Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1312/13.9TBVCT.G1
Relator: JOSÉ FLORES
Descritores: LEGITIMIDADE PARA RECORRER
DECISÃO INTERCALAR
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/17/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - A parte que interveio ao abrigo do disposto nos arts. 311º, e ss., do Código de Processo Civil, tem legitimidade para recorrer de decisão que a afecte (cf. art. 631º, nº 1, do mesmo Código).

II - Das nulidades reclama-se; dos despachos recorre-se:
- A decisão intercalar que indefere meio de prova requerido por alguma das partes deve ser impugnada, através de recurso, no prazo previsto no prazo de 15 dias previsto no art. 638º, por referência ao art. 644º, nº 2, al. al. d), do Código de Processo Civil;
- Essa decisão, ao não admitir esse meio de prova, não consubstancia nenhuma nulidade por alegada omissão, à luz do art. 195º, do Código de Processo Civil;
- A forma adequada de impugnar o vício da decisão, a coberto da qual alegadamente se cometeu uma nulidade por acção ou, como neste caso, omissão, é o recurso, visando a apreciação do eventual erro de julgamento que então passará a enquadrar tal postura do tribunal;

III- A reapreciação da matéria de facto julgada pressupõe o cumprimento dos ditames previstos no art. 640º, do Código de Processo Civil, sob pena da sua rejeição nos casos aí previstos. A falta das especificação prevista na al b), do seu nº 1, ponto por ponto, dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre cada um desses pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, importa a sua rejeição;

IV - Importa ainda não esquecer que se mantêm em vigor os princípios de imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, pelo que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados. Assim, em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira instância, em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes na 1ª Secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

1. RELATÓRIO

A Recorrente Maria instaurou acção declarativa de condenação com processo declarativo ordinário contra Manuel, José e esposa, Teresa, pedindo que se condenem solidariamente os Réus a pagar à A. e chamado a quantia de € 64.000,00, acrescida de juros de mora à taxa legal, a contar da citação e até integral pagamento, assim discriminado: € 9.000,00, a título de danos patrimoniais in iure hereditário, € 15.000,00 a título de danos não patrimoniais pelas lesões e dores sofridas in iure hereditário, € 20.000,00 a título de danos não patrimoniais (dano da morte) in iure hereditário e € 20.000,00 a título de danos não patrimoniais in iure próprio.

Alegou, resumidamente que no dia 24 de Maio, de 2011, faleceu Augusta, sendo a A. sua filha e o chamado seu marido.

Alega a A. que sua mãe faleceu fruto das marradas de um carneiro que era propriedade do primeiro R. e estava emprestado aos segundos RR..
A A. fundamenta os seus pedidos nos arts. 493º e 502º do Código Civil.
A A., no final da sua p.i., suscita a intervenção provocada de seu pai.
José e esposa apresentaram contestação a fls. 111
ss.
Começaram os RR. por suscitar a ilegitimidade da A. para propor a presente acção desacompanhada do seu pai.
De seguida, suscitaram uma excepção peremptória, alegando que a A. sempre afirmou e declarou aos RR. que nada deles pretendia, que não queria qualquer indemnização relacionada com os factos que estão na origem da presente acção.
Os RR. defendem que a morte de Augusta não resultou de qualquer marrada de qualquer carneiro e muito menos do referido nos autos que, no dia dos factos, se encontrava em local vedado ao público.
Manuel apresentou contestação a fls. 159
ss..
Também este R. suscita a ilegitimidade activa da A. para propor a presente acção desacompanhada do seu pai.
Diz ainda o R. que emprestou aos segundos RR. um carneiro do seu rebanho, que nunca acusou qualquer tipo de problemas, nunca tendo exigido cuidados especiais. Assim sendo, quando emprestou dito carneiro aos segundos RR. não fez qualquer recomendação especial. Tal empréstimo foi a título gratuito e sem qualquer contrapartida. Diz assim o R. que é parte ilegítima nos autos.

O R. alega ainda que a A. renunciou ao direito de ser indemnizada, dizendo-lhe que não pretendia dele qualquer indemnização referente à situação que fundamenta a presente acção.
Diz o R., finalmente, que não resulta dos autos qualquer prova de que foi o seu animal que infligiu os ferimentos alegadamente sofridos pela falecida mãe da A.
A A. replicou a fls. 183 ss dos autos, respondendo à matéria de excepção invocada pelos RR.
Por despacho de fls. 220 ss foi admitida a intervenção principal provocada de Eugénio, cujo articulado consta de fls. 236 ss; o chamado aderiu aos articulados da A. (sua filha).
A fls. 291 ss. foi proferido despacho saneador que decidiu desde logo da improcedência da excepção de ilegitimidade passiva invocada pelo R. Manuel. Foi ainda considerada sanada a ilegitimidade activa da A., pela intervenção provocada de seu pai.
*

Após julgamento, não se conformando com a decisão proferida, que julgou a acção totalmente improcedente, dela apelaram a Autora e o chamado Eugénio, formulando, no final das suas alegações, conclusões, que se reproduzem a fls. 493 e ss..

Igualmente a Autora Maria impugnou (cf. fls. 520) essa decisão em recurso que culmina com as seguintes conclusões.

