Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
366/11.7TAPTL.G1
Relator: FÁTIMA FURTADO
Descritores: INSOLVÊNCIA DOLOSA
ELEMENTOS DO ILÍCITO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PENA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/12/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) O crime de insolvência dolosa concretiza-se em qualquer das ações típicas descritas nas várias alíneas do nº, 1 do art.º 227.º, do Código Penal, tratando-se de um crime de execução vinculada, pois o respetivo processo executivo tem que revestir uma dessas modalidades.
II) Quanto ao elemento subjetivo, para além do dolo genérico, exige também um dolo específico, consistente na intenção do agente de prejudicar os credores.
II) Apresenta ainda este crime uma condição objectiva de punibilidade: a situação de insolvência com reconhecimento judicial (não bastando uma situação de mera falência técnica), o que significa que sem esse reconhecimento não pode iniciar-se o procedimento criminal. Mas já não assume relevância a classificação que foi atribuída à insolvência.
Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Guimarães.
(Secção Penal)

I. RELATÓRIO

No processo comum singular n.º 366/11.7TAPTL, do Juízo de Competência Genérica de Ponte de Lima, Juiz 1, da comarca de Viana do Castelo, foram submetidos a julgamento os arguidos J. S. e M. C., com os demais sinais dos autos.

A sentença, proferida a 23 de outubro de 2020 e depositada no mesmo dia, tem o seguinte dispositivo:

«a)- Absolver os arguidos J. S. e M. C. da prática do crime de insolvência dolosa previsto e punido pelas condutas típicas descritas nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 227.º do CP.
b)- Condenar o arguido J. S. como autor material, na forma consumada, de um crime de insolvência dolosa, previsto e punido pela alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º do CP, na pena de 2 (dois) anos de prisão, cuja execução se suspende, pelo período de 2 (dois) anos (artigo 50.º, n.ºs 1 e 5 do Código Penal), subordinada à condição de o arguido, no prazo da suspensão, pagar a indemnização devida à demandante X, Lda., que se fixa no mesmo montante da condenação no pedido de indemnização civil por ela deduzido, e que nele se imputa, consumindo-o, sem prejuízo de aquele poder executar a sentença, logo que a mesma seja exequível por ter transitado em julgado.
c)- Condenar a arguida M. C. como autora material, na forma consumada, de um crime de insolvência dolosa, previsto e punido pela alínea a) do n.º1 do artigo 227.º do CP, na pena de 290 dias (duzentos e noventa) de multa à taxa diária de 6,50 € (seis euros e cinquenta cêntimos), o que perfaz a quantia de 1.885 € (mil oitocentos e oitenta e cinco euros).
d)- Julgar improcedente o pedido de indemnização civil formulado pela demandante X, Lda. contra os demandados M. C. e M. D., absolvendo-os do pedido.
e)- Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado pela mesma demandante contra o demandado J. S. e, consequentemente, condená-lo no pagamento àquela da quantia total de 17.500 € (dezassete mil e quinhentos euros), correspondente aos valores inscritos nos cheques referidos em 57 dos factos provados, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, contados sobre cada uma das quantias tituladas nos referidos cheques e desde a data de vencimento respetiva, até efetivo e integral pagamento; absolvendo-o do demais peticionado.
f) - Condenar os arguidos nas custas criminais, fixando-se a taxa de justiça individual em 3 (três) unidades de conta (UC) – artigos 513.º, n.º 1 do Código de Processo Penal e artigo 8.º, n.º 9 e tabela III anexa do Regulamento das Custas Processuais.
g) - Condenar a demandante cível e o demandado J. S. nas custas do pedido cível, na proporção do decaimento respetivo.
Notifique.
Após trânsito, remeta boletins ao registo criminal.
Vai proceder-se ao depósito da presente sentença na secretaria do Tribunal, conforme disposto no artigo 372.º n.º 5 do Código de Processo Penal.»
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Inconformados, interpuseram recursos os arguidos J. S. e M. C., apresentando cada um deles as respetivas motivações que rematam com as conclusões que de seguida se transcrevem.
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A. Conclusões do recurso do arguido J. S.:

«1. O arguido não pode conformar-se a decisão proferida nos presentes autos, pois entende que perante a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, outra deveria ter sido a decisão, nomeadamente a sua absolvição.
2. Apesar da segunda repetição do julgamento, o arguido Recorrente continua a não aceitar os factos dados como provados na sentença recorrida e devidamente elencados sob os pontos 22, 24, 25, 26, 27 e 28 por entender que não foi produzida e examinada em sede de audiência de julgamento, prova suficiente para dar como provada esta factualidade e porque os mesmos se encontram em contradição com os pontos iii), iv) e xi) a xiv) dos factos não provados.
3. Consideramos, sem olvidar o princípio da livre apreciação da prova e da livre convicção do juiz para julgar e decidir, que os supra referidos factos se encontram considerados provados e não provados, de forma contraditória entre si, devendo todos ser considerados não provados, para efeitos da alínea a) do n.º 3 do art. 412.º do CPP.
4. Desde logo, os pontos 23, 24 e 25, dos factos provados, encontram-se em contradição com os pontos xi, xii, e xiv dos factos não provados:
5. O Tribunal a quo considerou provado que pelo facto da Tecto ... não ter pago aos arguidos, o preço, nos termos declarados na escritura (ponto 23 e 24), contribuiu para a descapitalização dos arguidos e subsequentemente para a declaração de insolvência dos arguidos (ponto 25).
6. Não obstante, deu como não provado que como consequência directa e necessária da transmissão da propriedade dos bens imoveis para a Tecto ..., os arguidos entraram em situação de insolvência (ponto xi)), bem como que, durante o ano de 2008, a transferência do sobredito património terá resultado no falimento dos arguidos, culminando na sua respectiva insolvência (ponto xii), e ainda que as acções descritas levadas a cabo pelos arguidos, concretizadas na dissipação dos respectivos patrimónios foram causa directa e necessária da posterior decisão judicial de declaração de insolvência de cada um dos arguidos (ponto xiv).
7. Ora, não se considerando provado que a situação de insolvência se ficou a dever à transmissão destes bens,
8. Cremos que o Tribunal a quo não poderia, nunca, ter dado como provado que, o facto do pagamento da aquisição não ter sido efectuado nos termos declarados na escritura, tivesse contribuído para a descapitalização dos arguidos e a subsequente declaração de insolvência, muito menos que tal pagamento foi efectuado de forma fictícia.
9. Relativamente ao ponto 24 dos factos provados (pagamento fictício), cremos que não foi produzida prova bastante e cabal quanto ao ficcionado pagamento, verificando-se inclusive salvo devido respeito por melhor opinião a violação do princípio in dubio pro reo.
10. Pois o Tribunal a quo fundamentou a sua decisão no depoimento da Senhora Inspetora da Polícia Judiciária, que relativamente a este assunto, não analisou qualquer documentação, sabendo apenas o que ouviu da Contabilista A. R., ainda na fase da investigação e daí terá extraído a conclusão de que o pagamento não existiu, conforme decorre das suas próprias declarações - Dia 18-09-2020 - 10:11:42, Inquirida pela Mandatária do Arguido aos 17m03s a 17m:44s.
11. Porém, a testemunha A. R. ouvida, de novo, acerca deste particular, no Dia 18-09-2020 - 11:05:05 a instâncias da mandatária do Arguido 09m:02s até 10m:44s, refere que os pagamentos efectivamente existiram - fosse através de rendas pelo arrendamento de imóveis, fosse por vendas de móveis e até um empréstimo do sócio M. D.. Apenas não ocorreram da forma declarada na escritura…
12. Pelo que, face ao que foi carreado para os autos, quanto a este ponto, ainda que se julgue não provada a forma como foi efectuado o pagamento, parece-nos que isso não pode resultar na prova do não pagamento, outrossim na aplicação do princípio in dúbio pro reu e o facto ser julgado como não provado, seria essa a decisão lógica e razoável.
13. Por outro lado, os pontos 22, 26, 27 e 28, dos factos provados, encontram-se em contradição com os pontos iii) e iv) dos factos não provados,
