Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2392/15.8T8BCL.G1
Relator: PEDRO DAMIÃO E CUNHA
Descritores: PROPRIEDADE DE ÁGUAS
SERVIDÃO DE ÁGUA
SERVIDÃO DE PASSAGEM
EXTINÇÃO PELO NÃO USO
EXTINÇÃO POR DESNECESSIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/15/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I. A questão de saber se estamos perante a aquisição de um direito de propriedade sobre a água ou de um mero direito de servidão (ou de uma mera detenção), resolve-se pela amplitude do direito de uso da água. Se se trata de um direito pleno e, em princípio, ilimitado sobre a água, envolvendo a possibilidade do mais amplo aproveitamento, ao serviço de qualquer fim, de todas as utilidades que a água pode prestar, é de direito de propriedade que deve falar-se; se o titular do direito tem apenas a possibilidade de efectuar o aproveitamento da água na estrita medida das necessidades do prédio dominante, é de servidão o direito em causa

III. Para aferir qual a natureza do direito aqui em causa, temos ainda de averiguar o “animus” com que o possuidor, e os seus antepossuidores, actuavam quando exerciam os actos de posse inerentes a esse uso da água.

IV. Se algum dos aludidos actos tiverem sido praticados pelos sucessivos “jornaleiros” e “caseiros” que ali prestaram serviço, isso não põe em causa que a posse dos possuidores tenha sido exercida “animus domini”, pois que os referidos “serviçais” são apenas a “longa manus” daqueles, actuando sob a sua direcção (cfr. art. 1252º do CC).

V. A extinção dos direitos reais, pelo não uso, só se verifica nos casos especialmente previstos na lei, segundo estatuição expressa no nº 3 do art. 298º do CC. Quanto ao direito de propriedade, o não uso só vem especialmente previsto no Código Civil, como causa de extinção, no caso do art. 1397º do CC, relativo a águas particulares que eram originariamente públicas (cfr. art. 1386º, nº1, al. d) do CC).

VI. Tendo os RR. obstruído a mina de água existente em prédio superior pertencente a terceiro- mina que, além do seu prédio, fornecia água ao prédio da A. que deixou de a receber- , não podem os mesmos ser obrigados a proceder à desobstrução daquela mina, porque tal condenação implicaria uma renovada violação do direito de propriedade do aludido terceiro, que, nestas situações, tem um poder exclusivo sobre o seu prédio (e sobre a mina nele existente), carecendo, qualquer invasão daquele, da respectiva autorização, enquanto titular do direito de propriedade.

VII. Para aferir a extinção das servidões de passagem, por desnecessidade, não basta que, para além da passagem objecto da servidão, tenha passado a existir outra via de acesso do prédio dominante para a via pública, pois que para tal será necessário ainda demonstrar (e o ónus de prova de tal matéria incumbe ao proprietário do prédio serviente, enquanto facto constitutivo da pretensão de extinção da servidão, nos termos do artigo 342º, nº 1, do CC) que tal outro acesso oferece condições de utilização similares ou, pelo menos, não desproporcionalmente agravadas (no confronto com a vantagem advinda ao prédio serviente pela extinção do encargo) ”.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães.

I. RELATÓRIO

Maria intentou contra Cândido e mulher M. J., a presente acção sob a forma de processo comum.
A Autora pretende que se reconheça que é proprietária dos dois prédios rústicos e do prédio urbano identificados nos artigos 1º, 2º, 3º da petição inicial (pedido A)); reconhecer-se que a Autora é proprietária da água de nascente que aflui ao prédio dos réus e que deste é derivado por aqueduto para os prédios da Autora, por usucapião (B)).
Subsidiariamente a este pedido, peticiona que se reconheça que a Autora tem o direito de servidão ao aproveitamento das águas e servidão de aqueduto, por usucapião (B2).

Peticiona ainda a condenação dos Réus a reconhecer os aludidos direitos (C)); a desobstruir a mina, o tanque e o rego, para que a água aflua aos prédios da autora, no prazo máximo de 10 dias a partir do trânsito em julgado da sentença (D)); a absterem-se de, a partir do trânsito em julgado da sentença, de impedir a limpeza da mina, do tanque e do rego, bem como de praticarem quaisquer outros actos lesivos dos referidos direitos de propriedade e posse da Autora sobre os mesmos (E)); condenar-se os Réus a procederem à reparação do muro de suporte e vedação no prédio rústico da Autora (F)).

Em alternativa a este pedido, peticiona a condenação dos Réus a indemnizar a Autora pelo custo resultante da realização dessa obra, a liquidar em execução de sentença (F1)).
Por fim, peticiona a condenação dos Réus a procederem à remoção dos objectos (lenha e afins) que colocaram no caminho de servidão que onera o seu prédio, a favor do prédio da Autora (G)) e a condenação dos Réus, a título de sanção pecuniária compulsória, ao pagamento de quantia nunca inferior a € 150,00 (cento e cinquenta euros) por cada dia de atraso no cumprimento dos pedidos constantes das alíneas D); F1) e G)- (pedido H)).
Para o efeito, a Autora alegou que lhe pertencem dois prédios rústicos e um prédio urbano, identificados na petição inicial, prédios esses confinantes entre si e sem qualquer barreira divisória, prédios esses que adquiriu por doação, sendo que a Autora e os seus antecessores se encontravam na posse dos mesmos há mais de 20, 30 e 40 anos, adquirindo-os por via da usucapião.
Alegou ainda que pertence aos Réus um prédio misto, identificado no artigo 12º da petição inicial, que adveio à sua propriedade através de escritura de compra e venda, outorgada no dia 13 de Dezembro de 1995; o prédio rústico e urbano da Autora descrito nos artigos 1º e 3º da petição inicial confina com o prédio dos Réus, em parte pelo seu limite Norte e está a uma quota inferior em relação a ele, sendo que há de mais de 20, 30 e 40 anos, a Autora e seus antecessores têm água nos três prédios, através de uma nascente que nasce num prédio superior ao dos Réus, no Monte ali existente, que é derivado por obra humana, através de mina, para o prédio dos Réus, afluindo a um tanque, do qual era derivado através de rego a céu aberto, aqueduto, para o prédio do Autora, entrando no prédio da Autora identificado no artigo 1º da petição inicial, através de uma abertura existente no muro delimitativo das propriedades, indo por canal em pedra para um tanque de retenção de águas nesse terreno construído.

Mais alegou que deste tanque, as águas eram aproveitadas pela Autora e antecessores sem qualquer limitação ou restrição, nomeadamente para rega e lima dos seus dois prédios rústicos, bem como para as lides domésticas da casa de habitação daquele prédio urbano, confinantes entre si, que não dispunham de outras águas e sempre se arrogaram proprietários da água de nascente, fazendo há mais de 20, 30 e 40 anos, a sua captação e derivação, igualmente reparando e limpando a mina, bem como o tanque e o rego para onde ela deriva, na propriedade dos réus; alegando a aquisição, por via da usucapião, da propriedade da água ou, no caso de assim não se entender, o direito de servidão ao aproveitamento da água e à servidão de aqueduto que onera o prédio dos Réus.
Alegou ainda que os Réus, em data imprecisa do ano de 1996, recorrendo a homens e máquinas impediram a captação e derivação das águas de nascente para o prédio da Autora, passando a impedir o acesso ao seu prédio para a Autora e antecessores efectuarem a limpeza e manutenção da mina, do tanque e do rego, permitindo ainda os Réus que as águas da nascente andem perdidas no seu prédio, tendo as mesmas se acumulado junto ao muro de vedação do prédio da Autora, infiltrando-se nas suas fundações, provocando a queda do muro.

Por fim, alegou que por acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 31.01.2011, que confirmou a sentença proferida no Processo nº 297/96, do extinto 2º Juízo do Tribunal Judicial de Barcelos, foi reconhecido que o prédio da Autora tem direito a uma servidão de passagem pelo prédio dos Réus, situado no limite poente, tendo os Réus colocado lenha e objecto no caminho, em Junho de 2015, a fim de impedir a passagem.
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Contestaram os Réus, admitindo a propriedade da Autora e Réus sobre os prédios identificados na petição inicial, impugnando os restantes factos alegados, alegando ainda que a Autora possui poço próprio, tendo o dever de se abastecer de água da rede pública e a água da mina sempre teve um caudal escasso nos meses em que seria necessária, pelo que nunca aquela poderia estar dependente dessa água e o anterior proprietário do prédio dos Réus procedeu à construção de dois poços.
Alegaram ainda que o muro caiu devido a desgaste natural, os Réus não colocaram qualquer entrave na passagem, existindo apenas mato, há mais de 27 anos que a Autora e antepossuidores não fazem proveito da água proveniente da mina, nem limpam ou reparam o tanque, existindo abastecimento público de água a menos de 20 metros do limite da propriedade.
Em reconvenção, os Réus alegam que a servidão de passagem reconhecida aos Autores foi constituída por usucapião, sendo que actualmente o acesso à via pública é possível pela parte Norte dos prédios rústicos a partir de um novo arruamento denominado “Rua Nova” não existindo qualquer necessidade de impor esse encargo ao prédio dos Réus, o que também requer caso se considere que existe uma servidão de águas.
Terminam, peticionando, a improcedência da acção e a absolvição dos Réus dos pedidos e a procedência da reconvenção, com a condenação da Autora a reconhecer a extinção das servições.
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A Autora replicou, impugnando a factualidade alegada pelos Réus.
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Foi admitido o pedido reconvencional formulado pelos Réus, proferido despacho saneador, onde se se julgou a instância válida e regular, dispensando-se a identificação do objecto do litígio e a enunciação dos temas da prova.
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Procedeu-se à realização da audiência de julgamento, com observância de todas as formalidades legais.
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Na sequência foi proferida a seguinte sentença:

IV – Dispositivo
Pelo exposto, julgo a presente acção parcialmente procedente e, em consequência:

1) Declaro que a autora é proprietária dos dois prédios rústicos e do prédio urbano, identificados nos artigos 1º, 2º e 3º da petição inicial.
2) Declaro que pertence à autora durante quatro dias na semana a água de nascente que aflui ao prédio dos réus e que deste é derivada por aqueduto para os prédios da autora.
3) Condeno os réus a reconhecer os aludidos direitos.
4) Condeno os réus a desobstruírem a mina, o tanque e o rego, para que a água aflua aos prédios da autora, no prazo máximo de dez dias a partir do trânsito em julgado da sentença.
5) Condeno os réus a absterem-se de impedir a limpeza da mina, bem como de praticarem quaisquer actos lesivos aos direitos de propriedade e posse da autora.
6) Condeno os réus a procederem à remoção da lenha e restantes objectos do caminho de servidão que onera o seu prédio a favor do prédio da autora.
7) Condeno os réus, a título de sanção pecuniária compulsória, no valor de € 75,00 (setenta e cinco euros), por cada dia de atraso no cumprimento do ordenado em 4) e 6).
8) No mais, absolvo os réus dos pedidos.
Custas por autora e réus, na proporção de ¼ e ¾.
9) Julgo totalmente improcedente a reconvenção formulada, absolvendo a reconvinda dos pedidos.
Custas pelos reconvintes.
Registe e notifique. …”.
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É justamente desta decisão que os Réus/Recorrentes vieram interpor o presente Recurso, concluindo as suas alegações da seguinte forma:

“CONCLUSÕES

I - A sentença agora recorrida enferma de erro na apreciação das provas e na aplicabilidade do direito.
II - Os Recorrentes, além de não concordarem com a solução de direito, não concordam com a apreciação da matéria de facto que levou à procedência ainda que parcial da acção.
III - Os Recorrentes entendem haver contradição entre a fundamentação de direito e parte da decisão.
IV - Pretende-se, pois, além de uma reapreciação de direito, uma reapreciação da matéria de facto, nomeadamente por reapreciação da prova gravada.

Dos Factos

V – Os primeiros 11 factos dados como provados estão relacionados com a propriedade dos prédios, algo que nunca foi posto em causa por nenhuma das partes.
VI – Os factos 12 a 18 no que concerne à existência e ao aproveitamento de águas não merecem discussão, ou seja, é pacífico e foi sempre assumido pelas partes e posteriormente confirmado pela prova produzida, que durante vários anos, mas sempre até data anterior a 9 de Julho de 1996, que as águas eram aproveitadas para os prédios.
VII – O facto 19 dado como provado deve ser alterado para o sentido oposto sendo que o máximo que poderá estar aqui em causa é um suposto direito de servidão de águas mas nunca a propriedade das mesmas uma vez que não se provou o elemento subjectivo “animus”.
VIII – Aliás, dos depoimentos das testemunhas F. P., M. B. e M. C. percebe-se que quem trabalhava os campos era “Caseiro” ou “Jornaleiro”, ou seja, não o faziam com o ânimo de serem proprietários.
IX – O facto 20 dado como provado deve ser dado como não provado devido à falta de produção de prova do vertido no mesmo e ser substituído pelos seguintes factos:

- A propriedade dos Réus pertenceu a M. C. entre 07/11/1988 e 13 de Dezembro de 1995.
- Durante esse período, por falta de manutenção do sistema hidráulico, as águas de nascente já não derivavam para os prédios da Autora pelo que, pelo menos desde 1988 que a Autora e seus antecessores não fazem proveito da água de mina que derivava do prédio dos Réus.
- O antecessor da autora, seu avô, P. N., recusou contribuir para o conserto desse sistema hidráulico por não ter interesse nas águas.
- Os Réus de forma alguma impediram a captação e derivação das águas de nascente para os prédios da Autora uma vez que quando a propriedade veio para os mesmos a 13 de Dezembro de 1995, já as águas da nascente não derivavam para os prédios da Autora.
X – Tais conclusões resultam da prova produzida em julgamento uma vez que as testemunhas da A. apresentaram as mais variadas datas para que a água tivesse deixado de correr não sendo coerentes, criteriosas, congruentes e isentas de contradições, chegando manifestamente a faltar à verdade.
XI - Acresce que para além de nenhuma delas ter tido a capacidade de concretizar as datas, não apresentavam motivo para a interrupção do ciclo da água e nas palavras de Figueiredo Dias: “A “livre” ou “íntima” convicção do juiz não pode ser uma convicção puramente subjectiva, emocional e portanto imotivável.”
XII - Já a testemunha M. C. apresentou uma versão dos factos de forma totalmente circunstanciada, pormenorizada enquadrada no tempo e no espaço e com óbvio conhecimento de causa.
XIII - Não se fez qualquer tipo de prova que a água tenha sido interrompida a partir de Dezembro de 1995 nem que tenha sido por qualquer acção dos RR, aqui Recorrentes.
XIV – Nem faria sentido o anteproprietário M. C. ter investido tempo e dinheiro na construção de dois poços, como resultou provado, se tivesse acesso à dita água.
XV – O Avô da A. e anteproprietário do terreno da mesma, intentou contra estes mesmos Réus acção para reconhecimento de servidão de passagem, pelo que até pela análise da “normalidade do acontecer” caso entendesse ser proprietário de qualquer água e tivesse visto as águas a serem desviadas entre 13 de Dezembro de 2015 e Junho de 2016, teria intentado acção nesse sentido. Mas nada foi feito até 2015.
XVI – Há uma total incongruência e contradição entre os factos provados número 29 e 30 e o facto 35. Se é facto provado que a Autora tem poço e tem abastecimento público a menos de 20 metros não se pode dar também como provado que continua a necessitar da água de Mina.
XVII - Uma vez que os factos 29 e 30 são indesmentíveis, deve o facto provado 35 ser dado como não provado.
*
Do Direito

