Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
909/19.8T8FAF.G1
Relator: SANDRA MELO
Descritores: INTERPRETAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO
VONTADE REAL DO DECLARANTE
DECLARATÁRIO NORMAL
ESSENCIALIDADE
ERRO DECLARANTE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/22/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (da relatora):

.1-- Na interpretação dos negócios jurídicos prevalece, em princípio, a vontade real do declarante, sempre que for conhecida pelo declaratário (nº 2 do artigo 236º do Código Civil;
.2-- Não havendo esse conhecimento, “a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele” (nº 1 do mesmo preceito).
.3 -- Se o negócio for formal, importa ainda atender que a declaração não pode valer com um sentido que não tenha o mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, como decorre do disposto no nº 1 do artigo 238º do Código Civil.
.4- Se houver divergência entre o declarado e a vontade real do declarante e a mesma não for ostensiva, nem o declaratário a conhecer, ser-lhe-á aplicável o regime previsto no artigo 247º do Código Civil, o qual permite a arguição da sua anulabilidade, caso se verificarem os demais pressupostos previstos na lei: que para o declarante seja essencial o elemento sobre o qual incidiu o erro, de tal forma que, se deste se tivesse apercebido, não teria celebrado o negócio; e que o declaratário conheça ou não deva ignorar a essencialidade do elemento sobre o qual incidiu o erro para o declarante.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I. Relatório

Autora e Apelante:
R. M., casada, residente na Rua …, n.º …, da freguesia de … Fafe,

Ré e apelada:
X - DISTRIBUIÇÃO ALIMENTAR, S.A., NIPC ………, com sede na Rua … LISBOA
(A 2ª Ré, Y Portugal – Corretores de Seguros, S.A., foi beneficiária de declaração de desistência do pedido que foi homologada)
Interveniente acessória passiva: Ré W – Companhia de Seguros, S.A..

Autos de: apelação em ação declarativa de condenação com forma comum

A Autora peticionou:
a condenação da Ré a pagar-lhe, a título de danos patrimoniais e danos não patrimoniais, a quantia de € 35.000,00 e a ministrar diretamente à Autora, no futuro, todo o tipo de tratamentos, internamentos, acompanhamento médico e medicamentoso, suportando, ainda, os custos e encargos com as intervenções cirúrgicas, internamento ou a suportar os respetivos custos e encargos e ainda os custos com os necessários transportes, sendo tais quantias acrescidas de juros à taxa legal, desde a data da citação e custas, até integral e efetivo pagamento.
Alegou, para tanto e em síntese, que escorregou e caiu junto à zona do expositor de fruta do supermercado “X”, onde o piso se encontrava húmido e escorregadio, o que lhe provocou danos cujo ressarcimento exige.
A Ré invocou a extinção da obrigação de pagamento do montante peticionado em face de declaração de quitação assinada pela Autora e impugnou a maior parte da factualidade invocada na petição inicial. Requereu a intervenção principal da seguradora, a qual veio a ser admitida a título acessório.
A Autora respondeu, em súmula, aceitando que recebeu da Ré a quantia de € 218,10, relativa ao reembolso de despesas suportadas pela A. resultantes do acidente relatado, e que assinou a declaração a que se refere a Autora, com, além do mais o seguinte teor: ““Declara ainda considerar-me totalmente ressarcido pelas despesas que apresento e sem direito a qualquer outro recebimento, dando a sociedade X – Distribuição Alimentar, S.A. como livre e desobrigada de toda e qualquer responsabilidade presente e futura”.
Afirmou, no entanto, que se sentiu “insegura” em assinar tal documento, que pretendia reclamar danos mais tarde, pelo que enviou um email ao mediador de seguros “a fim de pedir esclarecimentos sobre o teor de tal documento, pois não pretendia dar-se como integralmente ressarcida de todos os danos, apenas daquela mencionada quantia”, mais pedindo “a retificação do teor daquele recibo, no sentido de ser eliminada a expressão “sem direito a qualquer outro recebimento”.
A Y respondeu-lhe que se tratam de procedimentos implementados pelo Grupo M. J. para o reembolso dos danos e que eram imprescindíveis para a realização da transferência bancária” e que “Em consequência da resposta supra referida …, a A. assinou e enviou o referido recibo de quitação da quantia que depois viria a receber, de € 218,10”, com isso não tendo a intenção de prescindir do ressarcimento dos demais danos.