14. O Tribunal a quo considerou provado que:
- os arguidos registaram os bens imóveis em nome de entidade terceira, com vista a salvaguarda-los de eventuais penhoras (ponto 22),
- com o intuito alcançado de fazer desaparecer os imoveis, obstando que os credores conseguissem a cobrança coerciva dos seus créditos à custa daqueles bens (ponto 27),
- com o propósito conseguido de privar a sociedade X – Automóveis unipessoal, lda, de créditos que sobre o arguido detinha e com isso conseguir o que efectivamente sucedeu, ocultar os referidos imóveis à credora, prejudicando-a, como pretendiam e conseguiram (ponto 26),
-e tudo isto, de forma livre, voluntária e consciente, apesar de saberem tratar-se de uma conduta ilícita (ponto 28);
15. Mas considerou não provado, que os cheques referidos em 11 consubstanciavam quantias em dinheiro que os arguidos devem à sociedade “X, Automóveis unipessoal, lda”, bem como que as referidas transacções foram efectuadas no exercício do comércio e no interesse comum dos arguidos (pontos iii) e iv) dos factos não provados),
16. Cremos que, uma vez que os cheques emitidos pelo arguido à X não representavam dívida pessoal, nunca se poderá concluir que, subjacente aos negócios por si celebrados estivesse a intenção de prejudicar os credores e, concretamente, a X – Automóveis unipessoal, da.,
17. Tal como não se poderá considerar que, o arguido tenha agido com a intenção de prejudicar qualquer credor, uma vez que, como resultou provado o prédio urbano, objecto da escritura de compra e venda celebrada entre os arguidos e a Tecto ..., foi transmitido com os ónus a que correspondiam duas hipotecas pelo montante máximo de € 263.126,44,
18. Isto é, com a transmissão de propriedade daquele bem, os arguidos deixaram de estar obrigados ao pagamento de uma prestação mensal, que passou a ser encargo da sociedade Tecto ....
19. Por outro lado, o próprio bem respondia perante a entidade bancária até ao montante máximo de € 263.126,44, pelo que, em bom rigor, ainda que os bens se mantivessem na esfera jurídica dos arguidos, caso os mesmos deixassem de conseguir pagar as respectivas prestações, aquele bem imóvel garantiria quase em exclusivo, o pagamento daquelas hipotecas – Como veio a acontecer em sede de rateio no processo de Insolvência.
20. Ora, na realidade, esta foi a única intenção e a verdadeira vantagem subjacente à realização deste negócio – ficarem desonerados da obrigação de pagamento de uma prestação mensal.
21. Considerando que a venda foi efectuada pelo preço de €146.000,00 (que receberam embora de forma distinta da declarada na escritura) e que se encontrava em dívida ao Banco (cerca de € 196.000,00), tal representa um valor consideravelmente superior ao valor real dos bens (ainda que se considerem os € 290.000,00). Pelo que, a venda não foi, de todo, prejudicial, nem pode demonstrar qualquer intenção de dissipar património.
22. Face ao supra exposto consideramos, sem olvidar o princípio da livre apreciação da prova e da livre convicção do juiz para julgar e decidir, que os supra referidos factos se encontram considerados provados e não provados, de forma contraditória entre si, devendo ser dados como não provados os pontos 22, 26 a 28 dos factos provados, por irem em sentido contrário à prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, para efeitos da alínea a) do n.º 3 do art. 412.º do CPP,
23. Nomeadamente no que decorre do depoimento da testemunha A. M., Administrador da Insolvência dos arguidos, inquirido no dia 16.05.2017- 10:59:38, aos minutos 10m:26s até 22m:47s, 24m:56s até 28m:58s, 29m:09s até 29m:13s e 31m:50s até 32m:22s e no dia 18-10-2020 - 10:50:01, 03m:05s até 04m:41s, que afirmou não poder confirmar que os arguidos tenham efectuado esta venda com o intuito de prejudicar os credores, até porque, propôs que a insolvência fosse qualificada como fortuita, o que veio a acontecer.
24. Cremos assim, que não foi feita prova bastante, cabal e suficiente para condenar o arguido, que deveria ser absolvido da prática do crime de insolvência dolosa.