XVIII – A A. invoca a aquisição originária do direito de propriedade sobre as águas pela via da usucapião.
XIX - Assim, atentas as regras do ónus da prova expressas no artigo 342º, nº 1, do Código Civil, incumbia à autora demonstrar os factos constitutivos em que fundamentam tal pretensão.
XX - Ora, conforme foi referido supra, na análise da prova gravada, o elemento subjectivo “animus” nunca ficou demonstrado uma vez que o próprio proprietário do “terreno de baixo” era caseiro do “terreno de cima”.
XXI – Assim, cabendo à Autora o ónus de provar os factos por virtude dos quais supostamente teria adquirido o direito de propriedade sobre as águas e não tendo conseguido demonstrar o animus mas apenas o corpus, mal andou o Tribunal “a quo” a conceder o direito de propriedade a partir do instituto da usucapião.
XXII – Mas ainda que houvesse um direito de propriedade sobre as águas, ao contrário do que refere o Tribunal “a quo” o mesmo pode caducar, tal como alegado em sede de Contestação, nos termos do artigo 298.º, n.º 3 do C.C. com base na interpretação do artigo 1397.º com remissão para o artigo 1386.º n.º 1, a).
XXIII – Pelo que, ainda que a prova apresentada pela A. possuisse réstia de credibilidade, o que só por absurdo se admite, é o próprio marido da A. que assume que durante mais de uma década (desde 2003 até final das partilhas) o terreno esteve ao abandono, caducando, assim, o eventual direito de propriedade sobre as águas pelo não uso.
XXIV – Assim,
1 – No caso de se entender que se trata de um direito de propriedade sobre as águas, há muito que o mesmo já caducou pelo não uso nos termos dos artigos 298.º, n.º 3, 1397.º e 1386.º n.º 1, a).
*
2 – No caso de se entender que se tratavam de direitos de servidão de água e/ou de aqueduto:

a) Os mesmos já teriam prescrito nos termos gerais do art.º 298.º do C.C.
b) Ainda que não tivessem prescrito, não faria sentido quase 30 anos depois impor um encargo ao prédio dos RR quando está demonstrado que a A. tem alternativas (poço e abastecimento público a menos de 20 metros), pelo que com base nos artigos 1557.º, 1558.º e 1561.º todos do C.C. deveria a suposta servidão ser declarada extinta tal como requerido.
*
3 – Considerando que o Sr. P. N., avô da Autora e antepossuidor da propriedade renunciou ao direito das águas para não ter que contribuir para o conserto do sistema hidráulico que em tempos permitiu o escoamento da água, vir posteriormente exigir essa água consubstancia uma situação de verdadeiro abuso de Direito ("venire contra factum proprium").
Nestes termos, a renúncia efectuada pelo Avô da Autora sempre seria oponível à A., enquanto herdeira do autor da dita renúncia.
*
Da contradição entre a fundamentação de direito e a decisão aplicada.

XXV - Não faz qualquer sentido que o Tribunal “a quo” considere que mina se encontra num prédio de um terceiro e ao mesmo tempo condene os RR a desobstruírem a mesma com o agravamento de sanção pecuniária compulsória em caso de incumprimento.
XXVI – Não deverão os Réus ser condenados a invadir propriedade alheia para fazer limpeza da mina em benefício da A.
*
No que à matéria de Reconvenção diz respeito

XXVII - A partir dos Registos fotográficos juntos com a contestação, como Doc. 6 que incluem a vista aérea dos prédios, os marcos divisórios dos prédios rústicos e o acesso a ambos os prédios a partir da “Rua Nova” foi possível demonstrar que com este novo arruamento deixou de haver necessidade de impor a mencionada servidão ao prédio dos Réus.
XXVIII - Tornando-se desnecessária a utilização, por razões ligadas à regular utilização do prédio dominante, impõe-se a cessação da servidão que, enquanto excepção, deve extinguir-se o mais breve possível, de modo a que o direito de propriedade retome a sua plenitude, de acordo com a sua vocação originária.
XXIX – O Tribunal “a quo” deu como provado o seguinte:

“- Tanto o prédio urbano como os rústicos da autora sempre tiveram acesso à via pública através da “Rua da Igreja”.
- Actualmente esse acesso à via pública também será possível pela parte Norte dos prédios rústicos a partir de novo arruamento denominado “Rua Nova”.
- O prédio da autora vai em socalco/declive até à rua, tendo na sua extrema uma cota superior em cerca de 1 metro, o que implicaria sempre a necessidade de realizar obras, atento o desnível acentuado.
XXX - Se se demonstrou que o prédio serviente pode ser desonerado uma vez que o prédio dominante já tem acesso a partir da Rua Nova, sendo as condições de acesso aos dois prédios bastante similares, dever-se-ia ter cessado este encargo.
XXXI - E se o problema são as obras que supostamente ter-se-iam que realizar, sempre os RR. preferiam acarretar com esse encargo do que ter um prédio invadido por terceiros para todo o sempre (uma vez que os A. irão sempre alegar que a entrada precisa de obras), não podendo tirar proveito de uma parte da sua propriedade que lhes devia estar disponível por inteiro e tornando uma situação que deveria ser excepcional num problema eterno.
Por todo o exposto e por mais que V. Exas. decerto suprirão, deverá a presente Apelação ser declarada procedente e, em consequência:
-Revogar a sentença Recorrida e substituir a mesma por outra que julgue a acção totalmente improcedente por total falta de prova do alegado pela A. e paralelamente julgue a reconvenção procedente porque provada”.
*
Foram apresentadas contra-alegações pela Recorrida/Autora, onde pugna pela improcedência do Recurso e pede a ampliação do Recurso.

Apresenta as seguintes conclusões:
“CONCLUSÕES:

1. Não vislumbramos assistir razão aos Recorrentes quando pretende contraditar o facto provado nº 19, uma vez que existência de caseiros e jornaleiros não retira o animus ao proprietário, tanto mais que aqueles sempre estariam a actuar em nome e por conta desse proprietário, e a circunstância desses caseiros e jornaleiros eventualmente fazerem ambos os prédios não invalida que actuassem, em cada um desses prédios, em cumprimento e no interesse das instruções dos respectivos proprietários.
2. Ademais, ainda que se possa admitir, em teoria, que o Sr. P. N., avô da Autora, tivesse trabalhado os campos dos antecessores dos Recorrentes, não vemos em que medida o seu direito de propriedade sobre os prédios confinantes ficaria afectado e, conexamente, o direito de propriedade sobre as águas que a eles afluíam e que devem novamente afluir.
3. No que respeita ao facto nº 20, o que o Tribunal a quo perspicazmente bem notou, é que da conjugação da prova realizada só pôde concluir-se terem sido os Recorrentes quem impediram a captação e a derivação das águas para os prédios da Recorrida e seus antecessores, em data não concretamente apurada mas sempre situada entre Dezembro de 1995 e Julho de 1996.
4. Essa baliza temporal iniciou-se com a aquisição pelos Recorrentes do aludido prédio em Dezembro de 1995 e culminou em Julho de 1996, com o envio de uma carta ao Recorrente Cândido pelo advogado, o saudoso Dr. V. M., na qualidade de advogado do Sr. P. N., antecessor da Autora, onde arrogava o direito à água e pedia a limpeza do rego, no pressuposto evidente que carecia dela para as lides agrícola e doméstica.
5. Bastaria que se fizesse prova, que se fez, dos Recorrentes terem impedido a água de correr para os prédios da Recorrida, sempre situável em data posterior à aquisição do prédio, Dezembro de 1995, não sendo ainda despiciendo considerar que à Recorrente também foi negado esse direito, como resulta do facto provado nº 22, para se concluir que à data da interposição da acção ainda não tinha decorrido o prazo de 20 anos, relativo ao não uso.
6. Não deixa inclusive de ser sintomático que os Recorrentes, na contestação, nunca chegaram a alegar que a Recorrida e seus antecessores renunciaram ao uso da água, versão que foi em julgamento apresentada unicamente pela testemunha M. C. (antigo proprietário do prédio dos Recorrentes), mas que não pode merecer credibilidade como o Julgador bem evidenciou.
7. Não é a existência de dois poços no prédio dos Recorrentes que permite retirar utilidade à água da mina. Poderão existir mil e uma razões para a construção desses poços (veja-se resposta do perito ao quesito nº 2 dos Réus, pág. 11 do relatório pericial), não sendo contudo descabido evidenciar que também se deu provado que as águas que afluem ao prédio dos Recorrentes andam perdidas - facto nº 23 - e os campos estão verdejantes (resposta do perito ao quesito nº 7 da Autora, pág. 9 do relatório pericial) o que só ajuda a demonstrar que, afinal, da mina brota água mas que não vai para onde deve ir, isto é, para o prédio da Autora.
8. No mais, defender-se que caso existisse violação do direito à água até Julho de 1996, o Sr. P. N. também não deixaria de exigir a reposição desse direito na acção de servidão que intentou é outro argumento que nos parece objectivamente errático. Uma análise atenta dos documentos juntos com a petição inicial permitiriam perceber que a acção judicial entrou em juízo no dia 17 de Maio de 1996, cerca de um mês e meio antes da missiva do Dr. V. M. ter sido enviada.
9. Quanto ao Direito, só temos de aplaudir a fundamentação constante da douta sentença ao reconhecer o direito de propriedade sobre a água, sem qualquer limitação, nos quatro dias da semana, e a procedência dos pedidos conexos, de limpeza da mina, tanque e rego, atenta a perturbação havida.
10. A reconvenção também foi bem dada como não provada e improcedente, dado que os Recorrentes não fizeram prova dessa desnecessidade objectiva; a servidão continua a ser necessária para aceder aos prédios rústicos e, mais do que isso, não impugnaram a matéria de facto dada como provada nos factos nº 31º a 34º.
*
11. A factualidade dada como provada nos pontos 23, 24 e 25 conjugada com a resposta pericial ao quesito nº 13 da Recorrida, permitem concluir que foram as circunstâncias anormais e exteriores ao muro, in casu a acumulação de águas e as ramadas, que contribuíram decisivamente para o seu derrube.
12. Dito de outra forma, não resulta provado que o muro tenha caído por má ou deficiente construção, antes se emprestando as tais causas imputáveis aos Recorrentes para o resultado se verificar, caindo precisamente para o lado do prédio da Recorrida.
13. Deste modo, é convicção da Recorrida que existe um nexo de causalidade entre a conduta dos Recorrentes e a queda do muro, devendo em consequência ser condenados a proceder à reparação do muro de suporte e vedação no prédio rústico da Recorrida, ou, em alternativa a este pedido, condenar-se os Recorrentes a indemnizar a Recorrida pelo custo resultante da realização dessa obra, a liquidar em execução de sentença.

NESTES TERMOS,
A) Deve ser confirmada a douta sentença proferida que condenou os Réus/Recorrentes, conforme pontos 1) a 7) e,
B) Deve a ampliação do recurso ser admitida (1) e serem os Réus/Recorrentes condenados a proceder à reparação do muro de suporte e vedação no prédio rústico da recorrida ou, em alternativa a este pedido, condenar-se os Recorrentes a indemnizar a Recorrida pelo custo resultante da realização dessa obra, a liquidar em execução de sentença.
*
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II- FUNDAMENTOS

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.
*
No seguimento desta orientação, os Recorrentes colocam as seguintes questões que importa apreciar:
*
1- Determinar se o tribunal a quo incorreu num erro de julgamento, e, consequentemente, se, reponderado esse julgamento:
-Devem considerar-se não provados os factos que a sentença de primeira Instância considerou como provados nos pontos 19 e 20;
O ponto 20 deve ser substituído pelos seguintes factos:

- A propriedade dos Réus pertenceu a M. C. entre 07/11/1988 e 13 de Dezembro de 1995.
- Durante esse período, por falta de manutenção do sistema hidráulico, as águas de nascente já não derivavam para os prédios da Autora pelo que, pelo menos desde 1988 que a Autora e seus antecessores não fazem proveito da água de mina que derivava do prédio dos Réus.
- O antecessor da autora, seu avô, P. N., recusou contribuir para o conserto desse sistema hidráulico por não ter interesse nas águas.
- Os Réus de forma alguma impediram a captação e derivação das águas de nascente para os prédios da Autora uma vez que quando a propriedade veio para os mesmos a 13 de Dezembro de 1995, já as águas da nascente não derivavam para os prédios da Autora.
*
-Deve o facto dado como provado no ponto 35 ser dado como não provado, uma vez que existe total incongruência e contradição entre os factos provados número 29 e 30 e o facto 35. Se é facto provado que a Autora tem poço e tem abastecimento público a menos de 20 metros não se pode dar também como provado que continua a necessitar da água de Mina.
*
*
2- saber se, cabendo à Autora o ónus de provar os factos por virtude dos quais teria adquirido o direito de propriedade sobre as águas, e não tendo conseguido demonstrar o animus, mas apenas o corpus, mal andou o Tribunal “a quo” a conceder o direito de propriedade a partir do instituto da usucapião.
2.1. subsidiariamente, saber se se verifica a caducidade do direito de propriedade sobre as águas, pelo não uso.
*
3. No caso de se entender que se tratavam de direitos de servidão de água e/ou de aqueduto:

a) saber se os mesmos já teriam prescrito nos termos gerais do art.º 298.º CC.
b) saber se ainda que não tivessem prescrito, não faria sentido quase 30 anos depois impor um encargo ao prédio dos RR quando está demonstrado que a A. tem alternativas (poço e abastecimento público a menos de 20 metros), pelo que com base nos artigos 1557.º, 1558.º e 1561.º, todos do CC, deveria a suposta servidão ser declarada extinta tal como requerido.
*
4. saber se, considerando que o Sr. P. N., avô da Autora e antepossuidor da propriedade, renunciou ao direito das águas, não constitui abuso de direito ("venire contra factum proprium") vir posteriormente exigir essa água.
*
5. saber se existe contradição entre a fundamentação de direito e a decisão aplicada.
*
6. Reconvenção: saber se se impõe, em face da matéria de facto provada, a cessação da servidão de passagem, por se ter tornado desnecessária a sua utilização.
*
A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença proferida em 1ª instância julgou provados os seguintes factos:

“Factos provados

Do depoimento das testemunhas, dos documentos juntos aos autos, da prova pericial e da posição assumida pelas partes, resultam provados os seguintes factos:

1) Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ... o prédio rústico situado em ..., freguesia de ... (S. Fins), com a área de 4000 m2, inscrito na matriz rústica sob o artigo 680, composto por cultura, ramadas, oliveiras e pinhal, a confrontar de norte com Isabel, sul com José e nascente e ponte com caminho.
2) Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ... o prédio rústico situado em ..., freguesia de ... (S. Fins), com a área de 1350 m2, inscrito na matriz rústica sob o artigo 1299, composto por bouça de eucaliptal, a confrontar de norte com A. S., sul com A. P., nascente com rego de água de consortes e poente com caminho vicinal.
3) Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº … o prédio urbano situado em ..., freguesia de ... (S. Fins), com a área total de 5903 m2, sendo a coberta de 385 m2 e a descoberta de 5518 m2, inscrito na matriz urbana sob o artigo 195, composto por casa de 2 pavimentos, com dependência e dois cobertos e logradouro, a confrontar de norte com L. R., poente e sul com M. P. e nascente com caminho.
4) Pela AP 1024 de 2015/03/05 encontra-se registada a aquisição da propriedade dos prédios identificados em 1) a 3) a favor da autora através de doação.
5) Por escritura pública de doação outorgada no dia 5 de Março de 2015, M. P. declarou doar os imóveis identificados em 1º a 3º dos factos provados à autora, sua filha, por conta da sua quota disponível, conforme resulta do teor do documento junto a fls. 9 “verso” a 12, cujo teor se dá como integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
6) Tais prédios são confinantes entre si e não têm qualquer barreira divisória.
7) Há mais de 20 anos, 30 e 40 anos que a autora, por si e antecessores, tem utilizado os prédios descritos, na parte rústica semeando erva, milho, feijão, batatas, cortando lenhas e madeiras, retirando deles as demais utilidades que lhe são inerentes, e na parte urbana, onde tinha e tem uma casa de habitação, nela vivendo, pernoitando, recebendo familiares e amigos.
8) De dia e de noite, na frente de toda a gente, sem oposição de ninguém e com o ânimo de ser sua exclusiva dona.
9) Pertence aos réus um prédio misto composto por casa de rés-do-chão, logradouro e junto terreno de lavradio e mato, situado no lugar … sob o nº ... e inscrito na matriz predial urbana com o artigo 47º e rústica com os artigos 362 e 687º.
10) Por escritura pública de compra e venda outorgada no dia 13 de Dezembro de 1995, na secretaria Notarial, M. C. e mulher M. O. declararam vender ao réu marido, pelo preço de seis milhões de escudos, o prédio identificado em 9) dos factos provados, conforme resulta do teor do documento junto a fls. 12 “verso” a 14, cujo teor se dá como integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
11) Os prédios descritos em 1º a 3º dos factos provados confinam com o prédio dos réus, em parte pelo seu limite norte e estão a uma quota inferior em relação a ele.
12) Sucede que há mais de 30 e 40 anos até data não concretamente apurada mas anterior a 9 de Julho de 1996, que a autora e seus antecessores têm água nos três prédios identificados em 1º a 3º, através de uma nascente que nasce num prédio superior ao dos réus, no monte ali existente.
13) E que é derivada por obra humana, através de mina, para o prédio dos réus.
14) Nesse prédio dos réus, a água aflui a um tanque, do qual era derivada através de rego a céu aberto – aqueduto – para o prédio da autora.
15) Durante quatro dias por semana, a água entrava no prédio descrito em 1º, através de uma abertura existente no muro delimitativo das propriedades de autora e réus, indo por canal em pedra para um tanque de retenção de águas nesse terreno construído.
16) Deste tanque, as águas eram aproveitadas, sem qualquer limitação ou restrição para rega e lima dos dois prédios rústicos da autora, bem como para as lides domésticas da casa de habitação.
17) Fazendo há mais de 30 e 40 anos até data não concretamente apurada, mas anterior a 9 de Julho de 1996, a sua normal utilização, ou seja, a sua captação e derivação.
18) Igualmente limpando o tanque e o rego para onde a água deriva, na propriedade dos réus, tendo os antepossuidores dos prédios da autora construído uma porta no muro divisório das propriedades de autora e réus, há mais de 40 anos, para a ele aceder mais facilmente, sempre que se justificava.
19) Tudo isto levado a cabo pelos antepossuidores da autora, de dia e de noite, na frente de toda a gente, sem oposição de ninguém com o ânimo de serem seus donos.
20) Sucede que em data não concretamente apurada, posterior ao dia 13 de Dezembro de 1995, mas anterior ao dia 9 de Julho de 1996, por forma não concretamente apurada, os réus impediram a captação e derivação das águas de nascente para os prédios da autora.
21) O antecessor da autora, seu avô, P. N., na pessoa do seu mandatário, remeteu uma missiva aos Réus em 9 de Julho em 1996, com o seguinte teor:

“Exmos. Senhores
Escrevo-lhes na qualidade de Advogado do Sr. P. N., de … Barcelos, vosso vizinho e confinante na propriedade que ambos têm nesta freguesia.
O Sr. P. N. tem direito a uma água do tanque implantado no vosso terreno para as propriedades que lhe pertencem.
Essa água é conduzida no vosso terreno em rego aberto que, como é evidente, precisa de ser limpo e desobstruído de lixos.
Como essa limpeza este ano ainda não foi feita venho avisá-los de que é necessário fazê-la.
Para isso apresento três soluções:

a) Ou os senhores limpam convenientemente todo o rego
b) Ou permitem que o meu constituinte (ou alguém por ele) o faça
c) Ou então, cada um limpar metade, certo como é que tanto ele como os Srs. o utilizam.
d) Desde já o Sr. P. N. se prontifica a limpá-lo, para o que não devem fazer qualquer oposição (…)”, conforme documento junto a fls. 12 “verso”, cujo teor se dá como integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
22) De igual modo, a autora depois de adquirir os aludidos prédios, interpelou verbalmente o réu Cândido para permitir a utilização das águas de nascente e a limpeza e manutenção do tanque e rego, tendo este se negado.
23) Os réus têm permitido que as águas provindas da nascente situada nos prédios superiores, andem perdidas pelo seu prédio.
24) Na decorrência desse comportamento, existem águas acumuladas junto ao muro de suporte e vedação, feito em cimento, com uma altura de cerca de 1.50mt, situado no prédio rústico da autora, denominado Leira do Moinho de Cima, que se situa na extrema de ambos os prédios.
25) Em data não concretamente apurada, o muro caiu numa extensão de cerca de 15 metros, para o interior do prédio da autora.
26) Por sentença proferida no processo nº 297/96 do extinto 2º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Barcelos, confirmada pelo acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, em 31 de Janeiro de 2011, foi reconhecido que a autora e seus antepossuidores têm direito a uma servidão de passagem pelo prédio dos réus, situado no limite poente, por via da usucapião, para acesso aos prédios descritos nos artigos 1º a 3º, na sequência da colocação de uma cancela por parte dos réus, que impedia a autora e antecessores de se servir do dito acesso.
27) Em data não concretamente apurada, os réus resolveram impedir novamente a passagem, colocando lenha e outros objectos no carreiro.
28) O anterior proprietário do prédio dos réus construiu dois poços nesse prédio.
29) A autora tem um poço.
30) Existe abastecimento público de água a menos de 20 metros.
31) Tanto o prédio urbano como os rústicos da autora sempre tiveram acesso à via pública através da “Rua da Igreja”.
32) Actualmente esse acesso à via pública também será possível pela parte Norte dos prédios rústicos a partir de novo arruamento denominado “Rua Nova”.
33) O prédio da autora vai em socalco/declive até à rua, tendo na sua extrema uma cota superior em cerca de 1 metro.
34) O que implicaria sempre a necessidade de realizar obras, atento o desnível acentuado.
35) A autora continua a necessitar da água da mina para rega e lima dos prédios rústicos e para as restantes utilizações no prédio urbano.
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Factos não provados

Não se provaram, com relevância para a decisão da causa, o artigo 6º (no que respeita à vinha. vide e uvas), 7º, 20º, 1ª parte; 22º, 1ª parte; 28º (no que respeita ao recurso a homens e máquinas); 30º, 36º; 38º (na parte em que se refere que fizerem com que o muro tivesse caído em meados do ano de 2010), 39º, 1ª parte e 44º (no que respeita à data), da petição inicial.
Da contestação/reconvenção não resultou demonstrado o alegado em 16º, 21º 26º, 27º e 51º.
***
Os restantes factos alegados que não se encontram elencados nos factos dados como provados ou não provados, foram considerados pelo tribunal como conclusivos, irrelevantes, repetidos, que encerram conceitos de direito ou se encontram em contradição com os factos dados como provados.
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B)- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Já se referiram em cima as questões que importa apreciar e decidir.
Comecemos pela apreciação da Impugnação da matéria de facto.
Compulsado o Recurso interposto, pode-se concluir que, como resulta do corpo das alegações e das respectivas conclusões, os Réus/ Recorrentes impugnaram a decisão da matéria de facto, tendo dado cumprimento aos ónus impostos pelo artigo 640.º, nº 1 als. a), b) e c) do CPC, pois que, fazem referência aos concretos pontos da matéria de facto que consideram incorrectamente julgados, e a decisão que, no seu entender, deveria sobre eles ter sido proferida.
Da mesma forma, indicam, quanto a todos os pontos da matéria de facto, os meios de prova que imporiam a decisão que sobre eles deveria ser proferida.
Cumpridos aqueles ónus e, portanto, nada obstando ao conhecimento do objecto de recurso nesse segmento, importa verificar, pois, se se pode dar razão aos Recorrentes, quanto aos questionados pontos da matéria de facto.
Importa, antes de entrar directamente na apreciação das discordâncias alegadas, referir qual deve ser o âmbito de apreciação da matéria de facto que incumbe ao Tribunal da Relação em sede de Recurso.
Na verdade, o âmbito dessa apreciação não contende com a ideia de que o Tribunal da Relação deve realizar, em sede de recurso, um novo julgamento na 2ª Instância, prescrevendo-se tão só “ … a reapreciação dos concretos meios probatórios relativamente a determinados pontos de facto impugnados… “ (2).

Assim, o legislador, no art. 662º, nº1 do CPC, “ … ao afirmar que a Relação aprecia as provas, atendendo a quaisquer elementos probatórios… pretende que a Relação faça novo julgamento da matéria de facto impugnada, vá à procura da sua própria convicção, assim se assegurando o duplo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto em crise… “ (3).
Destas considerações, resulta, de uma forma clara, que o âmbito da apreciação do Tribunal da Relação, em sede de impugnação da matéria de facto, estabelece-se de acordo com os seguintes parâmetros:

a) o Tribunal da Relação só tem que se pronunciar sobre a matéria de facto impugnada pelo Recorrente;
b) sobre essa matéria de facto impugnada, o Tribunal da Relação tem que realizar um novo julgamento;
c) nesse novo julgamento o Tribunal da Relação forma a sua convicção de uma forma autónoma, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não só os indicados pelas partes) (4).
Dentro destes parâmetros, o Tribunal da Relação, assumindo-se como um verdadeiro Tribunal de Substituição (5), está em posição de proceder à reavaliação da matéria de facto especificamente impugnada pelo Recorrente, pelo que neste âmbito a sua actuação é praticamente idêntica à do Tribunal de primeira Instância, apenas cedendo nos factores da imediação e da oralidade.
Ora, contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objecto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.
“O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado” (6).
De facto, a lei determina expressamente a exigência de objectivação, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (artigo 607.º, nº 4 do CPC).
Todavia, na reapreciação dos meios de prova, a Relação procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção, desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria, com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância (7).
Impõe-se-lhe, assim, que “analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, quer a testemunhal, quer a documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar a sua própria e autónoma convicção, que deve ser fundamentada” (8).
Importa, porém, não esquecer porque, como atrás se referiu, se mantêm vigorantes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
Assim, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação quando este Tribunal, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada- quando nessa prova se funde o recurso-, conclua, com a necessária segurança (9), no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitaram uma conclusão diferente daquela que vingou na primeira Instância.
*
Tendo presentes estes princípios orientadores, vejamos agora se assiste razão aos Réus apelantes, neste segmento do recurso da impugnação da matéria de facto, nos termos por eles pretendidos.
Conforme já se referiu, importa que o Tribunal se pronuncie sobre a impugnação da matéria de facto, fundada no alegado erro na apreciação da prova, entendendo os Recorrentes que, em face da prova produzida:

-Devem considerar-se não provados os factos que a sentença de primeira Instância considerou como provados nos pontos 19 e 20;
O ponto 20 deve ser substituído pelos seguintes factos:

- A propriedade dos Réus pertenceu a M. C. entre 07/11/1988 e 13 de Dezembro de 1995.
- Durante esse período, por falta de manutenção do sistema hidráulico, as águas de nascente já não derivavam para os prédios da Autora pelo que, pelo menos desde 1988 que a Autora e seus antecessores não fazem proveito da água de mina que derivava do prédio dos Réus.
- O antecessor da autora, seu avô, P. N., recusou contribuir para o conserto desse sistema hidráulico por não ter interesse nas águas.
- Os Réus de forma alguma impediram a captação e derivação das águas de nascente para os prédios da Autora uma vez que quando a propriedade veio para os mesmos a 13 de Dezembro de 1995, já as águas da nascente não derivavam para os prédios da Autora.
*
-Deve o facto dado como provado no ponto 35 ser dado como não provado, uma vez que existe total incongruência e contradição entre os factos provados número 29 e 30 e o facto 35. Se é facto provado que a Autora tem poço e tem abastecimento público a menos de 20 metros não se pode dar também como provado que continua a necessitar da água de Mina.
*
Aí ficaram mencionados, como matéria de facto, os seguintes factos:

“19) Tudo isto levado a cabo pelos antepossuidores da autora, de dia e de noite, na frente de toda a gente, sem oposição de ninguém com o ânimo de serem seus donos.
20) Sucede que em data não concretamente apurada, posterior ao dia 13 de Dezembro de 1995, mas anterior ao dia 9 de Julho de 1996, por forma não concretamente apurada, os réus impediram a captação e derivação das águas de nascente para os prédios da autora.
*
29) A autora tem um poço.
30) Existe abastecimento público de água a menos de 20 metros.
(…)
35) A autora continua a necessitar da água da mina para rega e lima dos prédios rústicos e para as restantes utilizações no prédio urbano.
*
Os Recorrentes não concordam com o julgamento destes pontos da matéria de facto, alegando que:

VII – O facto 19 dado como provado deve ser alterado para o sentido oposto sendo que o máximo que poderá estar aqui em causa é um suposto direito de servidão de águas mas nunca a propriedade das mesmas uma vez que não se provou o elemento subjectivo “animus”.
VIII – Aliás, dos depoimentos das testemunhas F. P., M. B. e M. C. percebe-se que quem trabalhava os campos era “Caseiro” ou “Jornaleiro”, ou seja, não o faziam com o ânimo de serem proprietários.
IX – O facto 20 dado como provado deve ser dado como não provado devido à falta de produção de prova do vertido no mesmo e ser substituído pelos seguintes factos:

- A propriedade dos Réus pertenceu a M. C. entre 07/11/1988 e 13 de Dezembro de 1995.
- Durante esse período, por falta de manutenção do sistema hidráulico, as águas de nascente já não derivavam para os prédios da Autora pelo que, pelo menos desde 1988 que a Autora e seus antecessores não fazem proveito da água de mina que derivava do prédio dos Réus.
- O antecessor da autora, seu avô, P. N., recusou contribuir para o conserto desse sistema hidráulico por não ter interesse nas águas.
- Os Réus de forma alguma impediram a captação e derivação das águas de nascente para os prédios da Autora uma vez que quando a propriedade veio para os mesmos a 13 de Dezembro de 1995, já as águas da nascente não derivavam para os prédios da Autora.
X – Tais conclusões resultam da prova produzida em julgamento uma vez que as testemunhas da A. apresentaram as mais variadas datas para que a água tivesse deixado de correr não sendo coerentes, criteriosas, congruentes e isentas de contradições, chegando manifestamente a faltar à verdade.
XI - Acresce que para além de nenhuma delas ter tido a capacidade de concretizar as datas, não apresentavam motivo para a interrupção do ciclo da água e nas palavras de Figueiredo Dias: “A “livre” ou “íntima” convicção do juiz não pode ser uma convicção puramente subjectiva, emocional e portanto imotivável.”
XII - Já a testemunha M. C. apresentou uma versão dos factos de forma totalmente circunstanciada, pormenorizada enquadrada no tempo e no espaço e com óbvio conhecimento de causa.
XIII - Não se fez qualquer tipo de prova que a água tenha sido interrompida a partir de Dezembro de 1995 nem que tenha sido por qualquer acção dos RR, aqui Recorrentes.
XIV – Nem faria sentido o anteproprietário M. C. ter investido tempo e dinheiro na construção de dois poços, como resultou provado, se tivesse acesso à dita água.
XV – O Avô da A. e anteproprietário do terreno da mesma, intentou contra estes mesmos Réus acção para reconhecimento de servidão de passagem, pelo que até pela análise da “normalidade do acontecer” caso entendesse ser proprietário de qualquer água e tivesse visto as águas a serem desviadas entre 13 de Dezembro de 2015 e Junho de 2016, teria intentado acção nesse sentido. Mas nada foi feito até 2015.
XVI – Há uma total incongruência e contradição entre os factos provados número 29 e 30 e o facto 35. Se é facto provado que a Autora tem poço e tem abastecimento público a menos de 20 metros não se pode dar também como provado que continua a necessitar da água de Mina.
XVII - Uma vez que os factos 29 e 30 são indesmentíveis, deve o facto provado 35 ser dado como não provado.”
*
Quanto a esta matéria de facto, o Tribunal fundamentou a sua decisão da seguinte forma:

