que configura uma infracção culposa dos seus deveres para com o seu filho, com grave prejuízo deste, sendo evidente que o mesmo não tem condições, no futuro, de cumprir com esses mesmo deveres.
Juntou documentos e arrolou testemunhas.

O réu, devidamente citado, apresentou contestação, juntou documentos e arrolou testemunhas.

Realizou-se a audiência de julgamento.

A final foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e em consequência absolveu o requerido do pedido.

Inconformada com esta decisão, CC, progenitora do menor BB dela interpôs recurso, que foi recebido como de apelação, a subir imediatamente nos próprios autos, com efeito suspensivo (artigos 627º, 629º,1, 644º,1, 645º,1,a, e 647º,3,a, todos do Código de Processo Civil, e artigo 32º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível).

Termina a respectiva motivação com as seguintes conclusões:

1. A recorrente, tendo em consideração toda a prova produzida, avaliada no seu todo e de forma criteriosa, não concorda com a Douta decisão proferida pelo Tribunal “ad quo”.
2. Com efeito, tendo em consideração a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento e bem assim a prova documental carreada para os autos em apreço, entendemos, salvo o devido respeito por opinião divergente que sempre se respeitará, que a Sentença a proferir deveria ser em sentido inverso à que foi efectivamente proferida pelo Tribunal “ad quo”.
3. Verifica-se no caso “sub iudice”, que o Tribunal “ad quo”, não valorou e ignorou o conteúdo plasmado nos relatórios sociais constantes nos autos, mormente os relatórios periciais relativos ao requerido AA e ao menor BB;
4. Compulsado o conteúdo vertido nos sobreditos relatórios periciais, resulta de forma clara e objectiva que o recorrido não reúne as condições necessárias e indispensáveis para o exercício das responsabilidades parentais, conforme se pode corroborar pelo conteúdo que infra se transcreve: “Considerando a análise integrativa dos dados, entendemos mais prudente a manutenção da Inibição e Limitação ao Exercício das Responsabilidades Parentais do progenitor, assim como a não alteração das Responsabilidades Parentais.” (vide Relatório do recorrido). “No domínio afectivo e relacional, a sistematização e articulação dos dados clínicos obtidos sugerem, ainda, que o examinando, apesar de calmo, evidencia alguma fragilidade emocional reactiva à reactivação das memórias relacionadas com o progenitor, assim como em relação aos episódios de perseguição deste. Evidencia marcada angústia perante a Possibilidade de ter de voltar a conviver com o progenitor.” “No seu conjunto, estas características condicionam o examinando na gestão de relações de maior proximidade (nomeadamente com a mãe e com a sua família nuclear) e em situações sociais, uma vez que o menor adopta sempre uma postura de evitamento/fuga de todas as situações em que se sente inseguro e ameaçado pela hipotética Possibilidade de ter contacto com o progenitor”. “Em termos emocionais, o examinando revela níveis normativos de ajustamento psicológico. Ao longo do processo avaliativo, demonstrar-se bastante inquieto e angustiado com este processo e com a Possibilidade de ter de voltar a conviver com o progenitor.” (vide relatório do menor).
5. Ora, os identificados relatórios periciais foram elaborados de forma isenta, objectiva e imparcial por técnicos independentes, tendo merecido a credibilidade do Tribunal “ad quo”, tendo dado como matéria factual provada o conteúdo neles vertido, daí que não se alcance a razão pela qual a Meritíssima Juiz “ad quo” não os tenha considerado e valorado na decisão proferida.
6. Mais se dirá, que o Tribunal “ad quo” não valorou de forma criteriosa e objectiva os depoimentos prestados pelas testemunhas arroladas e inquiridas em sede de audiência e julgamento.
7. Assim, resulta do depoimento da psicóloga EE, que acompanha o menor em consulta desde o Dezembro de 2021, relatou de forma, concisa, clara e objectiva o estado de fragilidade emocional do menor, testemunho, esse, completamente imparcial, técnico e isento, que não foi posto em causa pelo Tribunal “a quo”, do qual se conclui que de forma nenhuma o BB deve estar neste momento, com o pai, uma vez que isso irá certamente destabilizá-lo emocionalmente, podendo ter um impacto negativo no seu desenvolvimento pessoal e escolar.
8. Mais, em audiência de discussão e julgamento foi também ouvido o menor BB que apesar de todo o nervosismo adjacente ao facto de estar em tribunal disse claramente ter medo do pai e não querer estar com este de forma nenhuma. O Tribunal que proferiu a sentença ficou, ainda assim, com dúvidas relativamente às memórias do menor quanto à violência doméstica perpetrada contra si e contra a sua mãe pelo progenitor, contudo a psicóloga, que o acompanha, esclareceu que o BB tem muitas memórias que inclusive algumas delas lhe foram confidenciadas em consulta.
9. Relativamente ao testemunho da mãe e da avó o tribunal “ad quo” entendeu que poderia existir uma certa parcialidade e emoção, contudo não considerou a mesma parcialidade relativamente às testemunhas apresentadas pelo requerido que são seus familiares e amigos, para prova de que o requerido está inserido, e é tido como pessoa respeitadora e cuidadora.
10. Ora, a propósito do vertido no número anterior, importará ter presente que o juiz está obrigado a concretizar o motivo que o levou a dar mais credibilidade a uma testemunha do que a outra, relativamente aos mesmo factos, caso assim não seja estaremos perante uma arbitrária apreciação da prova, e no caso em concreto não conseguiu fundamentar a Meritíssima Juiz “ad quo” a razão de considerar como relevantes os depoimentos das testemunhas do requerido, não os considerando parciais, mas já o testemunho da mãe e da avó do BB foram tidos como parciais, com as necessárias e conhecidas consequências da parcialidade.
11. Somos a concluir, salvo o devido respeito por opinião contrária, que sempre se respeitará, que no caso em apreço se verifica, conforme resulta do conteúdo plasmado na Douta Sentença recorrida contradição relativamente aos factos dados como provados e à respectiva fundamentação e motivação inserta na decisão.
12. Com efeito, a Meritíssima Juiz “ad quo” deu como provados factos constantes nos relatórios de perícia médico legal realizada ao progenitor AA, bem como ao menor, factualidade, essa, que não foi em momento nenhum colocada em crise pelo Tribunal “ad quo” por considerar estes relatórios credíveis, quer pela sua fonte metodologia quer pela isenção de quem os elaborou.
13. Verifica-se ainda em relação aos relatórios sociais que foram dados como factos provados e que concluem de forma clara e explicita que devem ser inibidas as responsabilidades parentais do requerido.
14. Contudo e apesar de na sua motivação o Tribunal “ad quo” afirmar que formou a sua convicção também nos documentos junto aos autos, o certo é que decidiu precisamente em sentido contrário, ou seja, não inibiu a responsabilidades parentais do recorrido.
15. Bem sabemos que segundo o princípio da Livre apreciação da prova consagrado no artigo 607.º n.º 7 do Código de Processo Civil que dispõe o seguinte: “O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”, nunca podendo o julgador de forma arbitrária julgar os factos, ou não identificar os meios probatórios em que se baseou para decidir em determinado sentido, exigindo-se assim, que sejam especificados os fundamentos que foram decisivos para a formação da convicção do julgador.
16. Tal com está estipulado no artigo 607.º nº 4 que dispõe o seguinte: “Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e não provados, analisando criticamente a prova, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção.”
17. Assim, face ao supra alegado, podemos concluir que o juiz está vinculado a identificar quais os concretos meios probatórios que serviram para formar a sua convicção, não se verificando no caso em apreço, conforme resulta do conteúdo da douta sentença recorrida, quais os meios de prova que sustentam a sua decisão, aliás numa primeira linha, e tendo em consideração que aceitou como matéria provada todas as provas carreadas para os autos, bem como deu credibilidade ao testemunho da psicóloga que acompanha o menor, impunha-se que proferisse decisão em sentido oposto.
18. Dir-se-á ainda que não pode colher como único e exclusivo fundamento para absolver o recorrido do pedido, como decorre da douta decisão proferida, o facto de inexistirem elementos que permitam concluir que o recorrido no dia de hoje e no futuro não tem condições para exercer as suas responsabilidades parentais, ignorando todas as provas carreadas para os autos, as quais foram desconsideradas e não valoradas para a decisão da causa.