– O despacho, de 14/04/2016 – 13:04:12 a 13:06:09, que indeferiu a inquirição das testemunhas, Lurdes, Fátima, autoras do exame pericial do IML, e João, agente da polícia Judiciária, violou os artigos 6º, 7º, 411º e 526º, do Código de Processo Civil.
- Impondo-se a revogação desse despacho de indeferimento e, por consequência, também o que indeferiu a arguição da nulidade e ordenar-se a inquirição das identificadas testemunhas.
– Por, manifestamente, atento o relatório pericial de criminalística biológica, nos autos e no inquérito apenso, poder ser cabalmente esclarecido com tais depoimentos, com indiscutível alcance da verdade material, sem qualquer dúvida;
– Devendo anular-se o julgamento, no que concerne às respostas às matérias de prova dos pontos 1 a 3;
– Quanto à sindicância da matéria de facto, nos termos do artº 640º, do C.P.C., foram incorretamente julgados os factos sob os pontos I a XI, dos factos dados como não provados, e nos números 21 e 23, dos factos dados como provados;
– Quanto aos pontos I a III, destacam-se os depoimentos das testemunhas, Francisco, médico legista, cujo depoimento se encontra sob o ficheiro áudio 20160414103115_717030_2871823.wma, de 00:00:00 a 00:43:37, em 14/04/2016 – 10:31:56 a 11:15:33, e F. S., inspetor da Polícia Judiciária, encontrando-se este sob o ficheiro áudio 20160414111538_717030_2871823.wma, em 14/04/2016, tempo de áudio 01:33:24, de 11:16:32 a 13:06:09;
– A primeira dessas testemunhas foi esclarecedor, pois, para além de salientar que a vítima não tinha problemas cardíacos nem que as lesões verificadas a esse nível foram a causa de morte da Augusta, referiu – 00:10:19, que as lesões encontradas – as equimoses, e a distância entre elas eram compatíveis com a estrutura dos chifres que apresentava o carneiro;
– Pois que, “[00:07:30] “O coração da senhora em termos gerais para a idade e para o sexo, é um coração normal, ou seja, o que levou à morte da senhora foi a tal natureza traumática da agressão e foi o extravasamento do sangue ou a perda de sangue da parte vascular que levou a um choque hipovolêmico e provavelmente à disfunção cardíaca”;
– A testemunha, F. S., por sua vez, direcionou a investigação para aquele carneiro, por não haver qualquer outro ou outro rebanho e a vítima não ter qualquer mau relacionamento com os vizinhos e, ainda, por não lhe terem sido furtados os valiosos pertences de que era portadora e que foram recolhidos pela G.N.R.;
10ª – Que era “um carneiro com algum porte”, com a particular caraterística de possuir um corno completamente cortado e um outro “um bocadinho saliente” e com “um perímetro mais ou menos idêntico ao tipo de lesão que nós encontramos na vítima” – [00:07:16];
11ª – Razão, segundo a mesma testemunha, para terem sido recolhidas fotografias e fazer-se recolha de zaragatoas, porquanto a vítima tinha algumas lesões que permitiam a recolha de ADN e, desse modo, estabelecer-se uma correlação entre o tipo de lesão e o carneiro;
12ª – Concluindo esta testemunha: [00:31:48] “Estamos a falar de um trabalho feito em 4 ou 5 horas em que nós analisámos com atenção a vítima, analisámos com atenção o cenário, ouvimos as várias pessoas, vamos ao carneiro e constatámos que o tipo de lesão que existe na vítima é consentâneo com aquele corno”;
13ª – Ora, perante tudo isto, não se compreende que a sentença recorrida tenha dedicado três escassas linhas ao depoimento desta testemunha, irrelevando o seu depoimento, apenas por não ter visto o rebanho no local;
14ª – Relevante foi também o depoimento da testemunha M. J. – ficheiros áudio 20160705142436_717030_2871823.wma, em tempo áudio de 01:14:31, em 05/07/2016, 14:24:37 a 15:32:13, e ficheiros 201607051151153_717030_2871823.wma e 20160705152101, que viu o rebanho, incluindo o carneiro em causa, no caminho do rego, que este estava vedado a norte e sul e que teve que socorrer a prima da sua esposa, Sofia, da atuação agressiva da besta contra aquela, no mesmo dia em que foi encontrado o cadáver da malograda Glória;
15ª – Para além disso, referiu circunstanciadamente quanto a atividade da malograda Glória contribuía para o sustento da família, nomeadamente pelos produtos agrícolas e hortícolas que cultivava, os animais que criava e até os fatos de mecânico que para si lavava;
16ª – A testemunha, Sofia – 25/02/2016, ficheiro áudio 20160225112656_7171030_2871823, tempo de áudio 00:41:32, 11:26:15 a 12:08:30, viu as ovelhas e o carneiro na Quelha do Rego, precisamente no local delimitado para pastagem do mesmo e…foi atacada pelo carneiro – 00:09:35 a 00:10:42;
17ª – Foi atacada pelo carneiro no mesmo dia em que encontrou a vítima, sua tia – 00:11:13 a 00:14:59, do seu depoimento, e relevou quanto aquela, mãe da recorrente, era saudável e contribuía com o seu trabalho para as despesas do lar - 00:29:58 a 00:31:58;
18ª – Que esse carneiro, que integrava o rebanho dos recorridos, era possante e violento e se atirava às pessoas – 00:16:37;
19ª – Os depoimentos desta testemunha, bem como da testemunha, M. J. são determinantes para, além de considerar-se como provados os factos dados como não provados de I a III, também, inequivocamente, na mesma senda, considerarem-se provados os de IV a IX;
20ª - No seu conjunto, os depoimentos das identificadas testemunhas que a recorrente traz à sindicância, combinados com o relatório da autópsia, o relatório da Polícia Judiciária, as fotografias, quer as constantes na certidão sob o documento número 1, da petição inicial (melhor no inquérito apenso por linha, por serem a cores), em suma, todos os documentos constantes nessa certidão;
21ª – Bem assim como as fotografias tiradas no presente processo e que integram a ata da primeira sessão de julgamento e os factos dados como provados de 1) a 6) e 8), impõe decisão diferente da acolhida pela sentença recorrida quanto aos
concretos pontos de facto I a VI, dos factos considerados não provados, devendo dar-se os mesmos por provados;
22ª - E, consequentemente, condenarem-se os recorridos, o que este Venerando Tribunal pode (e deve, no entender da recorrente) levar a cabo no seio do artigo 662º, do C.P.C;
23ª - Acresce que, para reforço de tal entendimento, considerações que de todo a sentença recorrida omite, um rebanho habituado a transitar entre prédios de pastagem, atravessando um caminho não foge, não precisa de delimitações físicas para fazer o trajeto habitual;
24ª - Daí que as delimitações nas extremidades do caminho, colocadas pelos recorridos, José e esposa, se destinasse mesmo a permitir que o seu rebanho ali pastasse;
25ª – Um carneiro que se encontra a desempenhar a função de “cobrir” as ovelhas, como era o caso, é um protetor absoluto do território onde se encontram as “suas” ovelhas e destas, não permitindo que estranhos (in casu, a malograda mãe da recorrente) o invadam;
26ª – Neste sentido foi claro o depoimento do inspetor, F. S., da Polícia Judiciária, vindo no mesmo sentido a jurisprudência que tem tratado o tema – por todos, Ac. STJ, de 31/01/2012, Procº 5007.05.9TBVIS, CJ, STJ, Ano XX, Tomo I, pgs. 65/69;
27ª - Claramente, aquele carneiro, propriedade do recorrido, Manuel, e emprestado aos recorridos, José e esposa, pastava no caminho em causa, quando a malograda mãe da recorrente o “invadiu”;
28ª - E, por isso, através destes factos conhecidos, é perfeitamente possível, através das regras da experiência comum e da normalidade das coisas, concluir que apenas aquele carneiro foi a causa da morte da mãe da recorrente;
29ª – Estabelecendo-se, deste modo, o imprescindível nexo de causalidade exigido pelo artigo 563º, do C. Civil, como um dos pressupostos do instituto da responsabilidade civil, com o consequente dever de indemnizar por parte dos recorridos;
30ª - Devem, pois, em consequência e ao abrigo do disposto no artigo artigo 612º, do C.P.C., os factos sob os itens I a XI, da matéria de facto, acolhidos pela sentença recorrida como não provados, serem dados como não provados, devendo os factos sob os números 21 e 23, dos factos dados como provados, serem dados como não provados.
31ª – A sentença recorrida violou, destarte, os artigos 349º, 493º e 502º, do Código Civil, bem assim como incorreu em erro manifesto sobre apreciação da prova e em erro de julgamento.
Termos em que, de acordo com as conclusões vertidas, deve julgar-se o recurso procedente, revogando-se a sentença recorrida e elaborando-se acórdão em conformidade.

Os Réus José e Teresa opuseram-se ao recurso da Autora (fls. 581 e ss.) em contra alegações que culminaram pedindo que se negue provimento ao recurso.

O Réu Manuel, por sua vez, contrariou o recurso do interveniente Eugénio (cf. fls. 602 e ss.) e da Autora (cf. fls. 610 e ss.), suscitando a extemporaneidade da impugnação do acto incidental de rejeição de prova, a violação do ónus de alegar e formular conclusões e, com estes e outros argumentos, pedindo a manutenção da sentença proferida.

Em 29.3.2017, o Tribunal admitiu os recursos interpostos e apreciou a nulidade invocada pelos Recorrentes para concluir pela sua falta de sustento, dado o desinteresse da prova em causa (cf. fls. 632).

Em 30.5.2017, o Interveniente Eugénio alega falha informática na peça processual (recurso) que apresentou em juízo e afirma que “deve” ser notificado pelo Tribunal para, nos termos do art. 639º, nºs 1 e 3, do Código de Processo Civil, completar a suas conclusões, o que pede a final!

Os Réus José e Teresa opõe-se.

O Tribunal a quo deferiu tal pretensão, com prazo de 5 dias.

Em 29.6.2017, passados cerca de 3 meses do despacho de admissão liminar do recurso, conforme a sua vontade, o Recorrente Eugénio Requerente apresentou novíssimas alegações (fls. 670 e ss.) de recurso que culmina com as seguintes conclusões.

