Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
349/16.0T8BGC-C.G1
Relator: JOSÉ AMARAL
Descritores: INSOLVÊNCIA
REMUNERAÇÃO DO FIDUCIÁRIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/30/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I) Na exoneração do passivo restante, durante o período de cessão de rendimentos pelo devedor insolvente ao fiduciário nomeado, tem este direito à remuneração pelo exercício das suas funções, mesmo que aquele nenhuma quantia entretanto lhe haja entregue.

II) Interpretando as normas respeitantes ao pagamento (designadamente o artº 30º, nº 1, da Lei nº 22/2013, de 26 de Fevereiro) e, para o efeito, recorrendo a elementos captáveis de ordem literal, racional, sistemática e teleológica, alcança-se como resultado hermenêutico que o legislador disse menos do que pretendia dizer, estando completamente fora do seu pensamento confiar em exclusivo a satisfação daquele direito à sorte da entrega ou não de rendimentos pelo devedor.

III) Tal como sucede quanto ao administrador judicial quando a massa insolvente é insuficiente ou não tem liquidez, também naquele caso deve ser o próprio Estado que, através do Tribunal, o nomeia para funções de interesse público e ligadas à justiça no domínio da insolvência, a suportar a remuneração e despesas em causa, por intermédio do respectivo organismo do respectivo Ministério (interpretação extensiva) – artº 9º, do Código Civil.

IV) À mesma conclusão, aliás, se chegaria se se considerasse estarmos ante uma lacuna da lei – artº 10º, do Código Civil. Nesta perspectiva, devendo entender-se que o caso deve ter uma solução jusnormativa (até por imperativo constitucional), que ele é análogo ao do administrador judicial e que a regulação daquele deve fazer-se segundo a deste, uma vez que nele confluem as razões justificativas da regulamentação do caso análogo, por tal regra deveria ser aquela integrada.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

Em processo, instaurado no Tribunal de Bragança, de insolvência de pessoas singulares (José e Maria), às quais foi concedido o benefício da exoneração do passivo restante por decisão de 26-09-2016, o respectivo Administrador e Fiduciário (AF) nomeado Francisco apresentou, em 08-11-2017, requerimento, juntando relatório do primeiro ano de exercício de funções.

Expôs as diligências feitas entretanto e respectivo resultado, avultando a informação de que os devedores não procederam à entrega de qualquer quantia, apesar de a tal estarem obrigados (um salário mínimo mensal, cada) e que o respectivo advogado o informou que não exerceram actividade alguma propiciadora de rendimento.

Como, perante isso, não pode retirar dela a sua remuneração percentual fixada na lei, entende que, mesmo assim, deverá ser remunerado pelo seu trabalho e reembolsado das despesas feitas, pedindo que lhe fosse fixada remuneração anual mínima, até ao momento, em valor nunca inferior a 5 UC´s, durante os cinco anos da cessão.
Com data de 16-11-2017, foi proferido o seguinte despacho:

“Preceitua o artigo 28.º da Lei n.º 22/2013, de 26.02, correspondente ao artigo 25.º da Lei n.º 32/2004, de 22.07, que "[aJ remuneração do fiduciário corresponde a l0 % das quantias objeto de cessão, com o limite máximo de (euro) 5000 por ano".

Resulta, pois, evidente que a remuneração do fiduciário pressupõe que haja cessão de rendimentos no período legal.

ln casu, os Insolventes não têm cedido qualquer quantia ao Fiduciário em favor dos credores da insolvência em virtude da sua situação de desempregados, pelo que todas as informações a prestar ao processo sobre a situação familiar e financeira dos Insolventes só o serão com uma periodicidade muito alargada, que o artigo 240.° do C.I.R.E. até prevê que seja anual, e na sequência de dados a serem fornecidos por aqueles - pois, a violação dolosa ou com negligência grave de alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.°, designadamente a obrigação de informar o fiduciário sobre os seus rendimentos e património (cfr. alínea a) do n.º 4), pode determinar a cessação antecipada do procedimento de exoneração.

Por essa razão, afigura-se-nos legalmente infundada a pretendida remuneração, quando a única função do Fiduciário nomeado nos presentes autos é receber as informações fornecidas pelo Insolvente sobre a sua situação e transmiti-las ao Tribunal com uma periodicidade anual.

Coisa bem diferente é o reembolso de despesas a que tenha direito desde que sejam comprovadas documentalmente e se mostrem necessárias e adequadas ao exercício das suas funções e na sequência das contas que o Fiduciário vier a apresentar no período da cessão (cfr. artigos 24º.º do CIRE e 22.º da Lei N.º. 22/2013. de 26.02), conforme, aliás, se deixou dito na decisão de deferimento do pedido de exoneração do passivo restante.

Pelo exposto, indefiro à atribuição de remuneração pretendida pelo Fiduciário enquanto não houver lugar a cessão de rendimentos por parte dos Insolventes.”

O requerente não se conforma e apela a que este Tribunal altere o decidido, das suas alegações de recurso concluindo:

I. Vem o presente recurso interposto do douto aliás despacho judicial, proferido a fls (…), com a referência 207303620, datado de 16-11-2017, no qual o Tribunal a quo determinou:
[transcrição do despacho recorrido já acima feita]
II. A respeito da remuneração do fiduciário, regula o n.º 1 do artigo 240.º do CIRE que a remuneração do fiduciário e o reembolso das suas despesas constitui encargo do devedor.
III. O Estatuto do Administrador de Insolvência, aprovado pela Lei 22/2013 de 26 de Fevereiro, contempla expressamente que a remuneração devida ao fiduciário corresponde a 10% das quantias objecto de cessão, com o limite máximo de 5.000,00€ por ano.
IV. O douto entendimento do Tribunal a quo ao indeferir o pedido de fixação de remuneração devida ao recorrente, não obstante a inexistência de qualquer quantia cedida, com o fundamento de que a responsabilidade pelo pagamento dos honorários corre por conta do devedor afronta a lei e é inconstitucional por permitir / prever trabalhar de forma gratuita.
V. O art.º 30.º do Estatuto do Administrador Judicial prevê a possibilidade do pagamento da remuneração do administrador da insolvência ser suportada pelo organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial do Ministério da Justiça, quando a massa insolvente for insuficiente para o efeito.
VI. Embora aí não seja contemplada norma equivalente para o fiduciário, quando não existam quantias cedidas pelo devedor, não pode deixar de equiparar-se as duas situações, sob pena, como se referiu, de poder chegar-se a uma situação em que o fiduciário está a exercer as funções para as quais foi nomeado pelo tribunal, sem auferir qualquer rendimento, o que pode ocorrer, caso aquelas quantias não existam.
VII. Conclui-se assim que o Tribunal a quo devia ter proferido despacho no sentido de fixar a remuneração mínima a pagar ao aqui recorrente, sendo que este solicitou, no mínimo, importância correspondente a 5UC, ordenando o seu adiantamento pelo Cofre Geral dos Tribunais, sendo essa, salvo o reiterado respeito, a mais correcta interpretação e aplicação da lei.
VIII. Destarte, o tribunal a quo ao indeferir a pretensão do aqui recorrente, está a coarctar o direito á remuneração pelo trabalho já desenvolvido como ainda aquele que vai desenvolver até ao termo do período global de cessão do rendimento disponível, causando-lhe um prejuízo que aqui se fixa na importância de €2.550,00 (dois mil, quinhentos e cinquenta euros) na sua totalidade.
IX. Outra interpretação não pode ser feita, pois se a situação de indisponibilidade do insolvente perdurar ao longo dos restantes anos de cessão do rendimento disponível, quer dizer que o Fiduciário ficará impossibilitado de recorrer da falta de fixação pelo Tribunal a quo da remuneração correspondente á actividade por si exercida, apenas porque se repartirá o prejuízo daí resultante por cinco distintos e sucessivos anos, quando, na verdade, a actividade em causa é uniformemente desenvolvida num período contínuo correspondente aos mesmos cinco anos.