18. Importará ainda ter presente, que as crianças têm o direito fundamental à protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, assim o preceitua o (artº. 69º nº. 1 da CRP e Convenção Sobre os Direitos da Criança - adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20/11/89, assinada por Portugal em 26/1/90, aprovada pela Resolução da Assembleia da República nº. 20/90 de 12/9 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº. 49/90, ambos publicados no DR I Série nº 211/90, de 12/10/90).
19. Ora, no caso em apreço, o cerne de todo este processo, e o único desiderato que deve ser considerado e alcançado é o superior interesse da criança, a sua segurança, o seu bem-estar físico e emocional que na presente data tem 12 anos, que foi ouvido em tribunal, onde expressou a sua vontade de não querer estar com o pai por ter medo dele, factualidade, essa, inteiramente ignorada pelo Tribunal “ad quo”.
20. A corroborar o que se alega, em defesa e salvaguarda do interesse superior da criança, basta considerar o preceituado na Convenção Sobre os Direitos da Criança se consagrou (artºs. 12 e 13 º) “o direito da criança a ser ouvida e a exprimir a sua opinião em processos que lhe digam respeito e a afectem, tendo em conta a sua idade e sua capacidade de compreensão/discernimento dos assuntos em discussão”.
21. No mesmo sentido apontam a Convenção Europeia sobre o Exercício dos Direitos da Criança (artºs. 3º al. b) e 6º), a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (artº. 24º nº. 1), as Directrizes do Comité de Ministros do Conselho da Europa, de 12/11/2010, sobre a justiça adaptada às crianças (ponto III-A) e a própria Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança.
22. Por outro lado, o nosso direito interno acolheu, nessa matéria, tais imposições do direito internacional como princípio orientador, nomeadamente dos processos tutelares cíveis (artº. 4º nº. 1 al. c) do RGPTC), de tal modo que no seu art. 5º, nº 1 se estatuiu expressamente que “a criança tem direito a ser ouvida, sendo a sua opinião tida em consideração pelas autoridades judiciárias na determinação do interesse superior”, dispondo-se mais a frente no artº. 35º nº. 1 (na Secção I do Capítulo III dedicado à regulação do exercício das responsabilidades parentais), referente à conferência de pais, que “a criança com idade superior a 12 anos ou com idade inferior, com capacidade para compreender os assuntos em discussão, tendo em atenção a sua idade, é ouvida pelo tribunal, nos termos da alínea c) do artº. 4º, salvo se a defesa do seu superior interesse o desaconselhar.”
23. Pelo que, somos a concluir, face ao que vem vertido e preceituado em tais diplomas legais, que em processos desta natureza, cujo objecto é idêntico ao apreciado nos presentes autos, não podem os interesses do progenitor prevalecer sobre os interesses da criança.
24. Nesse sentido, bastará considerar o conteúdo vertido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 17 de Dezembro de 2019 disponível em: http://www.dgsi.pt: “O interesse superior da criança define-se como o interesse que se sobrepõe a qualquer outro interesse legítimo, seja o dos pais, seja o dos adultos/terceiros. IV - Mas o superior interesse da criança não é incompatível com a satisfação de interesses legítimos de qualquer dos progenitores desde que não sejam meros interesses egoístas e a pensar exclusivamente no bem-estar do progenitor” (Acórdão do Tribunal da relação de Coimbra, datado de 05 de Maio de 20 disponível em http://www.dgsi.pt):
I- O fim legal supremo que deve presidir à regulação do exercício das responsabilidades parentais é o superior interesse da criança.
II- Tratando-se de um conceito genérico, o interesse superior da criança deve ser apurado/encontrado em cada caso concreto, embora tendo sempre presente a ideia do direito da criança ao seu desenvolvimento são e normal, no plano físico, intelectual, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade, ou seja, a ideia de que, dentro do possível, tudo deverá ser feito de modo a contribuir para desenvolvimento integral da criança em termos harmoniosos e felizes.
III- E é precisamente com vista a alcançar esse interesse superior da criança que, além de outros, se consagrou o direito da criança a ser ouvida e a exprimir a sua opinião em processos que lhe digam respeito e a afectem, tendo em conta a sua idade e a sua capacidade de compreensão/discernimento dos assuntos em discussão.
25. Em suma, verifica-se, que a douta sentença recorrida não teve em atenção, salvo devido respeito por opinião contrária, que sempre se respeitará, o superior interesse da criança, mas atendeu sobretudo a perspectiva do pai, pois não ficou provado, de forma nenhuma, que o recorrido, tinha condições para exercer as suas funções de pai, bem pelo contrário foi efectivamente produzida prova cabal que o recorrido não reúne as necessárias e indispensáveis condições para exercer as responsabilidades parentais.
26. Por último, cumpre ainda referir, que sobre o recorrido no exercício das responsabilidades parentais e na qualidade de progenitor recaem os deveres de cuidar e proteger o menor, razão pela qual não poderia o Tribunal “ad quo” decidir como decidiu fundamentando a sua convicção apenas no facto de inexistirem elementos que permitam concluir que o recorrido nos dias de hoje e no futuro não tem condições de cumprir com os seus deveres enquanto pai, não indicando a razão pela qual entende que o pai possui tais condições para exercer esse papel.
27. Assim, não existindo certezas que o recorrido irá desempenhar esse tão importante papel de pai, aquele que cuida, aquele que protege, entendemos que de momento, e enquanto isso não ficar provado deve o recorrido ser inibido das responsabilidades parentais, porquanto estamos perante uma situação delicada que envolve uma criança que precisa de protecção, não podemos simplesmente correr o risco de colocar em causa a sua segurança e estabilidade emocional.
28. Acresce ainda, que existem diversos factores que nos permitem concluir que o recorrido não tem condições para exercer as responsabilidades parentais, bastando para o efeito, verificar que foi condenado na pena de 3 anos e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução, no âmbito do processo judicial n.º 207/16...., que correu termos no Tribunal Judicial ..., pela prática do crime de violência doméstica perpetrado contra CC, mãe do menor e ainda no mesmo processo condenado na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução, pela prática de um crime de violência domestica na pessoa do seu filho BB e na pena acessória de proibição de contactos com o menor pelo período de dois anos.
29. Mais, por Douto Despacho proferido a 20-04-2022 no processo judicial n.º 207/16.... despacho, esse, oportunamente remetido e comunicado aos presentes autos, foi revogada a medida de suspensão da pena de prisão aplicada ao arguido e recorrido AA e em consequência determinou-se o cumprimento, por este, da pena de 4 anos e dois meses de prisão em que foi condenado, sendo tal facto do inteiro conhecimento da Meritíssima Juiz “ad quo” que proferiu a sentença dos presentes autos.
29. Conclui-se assim, face a tal factualidade, que o recorrido não acatou nem cumpriu as medidas que estavam adjacentes à suspensão da execução da pena em que foi condenado, o que efectivamente revela que a referida suspensão não atingiu o propósito a que se propunha.
30. A este propósito basta atender que o recorrido confrontado em sede de audiência e julgamento com tal factualidade adoptou uma conduta e um discurso de inteira desresponsabilização da sua parte por todos os actos cometidos.
31. Mais declarou, quando inquirido em sede de audiência de discussão e julgamento, que contra si existe outro processo-crime instaurado pela sua filha FF, processo, esse, com o n.º 432/20...., que foi remetido ao apenso A deste processo, Regulação de Responsabilidades parentais, onde o arguido vem acusado de quatro crimes de Violação Agravados e quatro crimes de importunação sexual, promovendo-se que lhe sejam aplicadas as penas acessórias de proibição e confiança de menores e de Inibição de Responsabilidades Parentais, factualidade que deveria, atenta a sua gravidade, ter sido devidamente considerada na Sentença proferida nos presentes autos, o que efectivamente não ocorreu.
32. Em suma, face ao que vem supra explanado, considerando toda a prova testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento e prova documental carreada para os presentes autos, a vontade do menor, tendo como necessidade premente a defesa e salvaguarda do superior interesse do menor, considerando para o efeito a observância de tal princípio amplamente preceituado nos diversos diplomas legais e sempre com o douto suprimento de V. Exas., entendemos que o caso em apreço reclama decisão contrária à que foi efectivamente proferida pelo Tribunal “ad quo”, nomeadamente, deve o recorrido ser inibido do exercício das responsabilidades parentais.
Nestes termos e nos melhores de Direito, que V. Exas. Doutamente suprirão, deve o presente recurso, ser julgado procedente por provado e desse modo ser o recorrido AA, inibido do exercício das responsabilidades parentais relativamente ao menor BB.