(incluindo-se a fundamentação geral com pertinência para a matéria de facto aqui em discussão)
“Motivação
Do depoimento das testemunhas inquiridas quanto a tal factualidade, designadamente M. B., com 89 anos de idade, que chegou a ter os campos do avô da autora, antepossuidor dos prédios mencionados nos autos, F. P., com 74 anos de idade, e que conhece estes prédios desde os 7 anos de idade, D. M., com 53 anos de idade e que desde os 10 anos de idade trabalhou aquelas terras, resulta inequívoco que há mais de 20, 30 e 40 anos, a autora, por si e antecessores detém a posse dos seus prédios, vêm retirando dos ditos prédios todas as respectivas utilidades, praticando os actos próprios de quem se comporta em relação a estes prédios como seu proprietária, com todas as características dos actos conducentes à aquisição por usucapião, resultando como provada a factualidade constante em 7) e 8) dos factos provados.
(…)
Relativamente à água da nascente derivada para os prédios da autora, prática de actos de posse conducentes à aquisição de direito de propriedade da mesma por via da usucapião, o Tribunal valorou o conjunto da prova produzida, tendo em conta as regras da normalidade do acontecer.
Na verdade, da prova testemunhal produzida é inequívoco que era derivada para os prédios da autora a água da nascente.
Na verdade, a já mencionada testemunha M .B., que prestou um depoimento que nos pareceu isento e, por isso convincente, asseverou que a água para a casa e para os campos vinha de um terreno “pegado” ao dos avós da autora, que pertencia a um Sr. M. C., que tinha três tanques no seu terreno, ficando esse terreno “em cima”, vinha por um rego e dava entrada numa parede do prédio da autora, regando os campos quatro vezes por semana.
Atestou ainda que a água provinha de um tanque do terreno de cima por um rego, dava entrada numa parede do prédio do avô da autora, Sr. P. N., sendo represada num tanque existente no terreno do referido P. N..
Esclareceu ainda que a água vinha de umas minas de cima, sendo quatro dias na semana para o P. N. e três dias para o Sr. M. C., não existindo mais nenhuma água no prédio do Sr. P. N..
Também esclareceu que os antecessores da autora limpavam os tanques e os regos, sem qualquer oposição do Sr. M. C., a água “corria bem”, “o destino dela era entrar no terreno do P. N.”, tendo deixado de fazer o terreno quando o P. N. morreu.
Este depoimento foi corroborado pelo depoimento prestado por F. P., que assegurou que era jornaleira do Sr. P. N. e caseira do Sr. M. C., tendo deixado de trabalhar há 30 anos.
Referiu ainda que a água que ia para o tanque em pedra do P. N. vinha dos tanques do Sr. M. C., quatro dias por semana, sendo que mesmo após a venda efectuada pelo Sr. M. C., o Sr. P. N. continuou a ter água, vindo essas águas de outro prédio, em mina, assegurando ainda que o Sr. P. N. tinha outra água e desconhecer a data em que a água deixou de correr.

Por fim, afirmou que o Sr. M. C. construiu um poço junto à casa, tendo o prédio outro poço e que era conhecedor que entravam no seu prédio por causa da água do Sr. P. N..
A testemunha Manuel, também asseverou a existência da nascente no terreno de um vizinho de cima e que a água ia para um tanque de armazenamento da casa da autora, através de rego, que passava junto ao muro, existindo uma porta para ir buscar a água, que corria todos os dias.
Atestou ainda desconhecer a data em que foi interrompido o fornecimento da água, mas que chegou a ir visitar o Sr. P. N. a casa, há menos de 20 anos, e a água corria, depoimento corroborado por D. M., com 53 anos de idade, que conhece os terrenos desde os dez anos de idade.
Atento o depoimento prestado pelas testemunhas acabadas de referir, conjugado com o teor da missiva enviada pelo avô da autora, P. N., cujo teor se encontra transcrito no artigo 21) dos factos provados, conjugado com o teor do relatório pericial, junto a fls. 109 a 128, no que respeita às obras que foram realizadas no monte, nos prédios de autora e réus, bem como a existência da porta de ligação junto ao aqueduto em pedra, o Tribunal ficou convencido que há mais de 30 e 40 anos até data não concretamente apurada mas anterior a 9 de Julho de 1996, ou seja, a data que consta na missiva enviada pelo avô da autora, que a autora e seus antecessores têm água nos três prédios identificados em 1º a 3º, através de uma nascente que nasce num prédio superior ao dos réus, no monte ali existente, que é derivada por obra humana, através de mina, para o prédio dos réus.
Resultou também provado que esse prédio dos réus, a água aflui a um tanque, do qual era derivada através de rego a céu aberto – aqueduto – para o prédio da autora, durante quatro dias por semana, indo por canal em pedra para um tanque de retenção de águas nesse terreno construído, sendo que desse tanque as águas eram aproveitadas, sem qualquer limitação ou restrição para rega e lima dos dois prédios rústicos da autora, bem como para as lides domésticas da casa de habitação.
Com efeito, consideramos que o depoimento prestado pelas testemunhas M. B. e Felicidade, atenta a forma circunstâncias e “vivida” como prestaram o seu depoimento nos merece total credibilidade, ficando o Tribunal convencido que os antecessores da autora tinham água quatro dias na semana, dando-se tal factualidade como provada.

Por outro lado, também resultou demonstrado que os antepossuidores do prédio da autora limpavam o tanque e o rego para onde a água deriva, na propriedade dos réus, tendo os antepossuidores dos prédios da autora construído uma porta no muro divisório das propriedades de autora e réus, há mais de 40 anos, para a ele aceder mais facilmente, sempre que se justificava, bem como as características da posse conducentes à aquisição do direito de propriedade por via da usucapião.
É verdade que considerando tais depoimentos, o teor da missiva já referida e o depoimento prestado por R. L., marido da autora, que conhece os prédios desde o ano de 1994, o tribunal ficou convencido que em data não concretamente apurada, posterior ao dia 13 de Dezembro de 1995, ou seja, posterior à venda que foi efectuada por M. C. do prédio aos réus, mas anterior ao dia 9 de Julho de 1996, data constante na missiva, por forma não concretamente apurada, os réus impediram a captação e derivação das águas de nascente para os prédios da autora.
Na verdade, foi produzida prova no sentido de que mesmo após a venda do prédio aos réus, continuou a correr a água, tendo sido impedida a captação e derivação, por forma não concretamente apurada.
Cumpre salientar que o depoimento prestado por M. C., anterior proprietário e que vendeu o prédio aos réus, atento o modo pouco espontâneo como prestou o seu depoimento, não mereceu grande relevância por parte do Tribunal.
Com efeito, a testemunha assegurou que a água da mina pertencia quatro dias ao Sr. P. N., mas a mesma “não caía”, afirmando, insistentemente, não ter qualquer interesse na causa.
Atestou ainda que fez um orçamento, falou com o Sr. P. N. para comparticipar na obra, ao que o mesmo se recusou, dizendo que não tinha interesse na água, abriu dois poços e desde 1987, aquela água nunca mais foi usada.
Assegurou ainda que o Sr. P. N. podia entrar pela porta junto ao rego, entrando na propriedade da testemunha e que “nunca ouviu nenhuma questão relacionada com a carta” enviada pelo Sr. P. N. ao réu.
Ora, não obstante este depoimento, o tribunal ficou convencido da versão apresentada pelas testemunhas supra mencionadas. Aliás, esta versão de “renúncia” por parte do avô da autora ao direito à água não se encontra alegada na contestação e mostra-se em contradição total à prova documental existente – artigo 21º dos factos provados, não se compreendendo como é que os réus não confrontaram a testemunha, que lhes vendeu o prédio, com tal missiva, se estivessem convencidos que os antepossuidores dos prédios da autora não tinham direito à água.
Por outro lado, atento o teor do relatório pericial junto aos autos, o Tribunal não ficou convencido que o caudal da água era exíguo, pelo que deu tal factualidade como não provada.
Do relatório pericial, esclarecimentos prestados pelo Sr. perito no início da audiência de julgamento e prova testemunhal, o Tribunal ficou convencido da factualidade constante em 28) a 30) e 35) dos factos provados.
(…)”.
*
Cumpre apreciar a Impugnação da matéria de facto, tendo em conta o que em cima já se referiu, quanto à tarefa que é imposta ao Julgador neste âmbito.
Quanto ao ponto 19 a questão que os Recorrentes colocam é a de saber se se pode dar como provado que a Autora (e seus antecessores) agiram com o “animus” de proprietários da água aqui em discussão.
Defendem os Recorrentes que da prova produzida apenas resulta que “… quem trabalhava os campos era “Caseiro” ou “Jornaleiro”, ou seja, não o faziam com o ânimo de serem proprietários…”, pelo que não se mostram preenchidos os requisitos da aquisição da propriedade da água por usucapião.
Julga-se que os Recorrentes não têm razão.
Na verdade, resulta da prova produzida que a Autora logrou provar que quer ela, quer os seus antecessores (principalmente), praticaram actos de posse sobre a referida água.
Esses actos de posse foram mencionados de uma forma uniforme e coerente, pelas testemunhas M. B. (que, segundo informou, julga ter “deixado de fazer o terreno” da Autora quando o Sr. P. N. faleceu), F. P. (que foi jornaleira do Sr. P. N. (antecessor da Autora) e caseira do Sr. M. C. (antecessor dos RR.), tendo deixado de ali trabalhar há 30 anos) e Manuel (este apenas em parte).

Assim, todas estas testemunhas referiram que:

- a água vinha por um rego e dava entrada numa parede do prédio da autora, regando os campos quatro vezes por semana.
- era represada num tanque existente no terreno.
- os antecessores da autora limpavam os tanques e os regos, sem qualquer oposição do Sr. M. C. (antecessor dos RR.).
- do tanque as águas eram aproveitadas, sem qualquer limitação ou restrição, para rega e lima dos dois prédios rústicos da autora, bem como para as lides domésticas da casa de habitação.
Não existem, assim, dúvidas que a Autora (e os seus antepossuidores) praticaram actos de posse sobre a água aqui em discussão- nem isso se julga ter sido posto em causa pelos Recorrentes.
Além disso, tal posse é susceptível de levar à aquisição do direito de propriedade sobre tal água, por usucapião, pois que se acha acompanhada da construção de obras, visíveis e permanentes, no prédio descrito em 12), onde brota a água, as quais revelam a sua captação e posse (cfr. art. 1390º, nº 2 do CC).
No entanto, a questão que os Recorrentes colocam é relativa à falta de prova do “animus” de proprietário com que tais actos de posse eram praticados pelos antecessores da Autora (e por esta) - pondo em causa que esse facto deva ser considerado como provado, conforme consta do ponto 19 aqui impugnado.
Com efeito, alegam que os referidos actos de posse (ou, pelo menos, alguns deles) eram praticados pelos “caseiros” ou “jornaleiros”, e que estes não o faziam com o ânimo de serem proprietários.
Não há dúvidas (aliás, a Autora não põe isso em causa) - porque decorre dos depoimentos das testemunhas M. B. e F. P. e ainda do depoimento da testemunha D. C.- que alguns dos aludidos actos descritos na matéria de facto eram efectivados pelos “caseiros” e “jornaleiros”, mas a questão que se coloca é a de saber se isso impede que se possa considerar que os antecessores da Autora (e a Autora), por agirem por intermédio daqueles, não actuavam com o “animus” de proprietários da água?

Vejamos se assim se pode entender.
Em primeiro lugar, importa aqui esclarecer, de uma forma sintética, qual é o objectivo dos Recorrentes, quando pretendem negar esta factualidade, ou dito de outra maneira, qual é a importância desta factualidade para o (não) reconhecimento da pretensão da Autora.
Como é sabido, sobre uma água existente ou nascida em prédio alheio podem constituir-se dois tipos distintos de situações: o direito de propriedade, sempre que, desintegrada a água da propriedade superficiária, o seu titular pode usá-la, fruí-la e dispor dela livremente; o direito de servidão, quando, continuando a água a pertencer ao dono do solo ou de um outro prédio, se concede a terceiro a possibilidade de aproveitá-la, em função das necessidades de um prédio diferente (10).
Trata-se, no fundo, da mesma ideia expressa pelo Prof. Pires de Lima: Se se adquire o poder de dispor livremente da água que nasce em prédio alheio, ou o direito de a captar subterraneamente, constitui-se um direito de propriedade ou de compropriedade. Se qualquer desses direitos está limitado às necessidades ou a certas necessidades de um outro prédio (dominante), a figura será a de servidão (11).
Ainda de acordo com o Prof. Antunes Varela, existe, porém, entre estes dois direitos reais uma profunda diferença, tanto no seu conteúdo como na sua dimensão ou extensão: no primeiro caso, há um direito pleno e, em princípio, ilimitado sobre a coisa, que envolve a possibilidade do mais amplo aproveitamento, ao serviço de qualquer fim, de todas as utilidades que a água possa prestar; o segundo confere ao seu titular apenas a possibilidade de efectuar o tipo de aproveitamento da água previsto no título constitutivo e na estrita medida das necessidades do prédio dominante (loc. cit., pág. 220).
Estatui o nº 1 do art. 1390º do CC que se considera justo título de aquisição da água das fontes e nascentes, conforme os casos, qualquer meio legítimo de adquirir a propriedade de coisas imóveis ou de constituir servidões.
Entre esses meios legítimos figura, sem dúvida, a usucapião (cfr. art. 1316º do CC) (12).
E é precisamente à usucapião que se refere o já citado n.º 2 do art. 1390º, ao estabelecer que esta “só é atendida quando for acompanhada da construção de obras, visíveis e permanentes, no prédio onde exista a fonte ou nascente, que revelem a captação e a posse da água nesse prédio; sobre o significado das obras é admitida qualquer espécie de prova.”
Como já ficou dito, este requisito, em face da matéria de facto provada, mostra-se plenamente preenchido, sendo inequívoca a posse da água por parte da Autora (e seus antecessores), desde logo, porque acompanhada das referidas construções, visíveis e permanentes.
Os demais requisitos da usucapião - posse pública e pacífica, e de boa fé - bem como o lapso temporal necessário a que esta opere, estão também presentes na factualidade apurada.
A questão colocada pelos Recorrentes, de saber se estamos perante a aquisição de um direito de propriedade sobre a água ou de um mero direito de servidão (ou de uma mera detenção), resolve-se, então, e como decorre do exposto, pela amplitude do direito de uso da água.
Se se trata de um direito pleno e, em princípio, ilimitado sobre a água, envolvendo a possibilidade do mais amplo aproveitamento, ao serviço de qualquer fim, de todas as utilidades que a água pode prestar, é de direito de propriedade que deve falar-se; se o titular do direito tem apenas a possibilidade de efectuar o aproveitamento da água na estrita medida das necessidades do prédio dominante, é de servidão o direito em causa (13).
Ora, para aferir qual a natureza do direito aqui em causa, temos que averiguar o animus com que os antecessores da Autora (e ela própria) actuavam quando exerciam os actos de posse atrás assinalados.
É que, como é sabido, a posse, na definição fornecida pelo art. 1251º do CC, constitui-se por dois elementos: o “corpus”, que se traduz no conteúdo da relação material do sujeito com a coisa (poder ou domínio de facto efectivamente exercido), e o “animus” ou elemento psicológico, a revelar-se pela intenção de actuar de modo correspondente à titularidade do respectivo direito real.
De facto, atenta a concepção subjectivista da posse consagrada no nosso Código Civil, para que haja posse, é preciso alguma coisa mais do que o simples poder de facto; é preciso que haja por parte do detentor a intenção (animus) de exercer, como seu titular, um direito real sobre a coisa, e não um mero poder de facto sobre ela (14).
Assim, para que o direito invocado pela Autora (direito de propriedade sobre as águas) pudesse ser constituído por Usucapião, em princípio, teria aquela que alegar e provar o referido elemento psicológico da posse, ou seja, o “animus”, que, como se disse, consiste na intenção de exercer sobre a coisa, como seu titular, o direito real correspondente àquele domínio de facto (no caso, o direito de propriedade sobre as águas).
Ora, entendem os Recorrentes que essa factualidade não podia ser dada como provada, no caso concreto, porque parte dos aludidos actos de “posse” foram praticados pelos “caseiros” e “jornaleiros” e assim estes não o faziam com o ânimo de serem proprietários, pelo que não se mostraria preenchido este requisito da aquisição da propriedade da água por usucapião.