A) O tribunal a quo indeferiu, após requerimento do Ilustre Patrono da autora, nos termos do artigo 526º do C.P.C., a produção nos autos de meios de prova testemunhais, designadamente, João, especialista-adjunto, a fls... dos autos, Mestre Lurdes e Professora Doutora Fátima, a fls... dos autos.
B) Estas testemunhas podem e devem esclarecer o tribunal relativamente ao modo como a perícia da criminalística biológica foi realizada e quanto ao seu resultado, que combinadas com outros meios de prova, nomeadamente, com o relatório da autópsia e com o depoimento das testemunhas Francisco, F. S., Sofia e M. J., levaria, necessariamente, a outro resultado, mormente, à condenação dos réus José e esposa Teresa na presente lide.
C) O tribunal a quo ao indeferir pelo seu despacho de 14 de Abril de 2016, gravado das 13:04:12 a 13:06:09, ora sob recurso, a produção da prova testemunhal requerida, salvo o devido respeito, fez uma errada aplicação e como tal, violou o previsto nos artigos 6º, 7º, 411º e 526º do C.P.C., bem como violou o princípio da oficiosidade da recolha da prova, devendo, consequentemente, ser revogada a sua decisão e substituída por outra que ordene a notificação e inquirição das ditas testemunhas indicadas naquele requerimento.
D) A inquirição de testemunhas nos termos do artigo 526º do C.P.C. é um poder-dever do juiz e pode ser requerida pelas partes, analise-se a este propósito os Acórdãos da RG, datado de 28 de Janeiro de 2004: Proc. 287/03-1; da RP, datado de 08 de Março de 2004, JTRP00035514; RP, datado de 02 de Outubro de 2006: JTRP00039540; RP, datado de 19 de Outubro de 2006: Proc.0633968; STJ, datado de 14 de Novembro de 2006: Proc. 06A3427; RL, datado de 30 de Janeiro de 2008: Proc. 9021/2003-4; RP, datado de 16 de Dezembro de 2009: Proc. 577/08.2TBVNG-A.P1 e RP, datado de 10 de Setembro de 2013: Proc. 115/09.0TBCNF.P1. disponíveis em www.dgsi.pt.
E) O tribunal a quo ao indeferir a inquirição das testemunhas supra referidas, cometeu uma nulidade, nos termos do artigo 195º do C.P.C. que se arguiu, argui, se invocou e invoca para todos os efeitos legais. Analise-se a este propósito o Acórdão da Relação de Lisboa, datado de 18 de Junho de 2009: Proc. 7947/2008-6, disponível em www.dgsi.pt.
F) O tribunal a quo deu como não provado que o falecimento de Augusta ocorreu na sequência de um ataque com marradas de um carneiro que se encontrava na posse dos Réus José e esposa Teresa, mas pertencente a Manuel; e que em consequência do ataque do carneiro a vítima sofreu lesões traumáticas, torácicas, abdominais e dos membros, associadas a choque hipovolémico por hemorragia maciça que foram causa da sua morte.
G) Entendeu o tribunal a quo - na nossa opinião mal - que não resultou provado que o referido animal atacou a vítima quando esta passava no “Caminho do Rego”, encontrando-se este a pastar no trajecto do referido animal.
H) No entendimento do recorrente e salvo melhor opinião em contrário, o tribunal a quo ao dar como não provados tais factos julgou incorreu em erro manifesto na apreciação da prova testemunhal e documental que foi produzida na audiência de discussão e julgamento, quanto aos recorridos José e esposa Teresa.
I) O tribunal a quo desvalorizou completamente o relatório pericial de criminalística biológica, a fls. ...dos autos, onde foram recolhidas 3 zaragatoas, tendo uma delas (A2) recolhida da mão esquerda (pata) do carneiro em causa nos autos e de mais nenhum outro animal, proporcionado um perfil genético feminino incompleto idêntico ao DNA extraído do sangue do cadáver de Augusta.
J) Se não houve qualquer contacto entre a vítima e o (único) carneiro em causa nos autos e se a morte podia ter resultado de um objecto contundente, como é que este tinha DNA da vítima na sua pata esquerda?
L) O rebanho de ovelhas pertencia aos recorridos José e esposa Teresa, onde estava incluído o dito carneiro, que pastava e passava pelo caminho onde foi encontrada a vítima, caminho esse que até estava vedado nas extremidades pelos recorridos.
M) Se o caminho estava vedado é porque o dito caminho era utilizado pelos réus José e esposa Teresa como local de pastagem do aludido rebanho (à contrario sensu).
L) Entendeu o tribunal a quo que a testemunha Sofia não foi credível dado que estando o INEM no local não faz sentido que tenha ido a casa contar à sua mãe o sucedido e desinfectar as suas feridas, voltando depois ao local, o que, no nosso entendimento, não é fundamento lógico sequer para a descredibilizar.
M) Se a testemunha Sofia foi atacada pelo carneiro e a PJ tirou-lhe fotografias, que até estão documentadas nos autos com as respectivas lesões que até são coincidentes com os ferimentos nas pernas da vítima e, se só tirou duas fotografias e nenhuma às nádegas e às coxas, como é que o tribunal a quo a considerou pouco credível quando a confrontou com a fotografia da vítima?
N) Ou será que tais lesões também tiveram origem num objecto contundente?
O) A Exa. Senhora Juiz do tribunal a quo, com o devido respeito, confundiu esta testemunha afirmando que ela disse determinados factos, tal como afirmar que a testemunha disse na PJ que tinha caído o que não corresponde à verdade, dado que não consta do auto de inquirição desta testemunha tais factos, bem como induziu a testemunha em erro e por esses motivos, também a descredibilizou, mas na nossa modesta opinião, andou mal o tribunal a quo quanto a esta testemunha. Analise-se a prova produzida na audiência de discussão e julgamento de Sofia – Testemunha, cujos nomes dos ficheiros de áudio são: 20160225112656_717030_2871823.wma e 20160225121218_717030_2871823.wma, com o tempo de áudio de 00:55:30 de 25 de Fevereiro de 2016.
P) O tribunal a quo incorreu em erro manifesto na apreciação da matéria de facto (erro de julgamento), mormente, quanto ao que a testemunha Francisco, médico-legista, disse na audiência de discussão e julgamento ao não considerar que esta testemunha referiu que a morte é compatível com a acção do carneiro, até porque os danos são coincidentes com os sinais exteriores que o carneiro apresentava e não outros (objecto contundente) e, que se assim não fosse os danos apresentados pela vítima teriam sido outros e não os que, efectivamente, apresentou e referiu também que se os danos tivessem sido produzidos por um objecto contundente seguido de marradas do carneiro os danos apresentados pela vítima não seriam os que apresentou. Analise-se a prova produzida na audiência de discussão e julgamento de Francisco – Testemunha, cujo nome do ficheiro de áudio é: 20160414103115_717030_2871823.wma, com o tempo de áudio de 00:43:37 de 14 de Abril de 2016.
Q) Neste caso, a vítima jamais podia ser atingida por um objecto contundente ou actuando como tal, porque tal objecto inexiste, porque não foi encontrado no local nenhum objecto contundente, muito menos compatível com as marcas que a vítima apresentava, por outro lado, as marcas que a vítima apresentava são compatíveis com o único corno que o carneiro tinha e com a história do evento, conforme resulta do relatório da autópsia.
R) Não podemos olvidar que se o carneiro não arrastaria ninguém, é certo, podia e, certamente foi o que aconteceu, empurrar com marradas a vítima, daí ter apresentado sinais de arrastamento, com escoriações da omoplata esquerda.
S) O tribunal a quo apreciou a prova testemunhal de Francisco de forma errada, tendo ocultado factos que a testemunha disse e fundamentado, por isso, de forma diversa e insuficiente daquilo que a testemunha disse.
T) Quanto à testemunha F. S., Inspector da Polícia Judiciária, o tribunal a quo fundamenta na sentença apenas com o facto de esta testemunha não ter visto o rebanho no local, não tendo as fotografias sido tiradas por ele e, daí se ter requerido a inquirição do João, Especialista-Adjunto, uma vez que foi este que tirou as fotografias ao dito carneiro. Analise-se a prova produzida na audiência de discussão e julgamento de F. S. – Testemunha, cujo nome de ficheiro de áudio é: 20160414111538_717030_2871823.wma, com o tempo de áudio de 01:33:24 de 14 de Abril de 2016.
U) Quanto à testemunha M. J., também o tribunal a quo a desvalorizou e mal no nosso entendimento, porque afirmou na audiência de discussão e julgamento que tinha assinado as declarações que prestou em sede de inquérito perante o Senhor Agente da PJ, F. S., sem as ler com atenção e por causa disso foi acareado com o dito agente da PJ, no entanto esta testemunha foi a que socorreu a outra testemunha Sofia, quando foi atacada com marradas pelo aludido carneiro, tendo inclusive corroborado a versão daquela testemunha. Analise-se a prova produzida na audiência de discussão e julgamento de M. J. – Testemunha, cujos ficheiros de áudio são: 20160705142436_717030_2871823.wma; 20160705151153_717030_2871823.wma e 20160705152101_717030_2871823.wma, com o tempo de áudio de 01:04:31 de 05 de Julho de 2016.
V) Chegamos à conclusão que muito mal andou o tribunal a quo na apreciação da matéria de facto que foi produzida na audiência de discussão e julgamento, incorrendo em erro manifesto de julgamento da aludida matéria de facto.
X) É certo que ninguém presenciou os factos mas a PJ orientou a investigação em função do cenário que tiveram que analisar e em função da história do evento, foram recolhidas provas que constam dos autos e que mui doutamente serão analisadas por Vossas Exas.
Z) Certo é que a vítima foi atacada à marrada pelo carneiro, até porque as marcas que a vítima apresentava são compatíveis com o carneiro, mormente, com o corno do carneiro que tem a proeminência de 3,5cm e não com qualquer outro animal ou objecto contundente ou actuando como tal.
AA) A testemunha Sofia também foi atacada pelo mesmo carneiro, no mesmo dia e no mesmo local, tendo sido socorrida pela testemunha M. J..
AB) Não restam dúvidas que o carneiro que atacou a vítima é o que está em causa nos autos e não outro, aliás, não havia mais nenhum rebanho com carneiros e ovelhas nas redondezas.
AC) Os animais são seres irracionais e são quase sempre uma fonte de perigos sendo os carneiros com o cio deveras agressivos na potecção do seu rebanho, facto que é público e notório e, por isso, nem carece de alegação.
AD) Os recorridos deviam estar cientes do perigo, em abstracto, que representa a irracionalidade do carneiro, devendo sobre ele exercer prudente vigilância.
AE) Quem utiliza em seu proveito os ditos animais, deve suportar as consequências do risco especial que acarreta a sua utilização. Neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. I, 4ª edição, pág. 511/512 e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 31 de Janeiro de 2012, disponível em www.dgsi.pt.
AF) Se o caminho estava vedado nas extremidades, vedação essa que foi feita pelos réus José e esposa Teresa, como pode o tribunal a quo entender que o mesmo só era utilizado para passar e não para pastar, até porque sabemos que se fosse só para passar nem era preciso o caminho estar vedado, dado que bastava guiar o carneiro que todas as restantes ovelhas do rebanho o seguiriam, facto que também é público e notório e nem carece de alegação.
AG) Desta forma, também andou mal o tribunal a quo quando deu como provado que os réus José e esposa Teresa respeitaram os deveres de vigilância e zelo só pelo facto dos mesmos terem vedado o referido caminho.
AH) Tais deveres de vigilância e zelo só seriam respeitados, no nosso entendimento e salvo melhor opinião em contrário se, eventualmente, os réus José e esposa Teresa guiassem, conduzissem, levassem, sempre que passassem com o rebanho pelo caminho que é público, o dito rebanho, aliás, como lhes competia.
AI) Pelo exposto, devia o tribunal a quo ter analisado toda a prova produzida na audiência de discussão e julgamento de forma conjugada e, podia e devia, ter lançado mão das presunções judiciais (partir do facto conhecido, estabelecer o nexo de causalidade e chegar ao facto desconhecido), ou seja, através de um raciocínio dedutivo identificar o facto desconhecido a partir do facto conhecido, nos termos dos artigos 349º, 350º e 351º do Código Civil – direito probatório material.
AJ) Perante tais evidências, o tribunal a quo só tinha que fazer um raciocínio lógico-dedutivo para estabelecer o nexo de causalidade entre esse facto conhecido e o facto desconhecido, tendo em conta que ninguém presenciou, chegando à conclusão que foi, efectivamente, o carneiro o que produziu aquele dano, resultado, ou seja, a morte da infeliz vítima.
AL) Posto isto, o tribunal a quo devia ter dado como provados os factos que deu como não provados, nomeadamente, os factos I, II, III, IV, VI, VII, VIII, IX, X e XI da douta sentença.
AM) O recorrente impugna a matéria de facto dada como não provada, ou seja ao factos de I a XI e impugna ainda a matéria de facto dada como provada, nomeadamente os factos 21) e 23) da douta sentença. AO) Analise-se a esse propósito o depoimento da testemunha Sofia que de forma precisa, concisa e verdadeira e isenta, prestou o seu depoimento esclarecendo o tribunal quanto ao facto de ter visto o carneiro no local (de pastagem) onde foi encontrada a sua tia e no mesmo dia, tendo, inclusive sido atacada por ele e ter sido ajudada pelo Manuel João – 25/02/2016 - ficheiro de áudio 20160225112656_7171030_2871823.wma, com tempo de áudio de 00:41:32, das 11:26 a 12:08:30, concretamente do minuto 00:09:35 a 00:10:42 e do minuto 11:03 a 14:32;
AP) Analise-se ainda o depoimento da testemunha M. J., que prestou o seu depoimento de forma verdadeira e isenta, referiu que também viu o carneiro com o rebanho, no caminho do rego, tendo, inclusivamente que socorrer a Sofia das investidas de que foi alvo quando o dito carneiro a atacou – 05/07/2016, ficheiros de áudio 20160705142436_717030_2871823, com o tempo de áudio de 01:14:31 - 00:06:51.
AQ) Importantíssimo foi também o depoimento da testemunha Francisco, médico legista, que prestou depoimento em 14/04/2016, ficheiro de áudio 20160414103115_717030_2871823, com 00:43:37 - 10:31:56 a 11:15:33 - que de forma precisa, concisa, esclarecedora, verdadeira e isenta, referiu que a infeliz vítima não padecia de problemas cardíacos e que a causa da morte não foi provocada por eventuais lesões a esse nível – 00:07:30. Acrescentou ainda que as lesões encontradas, as equimoses e a distância entre elas eram compatíveis com a estrutura dos chifres que apresentava o carneiro – 00:10:19.
AR) Referiu ainda que se a vítima “tivesse falecido por commotio cordis anteriormente a ser atacada pelo carneiro, à posteriori o tipo de eventos post mortem que a senhora teria, o tipo de infiltrações sanguíneas não seriam aquelas que nós encontramos. Não teriam aquela extensão, nem aquela exuberância. Um ferimento...Uma lesão vascular feita post mortem não tem aquele género de (imperceptível). Isso é feito em vida”. – 00:40:01. Este depoimento deveras importante e esclarecedor foi simplesmente desvalorizado na douta sentença proferida pelo tribunal a quo.
AS) Não olvidando do depoimento da testemunha F. S., inspector da Polícia Judiciária, que prestou o seu depoimento de forma precisa, concisa, esclarecedora, verdadeira e isenta, em 14/04/2016, ficheiro de áudio 20160414111538_717030_2871823, com 01:33:24 – 11:16:32 a 13:06:09, esclarecendo o tribunal a quo a forma como direcionou a sua investigação para o carneiro, tendo em conta que não havia outro rebanho na freguesia e pelo facto da aludida vítima não ter qualquer mau relacionamento com nenhum dos vizinhos, referindo ainda que o animal em causa, o carneiro, tinha “algum porte” e possuir apenas um corno, cortado, coincidente com a lesão apresentada pela vítima. – 00:07:16.
AT) Teria o tribunal a quo que, pela análise conjugada destes depoimentos com todos os documentos juntos aos presentes autos, em especial o relatório da criminalística biológica e o relatório da Polícia judiciária, bem como os factos que foram dados como provados, ou seja, de 1) a 6) e 8), impõe, desde logo, decisão diferente da que consta na douta sentença recorrida, mormente os factos de I a XI que foram dados como não provados, devem se dados como provados e deve ser dado como não provado os factos constantes em 21) e 23) da douta sentença.
AU) A sentença recorrida violou os artigos 349º, 493º e 502º do Código Civil, incorrendo ainda em manifesto erro na apreciação da prova e erro de julgamento.