O progenitor AA contra-alegou, defendendo:
a) a rejeição liminar do recurso, por a recorrente não ser parte principal na causa e logo não ter legitimidade para o interpor; assim não se entendendo,
b) a improcedência do mesmo.

O Ministério Público igualmente apresentou alegações, findando com as seguintes conclusões:

1. O Ministério Público entende que a progenitora (recorrente) é parte legítima, pelo que deverá ser apreciado o recurso interposto.
2. Não se vislumbra que tenha havido uma errada valoração da prova na apreciação da matéria de facto.
3. E não se detectou que os factos dados como provados (no todo ou em parte) estejam em contradição com aqueles que não foram dados como provados (no todo ou em parte).
4. Há, sim, uma valoração (interpretação) temporal contemporânea e futura, em razão dos 5 anos, entretanto, decorridos desde o último contacto que o progenitor teve com o menor (factos praticados pelo progenitor em 2015 e/ou 2016, que se subsumiram ao crime de violência doméstica, factos pelos quais o progenitor actualmente cumpre pena de prisão, por lhe ter sido revogada a suspensão da execução da pena).
5. E foi essa falta de contacto entre o progenitor e o menor, que justificou a inexistência de elementos de prova que permitissem concluir que o requerido, ao dia de hoje, e no futuro (à data do julgamento e sentença), não tinha condições de cumprir com os deveres enquanto pai.
6. A ser entendido que a gravidade, mesmo após terem decorrido 5 anos, objectivamente, comporta gravidade tal e que é irreversível, e que não vai de encontro ao superior interesse no menor, o recurso deverá, a nosso ver, proceder, e ser decretada a inibição e limitação das responsabilidades parenteis,

No despacho a que alude o art. 641º CPC, a Exma. Juíza a quo apreciou concretamente a questão da invocada ilegitimidade da apelante, concluindo pela legitimidade da mesma, após que o admitiu o recurso de apelação interposto.

II

As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635º,3 e 639º,1,3 do Código de Processo Civil, delimitam os poderes de cognição deste Tribunal, sem esquecer as questões que sejam de conhecimento oficioso. Assim, e, considerando as referidas conclusões, há duas questões a decidir:

a) tinha a recorrente legitimidade para recorrer da sentença ?
b) com base na factualidade apurada nos autos, o requerido AA deve ser inibido do exercício das responsabilidades parentais relativamente ao seu filho menor BB ?

III

Matéria de facto a ter em conta:

a. Factos Provados
1) O menor BB, nasceu em .../.../2010, em ... e é filho de CC e de AA;
2) Os requeridos, viveram em união de facto cerca de 10 anos, tendo cessado essa convivência em .../.../2016;
3) Correu termos sob o n.º207/16.... no Tribunal Judicial ..., processo-crime no qual foi o ali arguido acusado da prática em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, perpetrado na pessoa de CC e de um crime de violência doméstica, perpetrado na pessoa do seu filho BB.
4) Por sentença transitada em julgado, em 04-10-2018, foi o arguido AA condenado, entre o mais, na pena de 4 (quatro) anos e 2 (dois) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, condicionada a regime de prova, pela prática de dois crimes de violência doméstica;
5) Mais foi ali o arguido condenado na pena acessória de proibição de contacto com o menor BB, pelo período de 2 (dois) anos;
6) A requerida é operadora de caixa na cadeia de supermercados ..., tendo aí iniciado funções em 14-08-2017, no distrito ..., onde reside desde então, de forma habitual;
7) Em Fevereiro de 2009, a requerida auferia como vencimento base € 610,00/mês;
8) Durante o período laboral da requerida, o BB fica entregue aos cuidados da avó materna, com quem reside habitualmente, na cidade ...;
9) O menor está com a mãe aos fins de semana e bem assim nas folgas e férias daquela;
10) O menor sente-se seguro e emocionalmente preenchido em casa da avó materna e do companheiro desta, que lhe prestam todos os cuidados necessários ao seu crescimento;
11) Desde que a requerida e o menor foram acolhidos na casa abrigo, em Maio de 2016, o menor não mais esteve, viu ou contactou com o requerido;
12) O menor revela um comportamento inquieto e ansioso, fruto da vivência em comum dos e com os progenitores;
13) A possibilidade de voltar a conviver com o requerido, causa ao menor perturbação e angústia;
14) O menor tem medo que uma aproximação ao requerido permita uma aproximação desta à requerida e sente-se, por isso, mais seguro fora do agregado familiar desta, encontrando estabilidade aos cuidados da avó.
15) O menor é acompanhado semanalmente em consulta de psicologia desde Dezembro de 2021 e tem apresentado uma evolução clínica favorável;
16) Em 09-02-2022, o BB foi submetido a perícia médico-legal, de foro psicológico, no serviço de Clínica e Patologia Forenses do INMLCF – Delegação Norte, tendo sido relatadas as seguintes conclusões:
a. O examinando mostrou-se disponível para este processo de avaliação, colaborando com tudo o que lhe o que lhe foi pedido. Expressa-se de forma clara, organizada e coerente, sem indício de alteração ao nível da estrutura e conteúdo do pensamento. Consciente, orientado auto e alopsiquicamente, no tempo e no espaço. Evidencia competências cognitivas. Atenção, memória e percepção sem qualquer indício de perturbação.
b. A análise e integração dos dados clínicos obtidos sugerem, ainda, que o examinando apresenta funções intelectuais dentro dos níveis normativos, estando perfeitamente capaz de manejar intelectualmente a informação, de operar distinção entre bem/mal, certo/errado e de operar de acordo com essa mesma avaliação.
c. No domínio afectivo e relacional, a sistematização e articulação dos dados clínicos obtidos sugerem, ainda, que o examinando, apesar de calmo, evidencia alguma fragilidade emocional reactiva à reactivação das memórias relacionadas com o progenitor, assim como em relação aos episódios de perseguição deste. Evidencia marcada angústia perante a Possibilidade de ter de voltar a conviver com o progenitor.
d. No seu conjunto, estas características condicionam o examinando na gestão de relações de maior proximidade (nomeadamente com a mãe e com a sua família nuclear) e em situações sociais, uma vez que o menor adopta sempre uma postura de evitamento/fuga de todas as situações em que se sente inseguro e ameaçado pela hipotética Possibilidade de ter contacto com o progenitor.
e. Da observação da interacção da díade mãe-filho, podemos concluir que ambos mantiveram sempre uma atitude de grande cumplicidade, com proximidade física e uma tonalidade afectiva positiva.
f. Em termos emocionais, o examinando revela níveis normativos de ajustamento psicológico. Ao longo do processo avaliativo, demonstrar-se bastante inquieto e angustiado com este processo e com a Possibilidade de ter de voltar a conviver com o progenitor.
g. Relativamente ao domínio da parentalidade, o examinando demonstra uma grande ligação emocional a mãe, a avó materna e ao companheiro desta, projectando-os no seu projecto e objectivos de vida. O seu relato a propósito da mãe e da avó materna foi sempre acompanhado de uma tonalidade emocional positiva, tendo descrito vários momentos de interacção securizante com ambas.
h. Como pontos menos positivos, e que contribuem decisivamente para a instabilidade emocional do menor, não podemos deixar de apontar a judicialização e o elevado grau de conflituosidade mantido entre a examinanda e o progenitor, em grande parte provocado e alimentado pelo Sr. AA
17) Em 09-02-2022, a requerida foi submetida a perícia médico-legal, de foro psicológico, no serviço de Clínica e Patologia Forenses do INMLCF – Delegação Norte, tendo sido relatadas as seguintes conclusões:
a. A examinanda mostrou-se disponível para este processo de avaliação, colaborando com tudo o que lhe o que lhe foi pedido. Expressa-se de forma clara, organizada e coerente, sem indício de alteração ao nível da estrutura e conteúdo do pensamento. Consciente, orientada auto e alopsiquicamente, no tempo e no espaço. Evidencia competências cognitivas. Atenção, memória e percepção sem qualquer indício de perturbação.
b. A análise e integração dos dados clínicos obtidos sugerem, ainda, que o examinando apresenta funções intelectuais ligeiramente abaixo dos níveis normativos, estando perfeitamente capaz de manejar intelectualmente a informação, de operar distinção entre bem/mal, certo/errado e de operar de acordo com essa mesma avaliação. Por conseguinte, reúne um conjunto de capacidades que lhe permitem responsabilizar-se pelos seus actos, não apresentando psicopatologia que a impeça de assumir a voluntariedade, intencionalidade e responsabilidade pelos seus comportamentos;
c. No domínio afectivo e relacional, a sistematização e articulação dos dados clínicos obtidos sugerem, ainda, que a examinanda, apesar de calma e segura, evidencia alguma fragilidade emocional reactiva aos episódios de perseguição por parte do progenitor.
d. No seu conjunto, estas características condicionam a examinanda na gestão de relações de maior proximidade (nomeadamente com o filho e com a sua família nuclear) e em situações sociais, uma vez que privilegia sempre a segurança, bem-estar e estabilidade do menor BB.
e. Da observação da interacção da díade mãe-filho, podemos concluir que ambos mantiveram sempre uma atitude de grande cumplicidade, com proximidade física e uma tonalidade afectiva positiva.
f. Em termos emocionais, a examinanda revela níveis normativos de ajustamento psicológico.
g. Ao longo do processo avaliativo, demonstrar-se bastante preocupada e angustiada com este processo e com o impacto na estabilidade emocional do BB.
h. Relativamente ao domínio da parentalidade, a examinanda demonstra uma grande ligação emocional ao filho, projectando-o no seu projecto e objectivos de vida. O seu relato a propósito do BB foi sempre acompanhado de uma tonalidade emocional positiva, tendo descrito vários momentos de interacção securizante com o menor e de participação activa na vida deste. A examinanda revela estar motivada, interessada e empenhada em exercer as responsabilidades parentais do descendente, sentindo-se competente no desempenho do papel parental.
i. Relativamente às outras áreas envolvidas nas competências para o exercício da parentalidade (que não se reduzem à natureza dos afectos manifestados), a examinanda apresenta, no plano do conhecimento, recursos adequados, nomeadamente ao nível da
j. conceptualização de condições para desenvolvimento cognitivo, emocional e social do seu descendente. Realçamos que estas características facilitam o exercício da parentalidade de forma ajustada às necessidades e interesses do menor em questão.
k. Revelou conhecimentos teóricos adequados sobre as principais necessidades do filho, nomeadamente de afectividade, segurança, alimentação, rotinas de sono e higiene, acompanhamento, estimulação, saúde, promoção de autonomia e bem-estar geral. Deu igualmente mostras, em termos teóricos, de conhecer as diferentes etapas do desenvolvimento do filho, assim como estratégias educativas assertivas e ajustadas.
l. Como pontos menos positivos, e que podem ter implicações no exercício das responsabilidades parentais, não podemos deixar de apontar a judicialização e o elevado grau de conflituosidade mantido entre a examinanda e o progenitor, em grande parte provocado e alimentado pelo Sr. AA.
m. Face ao acima exposto, considerando a análise integrativa dos dados do presente exame pericial, torna-se claro que o conflito entre os progenitores interfere negativamente no bem-estar do BB, que desde que foi colocada a possibilidade de ter de conviver com o progenitor manifestou alterações de comportamento significativas, tradutoras de marcado desconforto emocional e psicológico e sentimentos marcados de insegurança e medo, negando completamente a possibilidade de qualquer contacto com o progenitor.
n. Neste sentido, sugerimos que a Sra. CC mantenha o acompanhamento em consulta de psicologia e psiquiatria, com o objectivo de potenciar a sua estabilidade emocional.
o. Considerando a evolução global do BB até à data, é fundamental que a sua vontade seja tida em consideração;
p. Considerando a análise integrativa dos dados, entendemos mais prudente a manutenção da Inibição e Limitação ao Exercício das Responsabilidades Parentais do progenitor, assim como a não alteração das Responsabilidades Parentais.
18) Em 09-02-2022, o requerido foi submetido a perícia médico-legal, de foro psicológico, no serviço de Clínica e Patologia Forenses do INMLCF – Delegação Norte, tendo sido relatadas as seguintes conclusões:
a. O examinando mostrou-se disponível para este processo de avaliação, colaborando com tudo o que lhe o que lhe foi pedido. Expressa-se de forma clara, organizada e coerente, sem indício de alteração ao nível da estrutura e conteúdo do pensamento. Consciente, orientado auto e alopsiquicamente, no tempo e no espaço. Evidencia competências cognitivas. Atenção, memória e percepção sem qualquer indício de perturbação.
b. A análise e integração dos dados clínicos obtidos sugerem, ainda, que o examinando apresenta funções intelectuais ligeiramente abaixo dos níveis normativos, estando perfeitamente capaz de manejar intelectualmente a informação, de operar distinção entre bem/mal, certo/errado e de operar de acordo com essa mesma avaliação. Por conseguinte, reúne um conjunto de capacidades que lhe permitem responsabilizar-se pelos seus actos, não apresentando psicopatologia que o impeça de assumir a voluntariedade, intencionalidade e responsabilidade pelos seus comportamentos.
c. No domínio afectivo e relacional, a sistematização e articulação dos dados clínicos obtidos sugerem, ainda, que o examinando, apesar de calmo e seguro, poderá apresentar mais dificuldades em gerir a tensão. Os dados parecem, ainda, apontar para uma centração em si próprio, uma tendência narcísica e manipuladora e com tendência a expressar a sua raiva directamente.
d. No seu conjunto, estas características podem condicionar o examinando na gestão de relações de maior proximidade e em situações sociais de maior ambivalência e/ou contrariedade (e.g., conflitos familiares; gestão de emoções; negociação de conflitos), podendo mesmo constituir um factor de bloqueio e/ou agravamento face a situações de conflito em que estejam envolvidas pessoas significativas.
e. Em termos emocionais, o examinando revela níveis normativos de ajustamento psicológico. No entanto, ao longo do processo avaliativo, apesar de demonstrar-se bastante preocupado e angustiado com a separação prolongada do filho, não podemos deixar de apontar que se encontrava, concomitantemente, centrado no conflito com a progenitora e com a avó materna.
f. Relativamente ao domínio da parentalidade, o examinando demonstra alguns sinais de ligação emocional ao filho, projectando-o no seu projecto e objectivos de vida. O seu relato a propósito do BB foi sempre acompanhado de uma tonalidade emocional positiva, tendo descrito momentos de interacção securizante com o menor ocorridos na ausência da progenitora, no passado enquanto coabitaram. O examinando revela estar motivado, sentindo-se competente no desempenho do papel parental.
g. Relativamente às outras áreas envolvidas nas competências para o exercício da parentalidade (que não se reduzem à natureza dos afectos manifestados), o examinando apresenta, no plano do conhecimento, recursos limitados, nomeadamente ao nível da conceptualização de condições para desenvolvimento cognitivo, emocional e social do seu descendente. Realçamos que estas características poderão dificultar o exercício da parentalidade de forma ajustada às necessidades e interesses do menor em questão. O examinando deu igualmente mostras, em termos teóricos, de desconhecer as diferentes etapas do desenvolvimento do filho.
h. Como pontos menos positivos, e que podem ter implicações no exercício das responsabilidades parentais, não podemos deixar de apontar a judicialização e o elevado grau de conflituosidade mantido entre o examinando, a mãe do descendente, e a avó materna do menor, com exposição directa do BB, não havendo espaços construtivos de análise, debate e negociação a respeito das necessidades educativas e desenvolvimentais do menor;
i. Salientamos, de igual forma, que decorre um processo judicial contra o examinado, instaurado após queixa da sua filha por alegada tentativa de violação.
j. Verificamos que o examinando e a progenitora do seu descendente se revelam incapazes de vir a concordar sobre assuntos relativos ao filho; a existência de indicadores de conflito prolongado, que envolvem a família alargada, e dificilmente ultrapassável; e um padrão de litigância crónica e de difícil gestão entre os progenitores. Estes factores colocam sérios obstáculos e constrangimentos à construção de um clima harmonioso, protector e securizante para o BB.
k. De referir, também, que o examinando coloca a responsabilidade de todo o conflito na mãe, alargando essa responsabilidade à avó materna do descendente, retratando-as de forma negativa e carregada de fragilidades, o que evidencia uma visão redutora e pouco crítica do problema instalado, do papel de cada um dos intervenientes e de todas as questões sistémicas envolvidas.
l. Face ao acima exposto, considerando a análise integrativa dos dados do presente exame pericial, torna-se claro que o conflito entre os progenitores interfere negativamente no bem-estar do BB, que desde que foi colocada a Possibilidade de ter de conviver com o progenitor manifestou alterações de comportamento significativas, tradutoras de marcado
m. desconforto emocional e psicológico e sentimentos marcados de insegurança e medo, negando completamente a Possibilidade de qualquer contacto com o progenitor.
n. Neste sentido, sugerimos que o Sr. AA possa ser ajudado a compreender as implicações negativas que esta situação de conflito teve e continua a ter no desenvolvimento global do filho, processo este que poderá envolver um aconselhamento técnico especializado.
o. Considerando a evolução global do BB até à data, é fundamental que a sua vontade seja tida em consideração.
p. Considerando a análise integrativa dos dados, entendemos mais prudente a manutenção da Inibição e Limitação ao Exercício das Responsabilidades Parentais do progenitor, assim como a não alteração das Responsabilidades Parentais.
19) O requerido é estofador de automóveis, auferindo € 750,00/mês;
20) A requerida e a avó materna do BB não permitem que o requerido contacte com o menor;
21) O requerido é pessoa tida, no núcleo familiar e de amigos em que está inserido, como pessoa respeitadora e cuidadora;
22) Em 11-01-2022, o requerido efectuou, no laboratório L..., em Chaves, análise a drogas de abuso e seus metabolitos na urina, para despiste de cannabis, cocaína e opiáceos/morfina/heroína, tendo tal pesquisa resultado negativa;