Foi proferido saneador-sentença que julgou improcedente a ação e absolveu a Ré do pedido.

É desta sentença que apela a Autora, apresentando as seguintes
conclusões:

I - Sobem os presentes autos à superior consideração de V. Exas., atenta a decisão do Tribunal “a quo” proferida em sede de audiência prévia, que decidiu demérito pela improcedência da acção, por força da análise que fez do documento junto aos autos denominado “documento de quitação”, acima transcrito, concluindo que adeclaração nele inserta, tendo sido assinado pela Recorrente, leva a que a obrigação de indemnizar por parte da Ré “X – Distribuição Alimentar, S.A. se encontre extinta.
II - Salvo o mais elevado respeito, e que muito é, não pode a Recorrente sufragar de tal entendimento, pois o Tribunal ignorou a demais prova documental já existente nos autos, a qual impunha uma maior indagação sobre o sentido de tal declaração, só possível com o prosseguimento dos autos para julgamento e produção da prova testemunhal.
III – Impunha-se o prosseguimento dos autos a fim de saber se a Recorrente, como declaratária, conhecia a vontade real do declarante, e bem assim qual o conteúdo dessa vontade, o que se trata de uma questão de facto.
IV – Com efeito, a referida declaração de quitação foi enviada à Recorrente com uma comunicação emitida pela Y, junta com a petição inicial como doc. 5, com o seguinte teor:
“Na sequência da participação de sinistro efectuada pelo X – Fafe procedemos à abertura do processo acima mencionado.
Cumpre-nos informar que os valores reclamados por V.ª Ex.ª serão reembolsados nos termos da declaração de quitação que se anexa, que solicitamos nos seja devolvida após ser assinada, acompanhada de comprovativo do IBAN para efeito de transferência devida.
Mais agradecemos que faça reconhecer a sua assinatura na referida declaração ou, se preferir, que nos envie cópia do seu Cartão de Cidadão ou Bilhete de Identidade”.
V - A Recorrente alegou que quando assinou aquela declaração “pretendia apenas receber a quantia irrisória de € 218,10 relativa a despesas e dar quitação da mesma, sem embargo dos danos que mais tarde pretendia reclamar” (art. 6.º da resposta às excepções), sendo certo que a presente acção visa fazer valer um crédito indemnizatório de que se arroga titular, centrada no ressarcimento dos danos de natureza não patrimonial.
VI - Ao decidir como decidiu, o tribunal “a quo” ignorou o contexto em que tal declaração foi emitida, e quando importava apurar a amplitude da declaração consubstanciada no documento em causa, não o fez.
VII - O referido documento não foi impugnado, sendo certo que do mesmo resulta inequivocamente que o valor de € 218,10 se tratou de um valor reclamado pela própria Recorrente, ou seja, resultou das despesas que a mesma sofreu com o sinistro, nomeadamente despesas médicas e medicamentosas, não se tratando de um ressarcimento global.
VIII – A declaração de quitação foi enviada pela Y, pré-redigida, de onde consta que aí intervém na qualidade de correctora e de gestora do sinistro em causa, sendo certo que a Recorrente, perante o texto que lhe foi apresentado, através de terceira pessoa, enviou um e-mail à Y a pedir para que a declaração fosse substituída por outra onde não figurasse a expressão “ sem direito a qualquer outro recebimento”, cuja resposta veio a ser esclarecedora de que a quantia de cujo recebimento dava quitação se referia unicamente às despesas que sofreu.
IX – Vejamos, pois, a resposta da Y: “ Em resposta cumpre-nos informar que os procedimentos que constam da referida carta são os procedimentos implementados pelo Grupo M. J. para o reembolso dos danos e são imprescindíveis para a realização da respectiva transferência.”, concluindo, “Questionamos, se a sinistrada tem mais alguma despesa para apresentar?”