Acresce que,
X. O recorrente não se cinge a peticionar ao Tribunal que lhe atribua certa quantia em dinheiro a título de remuneração anual, mas outrossim, peticiona que declare que a responsabilidade pelo pagamento seja imposta ao Estado, face à impossibilidade de se pagar através de uma percentagem do rendimento cedido, uma vez que este não existe.
XI. Sendo assim, não é possível equiparar nem reduzir o valor deste interesse ao valor daquele, muito menos por referência ao mínimo pedido pelo exercício dos primeiros três anos de cessão do rendimento disponível, quando as funções se estenderão por cinco anos.
XII. É certo e sabido que se desconhece se a falta de cessão de rendimento continuará e até quando.
XIII. E, por isso mesmo, a sucumbência se reveste de uma incerteza que torna duvidoso o seu valor quantitativo ou expressão económica.
XIV. Destarte, a douta aliás decisão de indeferimento da pretensão remuneratória do aqui recorrente, permite-lhe lançar mão do recurso, porquanto o prejuízo deste afere-se pelo não pagamento de qualquer quantia ao longo dos cinco distintos e sucessivos anos, em que a actividade em causa seja uniformemente desenvolvida num período continuo que corresponde aos 5 anos.

TERMOS EM QUE DEVERÁ O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE POR PROVADO E, EM CONSEQUÊNCIA, SER O DESPACHO OBJETO DE RECURSO REVOGADO E SUBSTITUIDO POR OUTRO QUE FIXE AO AQUI RECORRENTE HONORARIOS CORRESPONDENTES, NO MINIMO, A 5 UC
E ASSIM SE FARÁ A ACOSTUMADA JUSTIÇA.”.

Não houve qualquer resposta.

Foi admitido o recurso como de apelação, com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo.

Corridos os Vistos legais, cumpre decidir, uma vez que nada a tal obsta.

II. QUESTÕES A RESOLVER

Pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, sem prejuízo dos poderes oficiosos do tribunal, se fixa o thema decidendum e se definem os respectivos limites cognitivos. Assim é por lei e pacificamente entendido na jurisprudência – artºs 5º, 608º, nº 2, 609º, 635º, nº 4, 637º, nº 2, e 639º, nºs 1 e 2, do CPC.

No caso, importa apreciar e decidir se, no caso de o devedor nada ter cedido ao fiduciário e de, portanto, este não poder afectar qualquer quantia recebida à sua própria remuneração, deve esta ser paga pelo IGFPJ.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Relevam os constantes do relato antecedente, emergentes dos autos.

IV. APRECIAÇÃO

Sobre a precisa questão objecto deste recurso, vai-se firmando orientação jurisprudencial que já é praticamente pacífica, nesta e nalgumas outras Relações.

Em Colectivo integrado pelo mesmo relator e 1ª adjunta deste apreciou-se e decidiu-se já a mesma, no âmbito de recursos de apelação interpostos nos processos nº 3261/11.6TJVNF.G1, de 02-03-2017, e nº 2003/14.9TBBCL-D.G1, de 30-03-2017.

Por isso, pouco ou nada havendo de novo a acrescentar nem a alterar e na linha da referida orientação, a não ser, no fim, dar nota, de outros arestos em que se corroborou o nosso entendimento, pedimos licença para, sem mais nada ser necessário no caso, salvo quanto ao valor a fixar, aqui transcrever o que dissemos no nosso anterior Acórdão, reiterando como deste a fundamentação daquele:

“Estamos no âmbito de processo de insolvência, já decretada, relativo a pessoa singular e especificamente no domínio do incidente de exoneração do passivo restante, liminarmente deferido.

A decisão recorrida e o apelo dela trazido a este Tribunal inserem-se no período de cinco anos em curso no processo, designado como «período de cessão», em que o devedor está obrigado a entregar ao fiduciário (ora apelante) o seu rendimento disponível, e a questão concreta respeita à remuneração a este devida pelo exercício das suas funções.

Tal matéria tem a sua regulamentação especial prevista nos artigos 235º a 248º, do CIRE, particularmente, quanto à função, remuneração e estatuto do fiduciário, nos artºs 240º e 241º, do CIRE, e na Lei 22/2013, de 26 de Fevereiro.

Assim:

O artº 239º, nº 2, dispõe que, proferido o despacho inicial a admitir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante e a determinar que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (período de cessão), o devedor entregará o rendimento disponível que venha a auferir naquele período a uma entidade designada por fiduciário, sendo esta escolhida pelo tribunal, de entre os administradores inscritos na lista respectiva, nos termos e para os efeitos do artigo seguinte.

Este (240º) estabelece, no nº 1, que a remuneração do fiduciário e o reembolso das suas despesas constitui encargo do devedor. E, no nº 2, que lhe é aplicável o disposto no nº 1, do artº 60º, segundo o qual o administrador de insolvência nomeado pelo juiz tem direito à remuneração prevista no seu Estatuto e ao reembolso das despesas que razoavelmente tenha considerado úteis ou indispensáveis (salvaguardando o nº 2 o caso de ele ser eleito pela assembleia e a deliberação respectiva prever a remuneração).

Relativamente às funções, o artº 241º, norma que se manteve intocada pelas alterações introduzidas pela Lei 16/2012, prevê que o fiduciário afecta os montantes recebidos no final de cada ano em que dure a cessão:

a) Ao pagamento das custas do processo de insolvência ainda em dívida;
b) Ao reembolso ao Cofre Geral de Tribunais das remunerações e despesas do administrador de insolvência e do próprio fiduciário que por aquele tenham sido suportadas;
c) Ao pagamento da sua própria remuneração já vencida e despesas efectuadas.