IV

Conhecendo do recurso.

A primeira questão colocada nas contra-alegações do recorrido, a da legitimidade da recorrente para recorrer, é, bem vistas as coisas, uma não-questão, por ser penosamente óbvio que não tem razão. Damos por reproduzido tudo o que na primeira instância se escreveu sobre a matéria.
Em síntese, estamos no âmbito de processo de jurisdição voluntária (cfr. artigo 12.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível), que se traduz no facto de o Tribunal não estar vinculado a critérios de legalidade estrita, sendo-lhe antes permitido indagar, em cada caso, e atendendo às suas especificidades, a solução que julgue mais conveniente e oportuna.
E esse regime contempla uma norma especial em matéria de recursos, a do artigo 32º,2.
Mas ainda antes de olhar para a letra da lei, parece óbvio, manifesto, intuitivo e natural que, numa acção de inibição do poder paternal contra um dos progenitores, o outro progenitor tenha legitimidade para recorrer da decisão que considere ofensiva dos interesses do seu filho menor.
Por isso é que a norma jurídica citada dispõe que “…podem recorrer o Ministério Público e as partes, os pais, o representante legal e quem tiver a guarda de facto da criança”.
O recorrido, para poder vir dizer que a mãe do menor não tinha legitimidade para recorrer da sentença, ignorou olimpicamente esta disposição legal, como se a mesma não existisse. Mas existe, e dá legitimidade à progenitora para interpor o presente recurso.
Pelo que falece razão ao recorrente, nesta parte.

Quanto à substância do recurso.

Em primeiro lugar, convém repetir que estamos perante uma forma processual (processo tutelar cível) que tem a natureza de jurisdição voluntária (art. 12º RJPTC). Isto significa, nos termos do art. 986º,2 CPC, que o tribunal pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes; só são admitidas as provas que o juiz considere necessárias. Significa ainda que “nas providências a tomar, o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adoptar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna” (art. 987º CPC). Igualmente importante é o regime do art. 988º,1 CPC segundo o qual nos processos de jurisdição voluntária as resoluções podem ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração; dizem-se supervenientes tanto as circunstâncias ocorridas posteriormente à decisão como as anteriores, que não tenham sido alegadas por ignorância ou outro motivo ponderoso.

Em segundo lugar, da leitura atenta das conclusões do recurso interposto resulta que apesar de por vezes parecer que a recorrente impugna a decisão sobre matéria de facto, na realidade a conclusão a que se chega é que a mesma não pretende verdadeiramente impugnar essa decisão de facto, mas apenas que seja alterada a decisão, inibindo o requerido do exercício das responsabilidades parentais.

Vejamos.
A instrução da causa consiste na demonstração de factos, e a fundamentação de facto das decisões não pode conter senão matéria de facto (arts. 410 º e 607º,3 CPC). Isto porque aos processos de jurisdição voluntária aplicam-se as regras estabelecidas no processo civil para a elaboração da sentença (art. 549º,1 CPC).
A sentença recorrida respeita estas regras.

Igualmente tem aplicação in casu o disposto no art. 640º CPC, que contém os requisitos formais de admissibilidade do recurso sobre matéria de facto. Como escreve Abrantes Geraldes (Recursos, 2017, fls. 158):

“a rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em algumas das seguintes situações:

a) falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635º, nº 4 e 641º, nº 2, al. b);
b) falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados (art. 640º, nº 1, al. a);
c) falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (vg. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc);
d) falta de indicação exacta, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação”.

Assim, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto impõe obrigatoriamente a especificação dos concretos meios de prova, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa.
O incumprimento de tal ónus implica a rejeição do recurso, na parte respeitante, sem possibilidade sequer de introdução de despacho de aperfeiçoamento.
Ora, é patente que a recorrente não indica quais os pontos de facto que considera mal julgados, nem qual a resposta que em seu entender deveria ter sido dada.
Por isso, sem mais considerações, vamos dar como assente a matéria de facto provada, e vamos passar de imediato para a apreciação jurídica dessa matéria de facto, com o objectivo de saber se deveria ter sido decretada a inibição do exercício das responsabilidades parentais.

Julgamento da matéria de direito

Vejamos em traços largos o quadro legal nesta matéria.
De acordo com o artigo 1878º,1 CC “compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros, e administrar os seus bens”.
Daqui resulta que as responsabilidades parentais devem ser exercidas na prossecução do “interesse dos filhos”, e nos casos em que é demandada a intervenção do poder judicial, este deve decidir assegurando igualmente o interesse do menor, ainda que o faça em prejuízo dos pais ou de terceiros [Cfr. Acórdão TRP, 19.04.88, C.J., tomo II, pág. 68.].
Trata-se pois, como é por demais sabido, de um poder-dever, estando o seu exercício submetido, altruisticamente, ao interesse da criança. Por isso é que hoje em dia, em vez de se falar em "poder paternal", fala-se antes em "responsabilidades parentais", para acentuar que estamos perante "não um conjunto de faculdades de conteúdo egoísta e de exercício livre, ao arbítrio dos respectivos titulares, mas um conjunto de faculdades de conteúdo altruísta que tem de ser exercido de forma vinculada, de harmonia com a função do direito, consubstanciada no objectivo primacial de protecção e promoção dos interesses do filho, com vista ao seu desenvolvimento integral" -cfr. Juiz Conselheiro Armando Leandro, “in” Poder Paternal: natureza, conteúdo, exercício e limitações. Algumas reflexões de prática judiciária, p. 119.
A lei não define o que entende por “superior interesse da criança”. Trata-se de um conceito aberto, a ser preenchido no caso concreto, tendo em consideração as necessidades físicas, intelectuais, religiosas e materiais da criança, a sua idade, sexo e grau de desenvolvimento físico e psíquico, a continuidade das relações da criança, a sua adaptação ao ambiente escolar e familiar, bem como relações que vai estabelecendo com a comunidade onde se integra e nos segundos a capacidade dos pais para satisfazer as necessidades dos filhos, tempo disponível para cuidar deles, afectos, estilos de vida, estabilidade, etc (cfr. Maria Clara Sottomayor,, in Exercício do Poder Paternal, Publicações Universidade Católica, Porto, 2003, de págs. 100 a 103).
Claro que em situações de normalidade esta questão não se coloca, pois os progenitores estão de acordo sobre o que é melhor para o seu filho e activamente colaboram entre si para atingir esse objectivo.
Donde, verdadeiramente só somos chamados a analisar o que é melhor para a criança nas situações patológicas, originadas só por um, ou, nos casos mais graves, por ambos os progenitores.
Aquilo que podemos considerar a regra básica nesta matéria de intervenção do Estado na vida da família consta do nº 6 do artigo 36º da Constituição da República Portuguesa: “os filhos não podem ser separados dos pais, salvo quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial”.