X - Ou seja, se antes de receber esse e-mail, a Recorrente não tinha dúvidas de que a quantia de cujo recebimento dava quitação se referia unicamente às despesas que sofreu, ao ser questionada se tinha mais despesas, ficou convicta de que aquela declaração se referia unicamente a essas despesas - pois outras não apresentou – não querendo prescindir do ressarcimento de quaisquer outros danos.
XI - Ademais, a expressão contida na declaração de quitação em análise, não é suficientemente esclarecedora da intenção de quitação total, pois apenas diz que é relativa ao reembolso de danos, não diz de todos os danos, nem sequer dos danos, dizendo apenas “…a quantia de € 218,10 (duzentos e dezoito euros e dez cêntimos) relativa ao reembolso de danos resultantes do acidente ocorrido, em 30-10-2018, na loja do X – Fafe.” (sublinhado nosso).
XII - Ou seja, fazendo uma análise puramente objectiva do teor do documento, há que concluir que é licito que a Recorrente tenha compreendido que com a assinatura de tal documento, não estava a desobrigar a Ré de qualquer outra obrigação, a não ser das despesas por si reclamadas e apresentadas.
XIII – Impunha-se o prosseguimento da acção a fim de se saber se a Recorrente, como declaratária, conhecia a vontade real do declarante, e bem assim qual o conteúdo dessa vontade, o que, como se disse, se trata de uma questão de facto.
XIV – A conjugação do contexto que conduziu à emissão de referido documento, com a análise dos demais documentos juntos aos autos, não permitia decidir de mérito, impondo o prosseguimento para produção da demais prova em sede de julgamento, XV – Ou seja, a análise conjunta de tais elementos, face à redacção em análise, não permitia a um declaratário normal concluir de forma clara e inequívoca que o pagamento daquele quantitativo de € 218,10, se reportava à regularização de todos os danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes do sinistro.
XVI – Tal é a conclusão que retiraria um declaratário normal, de um homem médio, pelo que muito mais depressa foi essa a conclusão que extraiu a Recorrente, pessoa de reduzida escolaridade e de poucos conhecimentos, tanto mais que tal declaração não indica expressamente que excluía quaisquer outros prejuízos, por não serem devidos.
XVII - Pelo que, o Tribunal a quo ignorou documentos essenciais que determinariam o prosseguimento dos autos para realização de audiência de julgamento, designadamente para apuramento de matéria de facto cuja prova não resulta inequivocamente do teor do documento analisado na decisão.
XVIII – Além disso, também não concorda a Recorrente com a sentença na parte em que diz o seguinte: “É mencionada a existência duma troca de emails, com uma entidade distinta da 1ª Ré – não sendo expressamente referido que a mesma teve conhecimento de tais emails – referente ao teor das cláusulas de tal declaração, mas em nenhum momento é alegado expressamente que a sociedade X – Distribuição Alimentar, S.A. conhecia ou poderia conhecer que a Autora não pretendia que a declaração tivesse a redação que assumiu, existindo um erro essencial no tocante ao rescindir de qualquer indemnização futura que a referida sociedade pudesse ou devesse conhecer.”
XIX – Com efeito, a Ré X – Distribuição Alimentar S.A., não impugnou os documentos juntos pela Recorrente, quer a declaração de quitação, quer a comunicação que a acompanhou, nem alegou que desconhecia e/ou era alheia a tais documentos, sendo certo que a declaração de quitação, a Y identifica-se como gestor do processo de sinistro, não tendo a Ré impugnado a actuação daquela.
XX - Ademais, confrontada com a troca de e-mails entre o terceiro, a pedido da Recorrente e a Y, a Ré não impugnou tais documentos nem alegou que desconhecia o seu teor, pelo que os aceitou, pelo que não podia o Tribunal a quo concluir como concluiu.
XXI – Ou seja, a Ré X ratificou a gestão efectuada pela Y, sua correctora, uma vez que não questionou ou impugnou a actuação da Y, a sua qualidade e a legitimidade com que actuou.
XXII - Tal juízo impõe a revogação do despacho/sentença ora posto em crise e a sua substituição por outra que determine a baixa dos autos para subsequente tramitação.

