Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
27/20.6JABRG-C.G1
Relator: MÁRIO SILVA
Descritores: PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
RESPONSABILIDADE CIVIL POR FACTOS ILÍCITOS
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - O pedido de indemnização civil deduzido em processo penal apenas pode ter como fonte a responsabilidade civil extracontratual fundada no facto ilícito criminal - art. 71.º do CPP e Assento do STJ n.º 7/99.
II - Em caso de destruição de veículos depositados numa oficina, que acabaram destruídos por um incêndio criminoso, a causa de pedir da reparação do dano tanto pode ser o incêndio como o contrato de depósito, mas só o primeiro é admissível no processo penal (princípio da adesão).
III - A intervenção processual de terceiro com responsabilidade meramente civil na ação penal só é admissível se a causa de pedir for constituída pelos factos ilícitos imputados ao arguido.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório

1. Em processo comum (coletivo) com o nº 27/20.6JABRG-C a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo – Juízo Central Criminal de Viana do Castelo – Juiz 3, no dia 18/05/2021 foi proferido despacho de saneamento do processo, ao abrigo do disposto no art. 311º do CPP, do seguinte teor (transcrição parcial):
“Registe e autue como processo comum colectivo.
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O Tribunal é competente.
O processo é próprio.
Não há nulidades, questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa e que cumpra conhecer.
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Recebe-se em juízo o processo instaurado contra M. C., L. J. e S. M., que deverão responder nos termos de facto e de direito constantes da acusação pública com a ref.ª 46454462, de 14.02.2021.
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Dos pedidos de indemnização civil:

Além de outros, vieram os lesados (i) J. M. (ref.ª 3090815 e 3127134) e (ii) J. P. e mulher, M. M. (ref.ª 3125552) deduzir pedido de indemnização cível, além do mais, contra “X – Reparação e Venda de Motociclos, Lda.”, “Y Seguros, S.A.”, Herança Ilíquida e indivisa aberta por G. C., A. C. e M. G., na qualidade de herdeiros de G. C..
Relativamente ao pedido formulado contra a “X – Reparação e Venda de Motociclos, Lda.”, o demandante civil J. M. fundou a sua pretensão na celebração de contratos de depósito de motociclos e de prestação de serviços de assistência mecânica e no respectivo incumprimento por parte daquela demandada; Os demandantes J. P. e M. M. alicerçam a sua pretensão na qualidade de inquilina daquela sociedade e no comportamento dos seus legais representantes na ocorrência dos factos que determinaram o incêndio.
Quanto aos pedidos por aqueles formulados contra a “Y Seguros, S.A.”, assentam os mesmos na celebração de um contrato de seguro com a “X – Reparação e Venda de Motociclos, Lda.”, abrangendo, para além do mais, o risco de incêndio no imóvel onde funcionava o estabelecimento desta.
No tocante aos pedidos formulados contra os demais demandados supra aludidos, decorrem os mesmos de estes demandados serem herdeiros de G. C., também apontado como co-autor dos factos criminosos descritos na acusação, mas falecido no decurso dos mesmos.
Quanto aos pedidos de indemnização cível formulados contra as demandadas “X – Reparação e Venda de Motociclos, Lda.” e “Y Seguros, S.A.”.
É sabido que o facto criminoso pode dar origem a dois tipos de reacções: uma, de natureza penal; outra, de natureza civil. Aquela é determinada pela lei penal, esta última, concretizada na reparação dos danos causados pelo facto ilícito, rege-se, substantivamente, pela lei civil - art.º 128.º do Código Penal.
Ora, o Código de Processo Penal prevê, no art.º 71.º, que “o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo”, sendo esta a formulação adoptada para concretizar o chamado princípio de adesão. Este encontraria justificação não apenas no interesse e função eminentemente públicos ligados à indemnização, mas também no facto “de que assim se cumpririam da melhor forma exigências compreensíveis de economia processual, protecção do lesado e auxílio à função repressiva do direito penal[Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal I, 1974, 542 e ss.].