O regime jurídico da inibição das responsabilidades parentais consta do art. 1915º CC, nos seguintes termos:

1. A requerimento do Ministério Público, de qualquer parente do menor ou de pessoa a cuja guarda ele esteja confiado, de facto ou de direito, pode o tribunal decretar a inibição do exercício das responsabilidades parentais quando qualquer dos pais infrinja culposamente os deveres para com os filhos, com grave prejuízo destes, ou quando, por inexperiência, enfermidade, ausência ou outras razões, não se mostre em condições de cumprir aqueles deveres.
2. A inibição pode ser total ou limitar-se à representação e administração dos bens dos filhos; pode abranger ambos os progenitores ou apenas um deles e referir-se a todos os filhos ou apenas a algum ou alguns.
3. Salvo decisão em contrário, os efeitos da inibição que abranja todos os filhos estendem-se aos que nascerem depois de decretada.

Dispõe igualmente o artigo 52º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 8 de Setembro prevê que “O Ministério Público, qualquer familiar da criança ou pessoa sob cuja guarda se encontre ainda que de facto, podem requerer a inibição, total ou parcial, do exercício das responsabilidades parentais quando qualquer dos pais infrinja culposamente os deveres para com os filhos, com grave prejuízo destes, ou quando, por inexperiência, enfermidade, ausência ou outras razões, se não mostre em condições de cumprir aqueles deveres”.

Finalmente, o art. 56º do mesmo diploma dispõe que:

1- Na sentença deve o tribunal, segundo o seu prudente arbítrio e tomando em consideração todas as circunstâncias, fixar os limites da inibição e os alimentos devidos à criança. 2- Julgada procedente a inibição, instaura-se a tutela ou outra providência tutelar cível adequada e a administração de bens, se for caso disso.

Assim, temos que os requisitos que devem estar presentes para que o Tribunal possa e deva decretar a inibição do exercício das responsabilidades parentais são, por parte de um progenitor, a infracção culposa dos deveres para com os filhos, com grave prejuízo destes, ou então, quando um progenitor, por inexperiência, enfermidade, ausência ou outras razões, não se mostre em condições de cumprir aqueles deveres.
Temos então duas situações bem distintas: de um lado, uma situação de infracção culposa dos deveres para com os filhos, e do outro uma situação objectiva em que não há condições para o progenitor cumprir aqueles deveres, independentemente de culpa.
O conteúdo das responsabilidades parentais está previsto no art. 1878º,1 CC: compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros, e administrar os seus bens.
Esta descrição não carece de grande análise pois corresponde ao sentimento comum do que é uma regra da natureza segundo a qual os pais amam e protegem os seus filhos até estes serem capazes de, como adultos, gerir a sua vida sozinhos.
Claro que há excepções, que são os supra referidos casos patológicos.
O que nos leva aos factos provados.
O menor BB nasceu em .../.../2010. Os requeridos viveram em união de facto cerca de 10 anos, tendo cessado essa convivência em .../.../2016.
Por sentença transitada em julgado, em 4.10.2018, foi o progenitor do BB e ora requerido condenado na pena de 4 anos e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, condicionada a regime de prova, pela prática de dois crimes de violência doméstica, um de que foi ofendida a ora requerida CC e o outro perpetrado na pessoa do seu filho BB. Mais foi o arguido condenado na pena acessória de proibição de contacto com o menor pelo período de 2 anos.
Porém, este simples facto, jurídico, de o requerido ter sido condenado pela prática de dois crimes de violência doméstica contra a ora recorrente e o filho de ambos, muito pouco nos diz sobre aquilo que realmente queremos saber. Interessa saber, acima de tudo, os factos que foram por ele praticados.

Vamos então aos factos que o Tribunal da condenação deu como provados, concentrando-nos nos que nos parecem mais relevantes (e incluindo alguns factos de que foi vítima a ora recorrente, para dar enquadramento):

a) Desde o nascimento do menor, o arguido passou a controlar todos os movimentos e a vida da assistente, o seu telemóvel, a sua conta no Facebook, e não permitia que falasse com qualquer pessoa do sexo masculino.
b) O arguido obrigava a assistente a ter relações sexuais sempre que ele queria, mesmo sabendo que era contra a vontade desta e este comportamento do arguido manifestava-se quando chegava a casa de madrugada e bastante alcoolizado.
c) a assistente arranjou emprego, o arguido encontrava-se desempregado.
d) O arguido, apesar de estar desempregado, nunca cuidava do menor, nem brincava com ele, levando-o para casa da mãe.
e) Nesse período, durante a noite, ausentava-se e chegava a casa, já de madrugada, quase sempre embriagado.
f) Deitava-se de seguida a dormir, e sempre que o menor fazia barulho, o arguido discutia com a assistente e ralhava com o menor apesar de este ser muito pequeno.
g) Em data não concretamente apurada, mas no Verão de 2010, viviam já em Chaves, na Rua ..., Edifício ..., ... desse dia, a assistente estava a dormir, o arguido chegou a casa e tocou à campainha da residência.
h) A assistente levantou-se, abriu a porta e voltou a deitar-se.
i) O arguido encontrava-se alcoolizado e quando chegou ao quarto de imediato começou a discutir com a assistente e a apelidá-la de “filha da puta”, “cabra”, proferindo estas palavras várias vezes e em voz alta.
j) Disse-lhe ainda que andava com outros homens e de seguida, com bastante força, desferiu com a mão uma bofetada na face da assistente, a qual lhe provocou dores durante alguns dias.
k) Em dia não concretamente apurado, mas no mês de Julho de 2015, residiam na Av. ..., o arguido encontrava-se bastante alcoolizado, a assistente estava a trabalhar numa pizzeria, saía depois das 22:00, ele foi buscá-la e, durante o percurso até à residência de ambos começou a discutir com ela, demonstrando muitos ciúmes quanto aos seus colegas homens, de trabalho.
l) Quando chegaram a casa a assistente disse-lhe que estava farta daquela vida e que ia com o filho para casa da sua mãe.
m) De imediato, o arguido apertou-lhe o pescoço, tentando-a sufocar, ficando com alguma dificuldade em respirar, empurrou-a pelas escadas, atirou as malas com a roupa e o telemóvel da assistente através da janela para a rua, ficando tudo destruído.
n) O menor, já com 5 anos de idade, assistiu a tudo, chorando e gritando cheio de medo.
o) Nesse dia teve de se refugiar em casa da sua chefe.
p) O arguido com o decorrer do tempo passou a desferir murros, pontapés, estalos, puxões de cabelo, empurrões para o solo, apertões de braços e nas mãos, beliscões, e atirava-lhe com objectos que a atingiam fisicamente.
q) Em data não concretamente apurada, mas durante o ano de 2015, o menor BB disse à sua avó “o pai bate na mãe e a mãe só chora”.
r) Contou igualmente que o pai atirou a mãe pelas escadas e com a roupa para a rua. (…)
s) Quanto ao menor era frequente o arguido agarrá-lo com bastante força, levá-lo para o quarto e fechar a porta à chave, deixando-o bastante tempo a chorar.
t) Por várias vezes desferiu pancadas no menor BB com a sola de sapatos ou sapatilhas, sempre na face.
u) Em data não concretamente apurada, mas no ano de 2015, encontravam-se na residência da mãe do arguido, este desferiu um pontapé no menor, provocando-lhe a queda no chão e quando ia a desferir-lhe outro pontapé a assistente interveio e foi ela que foi atingida pelo pontapé desferido pelo arguido.
v) Quando o BB completou um ano de idade, a 2 de Março de 2011, o mesmo apresentava-se desidratado, desnutrido e com princípios de anemia, tendo dado entrada no Hospital, onde permaneceu internado.
x) Nessa altura o BB encontrava-se aos cuidados do pai durante o dia pois a mãe trabalhava.
y) A mãe aqui assistente deixava uma mala com comida e toalhitas, sendo que na maioria das vezes essa mala que era entregue ao pai, aqui arguido, mantinha-se intacta até ao final do dia.
z) Quando o BB foi internado no Hospital o arguido não o foi visitar.
aa) O arguido dizia que o BB era responsabilidade da assistente.
bb) Uma vez o BB estava marcado (pisado) nas costas, tendo o BB dito à assistente que o pai lhe tinha batido mas que não fazia mal, porque podia bater.
cc) O arguido não queria que existisse ligação entre o BB e os avós maternos, sendo que o BB dizia “o pai não gosta da avó” com alguma frequência.
dd) O arguido batia com a mão na cara do BB, em situações em que a mãe estava ausente e sem motivo aparente.