NESTES TERMOS, e sempre com mui douto suprimento de V. Exas., deve o presente recurso merecer provimento, de acordo as precedentes conclusões, revogando-se a douta sentença proferida e substituída por outra que determine a subsequente tramitação dos autos, com o proferimento de despacho saneador para subsequente realização de audiência de julgamento, como é de direito e da mais elementar JUSTIÇA!”

A Ré respondeu, apresentando as seguintes
conclusões

1. A presente lide configura uma ação tendente a fazer valer um crédito indemnizatório de que a Recorrente se arroga titular, com vista ao ressarcimento de danos de natureza não patrimonial e patrimonial, decorrentes de uma queda ocorrida em estabelecimento comercial pertencente à Recorrida.
2. De facto, a Recorrida reconheceu a ocorrência de uma queda envolvendo a Recorrente, a 30.10.2018, no seu estabelecimento comercial sito em Fafe.
3. Em consequência do referido sinistro, a Recorrente suportou custos de €218,10 (duzentos e dezoito euros e dez cêntimos), os quais a recorrida ressarciu à data, independentemente do apuramento de qualquer responsabilidade.
4. Sendo que, na sequência de tal ressarcimento, a Recorrente assinou, a 07.05.2019, a Declaração de Quitação, por si junta à própria PI, na qual se pode ler o seguinte:
“Declaro ter recebido na presente data do X – Distribuição Alimentar, S.A., através da Y Portugal – Corretores de Seguros, S.A., com o NIPC ........., na sua qualidade de Corretor de Seguros e gestor do processo de sinistro ora reportado, a quantia de € 218,10 (duzentos e dezoito euros e dez cêntimos) relativa ao reembolso de danos resultantes do acidente ocorrido, em 30-10-2018, na loja do X – Fafe. Declaro ainda considerar-me totalmente ressarcido pelas despesas que apresento e sem direito a qualquer outro recebimento, dando a Sociedade X – Distribuição Alimentar, S.A., como livre e desobrigada de toda e qualquer responsabilidade presente e futura.” (sublinhado nosso).
5. A Recorrente deu, assim, quitação ampla no sentido não apenas do recebimento de certa quantia de dinheiro, mas de satisfação integral e completa dos direitos da Recorrente, presente e futuros.
6. Com a assinatura da mencionada Declaração pela Recorrente, extinguiu-se o efeito jurídico que a mesma pretende obter com a procedência da presente ação.
7. Pelo que, entende a R., ora Recorrida, estarmos perante uma exceção perentória inominada cuja procedência implica a sua absolvição do pedido.
8. Entendimento sufragado pelo douto Tribunal a quo que declarou procedente a referida exceção, com as legais consequências.
9. Com efeito, não merece qualquer censura a decisão do Tribunal a quo que entendeu o seguinte:
“A declaração em causa tem de se ter como válida e eficaz, e, consequentemente, a transação extrajudicial ali vertida, compondo o litígio entre 1ª Ré e Autora aqui em discussão, tem de se ter como conducente à extinção da obrigação de onde emergem os pedidos de indemnização deduzidos pela Autora nestes autos. Improcedendo necessariamente a presente ação, ainda que se provassem todos os factos alegados pela Autora.”.