Daqui se extrai que:

- É certo e indiscutível o direito do fiduciário (escolhido pelo Tribunal) à remuneração pelo exercício dessas específicas e diversas funções, direito esse que nada tem a ver com o do Administrador da Insolvência (ainda que porventura aquela escolha recaia sobre a mesma pessoa e, nesta outra qualidade e por estas funções, tenha sido retribuída).

- Aquela remuneração constitui encargo último do devedor.

- Tal encargo é satisfeito através dos montantes cedidos pelo insolvente (1) e entregues ao Fiduciário.

- Este pode afectar tais montantes – por si recebidos – ao pagamento da sua própria remuneração já vencida e despesas efectuadas, pagando-se, assim, a si próprio.

- Remunerações e despesas do próprio fiduciário haverá que, segundo a lei, tenham sido suportadas pelo CGT e de cujo pagamento este será, então, reembolsado (pelos montantes recebidos, se e quando os houver, claro!).

Considerando, pois, que os encargos estão abrangidos nas custas e que no respectivo conceito se compreendem todas as despesas resultantes da condução do processo, requeridas pelas partes ou ordenadas pelo juiz da causa, incluindo reembolso devido ao CGT pelo pagamento adiantado de remunerações a entidades pela prestação de quaisquer serviços requisitados pelo juiz (artºs 529º, nºs 1 e 3, 532º, do CPC, e 3º, nº1, 16º, e sgs, do RCP), percebe-se que, para o caso de o responsável último pela satisfação da remuneração devida ao fiduciário nenhum rendimento ter entregue a este por conta do qual possa pagar-se, a própria lei contempla e viabiliza a hipótese de ser o CGT a suportá-la.

Parece, assim, privilegiar-se um mecanismo de auto-pagamento se o Fiduciário houver recebido do insolvente qualquer montante.

Admite-se, não obstante, que seja o CGT a adiantar/suportar tal pagamento no caso de tal afectação não ser possível, designadamente por nenhum rendimento ter sido disponibilizado.

Tal como dispunha o artº 25º, da hoje revogada Lei 32/2004, de 22 de Julho, o artº 28º, da actual Lei 22/2013, de 26 de Fevereiro (Estatuto do Administrador Judicial), estabelece que a remuneração do fiduciário corresponde a 10% das quantias objecto de cessão, com o limite de €5000 por ano.

Desta norma, conjugada com aquela já citada do nº 1, do artº 240º, segundo a qual a remuneração constitui encargo do devedor, e a do nº 1, do artº 241º, que prevê a afectação dos montantes recebidos pelo fiduciário ao pagamento da sua própria remuneração, extrai alguma jurisprudência o entendimento de que, nenhum rendimento tendo sido cedido, nada tem aquele direito a receber, considerando, como neste caso se considerou no despacho recorrido, que “a lei é clara no sentido de que são 10% dos valores cedidos” e, assim, “não há fundamento legal para atribuir remuneração.”.[2]

Só que, parece-nos, não é – não pode ser – assim.

A lei é, de facto, inequívoca ao referir que o fiduciário tem direito a ser remunerado pelo exercício das suas específicas funções.

Estranho seria que ele congeminasse e criasse um mecanismo para efectivação daquele paradoxalmente conducente à sua negação, previsível como é – comprova-o a experiência de casos semelhantes – a eventualidade de, não raras vezes, nenhum rendimento ser cedido e, portanto, ficar o fiduciário, a considerar-se aquele como único meio, sem ter por onde se pagar, confiando assim a retribuição pela sua actividade à sorte da cedência.

Algo equívoco é, na verdade, dados os termos em que se encontra expresso e como ocorre quanto a múltiplos dos problemas originados pelo processo de insolvência, o regime de pagamento.

Isso, porém, significa que se impõe, em busca da justa solução, um trabalho de descoberta e revelação do verdadeiro sentido normativo das regras legais implicadas em vez de nos contentarmos com a sua leitura, interpretação e aplicação mecânicas, na esperança de uma “alteração legal”, que pode reputar-se de útil para evitar divergências mas porventura não de todo indispensável.

Como se sabe, toda a lei carece de ser interpretada e, mesmo considerando-se omissa, de ser integrada – artºs 9º e 10º, do Código Civil.

Ora, já acima encontrámos pistas seguras que nos levam a concluir que o próprio legislador acautelou a situação e admitiu o pagamento da remuneração pelo CGT.

Voltemos ao Estatuto citado e vejamos as que dele também se colhem no mesmo sentido.

O artº 2º, nº 2, define que o fiduciário é uma designação que, em função das específicas tarefas cometidas no âmbito do incidente de exoneração do passivo restante, se dá ao depositário e administrador das quantias cedidas pelo insolvente que constituem rendimento disponível, durante o período de cessão.

Não deixa ele, porém, de se incluir na categoria genérica do chamado “administrador judicial” e, por isso, na previsão ampla do artº 22º, segundo a qual este “tem direito a ser remunerado pelo exercício das funções que lhe são cometidas, bem como ao reembolso das despesas necessárias ao cumprimento das mesmas”.

De facto, o legislador ao atribuir a certas entidades um conjunto de tarefas parajudiciais, auxiliares da realização da justiça, exigindo-lhe apertadas condições para as poderem exercer e impondo-lhes responsabilidade pelo seu não cumprimento, outra coisa não podia fazer senão reconhecer o direito delas a serem remuneradas pelo seu labor.

Não admira que trace mecanismos de, sendo embora o Estado (ou o Juiz na realização de uma das tarefas fundamentais deste, constitucionalmente cometida, que é a de administrar a justiça) responsável pela nomeação, fazer repercutir o encargo do pagamento sobre quem dele beneficia, mais directa ou indirectamente.

Assim, o artº 23º, relativamente ao administrador judicial provisório e ao administrador de insolvência nomeado por iniciativa do juiz, prevê uma remuneração fixa (estabelecida em Portaria) e uma remuneração variável, esta em função do resultado da recuperação do devedor ou da liquidação da massa insolvente (nºs 1 e 2).

Quanto ao fiduciário, o artº 28º refere, apenas, que a sua remuneração corresponde a 10% das quantias objecto da cessão, com o limite máximo de 5000€.

No que concerne ao pagamento, porém, os subsequentes artigos 29º e 30º, do Estatuto, apenas se referem especificamente ao administrador da insolvência e não ao fiduciário, nem sequer genericamente como administrador judicial.

Privilegiando-se tal pagamento pela massa insolvente e mesmo através da retirada de valores desta, caso tenha liquidez (ou até pelos credores), regula-se o caso de insuficiência daquela e da falta desta, cometendo aquele ao organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial do Ministério da Justiça (vulgo, CGT).