Termos em que, deverá ser julgada procedente, por provada a nulidade invocada ou caso assim não entendam e, subsidiariamente, revogar a sentença recorrida, substituindo-a por outra que julgue a acção totalmente procedente por provada.

Após, os Réus José e Teresa contra-alegaram (cf. fls. 698 e ss.) no recurso deste interveniente, alegando, além de mais, que não tem legitimidade para recorrer, a nulidade é improcedente e, a final, pedindo a manutenção integral do decidido.

Entretanto foi junto assento do óbito do interveniente Eugénio, ocorrido em 23.11.2017.

A Autora suscitou incidente de habilitação de herdeiros e, a final, foi declarada habilitada a prosseguir a demanda na posição do falecido (cf. fls. 765).

2. QUESTÕES A DECIDIR

Nos termos dos Artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo um função semelhante à do pedido na petição inicial. (1) Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas (2) que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas. (3)

As questões enunciadas pelos recorrentes podem sintetizar-se da seguinte forma:

a) Da revogação da decisão que indeferiu prova testemunhal requerida;
b) Da nulidade dessa decisão;
c) Da revogação da decisão que conheceu dessa nulidade;
d) A pedida alteração da decisão sobre a matéria de facto apreciada;
e) A pedida procedência da acção, supondo essa alteração.

Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.

3. FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Da invocada ilegitimidade do Recorrente Eugénio

Nas suas alegações, os Recorridos José e Teresa defendem a falta de legitimidade do chamado Eugénio para recorrer.
Depois de terem defendido a sua legitimidade para os demandar, sem a qual o objecto da presente acção seria indiscutível, estes Demandados assentam a sua tese na circunstância de a Autora Maria ter pedido a sua condenação no pagamento a “ela”.
Sem mais delongas, é preciso notar que o pedido formulado pela Autora a fls. 14, citado na sentença impugnada e acima reproduzido, foi de condenação no pagamento, sic, ” à A. e chamado” das quantias peticionadas.
Existe, assim, desde logo, um grande e tardio equívoco dos Recorridos nessa matéria, esquecendo, que a admissão do referido Eugénio ao abrigo do disposto no art. 316º e ss., do Código de Processo Civil, como interveniente principal e associado da Autora, o coloca em posição idêntica à desta como se original Demandante se tratasse, sendo para ele definitiva a solução que a sentença produzida firmar quanto à sua posição, como resulta claro do dispositivo do art. 320º, do mesmo Código.
O seu prejuízo relevante é assim, neste caso, equivalente ao da Autora.
Inexistem, por isso, dúvidas de que o referido Eugénio é parte legítima neste recurso, na posição que assumiu, à luz da norma do art. 631º, nº 1, do Código de Processo Civil, pelo que se julga improcedente a invocada excepção.

3.2. Da alegada nulidade v. impugnação da decisão por ela viciada

O Recorrente Eugénio resume no item E) das suas conclusões o substrato do vício de nulidade que invoca desde o seu item A), intróito das suas alegações de recurso.
Como refere a propósito António S. A. Geraldes, (4) é frequente a enunciação nas alegações de recurso de nulidades da sentença, numa tendência que se instalou (que a racionalidade não consegue explicar), desviando-se do verdadeiro objecto do recurso que deve ser centrado nos aspectos de ordem substancial.
No caso, estamos perante o exemplo máximo dessa dissonância.
Dirigindo a sua impugnação, em 11.1.2017 à “sentença” proferida por último, no seu aperfeiçoado requerimento, este Recorrente insiste em questionar os efeitos do despacho que conheceu e indeferiu essa mesma nulidade, proferido no remoto dia de 14.4.2016, em sede de audiência de julgamento, arguindo aqui novamente a mesma nulidade, que não da sentença mas de um despacho proferido naquele mesmo dia, do qual não recorreu tempestivamente.

Simplificando:

- A impugnação objectivada no seu requerimento de recurso visou literalmente apenas e só a sentença, pelo que é esta e só esta a decisão posta em causa (cf. art. 629º, 635º, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil);
- É que o despacho referido em C) das suas conclusões, ainda que se admitisse, na tese do Recorrente, que constituiu rejeição inadmissível de meio de prova, não foi visado no seu requerimento de recurso;
- De qualquer modo, tal seria extemporâneo, como salientam os Recorridos, tendo em mente o disposto no nº 2, al. d), do art. 644º, do Código de Processo Civil, e o prazo de 15 dias especialmente previsto 638º, nº 1, do mesmo Código, pelo que, então, se julgou definitivamente essa questão (cf. art. 620º, do C.P.C.) neste processo;
- No que concerne à nulidade que o Recorrente faz questão de arguir novamente, o que seria admissível, desta feita, ex vi art. 644º, nº 3, do mesmo Código (cf. também o seu art. 630º, nº 2), ou que lhe restava, era a impugnação, por via de recurso, da decisão que já a apreciou nesta acção, indeferindo-a.
Portanto, julgamos estar, em ambos os casos, perante caso julgado formal (art. 620º, desse Código), que impede aqui a sua discussão de qualquer uma dessas questões.

No que respeita ao recurso da Autora Maria, essas mesmas questões são suscitadas, com um figurino diverso.
Esta Recorrente omite qualquer referência à impugnação de outra decisão além da sentença, no requerimento que dirige ao Tribunal a quo.
Porém, naquele que dirige a este Tribunal de apelação, a Autora começa por acrescentar que pretende sindicar também a nulidade invocada em sede de audiência de discussão e julgamento no dia 14.4.2016, que foi objecto de indeferimento.

No entanto, sem nexo com esse objecto, acrescenta nas suas alegações (e posteriormente em sede de conclusões) também um pedido de revogação do antecedente despacho proferido na mesma data, que indeferiu a prova testemunhal em discussão.

Relativamente a esta última pretensão, contrariamente ao invocado pela, Recorrente, estamos aquém da sindicância prevista no invocado nº 3, do art. 644º, do C.P.C.. Como acima se defendeu, o indeferimento desse meio probatório, que acima se enquadrou na previsão especial do art. 644º, nº 2, al. d), há muito que devia ter sido questionado, tendo, por isso, essa decisão formado caso julgado sobre essa matéria que impede a sua discussão neste mesmo processo, pelo que, nessa parte, também este recurso deve improceder liminarmente, o que se declara.
No que respeita ao recurso da subsequente decisão que indeferiu a nulidade arguida pela Apelante, esse sim cabível na previsão do citado nº 3, do art. 644º, julgamos que carece de sustento.
E isso sucede, desde logo porque, ressalvado o devido respeito pelas posições contrárias citadas pelos Recorrentes, entendemos que, em rigor, não existe na alegada falta do Tribunal qualquer vício subsumível à previsão do art. 195º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Essa norma estabelece que (1) fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.

Estamos aqui a falar, tal comentava Alberto dos Reis com respeito à redacção original do Código de Processo Civil de 1939, de infracções relevantes ou irrelevantes (5). (…) A nulidade só aparece quando se verifica um destes casos: a) Quando a lei expressamente a decreta; b) Quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão a causa. (…) Os actos do processo têm uma finalidade inegável: assegurar a justa decisão da causa; e como a decisão não pode ser conscienciosa e justa se a causa não estiver convenientemente instruída e discutida, seque-se que o fim geral que se tem em vista com a regulação e organização dos actos de processo está satisfeito se as diligências, actos e formalidades que se praticaram garantiram a instrução, a discussão e o julgamento regular do pleito; pelo contrário, o referido fim mostrar-se-á prejudicado se se praticaram ou omitiram actos ou deixaram de observar-se formalidades que comprometem o conhecimento regular da causa e portanto a instrução, a discussão ou o julgamento dela.

Na situação descrita pela Apelante e relatada nos autos, o que se constata é que, perante pedido seu de audição de determinadas testemunhas, por via do disposto no art. 526º, do Código de Processo Civil, o Tribunal proferiu decisão que consumiu e exauriu essa questão de acordo com as regras processuais em vigor.

Assim, o Tribunal não omitiu nenhum acto ou formalidade: antes decidiu que não ia praticar esse acto, fundamentando a sua decisão negativa de forma que se tornou inatacável, por via do citado trânsito em julgado.

Como refere Lebre de Freitas (6), ainda sobre a idêntica norma do art. 201º, do Código de Processo Civil revogado em 2013, a nulidade do acto processual, de que cuida em geral o art. 201º [actual art. 195º], distingue-se das nulidades das decisões, do erro material, da ambiguidade da decisão, e do erro de julgamento (de facto e de direito). Estes são vícios de conteúdo, aqueles (do art. 195º) respeitam à própria existência do acto ou às suas formalidades.

Assim também, quando um despacho judicial aprecia a nulidade dum acto processual ou, fora do âmbito da adequação formal do processo, admite a prática dum acto da parte que não podia ter lugar, ordena a prática dum acto inadmissível ou se pronuncia no sentido de não dever ser praticado certo acto prescrito por lei, a questão deixa de ter o tratamento das nulidades para seguir o regime do erro de julgamento, por a infracção praticada passar a ser coberta pela decisão, expressa ou implícita, proferida, ficando esgotado, quanto a ela, o poder jurisdicional (art. 666º-1)[actual art. 613º]. É o que usa ser traduzido com o aforismo “das nulidades reclama-se; dos despachos recorre-se”

Com refere Alberto dos Reis (7): A arguição da nulidade só é admissível quando a infracção processual não está ao abrigo de qualquer despacho judicial; se há um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou a omissão do acto ou da formalidade, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade que se tenha cometido, não é a arguição ou reclamação por nulidade, é a impugnação do respectivo despacho pela interposição do recurso competente.

Com bem acrescenta este Professor (8), com pertinência para a forma como os Apelantes abordaram a questão, se em vez de se recorrer do despacho, se reclamasse contra a nulidade, ir-se-ia pedir ao juiz que alterasse ou revogasse ou seu próprio despacho, o que é contrário ao princípio de que, proferida a decisão, fica esgotado o poder jurisdicional de quem decidiu.