Esta marcante descrição dos comportamentos do requerido dispensa qualificativos. Todo este comportamento é reiteradamente violador dos deveres de um pai para com o seu filho.
Ao invés de velar pela segurança do seu filho, o requerido agredia-o na face e mesmo a pontapé, sendo que chegou mesmo, com o dito pontapé, a fazer o menor cair no chão, e, não satisfeito ainda, pretendia desferir-lhe outro, tendo o menor sido salvo pela mãe, a qual recebeu o pontapé destinado ao filho. Igualmente sabemos que o requerido batia com a mão na cara do BB, em situações em que a mãe estava ausente e sem motivo aparente.
Mas não estamos a falar apenas de maus tratos físicos. Provou-se também que era frequente o arguido agarrar o BB com bastante força, levá-lo para o quarto e fechar a porta à chave, deixando-o bastante tempo a chorar. E outra vez em que o BB estava marcado (pisado) nas costas, e disse à mãe que o pai lhe tinha batido mas que não fazia mal, porque podia bater.
Ao invés de velar pela saúde do seu filho, o requerido, apesar de estar desempregado, nunca cuidava dele, nem brincava com ele, levando-o para casa da mãe.
Vimos igualmente que quanto o BB tinha apenas 1 ano de idade, e em altura em que se encontrava aos cuidados do pai durante o dia pois a mãe trabalhava, foi encontrado desidratado, desnutrido e com princípios de anemia, tendo dado entrada no Hospital, onde permaneceu internado. E apurou-se ainda que a mãe deixava uma mala com comida e toalhitas, sendo que na maioria das vezes essa mala que era entregue ao pai mantinha-se intacta até ao final do dia. Para culminar, quando o BB foi internado no Hospital o arguido não o foi visitar.
E dizia que o BB era responsabilidade da mãe.
Esta conduta era reiterada e voluntária.
Estamos pois perante uma impressionante infracção culposa dos deveres de pai.
Mas a lei ainda exige que dessa conduta do pai resulte grave prejuízo para o menor.
Basta ver que se provou que o BB apresentava alterações do foro emocional (tristeza, ansiedade, alteração do sono, baixa de auto-estima e perturbação da articulação verbal) durante a coabitação com o ora requerido/recorrido.
Provou-se ainda que a conduta do arguido perturbou o descanso, sossego, paz de espírito, tranquilidade e coarctou o crescimento feliz e sadio do menor BB.
O menor sofreu lesões de enurese, perturbações do sono, sentiu dores no corpo e “na alma”, angústia, humilhação, tristeza, intranquilidade e ansiedade, tendo-se tornado numa criança triste e nervosa, e volvidos cerca de 2 anos de distanciamento com o arguido ainda manifesta estado de terror perante a mera hipótese de voltar a encontrá-lo.
E nem se venha dizer que foram actos isolados. Qualquer um destes actos que acabámos de descrever já desqualificaria o requerido como pai. Mas ficou provado que ao longo dos 6 anos que durou a convivência com o requerido, por diversas vezes este agrediu fisicamente o menor, agarrando o seu corpo com força desmesurada para a sua compleição física, desferindo-lhe um pontapé, e batendo-lhe com a sola de sapatos ou sapatilhas sempre na face.
Já para não falar que quando o menor ainda em tenra idade chorava durante a noite, o requerido ralhava-lhe e gritava-lhe, e não revelava qualquer carinho pelo filho.
Finalmente, não podemos esquecer que muitas das agressões e das cenas de violência física e verbal de que era vítima a mãe do BB ocorriam na presença do menor.
Resultado de todo este comportamento do requerido: o BB vivia aterrorizado, angustiado, receando pela sua vida e integridade física e da sua mãe, sendo certo que o “pai” dizia que incendiaria a habitação onde todos residiam o que faria com o menor dentro, e que haveria de matar os seus avós maternos.
É um dado assente que violência física e verbal, traumas e sofrimento psicológico infligidos em muito tenra idade, de forma prolongada, quando a personalidade se está ainda a formar, são aptos a marcar aquela criança para sempre, mesmo na idade adulta, deixando-a com toda a espécie de problemas do foro psicológico, fragilidades, traumas e mesmo perturbações da personalidade.
A situação descrita nestes autos, decorrente toda ela do comportamento do requerido, é, pois, adequada a ter esse efeito no BB. O que nos legitima a pensar que quanto menor for o contacto do BB com o pai, enquanto este mantiver aquela maneira de ser e aquele comportamento, melhor.
Estamos pois em condições de afirmar que, com base nos factos provados supra descritos, o requerido infringiu culposamente os deveres que tinha para com o seu filho BB, de forma reiterada e prolongada no tempo, causando ao mesmo graves prejuízos, e por isso estão reunidos todos os requisitos para ser decretada a inibição pedida pelo MP.
A sentença recorrida chama a atenção, e bem, para que “a relação pais-filhos deve ser considerada primordial, assumindo foros de excepção o seu afastamento. Deste modo, a inibição é uma medida de última “ratio”, pois a verificar-se uma situação de perigo para a segurança, saúde, formação moral e educação do filho, cumprirá sempre indagar se o regime prevenido no artigo 1918º do CC - medida de limitação das responsabilidades parentais - não constitui remédio adequado em ordem a preservar no progenitor o exercício das mesmas. Assim, a inibição do poder paternal é uma solução violenta, que está prevista para casos de abandono, crueldade ou corrupção de costumes por parte dos pais, em relação ao filho, ou maus-tratos físicos, com grave prejuízo para este. – v. Castro Mendes in T. G. D. Civil, Ed. AAFDL, 1978, pág. 312. (…) Como ensina A. Varela, in CC Anotado, Vol. V, 2ª Ed., nota 2. ao indicado 1918º, pág. 426, a faixa das deficiências contempladas no artigo 1918, abrange especialmente os casos em que a má conduta dos pais põe em perigo a segurança, a saúde, a formação moral ou a educação dos filhos, mas não justifica ainda a inibição, nem sequer parcial, do poder paternal. É para tais situações, que a lei anterior tenderia a cobrir com a medida da inibição, por considerar que um pai que põe em perigo tais valores da personalidade do filho é um pai que não presta, que a lei actual prevê a decretação das providências adequadas, entre as quais, a título exemplificativo, enumera a entrega a terceira pessoa ou a estabelecimento assistencial”.
Porém, logo a seguir, acrescenta: “revertendo à factualidade que, nos autos, se julgou adquirida, temos que o requerido desde, pelo menos, Maio de 2016 que não está com o menor, seja em virtude da queixa-crime por violência doméstica e subsequente acolhimento da requerida e menor em casa abrigo, seja em decorrência da pena acessória que, em virtude da condenação por esse crime, lhe foi imposta, seja porque a tal se opuseram a requerida e avó materna do menor. – factos provados 5), 11) e 20). É certo que os factos pelos quais foi o requerido condenado, perpetrados quer quanto à requerida, quer quanto ao BB, são graves e, nessa medida, preencheriam, em abstracto, o conceito de infracção culposa dos deveres dos pais para com os filhos. Todavia, tais factos foram praticados em 2015 e/ou 2016 e a presente acção deu entrada em juízo em Outubro de 2021. Nesta data – Outubro de 2021 - o requerido estava e permanecia sem conviver ou sequer visitar o BB, há, pelo menos, 5 anos. Ora, se desde Maio de 2016 que ao requerido lhe não é permitido sequer ver ou aproximar-se do BB, por maioria de razão lhe esteve vedado o exercício de qualquer competência inerente ao exercício do poder paternal – responsabilidade parental – seja por acção, seja por omissão. E se assim é inexistem, neste momento, pela situação de facto em que vive o BB de impossibilidade absoluta, garantida pela mãe e avó materna, de estar e/ou conviver com o requerido, elementos que permitam concluir nos termos que vinham alegados, designadamente que o requerido, ao dia de hoje, e no futuro, não tem condições de cumprir com os seus deveres enquanto pai”.
E com esta argumentação, julgou a acção improcedente, não decretando a inibição das responsabilidades parentais.
Porém, acompanhando a recorrente e o MP, não cremos que esta seja a aplicação mais correcta do Direito aos factos.
Argumenta o Tribunal recorrido que os factos (graves) que supra analisámos foram praticados em 2015 e/ou 2016 e a presente acção deu entrada em juízo em Outubro de 2021. Logo, nesta data, o requerido estava e permanecia sem conviver ou sequer visitar o BB, há, pelo menos, 5 anos, e logo estava-lhe vedado o exercício de qualquer competência inerente ao exercício das responsabilidades parentais.
E factualmente assim é.
Porém não vemos como é que daí extrai o Tribunal que não é possível afirmar que o requerido, ao dia de hoje, e no futuro, não tem condições de cumprir com os seus deveres enquanto pai.
Em primeiro lugar, a conclusão de que é possível e até imperioso afirmar que mesmo na actualidade o requerido não tem condições para cumprir os seus deveres de pai pode ser extraída, por dedução, da brutalidade dos factos por si praticados. Todos os factos supra descritos que o requerido praticou, as agressões físicas, os maus tratos psicológicos, a negligência a cuidar do menor, e que não foram actos isolados, são reveladores de várias coisas, mas a principal -e a que mais ressalta aqui- é a falta de amor pelo filho. Não é possível amar um filho e ter para com ele o comportamento que ficou descrito. E se não se ama um filho nos primeiros tempos de vida, também é garantido que esse amor não nasce a meio do caminho. Nem sequer é preciso recorrer aos ensinamentos mais recentes da Psicologia Evolucionária, que explica a origem genética do amor, para saber que assim é.
Quem agredia o seu filho na cara, frequentemente, sem motivo aparente, quem o agredia a pontapé, ao ponto de o fazer cair no chão, e que com ele no chão se preparava para lhe desferir outro pontapé, quem fechava o filho à chave no quarto e fechava a porta à chave, deixando-o a chorar, quem não cuidava do filho nem brincava com ele, quem deixou o filho desidratar ao ponto ter de ser internado, e depois nem sequer o foi visitar, quem assim se comportou entre 2010 e 2016, e apenas cessou esse comportamento porque foi impedido de voltar a ter contactos com o filho, não dá a menor garantia de que agora em 2022, já poderá ter um comportamento totalmente diferente, e já irá amar e proteger e cuidar do filho. Pelo contrário, é de presumir que o comportamento se manterá. Donde, não é o tempo decorrido desde a separação do requerido e do seu filho que nos permite sequer supor que agora ele será capaz de ser um bom pai.
E somos agora levados ao que também consta da lista dos factos provados, nomeadamente aos factos 13 a 15: a possibilidade de voltar a conviver com o requerido, causa ao menor perturbação e angústia; ele tem medo que uma aproximação ao requerido permita uma aproximação desta à requerida e sente-se, por isso, mais seguro fora do agregado familiar desta, encontrando estabilidade aos cuidados da avó; o menor é acompanhado semanalmente em consulta de psicologia desde Dezembro de 2021 e tem apresentado uma evolução clínica favorável;
O perito médico do INMLCF que examinou o menor concluiu que este evidencia marcada angústia perante a possibilidade de ter de voltar a conviver com o progenitor.
Este medo e angústia do menor perante a possibilidade de voltar a conviver com o pai diz-nos muito sobre o que ele sofreu.
E o referido Perito conclui escrevendo: “considerando a análise integrativa dos dados, entendemos mais prudente a manutenção da Inibição e Limitação ao Exercício das Responsabilidades Parentais do progenitor, assim como a não alteração das Responsabilidades Parentais”.