Sucede, porém, que o pedido de indemnização civil assim deduzido pelo lesado apenas poderá ter por fonte a responsabilidade extracontratual ou aquilina, com exclusão da responsabilidade civil contratual [Assento, hoje com força de acórdão uniformizador de jurisprudência, n.º 7/99, em DR Série I-A, de 03.08.1999]. Com efeito, “a ação civil que adere ao processo penal, ficando nele enxertada, é apenas a que tem por objecto a indemnização de perdas e danos emergentes do facto que constitua crime. (...) Realmente, a responsabilidade civil de que se conhece no âmbito do processo penal não é a responsabilidade contratual decorrente do simples incumprimento de vínculos contratuais, mas sim a responsabilidade extracontratual com base em facto ilícito, consistindo este na prática de um crime que foi causa de danos indemnizáveis[Ac. STJ de 28.05.2015, Proc.º n.º 2647/06.2TAGMR.G1.S1, relatora Helena Moniz, em www.dgsi.pt].

No caso vertente, o pedido formulado contra as referidas demandadas não se funda na prática de facto ilícito tipificado como crime, mas em relações contratuais (de prestação de serviços, depósito e arrendamento) estabelecidas entre os demandantes e a demandada “X – Reparação e Venda de Motociclos, Lda.” e no contrato de seguro de danos celebrado entre esta e a “Y Seguros, S.A.”.
A responsabilidade destas demandadas é, pois, de índole contratual, pelo que não se enquadra a mesma no âmbito subjectivo da norma do art.º 73.º do C.P.P.
Consequentemente, em face do supra exposto, o pedido formulado contra as demandadas “X – Reparação e Venda de Motociclos, Lda.” e “Y Seguros, S.A.” não é legalmente admissível em processo penal, pelo que os tribunais criminais carecem de competência em razão da matéria para dele conhecer [Ac. STJ de 28.05.2015, loc. cit.; Ac. RC de 18.10.2017, Proc.º n.º 68/11.4TAPNL.C1, relatora Isabel Valongo, em www.dgsi.pt].
Por todo o previamente expendido, indefiro liminarmente esta parte dos pedidos de indemnização civil formulados por J. M. (ref.ª 3090815 e 3127134) e J. P. e mulher, M. M. (ref.ª 3125552).
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Relativamente aos pedidos formulados contra Herança Ilíquida e indivisa aberta por G. C., A. C. e M. G., na qualidade de herdeiros de G. C..
Como referido, G. C. faleceu no incêndio ocorrido na oficina da “X – Reparação e Venda de Motociclos, Lda.” e, apesar de se ter apurado a sua responsabilidade na eclosão do mesmo, foi determinado o arquivamento dos autos no que àquele diz respeito, em virtude da extinção da sua responsabilidade criminal, nos termos do art.º 128.º do Código Penal.
Pese embora os termos do princípio de adesão supra descritos, o art.º 72.º, n.º 1, al. b), do C.P.P., permite a dedução em separado do pedido de indemnização civil quando o procedimento criminal se tiver extinguido antes do julgamento.
Paulo Pinto de Albuquerque [Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2.ª edição, 222, nota 4], refere que “extinto o procedimento criminal por falecimento do arguido, não é admissível o prosseguimento dos autos para conhecer da acção civil, restando ao lesado deduzir em separado o pedido de indemnização civil (acórdão do TRC, de 16.5.1994, in CJ, XIX, 3, 50, e acórdão do TRL, de 21.6.2001, in CJ, XXVI, 3, 156)”.
Porém, o Supremo Tribunal de Justiça, através do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 3/2002 [DR I Série-A, de 05.03.2002], fixou jurisprudência no sentido de que, “extinto o procedimento criminal, por prescrição, depois de proferido o despacho a que se refere o artigo 311.º do Código de Processo Penal mas antes de realizado o julgamento, o processo em que tiver sido deduzido pedido de indemnização civil prossegue para conhecimento deste”. Note-se que, apesar de não merecer extensa argumentação no corpo do aresto, este erige como marco processual determinante da possibilidade de prosseguimento do pedido de indemnização civil após a extinção do procedimento criminal contra o demandado o da prolação do despacho de recebimento da acusação, de admissão do aludido pedido indemnizatório e de designação de dia para a audiência. Com este despacho estabilizam-se os elementos da instância criminal e civil, sendo, portanto, após o mesmo, irrelevante para a parte civil a extinção do procedimento criminal. Neste sentido, vejam-se os acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 14.10.2019 [Proc.º n.º 570/15.9JABRG-B.G1, relator Paulo Serafim, em www.dgsi.pt] e do Tribunal da Relação de Coimbra de 24.02.2016 [Proc.º n.º 1241/10.8TAVIS.C2, relatora Maria José Nogueira, em www.dgsi.pt], que consideram extensíveis à hipótese de extinção do procedimento criminal por morte do arguido a jurisprudência do citado Acórdão Uniformizador n.º 3/2002.