10. Por seu turno, a Recorrente refere, em sede de alegações de Recurso, o seguinte:
“É que, o tribunal a quo mal andou alheando-se da demais prova já existente nos autos, a qual impunha uma maior indagação sobre o sentido de tal declaração, só possível com o prosseguimentos dos autos para julgamento e produção da prova testemunhal.”
11. Ora, foi a Recorrente que juntou à PI a referida Declaração.
12. Como bem refere o Tribunal a quo, “não coloca a Autora em causa que assinou tal declaração e que recebeu efetivamente a quantia ali mencionada.”
13. E, como tal, “Afigura-se assim que estamos perante uma transação extrajudicial, contrato previsto no Código Civil nos arts. 1248º e ss., realizada da forma legalmente exigível face aos interesses aqui em causa, e por via do qual a Autora declarou extinguir todas as obrigações da 1ª Ré, à data da assinatura de tal contrato, mas também futuras, decorrentes do acidente em discussão nestes autos.” (sublinhado nosso).
14. Em nenhum momento da sua PI a Recorrente questiona o sentido da declaração, nem questiona ter assinado a mesma de livre vontade.
15. Acresce que, sendo a declaração de quitação um documento pessoal da Recorrente, no qual esta apôs a sua própria assinatura, não se vislumbra a pertinência ou mesmo a admissibilidade de produção de prova testemunhal acerca do sentido da declaração assinada pela Recorrente.
16. Na verdade, a interpretação que a Recorrente fez da referida declaração, aquando ao momento em que a assinou, é um facto pessoal e exclusivo desta.
17. A prova testemunhal não pode versar sobre factos pessoais alheios, como o é a interpretação que a Recorrida fez de um documento que assinou.
18. A assinatura do documento por parte da Recorrente é um facto assente nos presentes autos e o seu conteúdo reveste matéria de confissão por parte da Recorrente, nos termos do artigo 352.º do Código Civil.
19. Veja-se a respeito da força probatória de uma declaração de quitação, o decidido pelo Tribunal da Relação de Coimbra em Acórdão de 31.05.2016, disponível em www.dgsi.pt onde se lê “VI - Tendo sido feita à parte contrária [a declaração], tem força probatória plena (art.º 358.º, n.º 2 do CC), sem embargo de o declarante poder fazer prova, por qualquer meio, da falta ou vícios da vontade, nos termos do art.º 359.º do CC. Fora do âmbito deste preceito, ao apelado era ainda consentido contrariar a prova plena mediante demonstração da inverdade do facto confessado, conforme prevê o art.º 347.º do CC, estando-lhe todavia vedado o recurso à prova por testemunhas ou presunções judiciais (cfr. art.ºs 393.º, n.º 2, 394.º e 351.º do CC).”
20. Face ao exposto, andou bem o Tribunal a quo ao decidir o mérito da acção no saneador sentença, inexistindo qualquer questão a apreciar quanto à validade e plenitude de efeitos da declaração de quitação junta pela Recorrente aos autos, declaração essa, aliás, não impugnada pela Recorrida.