Também o requerido AA foi submetido a perícia médico-legal, do foro psicológico, no serviço de Clínica e Patologia Forenses do INMLCF – Delegação Norte.
E o Perito conclui, na parte que agora nos parece mais relevante, que “no domínio afectivo e relacional, a sistematização e articulação dos dados clínicos obtidos sugerem, ainda, que o examinando, apesar de calmo e seguro, poderá apresentar mais dificuldades em gerir a tensão. Os dados parecem, ainda, apontar para uma centração em si próprio, uma tendência narcísica e manipuladora e com tendência a expressar a sua raiva directamente”.
Estas conclusões (Parecer) do Perito, são da maior relevância para a decisão que esta Relação tem agora de tomar. A natureza auto-centrada do requerido aponta, desde logo, para uma menor capacidade de atenção para com quem o rodeia, e de empatia para com os outros. E a tendência narcísica, essa então, sabendo o que tal significa (cfr. DSM V) dispensa mais explicações.
Daí que o Perito acrescente que “no seu conjunto, estas características podem condicionar o examinando na gestão de relações de maior proximidade e em situações sociais de maior ambivalência e/ou contrariedade (e.g., conflitos familiares; gestão de emoções; negociação de conflitos), podendo mesmo constituir um factor de bloqueio e/ou agravamento face a situações de conflito em que estejam envolvidas pessoas significativas”.
É certo que o mesmo Perito também escreve: “relativamente ao domínio da parentalidade, o examinando demonstra alguns sinais de ligação emocional ao filho, projectando-o no seu projecto e objectivos de vida. O seu relato a propósito do BB foi sempre acompanhado de uma tonalidade emocional positiva, tendo descrito momentos de interacção securizante com o menor ocorridos na ausência da progenitora, no passado enquanto coabitaram. O examinando revela estar motivado, sentindo-se competente no desempenho do papel parental”.
Porém, logo a seguir, acrescenta: “relativamente às outras áreas envolvidas nas competências para o exercício da parentalidade (que não se reduzem à natureza dos afectos manifestados), o examinando apresenta, no plano do conhecimento, recursos limitados, nomeadamente ao nível da conceptualização de condições para desenvolvimento cognitivo, emocional e social do seu descendente. Realçamos que estas características poderão dificultar o exercício da parentalidade de forma ajustada às necessidades e interesses do menor em questão. O examinando deu igualmente mostras, em termos teóricos, de desconhecer as diferentes etapas do desenvolvimento do filho”.
E acrescenta o Perito: “face ao acima exposto, considerando a análise integrativa dos dados do presente exame pericial, torna-se claro que o conflito entre os progenitores interfere negativamente no bem-estar do BB, que desde que foi colocada a possibilidade de ter de conviver com o progenitor manifestou alterações de comportamento significativas, tradutoras de marcado desconforto emocional e psicológico e sentimentos marcados de insegurança e medo, negando completamente a possibilidade de qualquer contacto com o progenitor”.
É verdade que a intromissão do Estado na vida da família, e ainda por cima para afastar um filho de um pai, deve ser considerada como excepcional, e ponderada apenas como a ultima ratio. Mas essa é justamente a situação que temos nestes autos, em que os factos dados como provados, e sobretudo os factos que levaram à condenação criminal do requerido, falam por si, e o que nos revelam é que aquele “pai”, em vez de amar e proteger o seu filho, é fonte de sofrimento e de perigos para este. O seu afastamento impõe-se.
E o argumento do tempo já decorrido, como razão para não decretar a inibição do requerido, falha ao ter presente o que acabámos de ver sobre a personalidade do mesmo, que nos obriga a ter as mais sérias reservas sobre uma alegada mudança de comportamento, antes pelo contrário, leva-nos a pensar que, com tais traços de personalidade, a probabilidade de repetição daquele tipo de condutas é elevada. E como tal, a educação, o bem-estar, a saúde e, de um modo geral, o interesse do BB ficam em risco.
E assim, por tudo o que fica exposto, concluímos que a decisão recorrida não se pode manter, devendo ser decretada a inibição do exercício das responsabilidades parentais do requerido AA relativamente ao seu filho menor BB.

V- DECISÃO

Por todo o exposto, este Tribunal da Relação de Guimarães decide julgar o recurso procedente, e em consequência, revogando a decisão recorrida, decreta a inibição total do exercício das responsabilidades parentais do requerido relativamente ao seu filho menor BB.

Nos autos de regulação das responsabilidades parentais será definida a obrigação de alimentos a cargo do requerido.

Sem custas (art. 4º,1,a,i RCP).

Data: 4.5.2023

Relator (Afonso Cabral de Andrade)
1º Adjunto (Alcides Rodrigues)
2º Adjunto (Joaquim Boavida)