Consideramos também ser esta a boa doutrina, à luz dos argumentos expendidos no mencionado aresto do STJ.
Todavia, no caso vertente, a extinção do procedimento criminal contra o arguido G. C. ocorreu em momento anterior ao do despacho previsto nos art.ºs 311.º e 312.º do C.P.P. Como tal, não se verifica a situação validada pelo Acórdão Uniformizador n.º 3/2002, pelo que não se afigura possível a apreciação dos pedidos formulados contra os seus herdeiros.
Pelo exposto, não admito os pedidos de indemnização formulados contra Herança Ilíquida e indivisa aberta por G. C., A. C. e M. G., por impossibilidade originária da lide.
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Ref.ª 3090815:
Por tempestivo e legal, admito o pedido de indemnização cível do demandante J. M. contra os demandados M. C., L. J. e S. M..
• Requerimento probatório:
a) o demandante encontra-se arrolado como testemunha da acusação, devendo prestar depoimento;
b), c), d) e e) indeferem-se as diligências requeridas, uma vez que os pedidos formulados contra as 4.ª e 5.ª demandadas não foram admitidos.
f) admito o rol de testemunhas indicado sob os n.ºs 1 a 5.
Considero não escritas as demais, por ultrapassarem o limite legal – art.º 79.º, n.º 2, do C.P.P.
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Ref.ª 3125552:
Por tempestivo e legal, admito o pedido de indemnização cível dos demandantes J. P. e mulher, M. M. contra os demandados M. C., L. J. e S. M..
• Requerimento probatório:
- Admito o rol de testemunhas.
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Ref.ª 3129468:
Por tempestivo e legal, admito o pedido de indemnização cível da demandante A. F. contra os demandados M. C., L. J. e S. M..
• Requerimento probatório:
- A demandante encontra-se arrolada como testemunha da acusação, devendo prestar depoimento.
- Admito o rol de testemunhas.
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Ref.ª 3129469:
Por tempestivo e legal, admito o pedido de indemnização cível do demandante A. P. contra os demandados M. C., L. J. e S. M..
• Requerimento probatório:
- O demandante encontra-se arrolado como testemunha da acusação, devendo prestar depoimento.
- Admito o rol de testemunhas.
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Ref.ª 3130126:
Por tempestivo e legal, admito o pedido de indemnização cível do demandante C. M. contra os demandados M. C., L. J. e S. M..
• Requerimento probatório:
- O demandante encontra-se arrolado como testemunha da acusação, devendo prestar depoimento.
- Admito o rol de testemunhas.”
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2 – Não se conformando com a decisão, o lesado/demandante J. M. interpôs recurso da mesma, oferecendo as seguintes conclusões (transcrição):

“1. Vai o presente recurso interposto do Douto despacho proferido pelo MM. Juiz do Tribunal a quo, na parte em que indeferiu liminarmente o pedido de indemnização civil deduzido pelo Recorrente contra as demandadas “X – Reparação e Venda de Motociclos, Lda.” e companhia de seguros “Y Seguros, S.A”.
2. A causa de pedir pedido de indemnização civil é constituída pelos factos constitutivos da prática de um crime, sendo certo que os factos geradores da responsabilidade civil e os que justificam a responsabilidade criminal terão de ser necessariamente coincidentes.