Ora, importa dizer, em primeiro lugar, que, quando se pretende averiguar o “animus” com que determinado possuidor actua, devemos ter presente que, na dúvida, se deve entender que essa actuação é efectuada“… em termos de propriedade, já que esta envolve no seu licere toda a «lógica da coisa» e, por isso, qualquer tipo de manifestação empírica” (15).
Depois, entrando directamente na argumentação dos Recorrentes, não é o facto de alguns dos actos de posse terem sido praticados pelos “caseiros” ou “jornaleiros que impede o reconhecimento daquele animus de proprietário.
Na verdade, em bom rigor, aquela questão não contende sequer com a afirmação daquele requisito da Usucapião (“animus domini”), mas sim, apenas, com o outro requisito (“corpus”).
Com efeito, a questão que os Recorrentes colocam é, no fundo, a de saber se se pode entender existir posse nos casos em que a detenção da coisa é efectuada por intermédio de terceiros (no caso, de caseiros e jornaleiros).
Ora, a verdade é que o conceito de posse separa-se, por inteiro, da noção de detenção, que se limita a designar a situação da pessoa que, tendo a coisa fisicamente em seu poder, exerce os correspondentes poderes de facto.
Desta dissociação resulta que a posse pode ou não coabitar com a detenção, alternativas que cabem na formulação do art. 1252º do CC, ao prever a possibilidade de a posse ser exercida pessoalmente ou por intermédio de outrem.
Assim, a afirmação do requisito “corpus” da Usucapião basta-se “…com a pertença da coisa à esfera do domínio do possuidor, isto é, com um status quo que permita ao agente renovar, sempre que queira, a sua actuação material sobre a coisa…” (16).
Como se referiu, os poderes que compõem o corpus tanto podem ser exercidos directa e pessoalmente pelo próprio possuidor, como de forma indirecta por terceiros que ele habilite, não se exigindo, portanto, que esses poderes configurem um contacto material efectivo com a coisa- art. 1252º do CC; cfr. também o art. 1253, al c) do CC.
Ora, tem-se entendido que o exercício da posse por intermediário pode ser configurado em dois tipos de casos, conforme os poderes de facto sejam exercidos em cumprimento de um dever jurídico- legal ou negocial – ou no âmbito de um direito próprio que conceda o domínio físico da coisa (por exemplo, propriedade onerada com usufruto).
Interessa-nos, no caso concreto, aquele primeiro grupo de casos.
Trata-se de situações que podem ser exemplificadas “com relações dominadas pelos vectores autoridade versus subordinação, em que a obediência se afirma correspectiva do poder de dar ordens (comissários, trabalhadores subordinados, e serviçais em geral, como caseiros, jardineiros ou empregados domésticos)” (17).
Estão abrangidos, pois, aqui os casos de simples detenção, em que o detentor nada mais é do que a longa manus do possuidor, actuando sob a sua direcção.
É justamente o que sucede no caso concreto.
Qualquer um dos actos que foram sendo praticados no prédio da Autora (e dos seus antepossuidores) pelos sucessivos jornaleiros e caseiros são justamente actos de mera detenção que não põem em causa a posse daqueles exercida animus domini, já que os referidos “serviçais” são apenas a longa manus do possuidor, actuando sob a sua direcção.
E é também por causa disso – porque agem sob a direcção do possuidor- que facilmente se pode concluir que o animus correspondente a esse exercício é o animus de proprietário.
Nesta conformidade, tendo em conta todas as circunstâncias constantes da matéria de facto, tudo aponta no sentido de que tal animus se exerça em função do direito de propriedade e não em função de um outro qualquer direito.

Com efeito, decorre da matéria de facto provada que:

- Há mais de 30 e 40 anos a autora e seus antecessores têm água nos três prédios identificados em 1º a 3º, através de uma nascente que nasce num prédio superior ao dos réus, no monte ali existente e que é derivado por obra humana, através de mina, para o prédio dos réus.
- Nesse prédio dos réus, a água aflui a um tanque, do qual era derivada através de rego a céu aberto – aqueduto – para o prédio da autora, durante quatro dias por semana, a água entrava no prédio descrito em 1º, através de uma abertura existente no muro delimitativo das propriedades de autora e réus, indo por canal em pedra para um tanque de retenção de águas nesse terreno construído.
- Deste tanque, as águas eram aproveitadas, sem qualquer limitação ou restrição para rega e lima dos dois prédios rústicos da autora, bem como para as lides domésticas da casa de habitação.
- Fazendo há mais de 30 e 40 anos a sua normal utilização, ou seja, a sua captação e derivação e igualmente limpando o tanque e o rego para onde ela deriva, na propriedade dos réus, tendo os antepossuidores da Autora construído uma porta no muro divisório das propriedades de autora e réus, há mais de 40 anos, para a ele aceder mais facilmente, sempre que se justificava.
- Tudo isto levado a cabo pelos antepossuidores da autora, de dia e de noite, na frente de toda a gente, sem oposição de ninguém.
Todos estes actos e obras permitem-nos, assim, concluir que que efectivamente a Autora e seus anteposssuidores actuaram com a convicção de serem donos da água nos dias em questão (e não como detentores de um mero direito de servidão).
Na verdade, da factualidade apurada resulta que os antepossuidores da Autora actuava(m) de forma correspondente ao direito de propriedade, já que essa sua actuação desenvolvia-se de uma forma ampla, procurando aproveitar todas as utilidades que a água pode prestar.
Nessa medida, decorre, pois, da matéria de facto que a utilização que os mesmos davam à água não se restringia à possibilidade de efectuar um mero aproveitamento da água na estrita medida das necessidades do (seu) prédio dominante.
Aqui chegados, pode-se, assim, concluir que bem andou o Tribunal Recorrido em considerar que a actuação dos antecessores da Autora se efectuava com o “animus” correspondente ao direito de propriedade sobre as águas aqui em discussão.
Nessa medida, é de manter a redacção do ponto 19 da matéria de facto, improcedendo a argumentação dos Recorrentes.
E sendo assim, só nos resta concluir que se tem que considerar que se mostram preenchidos integralmente os aludidos requisitos legais que permitem à Autora ver reconhecido o direito de propriedade das águas, por usucapião.
Improcede, pois, esta argumentação dos Recorrentes.
Aqui chegados, fácil se torna concluir que também fica prejudicada a questão enunciada no ponto 2 do objecto do recurso.
Perguntava-se aí se estariam verificados os requisitos da Usucapião.
Conforme decorre do exposto, resulta da matéria de facto que os antecessores da Autora (e esta também) agiram com o animus de proprietários da água aqui em discussão.
E nessa medida, bem andou o Tribunal Recorrido em reconhecer o direito de propriedade sobre as águas à Autora, direito esse constituído por Usucapião.
Sendo esta a conclusão a que aqui também se chegou, importa, ainda neste âmbito, entrar na questão de saber se se pode verificar a caducidade do direito de propriedade sobre as águas pelo seu não uso.
Insistem os Recorrentes que tal extinção, pelo não uso, pode ocorrer no caso do direito de propriedade sobre as águas, atento o disposto nos arts. 298º, nº 3, 1397º e 1386º, nº 1, al. a) do CC.
Cumpre verificar se assim será.
O não uso, como causa de extinção própria dos direitos reais, vem previsto no citado art. 298º, nº 3 do CC no seguimento da norma que afasta a aplicação da prescrição à generalidade dos direitos de gozo.
O não uso consiste no não exercício reiterado do direito, sendo em geral indiferente a causa de abstenção do seu titular.
O prazo do não exercício, para gerar uma situação de não uso, é de 20 anos e conta-se segundo as regras da caducidade, por força da disposição expressa da parte final do nº 3 do art. 298º do CC.
No entanto, a extinção dos direitos reais pelo não uso só se verifica nos casos especialmente previstos na lei, segundo estatuição expressa no nº 3 do art. 298º do CC.
A análise do regime desses direitos mostra que está especialmente prevista a extinção por não uso dos direitos de usufruto, uso e habitação (art. 1476º, nº 1, al. c) e 1485º) e do direito de servidão (art. 1569º, nº 1, al. b) do CC).
Quanto ao direito de propriedade- que é o que aqui nos interessa- no Código Civil o não uso só vem especialmente previsto num caso.
Trata-se do art. 1397º do CC relativo a águas particulares que eram originariamente públicas (cfr. art. 1386º, nº1, al. d) do CC), cujo direito caduca se “não fizer delas uso proveitoso correspondente ao fim a que eram destinadas ou para que foram concedidas…”- situação que, como é bom de ver, não tem aplicação ao caso concreto, atenta a factualidade dada como provada.
Nesta conformidade, contrariamente ao defendido pelos Recorrentes, a verdade é que, não se integrando a presente situação em qualquer uma destas situações especialmente previstas, deve-se entender “… que, em geral, o não uso não é causa de extinção do direito de propriedade…” (18).
De qualquer forma, sempre se dirá que a alegada situação de não uso também não logrou ser provada pelos Recorrentes, pelo que, desde logo, sempre soçobraria a sua pretensão.
Improcede, pois, esta argumentação dos Recorrentes.
*
Entremos agora na apreciação do ponto 20 da matéria de facto provado.
Contende este ponto com a questão de saber se em data não concretamente apurada, posterior ao dia 13 de Dezembro de 1995, mas anterior ao dia 9 de Julho de 1996, (e) por forma (também) não concretamente apurada, os réus impediram a captação e derivação das águas de nascente para os prédios da autora.
Em bom rigor, este ponto da matéria de facto apenas teria interesse para o caso de se entender que o direito de propriedade sobre as águas se podia extinguir pelo não uso, ou para o caso de se ter entendido que o direito reconhecido por usucapião era o direito de servidão- o que, como já se viu, não sucede no caso concreto.
De qualquer forma, importa dizer que os Recorrentes têm razão quando defendem que a prova produzida, nomeadamente, a invocada pelo Tribunal Recorrido, é insuficiente para considerar provada a data mencionada no ponto 20 da matéria de facto.
Na verdade, procedendo-se à audição dos depoimentos das testemunhas M. B. e F. P., testemunhas que merecem, em geral, credibilidade, atenta a forma como prestaram os seus depoimentos e a razão de ciência, respectivamente, invocadas, pode-se constatar que nenhuma delas aponta a data indicada no ponto 20 da matéria de facto.
No entanto, decorre dos respectivos depoimentos que tal corte da água ocorreu necessariamente após a data de aquisição do prédio por parte dos RR., ou seja, em data posterior a Dezembro de 1995 (nesse sentido apontam os depoimentos prestados em geral, na medida em que referem que a água continuava a cair para os prédios da Autora, enquanto o Sr. P. N. não faleceu (em 2003)).
Nesse sentido, também se pronunciou a testemunha R. L., marido da Autora, que referiu que tal sucedeu quando o mesmo foi para o lar (o que terá ocorrido por volta do ano de 2000).
No que concerne ao depoimento da testemunha Manuel, embora ela também tenha assegurado ter-se verificado a interrupção da água, referiu que desconhecia a data em que tal ocorreu.
Finalmente, ainda nesta sede da ponderação dos depoimentos prestados quanto a esta factualidade, temos que concordar com o Tribunal Recorrido quando não atribui credibilidade ao depoimento prestado pela testemunha M. C., já que o mesmo, pela forma como o prestou, denotou falta de isenção em diversos pontos das suas declarações (designadamente, nas que contenderam com esta factualidade).
Nesta conformidade, resulta da prova produzida, e aqui reanalisada, que, em data posterior à aquisição do prédio pelos RR., o “trânsito“ das águas foi cortado, pelo que se pode considerar provado que tal interrupção ocorreu em data posterior a Dezembro de 1995 (data da referida aquisição).
Já quanto à data concreta em que tal corte da água terá ocorrido, nenhuma das testemunhas, conforme se referiu, logrou ser convincente.
Nesta conformidade, e quanto à data dessa ocorrência, restaria apenas a possibilidade de deduzir tal factualidade da carta enviada pelo Sr. Advogado do Sr. P. N.- ponto 21 da matéria de facto provada-, mas a verdade é que tal prova documental, atento o seu teor, se mostra insuficiente para fundar a convicção do Tribunal quanto a essa factualidade (também por falta de corroboração de outros elementos probatórios).
Do exposto, resulta, pois que deverá este ponto da matéria de facto ser alterado, retirando-se da sua redacção a menção da data limite superior aí mencionada (9 de Julho de 1996).
Assim, procedendo parcialmente a Impugnação dos Recorrentes, altera-se a redacção do ponto 20 nos seguintes termos:

20) Sucede que, em data não concretamente apurada, posterior ao dia 13 de Dezembro de 1995, por forma não concretamente apurada, os réus impediram a captação e derivação das águas de nascente para os prédios da autora.
Aqui chegados, importa ainda pronunciar-nos, neste ponto, sobre o aditamento da matéria de facto que os Recorrentes pretendiam efectuar, em substituição da matéria de facto que constava do ponto 20.
Assim, entendiam que, em substituição daquela matéria de facto, devia antes ser considerada provada a seguinte factualidade:

1- A propriedade dos Réus pertenceu a M. C. entre 07/11/1988 e 13 de Dezembro de 1995.
2- Durante esse período, por falta de manutenção do sistema hidráulico, as águas de nascente já não derivavam para os prédios da Autora pelo que, pelo menos desde 1988 que a Autora e seus antecessores não fazem proveito da água de mina que derivava do prédio dos Réus.
3- O antecessor da autora, seu avô, P. N., recusou contribuir para o conserto desse sistema hidráulico por não ter interesse nas águas.
4- Os Réus de forma alguma impediram a captação e derivação das águas de nascente para os prédios da Autora uma vez que quando a propriedade veio para os mesmos a 13 de Dezembro de 1995, já as águas da nascente não derivavam para os prédios da Autora.”