No caso, não há dúvida de que o despacho que antecedeu a arguição da nulidade por parte da Apelante, emitiu expressa pronúncia sobre a mesma questão pelo que, o que ambos os Apelantes pretendiam, em bom rigor, era que este Tribunal, em face de uma decisão da qual não se recorreu oportunamente, antes se reclamou por alegada nulidade, violasse o seu caso julgado, admitindo aquilo que há muito fora rejeitado no processo!
Em face do exposto, julgamos improcedente a arguida nulidade e a impugnação da decisão que dela conheceu.

3.3. Da alegada violação do disposto no art. 639º, do C.P.C.

O Recorrido Manuel defende que os recursos interpostos pelos Recorrentes não cumprem o ónus processual de sintetizar, em conclusões, as suas alegações, pelo que devem ser rejeitados.
Talvez por isso, o Recorrido Eugénio tenha produzido a correcção acima relatada, sem que tenha tido posteriormente outra reacção deste contra-alegante.

Olhando a qualquer uma das peças processuais em apreço, julgamos que não existe qualquer violação do dever de síntese previsto no citado art. 639º, nº 1, pelo que julgamos improcedente essa excepção.

3.4. REAPRECIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO JULGADA

Nos termos do Artigo 640º, nº 1, do Código de Processo Civil,

«Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”

No que toca à especificação dos meios probatórios, incumbe ainda ao recorrente «Quando os meios probatórios invocados tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes” (Artigo 640º, nº 2, al. a) do Código de Processo Civil).

3.4.1. Começando por analisar a impugnação motivado pelo falecido Eugénio, interessa frisar que a sua apreciação obedece aos contornos ditados por este normativo (art. 640º, do C.P.C.), e pelo enquadramento que vem sendo feito da intervenção deste instância em sede de recurso, que tenha por objecto o alegado erro de julgamento.

Resulta desta norma, desde logo, que ao apelante se impõem diversos ónus em sede de impugnação da decisão de facto, sendo o primeiro o ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida, o que implica a análise crítica da valoração da prova feita em primeira instância, tendo como ponto de partida a totalidade da prova produzida em primeira instância.

A este propósito, escreveu-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24.5.2016, Maria Amélia Ribeiro, 1393/08, «É ao impugnante que cumpre convencer o Tribunal de recurso que a primeira instância violou as regras de direito probatório aquando da apreciação dos meios de prova. Não basta uma mera contraposição de meios de prova (ainda que não constantes dos indicados na fundamentação do tribunal): é necessário que a parte que recorre proceda, ela própria, a uma análise crítica da apreciação do tribunal a quo, demonstrando em que pontos o Tribunal se afastou do juízo imposto pelas regras legais, dos princípios, das regras da racionalidade e da lógica ou da experiência comum» (sublinhado nosso).

Acresce que, para que tal impugnação não configure uma repetição do julgamento, vêm sendo considerado pela jurisprudência que essa tem de, para respeitar o preceituado no citado art. 640º, nº 1, do Código de Processo Civil, tender para a individualização da crítica, fundamentação e proposta de decisão.

É isso que se vem preconizando neste Tribunal e é conferido, v.g., no recente Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 20.12.2017 (9), com a seguinte síntese: I - A alínea b), do nº 1, do art. 640º do CPC, ao exigir que o recorrente especifique “[o]s concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida”, impõe que esta concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respectivos meios de prova, documental e/ou testemunhal e das passagens de cada um dos depoimentos. II - Não cumpre aquele ónus o apelante que, nas alegações e nas conclusões, divide a matéria de facto impugnada em três “blocos distintos de factos” e indica os meios de prova relativamente a cada um desses blocos, mas omitindo-os relativamente a cada um dos concretos factos cuja decisão impugna.

Igualmente em diversos arrestos deste Tribunal da Relação, se tem defendido esse entendimento, de que é exemplo o texto por nós subscrito da Des. Eugénia Cunha (10), que se debruça sobre esta questão e que se sumariou da seguinte forma: Não cumpre os ónus da impugnação da decisão da matéria de facto, a que alude o nº1, do art. 640º, do CPC, o recorrente que não faz concreta e especificada (ponto por ponto) análise crítica das provas.
Nesta caso, o Recorrente não cumpriu esse ditame no seu articulado de recurso aperfeiçoado a fls. 670 e ss., antes tendo optado por dirigir de forma global a sua impugnação ao conjunto de factos de I a XI, não provados, e 21) e 23), provados, apelando a toda a prova que indica e “toda a prova produzida em audiência”, para, sem um análise minimamente concretizada respeitadora daquela exigência, pedir também em bloco, a decisão positiva ou negativa dos mesmos, como conclui, v.g., em Al), AM) e AT).
Em face dessa imprópria impugnação da decisão, desrespeitando o disposto no citado art. 640º, nº 1, decidimos aqui rejeita-la, conforme a cominação aí estabelecida, sem prejuízo de, atenta a sua similitude de argumentos, se dever atentar no desfecho que sempre teria e infra se explana, pelo menos em parte.

3.4.2. No que concerne ao recurso nessa matéria interposto pela Recorrente Maria, estamos também perante uma tendência generalizadora que no entanto é mitigada, com alguma confusão, em alegações e conclusões que misturam argumentos de forma relativamente desorganizada.
A tal ponto que olhando ao seu texto, percebemos que foi completamente esquecida a específica fundamentação da impugnação da decisão dos itens X e XI da decisão negativa em crise e 21. e 23. da decisão positiva.

Para além da afirmação de intenções, no início das suas alegações, a Recorrente basta-se, nas suas conclusões 5ª e 30ª, com mais do mesmo, reportando-se de forma genérica a tal matéria, sem concretizar quais os meios de prova que impõem concretamente a decisão diversa que pretende.

Pelo exposto, nessa parte, estamos também perante um incumprimento do ónus imposto pelo art. 640º, nº 1, al. b), do Código de Processo Civil, pelo que se rejeita, quanto à mesma, o recurso em apreço.
*
Antes de passarmos à discussão dos argumentos esgrimidos pelos alegantes e pela decisão recorrida quando à restante matéria em causa neste outro recurso, à que acrescentar ao enquadramento já acima enunciado que cabe ao apelante actuar numa dupla vertente: (i) rebater, de forma suficiente e explícita, a apreciação crítica da prova feita no tribunal a quo, (ii) tentando demonstrar que a prova produzida inculca outra versão dos factos que atinge o patamar da probabilidade prevalecente. Assim, não chega sinalizar a existência de meios de prova em sentido divergente, cabendo ao apelante aduzir argumentos no sentido de infirmar diretamente os termos do raciocínio probatório adotado pelo tribunal a quo, evidenciando que o mesmo é injustificado e consubstancia um exercício incorreto da hierarquização dos parâmetros de credibilização dos meios de prova produzidos, ou seja, que é inconsistente.

Como acentua Pedro Damião e Cunha, (11) o âmbito da apreciação que pretendem os apelantes, não contende com a ideia de que o Tribunal da Relação deve realizar, em sede de recurso, um novo julgamento na 2ª Instância, prescrevendo-se tão só “ … a reapreciação dos concretos meios probatórios relativamente a determinados pontos de facto impugnados… “ (12).

Assim, o legislador, no art. 662º, nº1 do CPC, “ … ao afirmar que a Relação aprecia as provas, atendendo a quaisquer elementos probatórios… pretende que a Relação faça novo julgamento da matéria de facto impugnada, vá à procura da sua própria convicção, assim se assegurando o duplo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto em crise… “ (13).

Destas considerações, resulta, de uma forma clara, que o âmbito da apreciação do Tribunal da Relação, em sede de impugnação da matéria de facto, estabelece-se de acordo com os seguintes parâmetros:

a) O Tribunal da Relação só tem que se pronunciar sobre a matéria de facto impugnada pelo Recorrente;
b) Sobre essa matéria de facto impugnada, o Tribunal da Relação tem que realizar um novo julgamento;
c) Nesse novo julgamento o Tribunal da Relação forma a sua convicção de uma forma autónoma, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não só os indicados pelas partes).
Pode inclusivamente, verificados determinados requisitos, ordenar a renovação da prova (art. 662º, nº2, al a) do CPC) e ordenar a produção de novos meios de prova (al b)) (14).

Dentro destes parâmetros, o Tribunal da Relação, assumindo-se como um verdadeiro Tribunal de Substituição (15), está em posição de proceder à reavaliação da matéria de facto especificamente impugnada pelo Recorrente, pelo que neste âmbito a sua atuação é praticamente idêntica à do Tribunal de primeira Instância, apenas cedendo nos fatores da imediação e da oralidade.