3. O pedido de indemnização civil deduzido pelo Recorrente contra as demandadas “X – Reparação e Venda de Motociclos, Lda.” e “Y Seguros, S.A” é admissível ainda que seja deduzido contra pessoas com responsabilidade meramente civil, não co-responsáveis pelos factos imputados ao arguido (ou arguidos) no estrito âmbito do processo penal, ao abrigo do disposto no art.º 73.º do Cód. Proc. Penal, pelas razões que se passam a expor:
4. No que concerne à demandada “X - Reparação e Venda de Motociclos, Lda”, o Recorrente convencionou com a mesma que esta lhe prestaria serviços de assistência mecânica, na sua oficina, traduzidos na realização de operações de manutenção mecânica periódica (revisão periódica) em três dos seus motociclos melhor identificados no pedido de indemnização civil por si deduzido contra aquela, em 19/03/2021, que se dá por reproduzido.
5. Mais convencionou o Recorrente com a demandada “X - Reparação e Venda de Motociclos, Lda”, que pagaria a esta o preço desses serviços, e ainda que tendo em vista a prestação desse serviço, aquele lhe entregaria os referidos motociclos, que ficariam em seu poder e lhe seriam restituídos logo após a realização das reparações ou revisões periódicas efectuadas.
6. E, convencionou ainda o Recorrente com a demandada “X - Reparação e Venda de Motociclos, Lda”, que ao longo de todo o período de que decorresse entre a entrega das motorizadas no estabelecimento comercial desta e a restituição das mesmas já reparadas àquele, aquela assumira a obrigação de guardas os veículos motorizados, de zelar pela sua guarda, de assegurar a sua boa conservação e de assegurar que os mesmos não subtraídos ou danificados.
7. No que concerne à demandada companhia de seguros “Y Seguros, S.A”, cumpre referir o seguinte:
8. A demandada “X – Reparação e Venda de Motociclos, Lda”, explora o estabelecimento comercial de reparação e venda de motociclos, sito no Lugar …, s/n, na União de Freguesias de … Arcos de Valdevez.
9. A demandada “X – Reparação e Venda de Motociclos, Lda” celebrou com a demandada “Y Seguros, S.A” contrato de seguro destinado a transferir para esta última a responsabilidade decorrente de quaisquer danos causados ao imóvel onde funcionava o referido estabelecimento comercial, ao seu recheio, a veículos nele depositados e armazenados e a todo e qualquer bem que se encontrasse no seu exterior, incluindo os danos decorrentes de incêndio, sendo esse contrato titulado pela apólice n.º ……, em vigor e a produzir efeitos desde 04/01/2020.
10. Pelo que, caso venha a ser assacada qualquer responsabilidade à demandada “X – Reparação e Venda de Motociclos, Lda”, a mesma sempre estará transferida por esta para a demandada “Y Seguros, S.A”, por força do referido contrato de seguro, o que implicará a constituição da mesma na obrigação de indemnizar terceiros, pelos decorrentes dos factos em discussão na presente acção.
11. Como consequência direta e necessária da actuação dos Arguidos acima identificados, resultaram para o Recorrente prejuízos elevados, traduzidos na destruição total das motorizadas e, na consequência da inutilização das mesmas.
12. Nessa medida, o Recorrente deduziu pedido de indemnização civil contra as demandadas “X – Reparação e Venda de Motociclos, Lda”, e “Y Seguros, S.A”, porquanto, também estas são civilmente responsáveis pela reparação dos danos causados àquele, como consequência directa e necessária do incêndio deflagrado naquele estabelecimento comercial.
13. Atenta a causa de pedir do pedido de indemnização civil deduzido pelo Recorrente contra os aqui Arguidos (também eles demandados) e contra as demandadas “X – Reparação e Venda de Motociclos, Lda” e “Y Seguros, S.A”, verifica-se que a mesma advém única e exclusivamente de perdas e danos emergentes dos factos que constituíram os crimes de incêndio em edifício/construção e burla relativa a seguros (qualificada) na forma tentada, previstos e punidos pelos art.ºs 14.º, 26.º, 272.º, n.º 1, al. a) e 23.º e 219.º, n.ºs 1, al. a), 2 e 4, al. b), todos do Cód. Penal.
14. Pelo que, as demandas “X – Reparação e Venda de Motociclos, Lda” e “Y Seguros, S.A” são, então, pessoas com responsabilidade meramente civil, podendo, por isso, ser demandadas civilmente no âmbito do processo penal pelo Recorrente, ao abrigo do disposto no art.º 73.º do Cod. Proc. Penal.