II. Objeto do recurso

O objeto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, mas esta limitação não abarca as questões de conhecimento oficioso, nem a qualificação jurídica dos factos (artigos 635º nº 4, 639º nº 1, 5º nº 3 do Código de Processo Civil).
Este tribunal também não pode decidir questões novas, exceto se estas se tornaram relevantes em função da solução jurídica encontrada no recurso ou se versarem sobre matéria de conhecimento oficioso, desde que os autos contenham os elementos necessários para o efeito. - artigo 665º nº 2 do mesmo diploma.
Face ao teor das conclusões do recurso, é a seguinte a questão que cumpre apreciar: se era já possível, face aos elementos factuais invocados pelas partes, decidir com toda a segurança que a declaração produzida pela Autora não podia valer com o sentido que esta lhe pretende atribuir.

III. Fundamentação de Facto

Os factos relevantes encontram-se supra explanados

IV. Fundamentação de Direito

A Recorrente pretende que há que atender que invocou os seguintes factos, face aos documentos cuja junção produziu e que assim se descrevem:

-- Em 17 de abril de 2019 foi, pela Y, enviada à Autora, que a recebeu, a seguinte mensagem “Na sequência de participação de sinistro efetuada pelo X – Fafe procedemos à abertura do processo acima mencionado. Cumpre-nos informar que os valores reclamados por V. Exª serão reembolsados nos termos da declaração de quitação anexa, que solicitamos que nos seja devolvida depois de assinada, acompanhada do comprovativo de IBAN para efeito da transferência devida. Mais agradecemos que faça reconhecer a sua assinatura na referida declaração ou, se preferir, que nos envie cópia do seu cartão de cidadão ou bilhete de identidade…
-- Em 24 de abril de 2019 foi enviado mensagem de correio eletrónico em nome da Autora para a Y com o seguinte teor: “em anexo envio declaração de quitação a qual se pretende retificação da informação constante da mesma. Pese embora, a Y não seja responsável pela indemnização de danos corporais, gostaria a lesada, de ver alterado o conteúdo da declaração de quitação, não vindo referido “sem direito a qualquer outro recebimento”. Assim, agradeço o envio de nova declaração de quitação.
--No mesmo dia e pelo mesmo foi enviada e recebida a resposta, com o seguinte teor: “Em resposta, cumpre-nos informar que os procedimentos que constam da referida carta são os procedimentos implementados pelo Grupo M. J. para o reembolso dos danos e são imprescindíveis para a realização da respetiva transferência. Questionamos, se a sinistrada tem mais alguma despesa para apresentar?
---Com data de 7 de maio de 2019 a Autora assinou a seguinte declaração “Declaro ter recebido na presente data do X – Distribuição Alimentar, S.A., através da Y Portugal – Corretores de Seguros, S.A., com o NIPC ........., na sua qualidade de Corretor de Seguros e gestor do processo de sinistro ora reportado, a quantia de € 218,10 (duzentos e dezoito euros e dez cêntimos) relativa ao reembolso de danos resultantes do acidente ocorrido, em 30-10- 2018, na loja do X – Fafe.
Declaro ainda considerar-me totalmente ressarcido pelas despesas que apresento e sem direito a qualquer outro recebimento, dando a Sociedade X – Distribuição Alimentar, S.A., como livre e desobrigada de toda e qualquer responsabilidade presente e futura.”
A Requerente entende que face a esta matéria de facto, o estado dos autos não permite que se profira decisão de mérito.
Afirma, algo incoerentemente, visto que a declaração foi subscrita por si, Recorrente, e logo declarante e não declaratária, que se impunha “o prosseguimento dos autos para se saber se a Recorrente, como declaratária, conhecia a vontade real do declarante e qual o conteúdo dessa vontade”.

No entanto, decorre do teor geral das suas alegações a seguinte ordem de argumentos:
- 1- a declaração objetivamente analisada não permitia a um declaratário normal concluir de forma clara e inequívoca que o pagamento daquele quantitativo de € 218,10, se reportava à regularização de todos os danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes do sinistro;
-2 - a Recorrente podia não compreender que com a assinatura de tal documento, não estava a desobrigar a Ré de qualquer outra obrigação, a não ser das despesas por si reclamadas e apresentadas;
- 3 - ficou convicta que aquela declaração se referia unicamente às despesas que declarou, não querendo prescindir de quaisquer outros danos;
4- pelo que há averiguar se a Ré sabia que desse facto ou se pretendia prescindir dessa possibilidade.
A Autora aceita, pois, em abstrato, a força extintiva de declaração que subscreveu, caso fosse essa a sua pretensão e a mesma resultasse no documento em questão, pelo que não está em causa o valor desse tipo de declarações.
Vejamos o regime jurídico que se aplica à interpretação das declarações negociais, regendo como devem ser lidas e em que termos vinculam os respetivos declarantes e declaratário.