Na verdade, este controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialeticamente na base da imediação e da oralidade.

Efetivamente, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova (consagrado no artigo 607.º, nº 5 do CPC) que está deferido ao tribunal da 1ª instância, sendo que, na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação vídeo ou áudio, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente imperceptível na gravação/transcrição (16).

Ora, contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objeto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objetivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.

“O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado” (17).

De facto, a lei determina expressamente a exigência de objetivação, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (artigo 607.º, nº 4 do CPC).

Todavia, na reapreciação dos meios de prova, a Relação procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção, desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria, com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância (18).

Impõe-se-lhe, assim, que “analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, quer a testemunhal, quer a documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar a sua própria e autónoma convicção, que deve ser fundamentada” (19) (26).

Importa, porém, não esquecer porque, como atrás se referiu, se mantêm vigorantes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.

Assim, a alteração da matéria de facto só deve ser efetuada pelo Tribunal da Relação quando este Tribunal, depois de proceder à audição efetiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança (20), no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direção diversa, e delimitaram uma conclusão diferente daquela que vingou na primeira Instância.
*
A Apelante começa por sindicar a factualidade dada como assente nos itens I. a III. da decisão negativa impugnada.

Nesses pontos o Tribunal a quo julgou indemonstrado que:

I. O falecimento de Augusta ocorreu na sequência de um ataque com marradas de um carneiro que se encontrava na posse dos Réus José e esposa Teresa, mas pertencente a Manuel.
II. Em consequência do ataque do carneiro a vítima sofreu lesões traumáticas, torácicas, abdominais e dos membros, associadas a choque hipovolémico por hemorragia maciça que foram causa da sua morte.
III. O referido animal atacou a vítima quando esta passava no Caminho do Rego, encontrando-se este a pastar no trajecto do referido caminho.

O Tribunal a quo, depois enunciar criticamente todos os elementos de prova cuja avaliação julgou pertinente para a decisão proferida, concluiu o seguinte: Ou seja, ninguém viu o sucedido com a infeliz vítima. A PJ orientou a sua investigação em função do depoimento de uma testemunha que não merece, no nosso entender, qualquer credibilidade. O relatório de autópsia não é conclusivo. Mesmo que tivéssemos a certeza que a vítima foi atacada por um carneiro, como poderíamos saber se foi pelo carneiro que estava emprestado aos segundos RR.? Acrescentar ainda que o carneiro em questão tinha uma particularidade física que, no nosso entender, diminui a sua capacidade de agressão: não tinha corno esquerdo e apenas tinha uma pequena parte do corno direito, tal como resulta das fotografias a cores de fls. 30 dos autos de inquérito da PJ). Não foi feita prova de que o carneiro estava a pastar no local onde a vítima foi encontrada. Além disso, foram efectuadas três zaragatoas de esfregaço ao carneiro: no corno A1), na zona da cabeça entre os cornos (A2) e no focinho (A3). Os exames laboratoriais feitos às zaragatoas, relativamente à pesquisa de sangue, foram negativos para duas das zaragatoas e duvidosos para uma delas (ver relatório de fls. 34 ss dos autos de inquérito). Os segundos RR. provaram que respeitaram todos os deveres de diligência e zelo, mantendo o rebanho sempre em local vedado. O 1º R. provou que o empréstimo do animal foi feito a título gratuito e sem qualquer interesse ou proveito da sua parte.

No início da sua argumentação, a Recorrente começa por lembrar o que ficou dito em 6) dos factos assente (lesões que podem ter causado a morte da falecida Glória), e evidenciar a prova produzida com as declarações do médico Francisco que, assentemos, não tem qualquer relevo nestes autos para além daquele que teria qualquer outra testemunha, ou seja, o de reproduzir factos históricos a que assistiu, neste caso como sua particular intervenção no exame forense realizado no inquérito crime apensado. A nosso ver, de forma inadequada, essa testemunha estendeu-se em apreciações científicas que não são admissíveis neste tipo de prova, sendo sim permitidas em prova pericial que deve obedecer às regras previstas nos arts. 467º e ss., do Código de Processo Civil. No entanto, no âmbito da sua livre apreciação, o Tribunal recorrido, com a concordância das partes, acabou por considerar boa esta prova e a documental (relatório forense junto aos autos e ao apenso) que atestam a causa provável da morte (assente em 6)), desconsiderando no entanto o nexo que essa mesma pretendeu estabelecer entre as lesões apresentadas e a sugerida hipótese de as mesmas terem origem nas marradas do dito carneiro. E com efeito, esta prova, por si só, não possibilitaria nunca essa convicção, já que a testemunha não assistiu aos factos e, como acentua a decisão em crise, se reportou a dados trazidos por outros intervenientes processuais, comuns ao inquérito crime e esta demanda cível. Os sinais dessas lesões, como admite o relatório reproduzido pela testemunha, foram geradas por traumatismos de natureza contundente, que podem ter tido diversa origem similar e, à vista de um leigo, vão além de meras investidas de um só corno de 3,5 cm, que a investigação criminal sublinhou na sua tese.
Nesta medida, este dado probatória só teria relevo para decisão a proferir se estivesse devidamente alicerçada naquela que tentou indirectamente, e apenas dessa forma, colocar na cena do arquivado crime o ovino em questão.
Foi isso que a Recorrente tentou produzir com o depoimento das testemunhas que agora traz de novo à colação neste recurso: F. S., agente da P.J. que investigou os indícios relatados no inquérito crime apenso; M. J., genro da falecida que alegadamente acorreu ao local nos primeiros minutos em que encontraram a vítima, e Sofia, sobrinha da vítima, que também teria estado presente nesses momentos iniciais.

No que diz respeito à testemunha Francisco, como salientou a decisão recorrida, estamos perante outro depoimento de quem não assistiu aos factos. Este teve, é certo, acesso a uma privilegiada observação do local do evento, à vitima, ao suposto agressor e a uma colecção de depoimentos, mas esta circunstância não altera as limitações da sua razão de ciência e, também aqui, se estendeu o seu depoimento a aspectos completamente irrelevantes para a discussão da causa, tais como as opções investigatórias que tomou e as apreciações conclusivas e opinativas que só ao Tribunal e às partes, em alegações, caberia, no momento próprio, emitir. Esta testemunha, em bom rigor, relevaria na medida da credibilidade do que lhe foi transmitido pelas restantes (Manuel e Maria), já que do seu depoimento apenas podemos retirar com relevo aquilo em que directamente se envolveu, após evento. Retirados estes dados probatórios da equação, o seu depoimento não permitiria sequer distinguir as lesões apresentadas pela falecida ou pela testemunha Maria da provocada, v.g., por qualquer objecto ou instrumento contundente com as dimensões adequadas, como um vulgar cabo de enxada.

Descendo ao alicerce da fundamentação desta demanda e do recurso em apreço, encontramos os depoimentos de testemunhas (M. J. e Sofia), familiares próximos da vítima e dos Demandantes, a quem não pode, à partida, deixar de se atribuir presumidamente um interesse ou afinidade com o desfecho pretendido por estes para este caso. No entanto, essa limitação poderia ser ultrapassada se tivéssemos perante dados probatórios de natureza pessoal que fossem coerentes, entre si e com os demais elementos de prova analisados, o que, como pudemos observar nos depoimentos transcritos e gravados em áudio, não acontece neste caso: existem discrepâncias, notadas no contraditório exercido em audiência, que chegou ao ponto de se achar necessária uma acareação entre os dois, quanto ao tempo e modo como terá acontecido o relevante episódio em que a Sofia teria sido assediada pelo dito carneiro nos momentos seguintes ao encontro do corpo da vítima; estes depoimentos são, além disso, discrepantes com o que ficou distintamente registado em dados probatórios informais ao longo do referido inquérito crime mas, decisivamente, com os depoimentos reduzidos a escrito e subscritos pelos mesmos, que produziram no inquérito crime apenso (e que inclusive motivaram a “acareação” com a testemunha F. S.); acresce que o testemunho de M. J. é notadamente inseguro e incerto em alguns aspectos, adere facilmente à instância que lhe vão fazendo, faltando-lhe espontaneidade, coerência e segurança naquilo que afirma a medo ou opinativamente; por outro lado, o testemunho de Sofia, não padecendo dessa falha, apresentou fragilidades intrínsecas, como a que resulta da circunstância de se perceber do seu depoimento, porventura mal explicado, que esta passou nas duas vezes, pela dita passagem onde existiam as paletes, que deixou fechadas, mas só encontrou o rebanho (do qual o Manuel só viu carneiro!) na segunda vez, num recinto (o dito caminho) que dos elementos coligidos se percebeu que estava vedado, tendo sido alegadamente socorrida, quanto outros já encontravam no local (v.g., GNR, INEM) apenas pelo dito Manuel, deixando assim na família este episódio que surge na sequência.