15. Para além disso, dispõe o art.º 10.º do Cód. Proc. Penal que “a competência material e funcional dos tribunais em matéria penal é regulada pelas disposições deste Código e, subsidiariamente, pelas leis da organização judiciária.”,
16. E resulta disposto nos art.ºs 211.º da Constituição da República Portuguesa, nomeadamente do n.º 1 daquela norma, bem como do disposto no art.º 40.º n.º 1 da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais - Lei 62/2013, de 26 de Agosto -, que o critério utilizado para aferir a competência material de um tribunal é um critério que podemos chamar de residual, ou seja, toda a causa que não for por Lei atribuída a determinada jurisdição especial é da competência do Tribunal Comum.
17. Assim, sendo o pedido de indemnização civil deduzido no processo penal respectivo, ao abrigo do disposto no art.º 71.º do Cód. Proc. Penal, o Tribunal Criminal é materialmente competente para decidir do mesmo, desde que a causa de pedir seja coincidente com os factos que são imputados ao Arguido na acusação, salvo as excepções previstas na lei.
18. No caso subjudice, não se verifica nenhuma das excepções previstas no art.º 72.º do Cód. Proc. Penal que obriguem a que o pedido de indemnização seja deduzido em separado pelo Recorrente e, por isso, é o Tribunal a quo materialmente competente para decidir do pedido de indemnização civil deduzido pelo Recorrente deduzido contra as demandadas “X – Reparação e Venda de Motorizadas, Lda.” e companhia de seguros “Y Seguros, S.A”.
19. A questão da competência material deve ser resolvida tendo em conta a relação jurídica a discutir na acção, à luz da estruturação concreta apresentada pelo Recorrente.
20. O Recorrente fundou, pois, o seu pedido de indemnização civil na prática de um crime de incêndio em edifício/construção e, por isso, deduziu-o no próprio processo penal, em função do princípio da adesão da acção civil à acção penal, nos termos do art.º 71.º do Cód. Proc. Penal.
21. Posto isto, não colhe o argumento utilizado pelo Tribunal a quo de que a responsabilidade das demandadas “X – Reparação e Venda de Motociclos, Lda” e “Y Seguros, S.A” é de índole contratual e, por isso, não se enquadra no âmbito subjetivo da norma do art.º 73.º do Cód. Proc. Penal.
22. A douta decisão proferida pelo Tribunal a quo viola, assim, o disposto no art.º 211.º da Constituição da República Portuguesa, art.º 40.º, n.º 1 da LOSJ e nos art.ºs 71.º e 73.º ambos do Cód. Proc. Penal e deve, por isso, a mesma ser revogada, no que ao pedido de indemnização civil deduzido pelo Recorrente contra as demandadas “X – Reparação e Venda de Motociclos, Lda” e “Y Seguros, S.A” e, ser substituída por Douto acórdão que julgue procedente a apelação e, defira e aceite o pedido deduzido por aquele contra todos os demandados, no qual peticiona que sejam condenados solidariamente a liquidar àquele a quantia de € 15.500,00.
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Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, deve conceder-se provimento ao Recurso de Apelação e, em consequência, proferir-se Douta decisão que revogue a decisão recorrida, substituindo-a por Douto Acórdão que esteja em conformidade com as conclusões acima formuladas, com o que se fará Justiça!
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3 – Nesta instância, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, considerando que o recurso se restringe a matéria cível, não emitiu parecer, por carecer de interesse em agir.
4 – Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso aí dever ser julgado de harmonia com o preceituado no artigo 419º, nº 3, al. b), do Código de Processo Penal.
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II - Fundamentação

1 - O objeto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respectiva motivação (artº 412º, nº 1, do Código de Processo Penal e jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário da Secção Criminal do STJ nº 7/95, de 19/10, publicado no DR de 28/12/1995, série I-A), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam as cominadas com a nulidade de sentença, com vícios da decisão e com nulidades não sanadas (artigos 379º e 410º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Penal) – cf. Acórdãos do STJ de 25/06/98, in BMJ nº 478, pág. 242; de 03/02/99, in BMJ nº 484, pág. 271; Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, vol. III, págs. 320 e ss; Simas Santos/Leal Henriques, “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 3ª edição, pág. 48.