Nada se explicita quanto à situação concreta aqui em apreço, relativa ao fiduciário, decorrente de o insolvente nenhum rendimento lhe entregar, muito embora a epígrafe do capítulo VI do Estatuto se intitule “Remuneração e pagamento do administrador judicial”, assim se não distinguindo, ao contrário do administrador da insolvência, nem contemplando o pagamento daquele (fiduciário), apesar de em tal conceito incluído e de, por isso mesmo, sujeito ao mesmo Estatuto.

Tudo indica, portanto, conjugando este regime – em que se prevê, sem dúvida, o direito do administrador judicial, incluindo o que exerce o cargo de fiduciário, à remuneração, se estabelecem critérios da sua determinação tanto os relativos ao administrador de insolvência (fixa e variável, em função de várias hipóteses) como os relativos ao fiduciário (10% das quantias objecto da cessão), bem assim se resolve a situação de insuficiência da massa ou falta de liquidez desta, incumbindo (com certas especificidades) o Estado de a suportar (não se afastando a consideração dos encargos que a tal título adiantar a título de custas, conforme em geral decorre do RCP) – com o regime dos artºs 240º e 241º, do CIRE – em que claramente se subentende o pagamento pelo CGT das remunerações e despesas do próprio fiduciário e sua posterior compensação através da afectação do rendimento disponibilizado –, que o legislador teve em mente prevenir a hipótese de a qualquer administrador judicial (seja o da insolvência seja o fiduciário) não poder ser paga a devida remuneração, segundo os mecanismos estabelecidos, encarregando o Estado de a adiantar.

Aconteceu, porém, que, não obstante esse evidente desígnio, nem no CIRE nem, como era sobretudo de esperar, no Estatuto ele exprimiu tal pensamento, objectiva e claramente, gerando assim uma das muitas perplexidades em que, neste domínio, a lei é fértil e cuja resolução cabe aos tribunais.

Resolvendo esta, tem a Jurisprudência entendido que:

“É admissível o pagamento de remuneração ao fiduciário por adiantamento do Cofre Geral dos Tribunais (hoje, Instituto de Gestão Financeira e Patrimonial da Justiça).” – Acórdão da Relação do Porto, de 07-01-2013, processo 419/12.4TBOAZ-F.P1 (Soares de Oliveira);

“Carecendo o devedor de meios para remunerar o fiduciário pelo exercício das suas funções este deve ser pago pelo IGFPJ.“ – Acórdão da Relação do Porto, de 10-09-2013, processo 1714/09.5TB VNG-J.P1 (Henrique Araújo);

“A responsabilidade pelo pagamento da remuneração e das despesas do fiduciário é, em primeira linha, do devedor, uma vez que deve ser suportado pelas quantias objecto da cessão, atento o disposto no art.º 241.º n.º 1 do CIRE e art.º 28.º do Estatuto do Administrador Judicial.

II - O fiduciário pode ver a sua remuneração e despesas suportadas pelo Cofre Geral dos Tribunais, que corresponde actualmente ao Instituto de Gestão Financeira e Patrimonial da Justiça, no valor devido pelo trabalho realizado e despesas suportadas, quando não existam quantias cedidas pelo devedor que permitam tal pagamento.
III - Do regime do art.º 241.º do CIRE, que manda afectar os montantes recebidos no final de cada ano em que dure a cessão, à remuneração ao fiduciário, retira-se que a fixação e o pagamento da remuneração deverá ocorrer no fim de cada ano, pois só nesse momento será possível saber se foram entregues valores pelo devedor que o permitam, bem como avaliar o trabalho desenvolvido.“ – Acórdão da Relação do Porto, de 28-10-2015, processo nº 347/13.6TJPRT.P1 (Inês Moura).

Também no mesmo sentido se orientaram as Decisões Singulares proferidas nesta Relação, de 12-07-2016 (processo 7345/12.5TBBRG.G1, Anabela Tenreiro) e de 20-07-2016 (processo 5051/12.0TBBRG.G1 (Antero Veiga).

Recorrendo, pois, nos termos do artº 9º, do Código Civil, aos elementos interpretativos focados, de ordem literal, racional, sistemática e teleológica, alcança-se como resultado hermenêutico que o legislador disse menos do que pretendia dizer, estando completamente fora do seu pensamento deixar em exclusivo a remuneração do fiduciário à sorte do recebimento por este de quaisquer quantias a título de rendimento disponível entregue pelo devedor, antes sendo evidente que, por identidade de razões, tal como sucede quanto ao administrador judicial quando a massa insolvente é insuficiente ou não tem liquidez, caso aquele de nenhum montante disponha, deve ser o próprio Estado que o nomeia para funções de interesse público no processo e ligadas à justiça no domínio da insolvência, através do CGT, a suportar a remuneração e despesas em causa.

Interpreta-se assim extensivamente, considerando neste abrangida a situação em apreço, o nº 1, do artº 30º, da Lei 22/2013, de 26 de Fevereiro.

À mesma conclusão, aliás, se chegaria – de que também a remuneração do fiduciário caso nenhuma quantia lhe seja entregue pelo insolvente deve ser suportada pelo organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial do Ministério da Justiça – se se considerasse estarmos ante uma lacuna da lei.

Nessa perspectiva, não poderíamos deixar de entender que o caso deve ter uma solução jusnormativa (até por imperativa constitucional), que ele é análogo ao do administrador judicial e que a regulação daquele deve fazer-se segundo a deste, uma vez que nele confluem as razões justificativas da regulamentação do caso análogo, logo que também por via do artº 10º, do Código Civil, assim aquela deve ser integrada.[3]

Não se acolhe, enfim, a tese por que pugna o Ministério Público nas suas contra-alegações no sentido de que a do apelante apenas é “moralmente inteligível” mas juridicamente inatendível.[4]

Na verdade, não se vê como pudesse o legislador ter querido e assumido que o fiduciário, em caso de nenhuma quantia a este ser entregue pelo insolvente, jamais seria remunerado, contra os princípios básicos neste domínio laboral consagrados na lei fundamental e na geral, pelo exercício de funções para cujo acesso lhe é feito um conjunto específico de exigências e a que é chamado pelo Estado, colocando-o em desigualdade com o administrador de insolvência.

Acolher-se-ia uma solução frustrante de expectativas e da confiança gerada pelo Estatuto do administrador judicial, manifestamente desalinhada com o sistema remuneratório estabelecido para os demais cargos (maxime o de administrador judicial em insolvência), sem justificação discernível, contra a racionalidade que informa e enforma o sistema. É que o direito à retribuição, embora contemplando diversos critérios e modos diferenciadores, não abdica de mecanismos de efectivação.