Ora, ponderada essa factualidade fica patente que:

- trata-se de matéria de facto que exige prova documental – ponto 1 (- v. ponto 10 da matéria de facto provada)- mostra-se junta apenas fotocópia simples da escritura de compra e venda datada de 7.11.1988 (fls. 67 e ss.) de onde decorre essa factualidade que se julga, aliás, ser pacífica entre as partes.
- trata-se de matéria de facto que parcialmente não foi sequer alegada pelas partes (e que quando muito poderia ter decorrido da prova produzida)- pontos 2 a 4.
- e trata-se de matéria de facto que merece resposta negativa- pontos 2 a 4 (na parte em que foi alegada), resposta essa que foi dada precisamente no ponto 20 da matéria de facto dada como provada.
Cumpre, aqui, fazer uma nota breve sobre a segunda realidade apontada, para dizer que vigora no nosso processo civil o princípio do dispositivo, segundo o qual incumbe às partes alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas (art. 5º, nº 1 do CPC).
Admite, no entanto, o legislador que, quanto aos factos complementares que resultem da instrução da causa, os mesmos possam ainda ser considerados pelo Juiz (art. 5º, nº 2, al. b) do CPC), desde que sobre eles tenham as partes tido possibilidade de se pronunciar.

Segundo o Prof. Lebre de Freitas (19), “… não é duvidoso que qualquer das partes possa manifestar-se no sentido de integrar o facto (complementar que resulte da instrução da causa) na matéria da causa, o que melhor se coaduna com o princípio do dispositivo, bem como com o exacto alcance do ónus da alegação… “, concluindo, no entanto, depois que o Juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pela partes, já que é o que “… impõe o princípio do dispositivo...” (20).

Ou seja, para que o Tribunal Recorrido (e o presente Tribunal) pudesse valorar os alegados factos complementares que alegadamente teriam decorrido da instrução da causa, teriam as partes (e nomeadamente, os Réus) que ter manifestado a intenção de integrar esses alegados factos (não alegados nos articulados) no processo, o que postula, “…a menos que haja confissão (no caso, teria que ser da Autora), a possibilidade de contraprova pela parte contrária àquela a que o facto aproveita…” (21)- cf. art. 5º, nº 2, al. b) do CPC, parte final).

Ora, compulsados os articulados apresentados pelas partes, e nomeadamente a contestação apresentada pelos Réus, constata-se que os factos que aqueles pretendem agora ver como provados não foram, em parte, alegados, em qualquer das fases processuais.
Aliás, refira-se que os factos que os Recorrentes pretendem agora que sejam integrados na matéria de facto provada nem sequer podem ser considerados como complementares de qualquer facto por si alegado.

Finalmente, importa dizer que, além de a pretensão dos Recorrentes violar o princípio do dispositivo atrás evidenciado, e de os factos alegados nem sequer constituírem factos complementares de algum facto por si alegado, também, por não ter sido requerida a sua valoração em sede de Audiência final pelos Réus, não foi concedida à Autora a possibilidade de se pronunciar sobre os mesmos – conforme exige a parte final da al. b) do art. 5º do CPC.
Por todo o exposto, tem que se concluir que o Tribunal Recorrido não podia (nem o presente Tribunal pode) valorar esses eventuais factos (não alegados) que os RR. pretendiam agora acrescentar à matéria de facto, pois que, como se disse, tratam-se de factos que não foram alegados pelas partes (nem nos articulados, nem de forma avulsa posteriormente), nem que as partes tivessem declarado querer deles beneficiar na sequência da instrução do processo, sendo que, além de tudo isso, sobre eles nem sequer foi cumprido o princípio do contraditório.
Não existem, assim, dúvidas que, do ponto de vista processual, é inadmissível, por violação do princípio do dispositivo (art. 5º, nsº 1 e 2, al. b) do CPC), a pretensão dos Réus/Recorrentes em pretender valorar factos complementares a outros alegados que, tendo resultado da instrução do processo, não tinham sido alegados no seu articulado, nem declararam pretender integrar na matéria da causa em sede de Audiência final.
Improcede, pois, por todas estas razões, a pretensão de aditamento da matéria de facto formulada pelos Recorrentes
*
Finalmente, importa recusar liminarmente a Impugnação deduzida quanto ao ponto 35, pois que, contrariamente, ao que defendem os Recorrentes, não existe qualquer contradição ou incongruência entre os factos aí mencionados e os factos dados como provados nos pontos 29 e 30.
Com efeito, as utilidades que se podem retirar de cada um dos meios de obtenção da água são diferentes.
Na verdade, como esclarece o Sr. Perito (a págs. 117) “as águas das minas podem ter como finalidade o consumo, rega, etc, visto que geralmente não se encontram contaminadas, enquanto as águas dos poços devido aos insecticidas que se infiltram nos solos podem tornar-se impróprias para consumo humano. As águas das minas no caso das regas, devido a quantidade, são acumuladas em reservatórios (tanques) e posteriormente usadas em rega, enquanto as águas dos poços geralmente são retiradas utilizando o sistema de bombagem directamente a partir de aspersores efectuam as regas ou também são encaminhadas para um reservatório…”.
Nessa medida, como mais à frente refere o Sr. Perito, “deve ter-se em consideração os custos de electricidade para a bomba funcionar e a manutenção das bombas e de todo o sistema. Assim, julga-se que para efectuar a cultura (e outros) dos prédios rústicos, a Autora tem de ter grandes quantidades de águas, não sendo viável a utilização de águas da rede pública nem do poço (furo), devido aos custos financeiros já mencionados…”.
Daqui decorre também que a utilidade das águas que provenham do abastecimento público, normalmente, nestas situações, destina-se apenas para fins domésticos (não sendo, em princípio, usual (dado o seu preço) a sua utilização em regas de cultivo) - v. o que ficou dito no relatório pericial por ex. fls. 12 (resposta ao quesito 3 dos RR.).
Nesta conformidade, inexiste qualquer contradição entre as respostas dadas aos pontos da matéria de facto aqui questionados.
Improcede, pois, esta parte da Impugnação.
*
Aqui chegados, e tendo-se procedido à ponderação dos elementos probatórios pertinentes à averiguação da matéria de facto aqui questionada, ou seja, tendo-se analisado de uma forma crítica e conjugada a prova produzida, da conjugação de todos estes elementos probatórios, a conclusão a que se tem chegar é justamente aquela a que chegou o Tribunal de Primeira Instância (excepto quanto ao ponto 20 da matéria de facto provada, cuja redacção se alterou, pelas razões explanadas atrás).
Na verdade, fazendo a análise crítica e conjugada dos aludidos elementos probatórios, não pode o presente Tribunal divergir do juízo probatório efectuado pelo Tribunal de Primeira Instância, quanto à restante matéria de facto que havia sido impugnada.

Assim, em face destes elementos probatórios, pode o presente Tribunal concluir que o juízo fáctico efectuado pelo Tribunal de Primeira Instância mostra-se conforme, em geral, com a prova produzida.
Na verdade, da valoração conjugada de todos estes elementos probatórios, resulta que, contrariamente ao que pretendem os Recorrentes, estes não lograram convencer o presente Tribunal, com excepção do aludido ponto 20, a alterar a impugnada matéria de facto pelas razões já amplamente expostas.
Aqui chegados, pode-se, assim, concluir quanto à presente Impugnação da matéria de facto que, à luz do antes exposto, e com base nos meios de prova antes citados, a convicção (autónoma) deste tribunal, em sede de reapreciação da matéria de facto é coincidente com a que formou o tribunal recorrido, não se vislumbrando qualquer razão para proceder à alteração do ali decidido, com excepção do que ficou referido quanto ao ponto 20 da matéria de facto provada, cuja redacção se alterou no sentido atrás exposto.
Conclui-se, pois, que compulsada a prova produzida, tendo em conta as regras do ónus da prova, não podem restar dúvidas que os demais factos constantes da matéria de facto devem manter-se inalterados, confirmando-se a análise crítica efectuada pelo Tribunal de Primeira Instância quanto a essa factualidade
Em consequência, mantendo-se a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal, apenas se altera o ponto 20 da matéria de facto provada no sentido já mencionado.
*
Aqui chegados, importa verificar se, apesar de se ter procedido àquela alteração, se deve manter a apreciação de mérito efectuada pela Decisão Recorrida, em face da restante matéria de facto dada como provada.
Já avançamos que não, pois que a alteração introduzida, em bom rigor, não contende, pelas razões explanadas, com o direito de propriedade sobre a água aqui reconhecido à Autora.
Na verdade, conforme resulta do exposto, este direito de propriedade sobre a água não é prescritível, nem susceptível de ser extinto, pelo seu não uso, pelo que seria indiferente para a solução do caso concreto a prova (que foi efectuada) de que foram os RR. quem impediram o acesso à água por parte da Autora (facto que ocorreu depois de Dezembro de 1995, data da aquisição do prédio por parte dos RR.).
Nesta conformidade, resultando da matéria de facto provada que estão integralmente demonstrados os requisitos da aquisição do aludido direito de propriedade sobre a água, por usucapião, não podia o Tribunal Recorrido (tal como aqui também se efectua) de deixar de reconhecer à Autora o direito aqui peticionado.
Pelo exposto, e sem necessidade de mais alongadas considerações, confirma-se a sentença proferida quanto a este ponto.
*
Tendo-se reconhecido à Autora o direito de propriedade sobre a água aqui em discussão, ficam obviamente prejudicadas todas as questões levantadas pelos Recorrentes que partiam do eventual reconhecimento de um direito de servidão.
Nessa medida, prejudicado o conhecimento dessas questões, importa avançar para a questão de saber se pode aqui reconhecer existir uma situação de abuso de direito, na modalidade de “venire contra factum proprium” (art. 334º do CC)
Segundo os Recorrentes, tal decorreria da alegação (que efectuaram nas presentes alegações e que resultaria da instrução do processo – v. depoimento da testemunha M. C.) de que o antecessor da Autora (o seu avô P. N.) teria renunciado ao direito das águas.
Ora, como é bom de ver, trata-se de factualidade que não se mostra provada e que, conforme decorre do já exposto, não pode aqui ser valorada (nem no sentido positivo, nem no sentido negativo).
Nesta conformidade, fácil se torna concluir que, por ausência de fundamento fáctico, a argumentação dos Recorrentes tem necessariamente de improceder.
Com efeito, não se mostra provado que o identificado antecessor da Autora tenha declarado a renúncia ao direito às águas.
Não se pode, assim, reconhecer existir qualquer situação de abuso de direito.
Improcede este fundamento do Recurso.
*
Entremos, finalmente, na última questão que os Recorrentes levantam, que contende com o direito de propriedade da água aqui reconhecido à Autora.
Entendem os Recorrentes que existe contradição entre a fundamentação de direito e a decisão aplicada, pois que não faz qualquer sentido que o Tribunal “a quo” considere que a mina se encontra num prédio de um terceiro e, ao mesmo tempo, condene os RR a desobstruírem a mesma, com o agravamento de sanção pecuniária compulsória em caso de incumprimento.
Alegam que tal condenação obrigaria os Réus a invadir propriedade alheia para fazer limpeza da mina em benefício da A..

Cumpre decidir.
Como decorre do exposto, reconheceu-se à Autora a aquisição originária da propriedade da água, pela via da usucapião (art. 1390º, n.º 1 e 2, do CC).
Tal água, cuja titularidade em termos de direito de propriedade se atribui à Autora, deriva das águas nascidas e situadas no monte descrito em 12) e que é por sua vez derivada para o prédio dos Réus e da Autora, do modo mencionado em 14) a 16) dos factos provados.
Com efeito, está provado que a água que cai no prédio da Autora deriva de uma nascente existente num prédio superior ao do dos Réus, e que depois deriva, através de mina, para o prédio dos Réus, afluindo a um tanque, do qual é, por sua vez, derivada através de rego, a céu aberto, para o prédio da Autora.

Estas conclusões decorrem da seguinte matéria de facto:

12) Sucede que há mais de 30 e 40 anos até data não concretamente apurada mas anterior a 9 de Julho de 1996, que a autora e seus antecessores têm água nos três prédios identificados em 1º a 3º, através de uma nascente que nasce num prédio superior ao dos réus, no monte ali existente.
13) E que é derivada por obra humana, através de mina, para o prédio dos réus.
14) Nesse prédio dos réus, a água aflui a um tanque, do qual era derivada através de rego a céu aberto – aqueduto – para o prédio da autora.
15) Durante quatro dias por semana, a água entrava no prédio descrito em 1º, através de uma abertura existente no muro delimitativo das propriedades de autora e réus, indo por canal em pedra para um tanque de retenção de águas nesse terreno construído.
16) Deste tanque, as águas eram aproveitadas, sem qualquer limitação ou restrição para rega e lima dos dois prédios rústicos da autora, bem como para as lides domésticas da casa de habitação.”
Nessa sequência, o Tribunal Recorrido, reconhecendo também a actuação ilícita dos RR. (corte do fornecimento da água), decidiu:

4) Condenar os réus a desobstruírem a mina, o tanque e o rego, para que a água aflua aos prédios da autora, no prazo máximo de dez dias a partir do trânsito em julgado da sentença.
5) Condenar os réus a absterem-se de impedir a limpeza da mina, bem como de praticarem quaisquer actos lesivos aos direitos de propriedade e posse da autora.”.
Fundamentou o Tribunal Recorrido da seguinte forma a sua decisão quanto a estas condenações:

“Ora, considerando a factualidade que resultou apurada, tais pedidos devem ser julgados procedentes, incluindo a limpeza na mina, que se encontra num prédio de um terceiro, decorrendo os mesmos do reconhecido direito de propriedade da autora sobre a água e dos factos praticados pelos réus perturbadores do mesmo.
Sucede que a autora não peticionou, como pedido principal, que fosse reconhecida a existência da servidão principal de aqueduto e da acessória – passar a pé para o prédio dos réus para limpar o tanque e o rego, pelo que improcede o pedido de condenação dos réus a se absterem de impedirem a limpeza do tanque e do rego, uma vez que os mesmos se encontram no seu prédio.”.
Em primeiro lugar, importa delinear, com precisão, o objecto da impugnação deduzida pelos Recorrentes.
Na verdade, conforme decorre do seu requerimento de interposição de recurso (e das conclusões), o único ponto que os Recorrentes põem em causa na condenação que lhes foi imposta é o seguinte:

“não faz qualquer sentido que o Tribunal “a quo” considere que a mina se encontra num prédio de um terceiro e ao mesmo tempo condene os RR a desobstruírem a mesma”.
Nesta medida, os Recorrentes não impugnam a parte remanescente das decisões proferidas, ou seja:

- a sua condenação a desobstruírem o tanque e o rego (situados no seu próprio prédio), para que a água aflua aos prédios da autora, no prazo máximo de dez dias a partir do trânsito em julgado da sentença (quanto ao prazo pedem o seu alargamento- o que aqui também será ponderado).
-a sua condenação a absterem-se de impedir a limpeza da mina, bem como de praticarem quaisquer actos lesivos aos direitos de propriedade e posse da autora.” (repare-se que os Recorrentes não põem em causa esta parte da condenação, pois que esta obrigação de “non facere” (de abstenção), imposta pela decisão, não implica que os RR. tenham que “invadir prédio alheio”; bem pelo contrário, a abstenção de impedir a limpeza da mina implica justamente que os RR. não entrem no prédio vizinho onde se situa a mina praticando actos que impeçam a limpeza).
Aqui chegados, julga-se que fica claro que os Recorrentes apenas se insurgem contra a obrigação que lhes foi imposta de desobstruir a mina que se situa no prédio superior (de terceiro) de onde deriva a nascente da água.
A objecção dos Recorrentes é a de que para fazer essa desobstrução tinham que violar o direito de propriedade do titular do aludido prédio superior.
Ora, ponderados os interesses aqui em jogo, julga-se que, efectivamente, o Tribunal Recorrido não podia ter condenado os Réus nesta obrigação justamente pelas razões invocadas pelos Recorrentes.
É certo que, como implicitamente parece decorrer do raciocínio do Tribunal Recorrido, os RR. ao obstruírem a mina já violaram o direito de propriedade do referido titular do prédio superior, pois que, para o fazer, terão necessariamente “invadido” o aludido prédio.
Mas a verdade é que tal violação não pode aqui ser reparada pela simples imposição da reposição da situação anterior, pois que, para que tal pudesse suceder, tinha o referido proprietário do prédio superior que ter intervindo na presente acção, pois que é ele o titular da referida relação jurídica controvertida (violação do seu direito de propriedade).
Nessa medida, quem tem direito à reposição da situação anterior e à eventual indemnização pela violação do seu direito de propriedade será aquele proprietário do prédio superior, e não a Autora.