2 - A única discordância do recorrente consiste na não admissão do pedido cível de indemnização deduzido contra as demandadas “X – Reparação e Venda de Motociclos, Lda.” e “Y Seguros, SA”.
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III - Apreciação do recurso

Como é entendimento uniforme, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação.
Assim, o tribunal de recurso somente tem que apreciar as questões suscitadas pelo recorrente e constantes das respectivas conclusões. Isto, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam nulidades não sanadas e vícios decisórios (artigo 410º, nºs. 2 e 3, do CPP).
No caso em apreço não se vislumbra qualquer nulidade ou vício que haja de ser conhecido oficiosamente.
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O recorrente apenas questiona a decisão do Tribunal a quo de não admitir o pedido cível de indemnização que deduziu contra as demandadas “X” e “Y Seguros”.
Recorde-se que o tribunal a quo rejeitou o pedido formulado contra estas pessoas colectivas por entender que a responsabilidade civil em que se fundamenta, quanto a elas, é de natureza meramente contratual, isto é, fundado na “celebração de contratos de depósito de motociclos e de prestação de serviços de assistência mecânica e no respectivo incumprimento por parte daquela demandada” (a X) e na celebração de um contrato de seguro desta com a Y Seguros, abrangendo o risco de incêndio no imóvel onde funcionava o estabelecimento.
Concluiu que “o pedido formulado contra as referidas demandadas não se funda na prática de facto ilícito tipificado como crime, mas em relações contratuais (de prestação de serviços, depósito e arrendamento) estabelecidas entre os demandantes e a demandada X (…) e no contrato de seguro de danos celebrado entre esta e a Y“, não se enquadrando no âmbito subjectivo do art. 73º do CPP.

Apreciando.

Com relevo para a decisão, importa recordar o preceituado:
- no art. 129º do Cód. Penal, sob a epígrafe “Responsabilidade civil emergente de crime”: “A indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil.”;
- no art. 71º do Cód. Proc. Penal, sob a epígrafe “Princípio da adesão”: “O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, (…)”;
- no art. 74º, nº 1, do Cód. Proc. Penal, sob a epígrafe “Legitimidade e poderes processuais”: “O pedido de indemnização civil é deduzido pelo lesado, entendendo-se como tal a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime, (…).” – todos os sublinhados são nossos.

É indubitável que o pedido cível deduzido no processo penal - em conformidade com o princípio da adesão consagrado no art. 71º do CPP - apenas pode ter como fundamento/causa de pedir os factos constitutivos de um ilícito criminal, tendo como fonte, portanto, a responsabilidade aquiliana ou extracontratual e excluindo a responsabilidade contratual.
Isso mesmo ficou consignado no despacho recorrido e, nessa parte, não é posto em causa no recurso.
E com esse fundamento – a responsabilidade extracontratual derivada da prática do crime de incêndio em edifício/construção – o pedido cível deduzido pelo ora recorrente foi admitido quanto aos demandados e também arguidos M. C., L. J. e S. M..
Já no segmento que se reporta aos demandados “X” e “Y Seguros” o pedido não foi admitido por se tratar de responsabilidade contratual e “não se enquadrar no âmbito subjectivo do art. 73º do CPP.”
Prescreve esta norma, no nº 1, que: ”O pedido de indemnização civil pode ser deduzido contra pessoas com responsabilidade meramente civil e estas podem intervir voluntariamente no processo penal.”.
O despacho recorrido limitou-se a consignar o não enquadramento no âmbito subjectivo do art. 73º do CPP, sem contudo esclarecer as razões por que assim concluiu (salvo que a responsabilidade destas demandadas é de índole contratual).

Analisemos.