Como procurámos demonstrar, o pagamento através do organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial da justiça tem na letra da lei um “mínimo de correspondência” e ressuma do espírito com que o legislador tencionou regular as diversas situações. Logo, a interpretação ou integração que preconizamos não é contra legem mas secundum legem.

Claro que o pagamento da remuneração ao fiduciário pelo dito organismo e não na percentagem de 10% das quantias cedidas, talqualmente sucede com o administrador de insolvência em caso de insuficiência ou falta de liquidez da massa, pode conduzir, na prática, a sempre lamentáveis distorções, quiçá a injustiça relativa, decorrentes da insuficiência do sistema que o legislador não cura de colmatar. Todavia, se isto deve animá-lo ao seu aperfeiçoamento não pode servir de motivo para acolher a injustiça maior de deixar sem qualquer remuneração o fiduciário em tais circunstâncias.”

Tal entendimento foi reiterado no Acórdão desta Relação de 23-02-2017 (5), de cujo sumário se colhe:

“I - A responsabilidade pelo pagamento da remuneração e das despesas do fiduciário é, em primeira linha, do devedor, uma vez que aquelas devem ser suportadas pelas quantias objecto da cessão.
II – Quando não existam quantias cedidas pelo devedor que permitam o seu pagamento, o valor devido pelo trabalho realizado e despesas comprovadas, será adiantado/suportado pelo organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial do Ministério da Justiça.”

Bem assim nas apelações nº 1299/13.8TBBCL-E.G1, decidida por Acórdão de 16-03-2017, e nº 1714/14.3TBBCL-B.G1, decidida por Acórdão de 14-06-2017 (supõe-se que não publicados) (6).

E, enfim, no Acórdão de 04-05-2017 (7), cujo sumário reza:

“I. A responsabilidade pelo pagamento da remuneração e das despesas do fiduciário é, em primeira linha, do devedor, uma vez que o dito pagamento deve ser suportado pelas quantias objecto da cessão (art. 240º, n.º 1 do C.I.R.E. e art. 28º do Estatuto do Administrador Judicial, aprovado pela Lei nº 22/2013, de 26 de Fevereiro).
II. Contudo, quando não existam rendimentos cedidos, ou sejam insuficientes para o efeito, o pagamento da remuneração e das despesas do fiduciário deverá ser adiantado pelo organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial do Ministério da Justiça, sem prejuízo do seu eventual e futuro reembolso (art. 241º, nº 1, al. b) do C.I.R.E. e art. 30º, nº 1 do Estatuto do Administrador Judicial, este último interpretado extensivamente, nos termos do art. 9º do C.C.).
III. Na remuneração a arbitrar, segundo a equidade, deverão ser ponderados o volume de trabalho realizado, o grau de dificuldade do encargo, os valores económicos envolvidos no processo, a diligência manifestada pelo fiduciário no prosseguimento das suas funções, e a disponibilidade manifestada pelo mesmo para colaborar com o Tribunal, tendo como limite máximo o resultante do art. 30º, nº 2 do Estatuto do Administrador Judicial, conjugado com a Portaria nº 51/2005, de 20 de Janeiro.
[…].”.

E de cujo texto fundamentador, dada a excelência com que o tema exaustivamente foi ali tratado, nos permitimos data venia transcrever:

4.1.2. Remuneração do fiduciário - Regime regra

Lê-se no art. 240º, nº 1 do C.I.R.E. que a «remuneração do fiduciário e o reembolso das suas despesas constitui encargo do devedor».

Mais se lê, no nº 2 do art. 240º citado (aqui, com bold apócrifo), que são «aplicáveis ao fiduciário, com as devidas adaptações, (…) o disposto no nº 1 do artigo 60º», onde nomeadamente se lê que o «administrador da insolvência nomeado pelo juiz tem direito à remuneração prevista no seu estatuto e ao reembolso das despesas que razoavelmente tenha considerado úteis ou indispensáveis».

Compulsado o Estatuto do Administrador Judicial (aprovado pela Lei nº 22/2013, de 26 de Fevereiro), lê-se no seu art. 28º que a «remuneração do fiduciário corresponde a 10% das quantias objecto de cessão, com o limite máximo de 5.000 por ano», já que se pressupõe o exercício das suas funções pelo completo período de cinco anos em que deverá durar a cessão.

Por fim, lê-se no art. 241º, nº 1 do C.I.R.E. que o «fiduciário notifica a cessão dos rendimentos do devedor àqueles de quem ele tenha direito a havê-los, e afecta os montantes recebidos no final de cada ano em que dure a cessão: a) ao pagamento das custas do processo de insolvência ainda em dívida; b) ao reembolso ao Cofre Geral dos Tribunais das remunerações e despesas do administrador da insolvência e do próprio fiduciário que por aquele tenham sido suportadas; c) ao pagamento da sua própria remuneração já vencida e despesas efectuadas; d) à distribuição do remanescente pelos credores da insolvência».

Resulta assim expressamente, da consideração conjunta dos preceitos legais citados, que:

. é certo e indiscutível o direito do fiduciário à remuneração pelo exercício das suas específicas funções (direito esse que nada tem a ver com o do administrador da insolvência, ainda que porventura coincidam na mesma pessoa ambas as qualidades, e nesta outra - e por estas outras funções - já tenha sido retribuído);
. é o devedor quem paga, através do rendimento cedido aos credores, a remuneração e as despesas do fiduciário;
. a afectação dos montantes do rendimento do devedor cedidos (incluindo os destacados para pagamento da remuneração e das despesas do fiduciário) é feita no final de cada ano de duração da cessão;
. o pagamento é feito pela ordem indicada na lei (isso é, só são efectuados os pagamentos da categoria subsequente quando se encontrar satisfeito integralmente satisfeito o pagamento da categoria precedente);
. existe a possibilidade da remuneração e das despesas do fiduciário terem sido suportadas pelo organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial do Ministério da Justiça (devendo, logo que se verifique existirem montantes recebidos, proceder-se ao respectivo reembolso).
*
4.1.3. Regime excepcional - Ausência de rendimento cedido

Vem-se, porém, colocando a questão de saber se, quando as quantias objecto da cessão não existam ou sejam insuficientes para o pagamento da remuneração e das despesas do fiduciário (o que até não será raro, considerando as prioridades para a afectação das quantias cedidas estabelecidas no art. 241º, nº 1 do C.I.R.E.), o mesmo deverá, ou não, ficar sem remuneração, e sem o reembolso das despesas que haja realizado.