Quanto a esta, poderiam aqui surgir outros direitos:

- direito de indemnização por ter ficado, de uma forma abusiva, privada do uso da água de que era proprietária;
- o direito de exigir ao proprietário do aludido prédio superior (do terceiro) que desobstruísse a mina (e a nascente)- sendo que, neste caso, este proprietário do prédio superior poderia, por sua vez, pedir aos RR. o custo das eventuais despesas que viesse a ter com a desobstrução da mina (já que esta era imputável à actuação abusiva dos RR. e violadora do seu direito de propriedade).
Julga-se que esta será a melhor forma de configurar os diversos direitos que aqui podem surgir.
Na verdade, importa atender às especialidades que decorrem da natureza do direito de propriedade sobre a água aqui reconhecido à Autora.
É que essa propriedade da água, que aqui é reconhecida, apenas abrange a água na fase em que a mesma permanece no prédio da Autora.
Como decorre do exposto, a água, no caso concreto, percorre um caminho que, além do prédio em que nasce, atravessa sucessivamente o prédio dos RR. e da Autora.
Ora, “os proprietários dos prédios inferiores nenhuns direitos podem invocar a essas águas na fase em que as mesmas permanecem e são aproveitadas no prédio superior” (22).

Assim, só depois de ultrapassarem os limites do prédio da nascente, e assim sucessivamente em relação a cada um dos prédios, é que, cada um dos proprietários quanto à água que se incorpore no respectivo prédio, poderão vir a ser titulares de qualquer direito que incida sobre aquela água.
Nesse sentido, enquanto as águas se mantiverem nos limites dos respectivos prédios, cada proprietário pode dela dispor livremente, não estando afastada, como ocorreu no caso concreto, a hipótese de a Autora- quanto á água incorporada no seu prédio- se arrogar proprietária dessa água, adquirindo a mesma por Usucapião.
No entanto, como decorre do exposto, essa propriedade apenas incide sobre aquela água que permaneça do respectivo prédio e enquanto ela aí se mantiver (23).
Já quanto àquela que se mantenha incorporada nos prédios superiores, a Autora não tem qualquer direito, a não ser aquele que decorre do facto de algum aproveitamento que venha a ser efectuado pelos donos dos prédios superiores possa ser considerado abusivo em relação à sua reconhecida propriedade (por ex. quando dolosamente o proprietário do prédio superior corte o fornecimento da água por razões de má vizinhança) (24).
De todas estas considerações, decorre, assim, que o reconhecimento da propriedade da água (que se encontre no prédio da Autora) não implica que esse reconhecimento se estenda a qualquer uma das fases anteriores do percurso que tal água tenha tido desde a sua nascente.
Nessa medida, vem-se assinalando que a propriedade da água é um “direito de natureza precária ou eventual” ou um “direito de fraca consistência” (25), pois que tal direito poderá vir a ser restringido por um qualquer subsequente aproveitamento justificado (não abusivo) que os proprietários dos prédios superiores venham a efectuar (art. 1391º do CC).
Tudo isto significa, no fundo, que as águas devem ser consideradas elementos componentes do solo ou subsolo do respectivo prédio, onde brotam, onde caiam, ou onde correm, enquanto não transpuserem, abandonadas, os limites desse mesmo prédio, pelo que reconhecido o direito de propriedade que incida sobre as mesmas, os poderes inerentes a essa situação são aqueles que resultam do respectivo direito de propriedade (arts. 1305º, 1311º e 1348º do CC).
Ou seja, como se referiu, tratando-se de água que percorre vários prédios, em cada um dos prédios passam a ser componentes do respectivo prédio, podendo surgir assim para cada um dos proprietários dos prédios, um direito de propriedade ou um outro direito (dependendo do respectivo “animus”) “com um objecto diferente” (águas diferentes) (26).
Ora, por assim ser, é que se pode perceber também que, no que concerne à mina situada no prédio de terceiro, o Tribunal não poderia impor aos RR. que desobstruíssem aquela mina, por se tratar de uma obrigação que extravasa os poderes inerentes à qualidade de proprietário do prédio de que são titulares os RR..
Na verdade, no que concerne àquela mina, o único detentor dos poderes de desobstrução da mina é, obviamente, o proprietário do prédio em que tal mina se mostre implantada (arts. 1305º, 1311º e 1348º do CC).
Com efeito, “a afirmação de que o proprietário goza de modo pleno dos seus direitos, significa que, acima deles, não existe qualquer outro poder… O direito é exclusivo (jus excluendi omnes allios), porque o proprietário pode exigir que os terceiros se abstenham de invadir a sua esfera jurídica, quer usando ou fruindo a coisa, quer praticando actos que afectem o seu exercício…” (27).
“Não pensamos ser necessário evidenciar a vertente negativa da exclusão que qualquer direito real de gozo comporta em relação a terceiros. (…) Porque ao atribuir um conteúdo de aproveitamento de uma coisa a uma pessoa determinada a ordem jurídica exclui simultaneamente que esse aproveitamento se faça por outras pessoas sem a autorização do titular do direito…” (28).
Ora, esta exclusividade só encontra algumas limitações em sede de relações de vizinhança, restrições essas que se encontram genericamente previstas nos arts. 1344º e ss. do CC – isto além, claro, das restrições de natureza pública.

Sucede que, percorrendo todas essas limitações de natureza privada, não se lobriga que a decisão proferida se possa enquadrar em qualquer um desses preceitos legais (por ex. está previsto no art. 1349º do CC o direito de passagem forçada momentânea, mas tal direito só surge quando tal passagem seja necessária para “reparar algum edifício ou construção, (e) for indispensável levantar andaime, colocar objectos sobre prédio alheio, fazer passar por ele os materiais para a obra ou praticar outros actos análogos” (nº 1) ou para “apoderar-se de coisas suas que acidentalmente nele se encontrem (nº 2)- tudo situações que aqui não têm aplicação).

Impor, assim, aos RR. que sejam eles os obrigados a proceder a essa desobstrução – ainda que a obstrução tenha sido promovida por eles- implicaria uma renovada violação do direito de propriedade do aludido terceiro, que, como se referiu, nestas situações tem um poder exclusivo sobre o seu prédio (e sobre a mina nele existente), carecendo, qualquer invasão daquele, da respectiva autorização do terceiro, enquanto titular do direito de propriedade.

Nessa medida, afigura-se-nos que tal condenação não pode aqui ser imposta, sem que o aludido terceiro proprietário tenha tido qualquer intervenção no presente processo, ou sem que o mesmo tenha previamente autorizado essa intervenção no seu prédio (ou, em caso de não autorização injustificada, sem que essa falta de autorização tenha sido suprida judicialmente).
Trata-se, aliás, de solução que sempre decorreria da necessidade de fazer cumprir o princípio do contraditório (art. 3º do CPC) sobre a factualidade aqui em discussão, pois que o aludido Terceiro não se pronunciou sobre a mesma.
Nesta conformidade, e por todo o exposto, julga-se, tendo em conta o enquadramento jurídico acima descrito, a pretensão da Autora só poderá ser eventualmente vir a ser acolhida quando, do lado passivo, surja o titular do direito controvertido (direito de propriedade sobre a referida mina que se pretende ver desobstruída) que é o sujeito processual que verdadeiramente tem interesse em contradizer (ou satisfazer) aquela pretensão de desobstrução da Autora (cfr. art. 30º do CPC).

Procede, pois, esta parte do Recurso, entendendo-se que os RR. não podem ser condenados a desobstruir a identificada mina que se situa em prédio de que não são proprietários (sem que previamente tenha sido obtida autorização do proprietário terceiro).
*
*
Aqui chegados, importa ainda que nos pronunciemos sobre a questão que contende com a acção reconvencional.
Discute-se nessa acção, entrecruzada com a acção primitiva, um outro objecto processual respeitante ao direito de servidão de passagem já anteriormente reconhecido à Autora, por sentença transitada em julgado.
Levantam os RR. a questão de saber se se deve entender que tal servidão entretanto deve ser considerada extinta, por se ter tornado desnecessária a sua utilização.
Defendem os Recorrentes que tal decorre da matéria de facto dada como provada.
Entendeu o Tribunal recorrido que não.

Cumpre decidir.
De harmonia com o disposto no artigo 1543º do CC a servidão é o encargo imposto num prédio, chamado dominante, em proveito exclusivo de outro pertencente a dono diferente, designado por serviente.
As servidões podem ser constituídas por contrato, testamento, usucapião ou destinação de pai de família, bem como, as legais, por sentença judicial ou decisão administrativa, conforme os casos (artigo 1547º), e podem ter por objecto quaisquer utilidades, ainda que futuras ou eventuais, susceptíveis de ser gozadas por intermédio do prédio dominante, mesmo que não aumentem o seu valor (artigo 1544º).
Por implicarem uma limitação ao pleno exercício do direito de propriedade sobre o prédio serviente, a lei concede ao titular deste uma panóplia de direitos potestativos com vista à “consolidação” do seu direito, entre os quais se inclui o direito de preferência na alienação do prédio encravado (artigo 1555º) e o direito de exigir a mudança da servidão (artigo 1568º).
Um outro afloramento da mesma ideia é a extinção por desnecessidade da servidão constituída por usucapião, prevista no n.º 2 do artigo 1569º.
Estabelece-se neste preceito legal que as “servidões constituídas por usucapião serão judicialmente declaradas extintas, a requerimento do proprietário do prédio serviente, desde que se mostrem desnecessárias ao prédio dominante».
Considerou-se que, sendo as mesmas impostas por factos, “…uma vez desaparecidos, ou ultrapassados a latere, os factos que lhes deram origem, nenhuma reserva se levanta contra a extinção da servidão” (29).

Ou seja, “deixando de se verificar o pressuposto legal da sua constituição- a necessidade -, deixa de se justificar, à luz do princípio da proporcionalidade, a sua manutenção, em face do sacrifício que importa para o titular do prédio serviente” (30).

Exige-se, porém, para o efeito, não só o requerimento do proprietário do prédio serviente, como uma decisão judicial.
Trata-se, pois, de um direito potestativo que é atribuído ao titular do prédio serviente que tem de ser judicialmente exercido (direito potestativo extintivo de exercício judicial).
Quanto à desnecessidade propriamente dita, a perda da utilidade para o prédio dominante “não se afere em função da conveniência ou vontade do titular da servidão, mas objectivamente em função das necessidades do prédio dominante. A desnecessidade liga-se, assim, directamente, ao tipo legal do direito de servidão.
Justamente por que o tipo legal do direito de servidão supõe a necessidade para a válida constituição do mesmo, sob pena de violação da tipicidade, a desnecessidade é sempre superveniente” (31).
A desnecessidade, para produzir a extinção da servidão, tem, assim, que resultar de uma alteração das circunstâncias verificada em relação ao prédio dominante após a constituição da servidão.
Por outro lado, para que se possa afirmar a desnecessidade, aquela perda de utilidade para o prédio dominante tem de ser total. Na verdade, a perda apenas parcial mantém, em princípio, a utilidade do prédio serviente ao prédio dominante, pelo que não ocorre, nestes casos, a desnecessidade.
Em termos jurisprudenciais, tem-se também defendido, por exemplo, que “…I - A extinção da servidão de passagem por desnecessidade a que alude o art. 1569.º, n.º 2 do CC deve ser objectiva e actual. II - Compete ao requerente da extinção da servidão a prova dos elementos indispensáveis ao juízo da desnecessidade e da proporcionalidade nos termos do art. 342.º, n.º 1, do CC. III - E para esse efeito não basta demonstrar que o prédio dominante pode utilizar o caminho de público que entretanto foi aberto, sendo necessário demonstrar que esse caminho proporciona igual ou semelhantes condições de utilidade e comodidade de acesso ao prédio dominante, para se aferir da desnecessidade da servidão. IV - E no caso em apreço, o caminho da servidão continua a ser o percurso que propicia condições de trânsito mais regulares e cómodas, porque o percurso pelo caminho público tem como agravantes o aumento da inclinação e a diminuição dos raios de curvatura, que dificultam o trânsito de pessoas animais e veículos, principalmente quando estes transitam carregados e o piso se apresente molhado, em consequência de chuva ou gelo e nos meses de Inverno ocorre por vezes, a formação de geada e de gelo no local onde se situa o referido caminho público.” (32).
Foi essa, também, a posição assumida pelo Tribunal Recorrido quando refere que o “… que a lei, no fundo, pretende é uma ponderação actualizada da necessidade de manter o encargo sobre o prédio, deixando ao prudente arbítrio do julgador avaliar, se no momento considerado e segundo uma prognose de proporcionalidade subjacente aos interesses em jogo haverá ou não outra alternativa que, sem ou com um mínimo de prejuízo para o prédio dominante, possa ser eliminado o encargo incidente sobre o prédio serviente. O que se torna necessário é garantir uma acessibilidade em termos de comodidade e regularidade ao prédio dominante, sem onerar desnecessariamente o prédio serviente (vide ac. STJ, de 14.11.2003, in www.dgsi.pt).

Acresce ainda que como consta do Acórdão da Relação do Porto de 27.09.2011, in www.dgsi.pt, “Seguro é, quanto às servidões de passagem, que para a sua extinção por desnecessidade não basta que, para além da passagem objecto da servidão, exista outra (ou outras) via de acesso do prédio dominante para a via pública, pois que para tal será necessário demonstrar (e o ónus de prova de tal matéria incumbe ao proprietário do prédio serviente, enquanto facto constitutivo da pretensão de extinção da servidão, nos termos do artigo 342º, nº 1, do Código Civil) que tal outro acesso oferece condições de utilização similares ou, pelo menos, não desproporcionalmente agravadas (no confronto com a vantagem advinda ao prédio serviente pela extinção do encargo) ”.
Ora, é este juízo de ponderação (em termos de juízo de proporcionalidade) entre as vantagens advindas ao prédio serviente com a extinção da servidão e a perda de vantagens (comodidade e regularidade) daí advindas ao prédio dominante que aqui tem de ser efectuado, em termos actualizados.