Como consta do acórdão do TRC de 18/10/2017 (proferido no proc. 68/11.4TAPNL.C1 e relatado pela Desembargadora Isabel Valongo), citado no despacho em causa: «A norma define a legitimidade passiva de pessoas que não sejam sujeitos do processo penal. O pedido de indemnização civil pode ser deduzido contra pessoas com responsabilidade meramente civil, ou seja, as que não são penalmente co-responsáveis pelo facto imputado ao arguido no processo penal. Mas que podem ser responsáveis civilmente pelos danos sofridos pelo lesado em consequência do facto que constitui crime – v.g. responsabilidade civil do representante legal de pessoa obrigada à vigilância (art 491° do CC), responsabilidade civil do comitente no caso do acto do comissário no exercício da função que constitua crime (arts 500° e 503° do Código Civil), responsabilidade da seguradora – Código de Processo Penal comentado, pág 270.
É claro que a responsabilidade meramente civil terá que emergir dos factos constantes da acusação ou da pronúncia (salvo a possibilidade de alteração prevista na lei adjectiva).
A acção civil tem como causa de pedir “(…) os mesmos factos que são também pressuposto da responsabilidade criminal e pelos quais o arguido é acusado.” – ac. do STJ de 1012-2008, proc. n.° 08P3638, supra citado.
(…)
Consequentemente, a causa de pedir no pedido de indemnização deduzido por força do art 71 do CPP, é a prática de um crime.
Assim, só os lesados directa ou indirectamente com a sua prática podem ser demandantes, e os acusados ou terceiros que sejam responsáveis civilmente pela reparação aos respectivos danos, demandados.
(…)
Dito de outro modo, os factos geradores da responsabilidade civil têm que ser os mesmos que justificam a responsabilidade criminal. Os responsáveis é que podem ser sujeitos jurídicos diferentes.»
Retornando ao caso em apreciação, não resta qualquer dúvida que o facto gerador da responsabilidade civil é a prática do crime de incêndio, que foi imputado aos arguidos. Foi essa a causa da destruição das quatro motos do demandante J. M., avaliadas, segundo a acusação, em cerca de €12.500,00 (doze mil e quinhentos euros), que se encontravam no interior da oficina destruída, conforme consta dos pontos 37 e 41 da acusação pública.
A causa de pedir, a fonte da responsabilidade civil, é, portanto, a prática de um crime, tendo natureza extracontratual ou aquiliana (por isso o pedido cível foi admitido quanto aos demandados/arguidos).
Ora, o demandante/recorrente, após declarar aderir à acusação pública, formulou pedido cível de indemnização não só contra os arguidos acusados mas também contra os demandados “X” e “Y Seguros”.
Neste, depois de dar como reproduzidos todos os factos constantes da acusação pública – esta já consignava que os arguidos L. J. e S. M. são os proprietários do estabelecimento “X”, situado no rés-do-chão do edifício incendiado, que se dedica à venda e reparação de motociclos, do qual a última é sócia-gerente e o primeiro gerente “de facto”, que o estabelecimento/stand dispunha de seguro quanto ao recheio do mesmo e a bens confiados, tendo havido participação do sinistro – que acabou por reproduzir de novo, especificou os veículos que se encontravam na oficina destruída, o motivo por que lá estavam, os contratos (de manutenção mecânica periódica, de reparação e de depósito) celebrados entre as partes e a transferência da responsabilidade para a seguradora.
Mas a verdade é que o demandante acaba por configurar que a X “constituiu-se na obrigação de indemnizar o Demandante, ao abrigo do regime da responsabilidade civil contratual, pelo facto de não ter procedido à restituição àquele das motorizadas acima referidas” (nº 60º do PIC) e “(…) por força do disposto nos arts. 798.° e 1187.°, al. c) do Cód. Civil” (nº 88º, al. b), do PIC).
Acrescenta que “caso venha a ser assacada qualquer responsabilidade à 4ª Demandada (X), a mesma sempre estará transferida para a 5ª Demandada, por força do referido contrato de seguro, o que implicará a constituição da mesma na obrigação de indemnizar terceiros, pelos danos decorrentes dos factos em discussão na presente acção” (ponto 66º), em moldes idênticos aos constantes do ponto 88º, al. c).
Só relativamente aos demandados/arguidos, o demandante e ora recorrente alega fundar-se o pedido na responsabilidade extracontratual – al. a) do ponto 88º do PIC.