Assim, quem procede a uma interpretação literal do art. 240º, nº 1 do C.I.R.E. defende que, nesses casos, não se procederá ao pagamento de qualquer remuneração do fiduciário, nem ao reembolso das suas despesas (já que, de acordo com aquele preceito, uma e outras constituem «encargo devedor»).
Outros, porém, recordando que a «interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada» (art. 9º, nº 1 do C.C.), defendem que o pagamento da remuneração, e o reembolso das despesas, continua a ser devido, sendo assegurado pelo I.G.F.E.J..

Sufraga-se aqui este segundo entendimento, nomeadamente mercê da consideração:

. da letra da lei

Lê-se no art. 241º, nº 1, al. b) do C.I.R.E. que o fiduciário «afecta os montantes recebidos, no final de cada ano em que dure a cessão, ao reembolso ao Cofre Geral dos Tribunais das remunerações e despesas do administrador de insolvência e do próprio fiduciário que por aquele tenham sido suportadas».
Logo, prevê-se expressamente a hipótese de ser o Cofre Geral dos Tribunais a adiantar tal pagamento; e, assim, admite-se necessariamente que possa vir a não ser reembolsado, designadamente por nenhum rendimento ter sido disponibilizado.
Mais se lê, no art. 2º, nº 2 do Estatuto do Administrador Judicial (aprovado pela Lei nº 22/2013, de 26 de Fevereiro), que o «administrador judicial designa-se por administrador judicial provisório, administrador de insolvência ou fiduciário, dependendo das funções que exerce no processo, nos termos a lei»; e lê-se no art. 22º do mesmo diploma que o «administrador judicial tem direito a ser remunerado pelo exercício das funções que lhe são cometidas, bem como ao reembolso das despesas necessárias ao cumprimento das mesmas».
Logo, prevê-se expressamente, sem qualquer restrição, que o administrador judicial (onde necessariamente se inclui o fiduciário) tenha direito àqueles pagamento e reembolso.

. da teleologia da norma

Lendo-se nos arts. 240º, nº 1 e 60º, nº 1, ambos do C.I.R.E. (o segundo aqui aplicável por remissão do nº 2 do primeiro), que o fiduciário «tem direito à remuneração prevista no seu estatuto e ao reembolso das despesas que razoavelmente tenha considerado úteis ou indispensáveis», e sendo o mesmo um qualificado colaborador do Tribunal, na prossecução dos fins do processo de insolvência, e escolhido por ele, não se vê como pudesse vir a ficar sem retribuição, e/ou sem o reembolso das despesas exigidas pelo exercício das suas funções.

Por outras palavras, «o legislador ao atribuir a certas entidades um conjunto de tarefas parajudiciais, auxiliares da realização da justiça, exigindo-lhe apertadas condições para as poderem exercer e impondo-lhes responsabilidade pelo seu não cumprimento, outra coisa não podia fazer senão reconhecer o direito delas a serem remuneradas pelo seu labor» (Ac. da RG, de 02.03.2017, José Amaral, Processo nº 3261/11.6TJVNF.G1, com bold apócrifo).
Ora, sendo indiscutível o direito do fiduciário à retribuição, indiscutível terá de ser ainda a respectiva efectivação (sob pena de se esvaziar de conteúdo útil os preceitos que expressamente consagram a primeira, e de se frustrarem as legítimas expectativas daquele, isto é, de ser ver pago pelo exercício de funções para cujo acesso lhe foi feito um conjunto específico de exigências, e a que foi chamado pelo próprio Estado).

. da unidade do sistema jurídico

Lê-se no art. 30º, nº 1 do Estatuto do Administrador Judicial (aprovado pela Lei nº 22/2013, de 26 de Fevereiro), que nas «situações previstas nos artigos 39º e 232º do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas [encerramento do processo por insuficiência da massa insolvente], a remuneração do administrador da insolvência e o reembolso das despesas são suportadas pelo organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial do Ministério da Justiça».
Precisa-se ainda, no nº 2 do art. 30º citado, que, nos casos previstos no art. 39º do C.I.R.E., «a remuneração do administrador da insolvência é reduzida a um quarto do valor fixado pela portaria referida no nº 1 do artigo 23º», isto é, a Portaria nº 51/2005, de 20 de Janeiro, cujo art. 1º estabelece o valor de € 2.000,00 (coincidindo, por isso, aquele quarto com € 500,00).
Tendo em conta que, quer o administrador da insolvência, quer o fiduciário, são «administrador judicial», se encontram submetidos ao mesmo Estatuto do Administrador Judicial, o Capítulo VI deste ter como epígrafe «Remuneração e pagamento do administrador judicial», consagrar-se no seu art. 22º o direito de qualquer deles à remuneração de funções e ao reembolso de despesas, e ponderando-se ainda que, quer o art 30º do dito Estatuto do Administrador Judicial (de forma limitada ao administrador da insolvência), quer o art. 241º, nº 1, al. b) do C.I.R.E. (de forma limitada ao fiduciário), prevêem a hipótese de ser o I.G.F.E.J a suportar tais encargos, dir-se-á «que o legislador teve em mente prevenir a hipótese de a qualquer administrador judicial (seja o da insolvência, seja o fiduciário) não poder ser paga a devida remuneração, segundo os mecanismos estabelecidos, encarregando o Estado de a adiantar».

Outro entendimento, nomeadamente baseado numa mera e redutora interpretação literal do art. 240º, nº 1 do C.I.R.E., faria com que se acolhesse «uma solução frustrante de expectativas e da confiança gerada pelo Estatuto do administrador judicial, manifestamente desalinhada com o sistema remuneratório estabelecido para os demais cargos (maxime o de administrador judicial em insolvência), sem justificação discernível, contra a racionalidade que informa e enforma o sistema» (Ac. da RG, de 02.03.2017, José Amaral, Processo nº 3261/11.6TJVNF.G1).

. da interpretação conforme à C.R.P.

Lê-se no art. 59º, nº 1 al, a) da C.R.P. que todos «os trabalhadores, sem distinção de idade, sexo, raça, cidadania, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, têm direito à retribuição do trabalho, segundo a quantidade, natureza e qualidade, observando-se o princípio de que para trabalho igual salário igual, de forma a garantir uma existência condigna».

Quando «a constituição consagra a retribuição segundo a quantidade, natureza ou qualidade do trabalho, não está, de modo algum, a apontar para uma retribuição em função do rendimento (salário ao rendimento) em detrimento do salário ao tempo. Além disso, a igualdade de retribuição como determinante constitucional positiva (e não apenas como princípio negativo de proibição de discriminação) impõe a existência de critérios objectivos para a descrição de tarefas e avaliação de funções necessárias à caracterização de trabalho igual (trabalho prestado à mesma entidade quando são iguais ou de natureza objectivamente igual as tarefas desempenhadas) e trabalho de valor igual (trabalho com diversidade de natureza das tarefas, mas equivalentes de acordo com os critérios objectivos fixados)» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 2ª edição revista e ampliada, Coimbra Editora, Coimbra 1984, pág. 324, com bold apócrifo).