Decorre da matéria de facto, considerada como provada, o seguinte:

- Por sentença proferida no processo nº 297/96 do extinto 2º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Barcelos, confirmada pelo acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, em 31 de Janeiro de 2011, foi reconhecido que a Autora, e seus antepossuidores, têm direito a uma servidão de passagem pelo prédio dos Réus, situado no limite poente, por via da usucapião, para acesso aos prédios descritos nos artigos 1º a 3º, na sequência da colocação de uma cancela por parte dos Réus, que impedia a Autora e antecessores de se servir do dito acesso.
- Em data não concretamente apurada, os Réus resolveram impedir novamente a passagem, colocando lenha e outros objectos no carreiro.
- Tanto o prédio urbano como os rústicos da Autora sempre tiveram acesso à via pública através da “Rua da Igreja”.
- Actualmente esse acesso à via pública também será possível pela parte Norte dos prédios rústicos a partir de novo arruamento denominado “Rua Nova”.
- O prédio da Autora vai em socalco/declive até à rua, tendo na sua extrema uma cota superior em cerca de 1 metro, o que implicaria sempre a necessidade de realizar obras, atento o desnível acentuado.
Ora, procurando efectuar o referido juízo de ponderação (em termos de proporcionalidade), a verdade é que não se pode retirar destes factos qualquer conclusão no sentido de que deles possa decorrer que a servidão predial de passagem existente se tenha tornado desnecessária no sentido exigido pelo legislador.
Incumbia, aliás, aos Réus o ónus de provar que o acesso, entretanto criado, podia oferecer condições de utilização similares ou, pelo menos, não desproporcionalmente agravadas (no confronto com a vantagem advinda ao prédio serviente pela extinção do encargo), ónus que aqueles não lograram cumprir.
Nesta conformidade, sabendo-se que a mera existência de outra comunicação com a via pública não permite concluir que, através dela, se possam alcançar as mesmas utilidades que a servidão proporciona, nomeadamente tendo em conta o seu modo de exercício, fica evidente que, na ausência daquela prova, bem andou o Tribunal Recorrido em considerar que os RR. não lograram provar que o novo acesso tornava desnecessária a servidão anteriormente constituída e reconhecida (em 2011).
Na verdade, em face da referida factualidade, fica claro que o novo acesso não assegura à Autora as mesmas utilidades que aquela obtém através da servidão predial existente.
Além disso, não se verifica, por efeito daquele novo acesso, a perda total de utilidade da Servidão para o prédio dominante, conforme dissemos ser de exigir para preencher o requisito da desnecessidade.
Sendo assim, efectuando o referido juízo actualizado de ponderação (em termos de proporcionalidade) é forçoso concluir que não se justifica a extinção da servidão, pelo que o recurso terá de improceder.
Conclui-se, pois, sem necessidade de mais alongadas considerações, pela improcedência desta argumentação dos Recorrentes.
*
Uma última nota para a questão do prazo fixado pelo Tribunal para o cumprimento das obrigações impostas aos RR. (prazo de dez dias).
Defendem os RR. que tal prazo deve ser alargado (no pressuposto que também teriam de desobstruir a mina situada no prédio de terceiro).
Conforme resulta do exposto, pelo presente Acórdão, as obrigações (condenações) impostas aos RR. ficaram limitadas:

-a desobstruírem o tanque e o rego (situados no seu próprio prédio), para que a água aflua aos prédios da autora, no prazo máximo de dez dias a partir do trânsito em julgado da sentença (4).
-a absterem-se de impedir a limpeza da mina, bem como de praticarem quaisquer actos lesivos aos direitos de propriedade e posse da autora (5).
-a procederem à remoção da lenha e restantes objectos do caminho de servidão que onera o seu prédio a favor do prédio da autora (6).
-e ainda ao pagamento, a título de sanção pecuniária compulsória, no valor de € 75,00 (setenta e cinco euros), por cada dia de atraso no cumprimento do ordenado em 4) e 6).
Ora, se são estas as obrigações impostas, julga-se que o prazo de dez dias, a contar do trânsito da decisão, é um prazo razoável e suficiente para cumprir aquelas ditas condenações.
*
*
III- DECISÃO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar:

-o Recurso interposto pelos Réus parcialmente procedente, e em consequência, decidem alterar a decisão do Tribunal Recorrido nos seguintes termos:

a) julgar a presente acção parcialmente procedente e, em consequência:
1) Declarar que a Autora é proprietária dos dois prédios rústicos e do prédio urbano, identificados nos artigos 1º, 2º e 3º da petição inicial.
2) Declarar que pertence à Autora durante quatro dias na semana a água de nascente que aflui ao prédio dos Réus e que deste é derivada por aqueduto para os prédios da Autora.
3) Condenar os Réus a reconhecer os aludidos direitos.
4) Condenar os Réus a desobstruírem o tanque e o rego, para que a água aflua aos prédios da Autora, no prazo máximo de dez dias, a partir do trânsito em julgado da presente decisão.
5) Condenar os Réus a absterem-se de impedir a limpeza da mina, bem como de praticarem quaisquer actos lesivos aos direitos de propriedade e posse da Autora.
6) Condenar os Réus a procederem à remoção da lenha e restantes objectos do caminho de servidão que onera o seu prédio a favor do prédio da Autora, no prazo de dez dias, a partir do trânsito em julgado da presente decisão.
7) Condenar os Réus, a título de sanção pecuniária compulsória, no valor de € 75,00 (setenta e cinco euros), por cada dia de atraso no cumprimento do ordenado em 4) e 6).
8) No mais, absolver os Réus dos pedidos.
*
9) Julgar totalmente improcedente a reconvenção formulada, absolvendo a Reconvinda dos pedidos.
*
Custas pelos Recorrentes e pela Recorrida, na proporção de 4/5 e 1/5, respectivamente (artigo 527.º, nº 1 do CPC).
*
Guimarães, 15 de Março de 2018


(Dr. Pedro Alexandre Damião e Cunha)
(Dra. Maria João Marques Pinto de Matos)
(Dr. José Alberto Moreira Dias)

1. Conforme decorre do despacho proferido, em sede própria, a ampliação do Recurso não foi admitida, por não estarem verificados os respectivos requisitos previstos no art. 636º do CPC. Entendeu-se aí que reportando-se aquela ampliação do Recurso a um pedido formulado pela Autora que foi julgado improcedente, tal decisão só podia ser reapreciada, “… mediante impugnação autónoma ou interposição de Recurso Subordinado”- e não “através da mera ampliação do âmbito objectivo do Recurso interposto pela parte vencida”- A. Geraldes, in Recurso no NCPC”, pág. 102. Nessa medida, as questões aí levantadas não constituirão objecto do presente Recurso.
2. Abrantes Geraldes, In “Recursos no Novo Código de Processo Civil“, pág. 133;
3. v. Ac. do Stj de 24.9.2013 (relator: Azevedo Ramos) publicado na DGSI e comentado por Teixeira de Sousa, in “Cadernos de Direito Privado”, nº 44, págs. 29 e ss.;
4. Pode inclusivamente, verificados determinados requisitos, ordenar a renovação da prova (art. 662º, nº2, al a) do CPC) e ordenar a produção de novos meios de prova (al b));
5. Abrantes Geraldes, In “Recursos no Novo Código de Processo Civil“, pág. 266 “ A Relação actua como Tribunal de substituição quando o recurso se funda na errada apreciação dos meios de prova produzidos, caso em que se substitui ao tribunal de primeira Instância e procede à valoração autónoma dos meios de prova. Confrontada com os mesmos elementos com que o Tribunal a quo se defrontou, ainda que em circunstâncias não totalmente coincidentes, está em posição de formular sobre os mesmos um juízo valorativo de confirmação ou alteração da decisão recorrida… “;
6. Miguel Teixeira de Sousa in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, Lex, 1997, p. 348.
7. Cfr. acórdãos do STJ de 19/10/2004, CJ, STJ, Ano XII, tomo III, pág. 72; de 22/2/2011, CJ, STJ, Ano XIX, tomo I, pág. 76; e de 24/9/2013, disponível em www.dgsi.pt.
8. Cfr. Ac. do S.T.J. de 3/11/2009, disponível em www.dgsi.pt.
9. Segundo Ana Luísa Geraldes, in “ Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto” (nos Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas) Vol. I, pág. 609 “ Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte… “ ; no mesmo sentido, v. Miguel Teixeira de Sousa, in “Blog IPPC” (jurisprudência 623- anotação ao ac. da RC de 7/2/2017) onde refere: “É verdade que os elementos de que a Relação dispõe não coincidem -- nomeadamente, em termos de imediação -- com aqueles que a 1.ª instância tinha ao dispor para formar a convicção sobre a prova do facto. No entanto, isso não significa que, como, aliás, o STJ tem unanimemente entendido, nem que a Relação esteja dispensada de formar uma convicção própria sobre a prova do facto, nem que funcione uma presunção de correcção da decisão recorrida. Importa, pois, verificar quais os elementos que devem ser considerados pela Relação para a formação da sua convicção sobre a prova produzida. Quanto a estes elementos, há uma diferença entre a 1.ª instância e a Relação: a 1.ª instância apenas dispõe dos meios de prova; a Relação dispõe daqueles meios e ainda da decisão da 1.ª instância. Como é claro, esta decisão, cuja correcção incumbe à Relação controlar, não pode ser ignorada por esta 2.ª instância. É neste sentido que se pode afirmar que, no juízo sobre a confirmação ou a revogação da decisão da 1.ª instância, a Relação pode utilizar um critério de razoabilidade ou de aceitabilidade dessa decisão. Este critério conduz a confirmar a decisão recorrida, não apenas quando for indiscutível que a mesma é correcta, mas também quando aquela se situar numa margem de razoabilidade ou de aceitabilidade reconhecida pela Relação. Correspondentemente, a decisão deve ser revogada se a mesma se situar fora desta margem.”;
10. Cfr. Antunes Varela, anotação ao acórdão do STJ, de 15.01.81, na RLJ, ano 115º, pág. 219.
11. Servidões Prediais, separata do BMJ, 64, Lisboa, 1957, pág. 10 citado pelo ac. da RG 22.2.2011 (relator: Manuel Bargado), in dgsi.pt.
12. Segundo José Cândido de Pinho, in “As Águas no Código Civil”, págs. 102 e 103, “Justos títulos são, agora, tantos os que, legitimamente, se podem denunciar quanto à aquisição da propriedade de coisas imóveis, ou seja, o contrato, a sucessão por morte, a usucapião, a acessão e demais modos previstos na lei (artigo 1316º), como os que legitimam a constituição de servidões, isto é, o contrato, testamento, usucapião, destinação do pai de família, sentença e decisão administrativa (artigo 1547º).
13. Cfr., assim, o Ac. do STJ de 20.10.2010 e da RG de 22.2.2011 (relator: Manuel Bargado), in dgsi.pt. Com interesse, v. também, o ac. da RG de 6.2.2014 (relator: Helena Melo), in dgsi.pt.
14. Vide, neste sentido, por todos, A. Varela/ P. Lima, in “ Código Civil Anotado “, III vol., pág. 5. Perfilhando já uma concepção objectivista da posse, mas em boa verdade, sem prescindir do aludido «animus possidendi» ou «animus domini», vide, por todos, L. CARVALHO FERNANDES, in “Lições de Direitos Reias”, págs. 289-291 e L. Menezes Leitão, in “Direitos Reais”, págs. 122 a 124; Rui Pinto/Cláudia Trindade, in “CC anotado” (Coord. Ana Prata), Vol. II, págs. 18 defendem, por seu lado, que “na nossa opinião, no CC português está consagrada uma concepção subjectivista moderada…”. V. ainda, Rui Ataíde, in “Posse e detenção”, págs. 21 e ss. que defende, após explanar todas as teorias doutrinárias portuguesas, que “a única intenção relevante para a aquisição da posse consiste em se querer obter o controlo material da coisa. Nesta medida, o animus é imanente ao corpus, nada lhe acrescentando, pois não cabe admitir que alguém possa constituir um poder de controlo sobre uma coisa sem o querer adquirir…”.
15. Cfr. Orlando de Carvalho, estudo intitulado Introdução à Posse, publicado na RLJ, anos 122º a 124º, pág. 105. No mesmo sentido, Durval Ferreira, in “Posse e Usucapião”, pág. 157.
16. Rui Mascarenhas Ataíde, in “Posse e detenção”, pág. 9.
17. Rui Mascarenhas Ataíde, in “Posse e detenção”, pág. 14.
18. Carvalho Fernandes, in “Lições de direitos reais”, pág. 267/8. No mesmo sentido, José Alberto Vieira, in “Direitos Reais”, págs. 403 a 405: “em apenas um preceito legal se prevê a extinção da propriedade por não uso, no art. 1397º. Isto quer dizer, que em todos os outros casos a propriedade não está sujeita a extinção pelo não uso…” (pág. 405); neste sentido, também, Júlio Gomes, in “Comentário ao CC-parte geral”, pág. 741/2.
19. In “CPC anotado”, Vol. I, págs. 13 e ss.;
20. v. pág. 18 da citada obra.
21. Lebre de Freitas, “CPC anotado”, Vol. I, pág. 18; Do mesmo autor, no mesmo sentido, v. “Introdução ao processo civil”, pág. 166, e nota 33B onde refere que: “… a revisão de 1995-1996 tornou também possível a consideração de factos principais que, completando ou concretizando os alegados nos articulados, se tornem patentes com a instrução da causa, mas tão-pouco na introdução desses novos factos pode o juiz substituir-se às partes; a parte neles interessada, isto é aquela que, a serem verdadeiros os factos, beneficia com o efeito constitutivo, impeditivo, modificativo ou extintivo que deles decorra, deverá manifestar a vontade de deles se aproveitar, alegando-os (hoje: art. 5-2-b))…”;
22. Tavarela Lobo, in “Manual de águas”, Vol. II, pág. 15.
23. Como refere Durval Ferreira, in “Águas Subterrâneas e de nascentes”, pág. 27 “(a diferença entre o proprietário do prédio superior e o proprietário do prédio inferior) é que, cada um, como proprietário dum prédio, só pode ser titular dum direito de propriedade e gozar dos poderes respectivos (do uso, fruição e transformação) relativamente ao que corporeamente se contem nos limites do respectivo prédio (arts. 1302º, 1305º e 1344º do CC)”.
24. O dono do prédio pode servir-se da fonte ou nascente que nele haja e dispor do seu uso livremente, mas essa liberdade “tem como limites as restrições previstas na lei e os direitos que terceiro haja adquirido ao uso da água por título justo (art. 1389º). As ditas restrições são, especialmente, as previstas nos arts. 1392º, 1557º e 1558 e, genericamente, as resultantes da ilegitimidade do abuso de direito (art. 334) …”- Durval Ferreira, pág. 97.
25. Tavarela Lobo, In “Manual do direito das águas”, pág. 18.
26. V. Durval Ferreira, in “Águas subterrâneas e de nascentes”, págs. 82 a .
27. A. Varela/ P. Lima, in “CC anotado”, Vol. III, pág. 93 a 95.
28. José Alberto Vieira, in “Direitos Reais”, pág. 582.
29. A. Varela/ P. Lima, in “Código Civil Anotado”, Vol. III, p. 676.
30. Rui Pinto/Cláudia Trindade, in “CC anotado” (Coord. Ana Prata), Vol. II, pág. 446.
31. José Alberto Vieira, in “Direitos Reais”, págs. 739-740. No mesmo sentido, Oliveira Ascensão, in “Direito Civil. Reais”, p. 440, L. Carvalho Fernandes, in “Lições de Direitos Reias”, pág. 474 e Menezes Leitão, in “Direitos Reais”, pág. 421.
32. ac. do Stj de 1.3.2012 (relator: Tavares da Paiva), in dgsi.pt.