Em primeiro lugar guia o disposto no artigo 236º do Código Civil, do qual se conclui:
-- na interpretação dos negócios jurídicos prevalece, em princípio, a vontade real do declarante, sempre que for conhecida pelo declaratário (nº 2 deste preceito);
-- não havendo esse conhecimento, “a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele” (nº 1 do mesmo preceito).
Declaratário normal, para estes efeitos, é o que “seria considerado por uma pessoa normalmente diligente, sagaz e experiente em face dos termos da declaração e de todas as circunstâncias situadas dentro do horizonte concreto do declaratário, isto é, em face daquilo que o concreto destinatário da declaração conhecia e daquilo até onde podia conhecer” (cfr, Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, págs. 447 e 448).

Importa, ainda atentar, que:
-- se o negócio for formal, como foi o presente, que se encontra reduzido a escrito, a declaração não pode valer com um sentido que não tenha o mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, como decorre do disposto no nº 1 do artigo 238º do Código Civil.
Comecemos pela análise objetiva da cláusula, vendo se na mesma se pode incluir a pretensão da Autora, no sentido de apenas conter a quitação dos danos no valor ali indicado e não ter qualquer outro sentido de quitação total, de todos os eventuais danos que resultassem daquele evento, assim resolvendo o problema ou argumento supra elencado sob o ponto 1).
Nesse documento lê-se claramente que a Recorrente não só declara ter recebido determinada importância relativa ao reembolso de danos resultantes do acidente, como também que se considera totalmente ressarcida das despesas e “sem direito a qualquer outro recebimento”, “dando a Ré como livre e desobrigada de toda e qualquer responsabilidade presente e futura”.
Assim, a cláusula em si contém claramente uma renúncia total à exigência de qualquer outro pagamento à Ré, por parte da Autora, relativa ao acidente, visto que afirma que além de estar paga dos prejuízos que apresentou (“considerar-me totalmente ressarcido pelas despesas que apresento”), que desobriga a Ré de qualquer outra responsabilidade, especificando não só os danos presentes, como os futuros, e que não tem direito a qualquer “qualquer outro recebimento”.
A cláusula, objetivamente considerada, tem ínsita uma evidente liberação da Ré da obrigação de indemnizar a Autora de quaisquer outros prejuízos decorrentes do acidente, sem exceção. Tal resulta da menção a que a Ré fica “desobrigada de toda e qualquer responsabilidade presente e futura.”, realçada, aliás, pela menção a que não tem “direito a qualquer outro recebimento”.
Por outro lado, a sua clareza não permite que se admita que a sua redação seja causa da Autora duvidar se estava, com a sua assinatura, a desobrigar a Ré de qualquer outro pagamento, pois se tal é exatamente o seu teor (explicitando diretamente que abrange obrigação futuras), falecendo, pois, o argumento referido em 2), o que aliás é confirmado pelo contexto fático alegado pela Autora, como infra se verá.
Será que o contexto em que este documento foi apresentado lhe traz diferente sentido, como pretende a Recorrente?
Resulta da troca de mensagens entre a Autora e a Y, ligada à Ré, que a Autora leu a declaração em causa e pediu (em 24/4/2020) que da mesma fosse eliminada a expressão “sem direito a qualquer outro recebimento”, assim entendendo que a mesma não lhe permitia receber outras quantias (tanto mais que na mensagem distingue danos corporais, dos demais).
Resulta da resposta à sua mensagem que a sua pretensão não foi acolhida, tendo sido explicado, em nome da Ré, que a assinatura daquela declaração (nos termos em que estava) era condição para o pagamento pretendido.
Daqui resulta que a Autora a leu e compreendeu o significado da expressão e, por isso, queria que fosse eliminado, mas que a Ré recusou tal eliminação.
Após (em 7 de maio de 2019), a Autora assinou a declaração em causa, com a referida expressão (bem como os mais dizeres), recebendo a quantia nela mencionada.