Ora, o «princípio da democracia económica e social constitui uma autorização constitucional no sentido de o legislador democrático e os outros órgãos encarregados da concretização político-constitucional adoptarem as medidas necessárias para a evolução da ordem constitucional sob a óptica de uma “justiça constitucional” nas vestes de uma “justiça social” [Gomes Canotilho, Direito Constitucional, Almedina, Coimbra 1992, p. 474]. E, prosseguindo, Gomes Canotilho diz que este princípio é um elemento essencial de interpretação na forma de interpretação conforme a constituição, posto que “neste sentido se fala da interpretação dentro do «espírito» do princípio da democracia económica e social, e da presunção do exercício do poder discricionário da administração à luz do princípio da socialidade” [Gomes Canotilho, Direito Constitucional, Almedina, Coimbra 1992, pág. 476, com bold apócrifo].

Na avaliação arquitectura da “constituição do trabalho”, segundo este autor os preceitos constitucionais da área laboral reconduzem-se “a normas de garantia do direito ao trabalho, do direito do trabalho e dos direitos dos trabalhadores, a Constituição vincou a sua inequívoca dimensão subjectiva e o seu carácter de direitos fundamentais, deslocando esses preceitos para o capítulo referente a direitos fundamentais” [Gomes Canotilho, Direito Constitucional, Almedina, Coimbra 1992, pág. 481].

E neste enquadramento jurídico-constitucional “igualdade significa proibição do arbítrio e intenção de racionalidade e, em último termo, intenção de justiça” [Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, Coimbra Editora, Coimbra 1988, pág. 239, com bold apócrifo]».

Face a este «envolvimento dogmático e prático, a resposta dada pelo Tribunal “a quo” à questão inicialmente formulada não corresponde tout court a um ideal de justiça» (Ac. da RE, de 09.02.2017, Tomé de Carvalho, Processo nº 231/12.0TBVNO-D.E1.
No mesmo sentido, Ac. da RG, de 23.02.2017, Ana Cristina Duarte, Processo nº 2/14.0T8VNF-C.G1, onde se lê que «não é aceitável que o fiduciário nomeado pelo juiz não seja remunerado das funções que exerceu só porque nenhum valor foi entregue pelo devedor insolvente ao longo do período de cessão», nomeadamente porque isso «contrariaria o disposto no artigo 59º, n.º 1, alínea a), da Constituição da República, segundo o qual todos os trabalhadores têm direito à retribuição do trabalho, segundo a quantidade, natureza e qualidade deste»).

A interpretação aqui defendida permite ainda afirmar que o pensamento legislativo encontra na lei muito mais do que o mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso, exigido pelo nº 2 do art. 9º do C.C..

(No mesmo sentido, Ac. da RG, de 02.03.2017, José Amaral, Processo nº 3261/11.6TJVNF.G1, onde nomeadamente se lê que, interpretando-se a lei «extensivamente», considera-se «abrangida a situação em apreço» no «nº 1, do artº 30º, da Lei 22/2013, de 26 de Fevereiro. Como procurámos demonstrar, o pagamento através do organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial da justiça tem na letra da lei um “mínimo de correspondência” e ressuma do espírito com que o legislador tencionou regular as diversas situações. Logo, a interpretação ou integração que preconizamos não é contra legem mas secundum legem»).

Reconhece-se que há quem qualifique como caso omisso a inexistência de norma (aplicável ao fiduciário) similar à prevista para o administrador da insolvência, no caso de insuficiência da massa insolvente para prover aos pagamentos devidos a este (conforme se faz no Ac. da RE, de 09.02.2017, Tomé de Carvalho, Processo nº 231/12.0TBVNO-D.E1, com extensa fundamentação nesse sentido).
Contudo, defendendo verificar-se entre uma e outra situação a analogia que justifica que o julgador procure «no mesmo sistema uma norma que, embora num contexto tendencialmente distinto, responda a um conflito de interesses semelhante ou paralelo», chega à mesma solução referida supra.

Com efeito, também aqui se defende que «a aliança entre o princípio da igualdade e da intenção de justiça presentes na Constituição Económica a propósito dos direitos dos trabalhadores, enquanto direito fundamental, implica necessariamente o repúdio pela ideia que estamos perante um contexto de uma retribuição em função do rendimento. Aliás, na busca do lugar paralelo, como primado da interpretação conforme à Constituição da República Portuguesa, por analogia, deve atender-se à disciplina contida nos artigos 241º, nº 1, al. b) e 30º do Estatuto do Administrador Judicial, na parte em que estes preceitos são abstractamente aplicáveis» (Ac. da RE, de 09.02.2017, Tomé de Carvalho, Processo nº 231/12.0TBVNO-D.E1.

No mesmo sentido, Ac. da RG, de 02.03.2017, José Amaral, Processo nº 3261/11.6TJVNF.G1, onde nomeadamente se lê que, a qualificar-se a questão sob recurso como uma lacuna, «não poderíamos deixar de entender que o caso deve ter uma solução jusnormativa (até por imperativo constitucional), que ele é análogo ao do administrador judicial e que a regulação daquele deve fazer-se segundo a deste, uma vez que nele confluem as razões justificativas da regulamentação do caso análogo, logo que também por via do artº 10º, do Código Civil, assim aquela deve ser integrada»).

Reconhece-se igualmente, em desabono da tese aqui sufragada, que «o pagamento da remuneração ao fiduciário pelo dito organismo [I.G.F.E.J.] e não na percentagem de 10% das quantias cedidas [conforme previsto no art. 28º do Estatuto do Administrador Judicial], talqualmente sucede com o administrador de insolvência em caso de insuficiência ou falta de liquidez da massa, pode conduzir, na prática, a sempre lamentáveis distorções, quiçá a injustiça relativa, decorrentes da insuficiência do sistema que o legislador não cura de colmatar. Todavia, se isto deve animá-lo ao seu aperfeiçoamento não pode servir de motivo para acolher a injustiça maior de deixar sem qualquer remuneração o fiduciário em tais circunstâncias» (Ac. da RG, de 02.03.2017, José Amaral, Processo nº 3261/11.6TJVNF.G1, com bold apócrifo).

Acresce que, aplicando-se ao fiduciário o limite máximo de remuneração imposto ao administrador de insolvência nestas situações (pelo art. 30º, nº 2 do Estatuto do Administrador Judicial, e pela Portaria nº 51/2005, de 20 de Janeiro) - por se verificar uma identidade de situações que o justifica - , não poderá aquele receber mais do que € 500,00, a repartir pelos cinco anos em que durar a cessão. Ora, crê-se que uma remuneração anual máxima de € 100,00 não constituirá incentivo suficiente para que o fiduciário descure o exercício das suas funções, nomeadamente na efectiva fiscalização da existência de um rendimento disponível do insolvente, susceptível de cedência aos seus credores.