É, por isso, nossa convicção assente nesta crítica, que estes últimos depoimentos não merecem credibilidade e, portanto, as opiniões ou pareceres que as restantes testemunhas agora indicadas e acima citadas fizeram, tendo como suporte esse dado probatório, carecem do valor pretendido pela Recorrente.
A esta conclusão não obvia a restante prova documental citada pela Recorrente, que em bom rigor transmite aquilo que aquelas duas primeiras testemunhas vieram dizer a juízo de uma forma mais ou menos assertiva.
Se tal não bastasse, note-se que a restante prova também não secunda essa versão dos acontecimentos, antes a pode contrariar, como é disso exemplo o resultado negativo da recolha de ADN feita nas extremidades agressoras do referido carneiro, documentado nos autos e a afirmação ainda mais estranha feita pelo falecido Eugénio em declarações de parte, reduzidas a escrito (fls. 416), em que o mesmo não reconhece o carneiro fotografado a fls. 50 do processo de inquérito como sendo o que existente no local à data dos factos.

Fica por isso prejudicada a apreciação de dados supostamente notórios sobre o comportamento, em geral, deste tipo de animais, com os quais o recurso pretendia complementar o seu raciocínio probatório, já que, como acima dissemos, não existe na prova produzida, nomeadamente a indicada, sequer sustento para imputar ao dito carneiro ou a outro qualquer, pertença ou não de um dos Réus, emprestado aos outros dois, que nem se sabe a final se foi o que foi objecto da investigação, a acção causal das lesões apuradas em 6).
Deve, portanto, improceder o seu recurso quanto aos citados itens I a III dos factos não provados, assim como o pedido feito em relação aos itens V e VI, que basicamente reproduzem a mesma matéria.

No que toca aos itens IV, VII. a IX. também não encontramos na prova indicada pela Recorrente esse substrato probatório. Inexiste nessa prova, nomeadamente a pessoal e documental que a impugnante cita como suporte
“inequívoco”, qualquer referência assertiva nessa matéria que importe um juízo diverso do do Tribunal recorrido. Aliás a testemunha Sofia diz mesmo que só viu lá aquele rebanho naquele encontro que não credibilizamos!

Deste modo, inexistem motivos para alterar estas decisões da primeira instância que aqui se devem manter de acordo com a doutrina e jurisprudência acima expostas.

3.5. FACTOS A CONSIDERAR

Os plasmados na decisão da primeira instância, para qual se remete aqui ao abrigo do disposto no art. 663º, nº 6, do Código de Processo Civil.

3.6. DO DIREITO APLICÁVEL

Mantendo-se a decisão da matéria de facto relevante para a impugnação de direito que fazem os Recorrentes, fica prejudicado o conhecimento dos respectivos argumentos jurídicos, que pressupunham a sua alteração no sentido proposto.
Pelo exposto, concordando-se com o julgamento feito nos aspectos por si discutidos, remete-se, no demais para a decisão recorrida (cf. arts. 608º, n.º 2, 663º, n.ºs 2 e 6, ambos do Código de Processo Civil.
Termos em que improcedem as apelações em apreço.
*
4. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedentes as apelações, confirmando-se, pois, a sentença recorrida.
Custas pelos apelantes, no caso do falecido Eugénio, na pessoa da sua representante actual nos autos (art. 527º, n.º 1, do C. P. Civil).
Guimarães, 17.5.2018

José Manuel Alves Flores
Sandra Maria Vieira Melo
Heitor Gonçalves


1. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2017, pp. 106.
2. Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, «Efetivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, Simas Santos, 07P2433, de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13.
3. Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 107.
4. In Recursos no Nono Código de Processo Civil, 4ª Ed., p. 170
5. Cf. Comentário ao Código de Processo Civil, vol 2º, 1945, p. 484.
6. Código de Processo Civil Anotado, vol. 1º, p. 350,
7. Ob. Citada, p. 507.
8. Ob. citada, p. 508.
9. In http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/65a7198626a4e86b802581fd0037ae0d?OpenDocument
10. Cf. Ac. de 5.4.2018, in http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/008a5597554d4a80802582720047a589?OpenDocument
11. Ac. deste Tribunal da Relação de Guimarães, de 14.6.2017, in http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/ac11179ce0357230802581990046e40b?OpenDocument
12. Abrantes Geraldes, In “Recursos no Novo Código de Processo Civil“, pág. 133;
13. Ac. do Stj de 24.9.2013 (relator: Azevedo Ramos) publicado na DGSI e comentado por Teixeira de Sousa, in “Cadernos de Direito Privado”, nº 44, págs. 29 e ss.;
14. Pode inclusivamente, verificados determinados requisitos, ordenar a renovação da prova (art. 662º, nº2, al a) do CPC) e ordenar a produção de novos meios de prova (al b));
15. Abrantes Geraldes, In “Recursos no Novo Código de Processo Civil“, pág. 266 “ A Relação actua como Tribunal de substituição quando o recurso se funda na errada apreciação dos meios de prova produzidos, caso em que se substitui ao tribunal de primeira Instância e procede à valoração autónoma dos meios de prova. Confrontada com os mesmos elementos com que o Tribunal a quo se defrontou, ainda que em circunstâncias não totalmente coincidentes, está em posição de formular sobre os mesmos um juízo valorativo de confirmação ou alteração da decisão recorrida… “;
16. De facto, “é sabido que, frequentemente, tanto ou mais importantes que o conteúdo das declarações é o modo como são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, etc.”- Abrantes Geraldes in “Temas de Processo Civil”, II Vol. cit., p. 201) “E a verdade é que a mera gravação sonora dos depoimentos desacompanhada de outros sistemas de gravação audiovisuais, ainda que seguida de transcrição, não permite o mesmo grau de percepção das referidas reacções que, porventura, influenciaram o juiz da primeira instância” (ibidem). “Existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores” (Abrantes Geraldes in “Temas…” cit., II Vol. cit., p. 273). 24.Miguel Teixeira de Sousa in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, p. 348.
17. Miguel Teixeira de Sousa in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, p. 348.
18. Cfr. acórdãos do STJ de 19/10/2004, CJ, STJ, Ano XII, tomo III, pág. 72; de 22/2/2011, CJ, STJ, Ano XIX, tomo I, pág. 76; e de 24/9/2013, disponível em www.dgsi.pt.
19. Cfr. Ac. do S.T.J. de 3/11/2009, disponível em www.dgsi.pt.
20. Segundo Ana Luísa Geraldes, in “ Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto” (nos Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas) Vol. I, pág. 609 “ Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte… “; no mesmo sentido, v. Miguel Teixeira de Sousa, in “Blog IPPC” (jurisprudência 623- anotação ao ac. da RC de 7/2/2017) onde refere: “É verdade que os elementos de que a Relação dispõe não coincidem -- nomeadamente, em termos de imediação -- com aqueles que a 1.ª instância tinha ao dispor para formar a convicção sobre a prova do facto. No entanto, isso não significa que, como, aliás, o STJ tem unanimemente entendido, nem que a Relação esteja dispensada de formar uma convicção própria sobre a prova do facto, nem que funcione uma presunção de correcção da decisão recorrida. Importa, pois, verificar quais os elementos que devem ser considerados pela Relação para a formação da sua convicção sobre a prova produzida. Quanto a estes elementos, há uma diferença entre a 1.ª instância e a Relação: a 1.ª instância apenas dispõe dos meios de prova; a Relação dispõe daqueles meios e ainda da decisão da 1.ª instância. Como é claro, esta decisão, cuja correcção incumbe à Relação controlar, não pode ser ignorada por esta 2.ª instância. É neste sentido que se pode afirmar que, no juízo sobre a confirmação ou a revogação da decisão da 1.ª instância, a Relação pode utilizar um critério de razoabilidade ou de aceitabilidade dessa decisão. Este critério conduz a confirmar a decisão recorrida, não apenas quando for indiscutível que a mesma é correcta, mas também quando aquela se situar numa margem de razoabilidade ou de aceitabilidade reconhecida pela Relação. Correspondentemente, a decisão deve ser revogada se a mesma se situar fora desta margem.”;