Daqui o que se pode concluir, não é que a Autora não queria afirmar o que afirmou, mas que, confrontada com a recusa da Ré em aceitar efetuar o pagamento daquela quantia sem receber a quitação com a declaração de renúncia, a Autora aceitou tal cláusula (e logo o que ela significava).
Desta forma, o contexto em que a declaração foi produzida não pode alterar, de todo, o seu sentido objetivo.
Entende a Autora que, não obstante a ter assinado, não pretendia o que aí se dizia, pelo que esta deve ser lido de outra forma.
E se tal tivesse ocorrido – se a Autora não pretendesse dizer o que consta da cláusula - que consequências teria nestes autos, face ao alegado por esta?
Ora, como se viu, se a Ré sabia (ou, quando muito, podia saber) qual o sentido que a Autora dava à cláusula (o artigo 236º nº 2 do Código Civil exige que o declaratário conheça a vontade real do declarante), a cláusula podia ser lida com o sentido ora pretendido pela Autora, caso coubesse na sua letra, por de negócio formal se tratar.
No entanto, a Autora não invocou que a Ré sabia que ao assinar o documento a Autora não pretendia liberar a Ré de toda a responsabilidade (presente ou futura) por aquele documento.
Também não invocou, nem se depreende que quisesse invocar, que a Ré pretendia dar outro sentido à cláusula. Este é facto essencial não alegado, nem pela Autora, nem, obviamente, pela Ré, pelo que não podia a ação correr para tal efeito.
Da mesma forma, tal não resulta do contexto invocado pela própria Autora: a pergunta, efetuada pela Ré à Autora, sobre se havia outras despesas, foi efetuada na sequência do pedido de eliminação da referência à renúncia a outros pagamentos e antes da assinatura da declaração, pelo que apenas significa que a Ré estaria disposta a averiguar dessa existência para, depois, a Autora poder assinar a declaração tal como veio a ser assinada.
Como se viu, não era possível à Ré perceber que, ao assinar a declaração de renúncia, a Autora não queria aceitar que ficaria “sem direito a qualquer outro recebimento”, visto que reparara na cláusula e pedira que fosse retirada; sabendo o que significava, aceitou, posteriormente subscrevê-la.
Será que se pode afirmar que a Autora assinou tal declaração, em erro operante, por não querer dizer o que nela constava?
A Autora não invoca diretamente qualquer erro na sua declaração (que a vontade que declarou não correspondia à sua vontade, a qual era de sentido diverso, que se traduz no chamado erro na declaração, erro-obstáculo ou erro obstativo). Esta verifica-se nos casos em que, sem intenção, a vontade declarada não corresponde a uma vontade real do autor, existente, mas de sentido diverso.
Nestes casos se o erro é conhecido do declaratário ou destinatário da declaração, então a declaração vale com o sentido pretendido pelo declarante, nos termos do analisado artigo 236º nº 2 do Código Civil. Já se concluiu que tal hipótese não ocorreu neste caso.
Já se viu, também, que tal divergência não é cognoscível, nem ostensiva. Se a divergência entre a vontade real e vontade declarada fosse apreensível com segurança pelos próprios termos e circunstancialismos da declaração, o negócio valeria como é querido, como decorre dos artigos 236º nº 2 e 249º do Código Civil. Mas tal não é esta circunstância.
Ora, nem a Autora invocou tal anulabilidade, nem, tão pouco, tais outros requisitos: que o declaratário conhecia ou não devia ignorar a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro.
Assim, é desnecessário, ao contrário do que pretende a Recorrente, que o processo prossiga para averiguar da efetiva desconformidade entre o que declarou e o que queria declarar, nem, tão pouco, qual a posição da Ré face a tal desconformidade, por os elementos que alegou, mesmo se todos provados, não permitirem que a declaração pudesse ser lida com um sentido contrário do que dela emana (nem que seja anulada).

V. DECISÃO

Pelo exposto, julga-se o recurso totalmente improcedente e, em consequência em confirma-se a sentença recorrida na parte impugnada.
Custas pela Apelante.
Guimarães,

Sandra Melo
Conceição Sampaio
Elisabete Coelho de Moura Alves