Em suma, o demandante descreve os fundamentos da responsabilidade civil por facto ilícito quanto aos demandados também arguidos, mas, no que concerne à “X”, assenta a sua imputação no incumprimento do contrato celebrado por esta com o demandante, ou seja, na não restituição dos veículos.
E é também com esse fundamento que sustenta a transferência da responsabilidade para a seguradora.
Ora, o “princípio da adesão” justifica-se por razões práticas de economia processual (bem como de prevenção de eventual contradição de julgados), aproveitando a prova produzida quanto à parte penal para a decisão civil, evitando a necessidade de renovar provas já produzidas.

No caso em apreciação, tendo em conta as razões que justificaram a consagração legal deste princípio e vista a aludida configuração acusatória, poder-se-ia estar perante um caso de aplicação do previsto no art. 73º do CPP, isto é de pessoas que não sendo sujeitos do processo penal, mas apenas responsáveis civilmente pelos danos sofridos pelo lesado em consequência do facto que constitui crime, dispõem de legitimidade passiva para serem demandados.
Porém, não pode ignorar-se o preceituado no já transcrito artigo 129º do Cód. Penal, segundo o qual “A indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil.
Tal remissão para a lei civil implica algumas consequências, entre as quais o respeito pelo princípio do dispositivo.
Ora, sendo inequívoco que, quer a acusação quer o pedido cível deduzido contêm todos os fundamentos da responsabilidade extracontratual, a causa de pedir constante do pedido cível deduzido pelo demandante, na parte que se reporta aos demandados “X” e “Y Seguros”,.é constituída por factos integradores da responsabilidade contratual, distintos dos que integram os crimes imputados.
Com esta fonte de responsabilidade, a legitimidade passiva dos demandados não pode “caber” na previsão do art. 73º, nº 1, do CPP, sendo inadmissível a sua dedução no processo penal.
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O recorrente aflora, ainda (conclusões nºs 15 a 19) a competência material do Tribunal comum, a decidir em conformidade com a “estruturação concreta apresentada pelo Recorrente”, por não se verificar nenhuma das exceções previstas no art. 72º do CPP, que obriguem à dedução em separado do pedido cível.
Não restam dúvidas que, como afirma o recorrente, “toda a causa que não for por Lei atribuída a determinada jurisdição especial é da competência do Tribunal Comum”.
O que se não vislumbra é o alcance da afirmação, porquanto quer o tribunal criminal quer o tribunal cível são tribunais comuns.
No que se reporta à obrigatoriedade de deduzir o pedido cível em separado, importa clarificar que a obrigatoriedade, como regra, é que o pedido cível seja formulado no processo penal (art. 71º do CPP), admitindo a lei (nas alíneas do nº 1 do art. 72º) os casos em que o pode ser separadamente [a al. f) prevê expressamente o caso dos autos: quando o pedido “for deduzido contra o arguido e outras pessoas com responsabilidade meramente civil (…)”].
Todavia, a questão, como refere o recorrente, deve ser apreciada à luz da “estruturação concreta apresentada pelo Recorrente” (neste ponto, impõe-se ressalvar que a aferição não se baseia na estruturação apresentada pelo recorrente, mas sim pelo demandante no requerimento inicial do pedido cível).
Ora, tal estruturação, com a ressalva feita, é absolutamente clara e tem fundamento na responsabilidade contratual, não admissível em processo penal.
Em suma, apesar do esforço do recorrente em corrigir (no recurso) o teor do pedido cível de indemnização formulado nos autos, bem andou o Mmo. Juiz a quo ao não admitir o pedido cível quanto àqueles demandados.
O recurso improcede.
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IV – DISPOSITIVO

Pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso interposto pelo demandante J. M., confirmando o despacho recorrido.
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Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça na quantia correspondente a 3 UC (três unidades de conta) – artigo 523º, nº 1, do CPP, artigo 8º, nº 9, do RCP e tabela III anexa a este diploma legal.
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(Texto elaborado pelo relator e revisto por ambos os signatários – artigo 94º, nº 2, do Código de Processo Penal).
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Guimarães, 10 de Janeiro de 2022

(Mário Silva - Relator)
(Maria Teresa Coimbra - Adjunta)