Por outras palavras, a «situação dos autos merece um tratamento análogo (artigo 10º do Código Civil), e como fundadamente decidiu o acórdão da Relação de Coimbra de 20 de Janeiro de 2016, resulta que a retribuição do fiduciário para a referida anuidade corresponderá a €100,00, e nas anuidades seguintes logo se verá, isto sem prejuízo do direito ao reembolso do valor das despesas efectuadas e que o tribunal considere úteis ou indispensáveis» (Ac. da RG, de 03.11.2016, relatado pelo Sr. Juiz Desembargador aqui 2º Adjunto - Heitor Gonçalves -, Processo nº 1926/12.4TBFAF.G.1, inédito).

Rejeita-se, ainda, que possa «servir de pretexto para não se estabelecer qualquer remuneração pelo exercício das funções de fiduciária» «o argumento (…) de que já exerceu no mesmo processo a função de administradora da insolvência, tendo sido remunerada pela mesma, em valor tido como considerável (…). Na verdade, trata-se de actividades distintas, autónomas e delimitadas no tempo em momentos diferentes, havendo previsão legal da remuneração de ambas as funções, como se viu, com critérios até algo diferentes para a sua determinação, não podendo de forma alguma dizer-se que a remuneração auferida pelo administrador de insolvência comporta já as funções que o mesmo possa eventualmente vir a exercer como fiduciário» (Ac. da RP, de 28.10.2015, Inês Moura, Processo nº 347/13.6TJPRT.P1, com bold apócrifo).

Acresce que nada obsta a que o Tribunal possa nomear distintas pessoas para exercerem as funções de administrador da insolvência e de fiduciário, «de entre as inscritas na lista oficial de administradores de insolvência (nº2 do artigo 239º), o que, a “talho de foice”, fragiliza o argumento aduzido no despacho recorrido de que o legislador “terá sopesado que a remuneração enquanto AI será suficiente, sendo que os acréscimos enquanto fiduciário são eventuais, não se afigurando uma restrição desproporcionada”» (Ac. da RG, de 03.11.2016, Heitor Gonçalves, Processo nº 1926/12.4TBFAF.G.1, inédito).”.

Nesta conformidade, deve proceder a apelação e, considerando o reduzido labor desenvolvido (de índole predominantemente burocrática e limitado a conservar, ano a ano, a disponibilidade para o exercício do cargo, a interpelar o devedor e a comunicar a falta de resultados ao processo), fixar-se em 1 UC por cada um dos quatro anos já decorridos em que o insolvente nada cedeu, ou seja, um total de 4 UC´s (e não nas 5 pedidas).”

No caso concreto aqui em apreço, constata-se que, ao proferir o despacho recorrido, o tribunal a quo seguiu um entendimento que, se olhou ao dos tribunais superiores, maxime ao da respectiva Relação, notório no panorama retratado, não justificou motivo válido para dele assim ter divergido.

Motivo que continuamos a não descortinar.

Consequentemente, reiterando-se tal entendimento, conforme exposto e aplicando-se o mesmo critério adoptado, concluiu-se que ao fiduciário deve ser paga, pelo IGFPJ, a remuneração devida, enquanto nenhuma quantia lhe for cedida e apesar disso.

Aqui, trata-se de compensar o primeiro ano de exercício de funções.

Não foram indicadas as despesas durante ele porventura tidas nem se presume que as haja de valor significativo e não compreendido na remuneração. Aliás, acabou por não as pedir no requerimento.

Relativamente à remuneração pelo trabalho despendido no desempenho da função, face ao relatado no requerimento em causa, constata-se que ele foi mínimo: limitou-se o requerente a esperar pelo decurso do tempo, a perguntar, depois, ao advogado dos devedores a razão por que nada lhe entregaram e o comprovativo da actividade exercida por eles, a receber a explicação e a reportar, por fim, em curto e simples relatório, a situação negativa apurada (a maior parte do respectivo texto sendo consumida a fundamentar e a pedir o pagamento pelo Estado do valor pretendido).

Crê-se que é bastante e adequada, logo legal e justa, equitativamente, uma UC pelo referido período (1º ano), obviamente nada se fixando, ao contrário do pedido, quanto aos subsequentes, por se ignorar o que, durante eles, irá acontecer quanto a eventuais entregas e quanto ao trabalho que porventura o requerente possa ter a vir de desenvolver.

Nesta medida, mas só nesta, deve proceder a apelação, com as devidas consequências.

V. DECISÃO

Em face dos fundamentos expostos, acordam os Juízes desta Relação em julgar, nos indicados termos, procedente, em parte, o recurso e, em consequência, dando provimento, na respectiva medida, à apelação, revogam a decisão recorrida e fixam a remuneração do apelante fiduciário, pelo primeiro ano de exercício destas funções, no valor correspondente a 1 (uma) UC, valor este que deverá ser suportado pelo Instituto de Gestão Financeira e Patrimonial da Justiça.

Custas, na proporção do decaimento, que se fixa em 4/5, apenas pelo apelante.
Guimarães, 30 de Maio de 2018

José Fernando Cardoso Amaral
Helena Maria de Carvalho Gomes de Melo
Pedro Damião e Cunha


1. Pressupondo, claro, que, em razão da insolvência e do regime da exoneração do pedido restante, esses são o seu único rendimento “disponível” e que não tem outros bens capazes de por ele responder.
2. Tal despacho refere-se, claro, ao objecto do recurso anterior no outro processo cuja fundamentação se está aqui a transcrever. No de agora, a Mª Juíza recorrida limitou-se a dizer que a “lei vigente” apenas dispõe que “a remuneração do fiduciário é encargo do devedor.”
3. Segundo Baptista Machado, in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 2014, página 202, os casos “dizem-se análogos quando neles se verifica um conflito de interesses paralelo, isomorfo ou semelhante – de modo a que o critério valorativo adoptado pelo legislador para compor esse conflito de interesses num dos casos seja por igual ou maioria de razão aplicável ao outro”.
4. Recorde-se que estamos a transcrever o texto do anterior Acórdão e neste se referem as conclusões nessa apelação expostas pelo Ministério Público após veementes alegações na defesa da sua tese.
5. Proferido no processo nº 2/14.0T8VNF-C.G1, relatado pela Desembª Ana Cristina Duarte.
6. Relatados, respectivamente, pelos Desembargadores António Sobrinho (e no qual o Relator deste foi 2º Adjunto) e Pedro Damião e Cunha (2º Adjunto do presente).
7. Proferido no procº 58/14.5T8VNF.G2, relatado pela Desembª Maria João Matos.