DO DIREITO:

25. Salvo o devido respeito por melhor opinião, os factos dados como provados não podiam levar à condenação do arguido pelo crime de insolvência dolosa, previsto no art. 227.º, n.º 1, al. a) do C.P., porquanto não se encontram preenchidos os pressupostos intrínsecos ao referido artigo, verificando-se, por isso, uma errónea interpretação desse artigo e a sua consequente violação.
26. Para que o arguido possa ser condenado pelo crime de insolvência dolosa, necessário se torna que resulte provada a intenção de prejudicar os credores, o que, cremos, não resulta nos presentes autos, pelos motivos supra expostos.
27. Acresce que no âmbito do processo de insolvência, a mesma foi julgada fortuita e pese embora a autonomia das causas penais relativamente às decisões proferidas no âmbito do incidente de qualificação de insolvência, cremos que não estamos em presença de uma autonomia absoluta, e neste sentido, o Mestrado Forense de Luísa Teixeira da Mota, sob a orientação do Professor Doutor Germano Marques da Silva, Março de 2013, Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Direito, intitulado “A insolvência culposa no C.I.R.E. e a insolvência dolosa no Código Penal”:
28. “A figura da insolvência culposa prevista no C.I.R.E., encontra-se, em grande parte, espelhada no crime de insolvência dolosa. ESTRELA DE OLIVEIRA fala de uma “relação de interconexão” entra as normas penal e mercantil, que se verifica tanto em relação ao incidente como ao próprio processo de insolvência.”
29. “Da análise individual de cada uma das figuras, partimos para uma análise comparada e concluímos que estão intimamente ligadas, podendo dizer-se que o crime é um espelho do instituto civil, embora não reflicta toda a imagem. Na verdade, há actos susceptíveis de qualificar a insolvência como culposa que não encontram correspondência nas condutas criminosas previstas pelo preceito penal. Por outro lado, todos os actos que constituem crime são presunções de insolvência culposa no âmbito do C.I.R.E., ou melhor, todos os comportamentos tipificados no artigo 227º do Código Penal encontram guarida na definição geral de insolvência culposa acolhida no 186º nº 1 do C.I.R.E..”
30. Cremos, assim, que não é possível desligar uma figura da outra.
31. À luz do pensamento de PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE cremos que a declaração judicial de insolvência, não preencherá a condição objectiva de punibilidade do crime de insolvência dolosa quando a insolvência tenha sido qualificada como fortuita, como foi no caso do arguido.
32. A verificação de determinados factos que levam à qualificação da insolvência como culposa preenche, juntamente com a declaração, judicial de insolvência, e, naturalmente, a intenção dolosa do agente (actuação realizada com intenção de prejudicar os credores), os pressupostos do crime.
33. Nos presentes autos, o Tribunal a quo apesar de dar como provado que, no âmbito do processo de insolvência a mesma foi qualificada como fortuita, erradamente não considera tal facto aquando da interpretação desta norma.
34. É assim manifesto que os factos supra referidos foram incorrectamente julgados como provados, devendo ter sido julgados não provados, face à prova produzida e concluir-se pela absolvição do arguido, para efeitos da al. a) e b), n.º 3, do art. 412.º do CPP
35. É manifesta ainda a existência dos vícios do art. 410.º n.º 2 do CPP, nomeadamente erro notório na apreciação da prova,
36. Devendo ainda referir-se que a Douta Sentença recorrida violou o disposto nos art.º 227.º do Código Penal, subsumindo erroneamente os factos a um crime de insolvência dolosa, nos termos do disposto nas al. a) e b) do n.º 2, do art. 412.º do CPP
37. Pelo que, deveria o arguido ser absolvido do crime de que vinha acusado.
38. Não obstante, e ainda que não se decida pela absolvição, sempre diremos que face à condição socioeconómica do arguido e aos factos provados, pese embora constem do Registo Criminal do arguido condenações anteriores (por crimes distintos), a pena se revela elevada, justificando-se a sua redução para o mínimo legalmente admissível.

Sem prescindir, e caso assim não se entenda,
39. Decidiu o Tribunal a quo suspender a pena de prisão em que o arguido foi condenado, pelo período de 2 (dois) anos (artigo 50.º, n.ºs 1 e 5 do Código Penal), subordinada à condição de o arguido, no prazo da suspensão, pagar a indemnização devida à demandante X, Automóveis Unipessoal, Lda., que se fixa no mesmo montante da condenação no pedido de indemnização civil por ela deduzido, e que nele se imputa, consumindo-o, sem prejuízo de aquele poder executar a sentença, logo que a mesma seja exequível por ter transitado em julgado.
40. Atentos os factos provados nos pontos 17, 29, 30, 31, 42 a 45 e atento o disposto nos n.º 2 e 3 do art. 239.º do CIRE, o arguido ficou obrigado a ceder ao fiduciário todos os valores que excedessem o seu sustento minimamente digno.
41. Assim, trabalhando o arguido como rececionista numa empresa de reparação automóvel e auferindo o salário mínimo nacional, tal como ficou provado, será com esse valor terá de proceder ao pagamento das suas despesas diárias, nomeadamente, alimentação, vestuário, despesas de saúde, entre outros.
42. E, é do conhecimento geral que pagas essas despesas, pouco (ou nenhum) valor sobrará no final do mês, atento o valor do salário mínimo nacional.
43. Acresce que, o arguido acha-se ainda adstrito ao cumprimento das obrigações decorrentes do deferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.
44. Do exposto resulta que o arguido não terá forma de cumprir com o pagamento da quantia imposta no douto acórdão recorrido.
45. Pois, a exigência do pagamento de 17.500 € (dezassete mil e quinhentos euros), no prazo de dois anos é, face à descrita e provada situação económica do arguido, inexigível.
46. O pagamento desse valor, no prazo de dois anos significa uma carga mensal na ordem dos € 730,00 (setecentos e trinta euros), valor esse que, ainda que o arguido não tivesse qualquer outra despesa, é muito superior ao salário por si auferido.
47. O acórdão recorrido viola assim o disposto no art. 13º da Constituição da República Portuguesa, na medida em que, com a impossibilidade de cumprimento do dever imposto pelo tribunal "a quo" (em virtude do rendimento auferido pelo arguido e situação económica provada nos autos), recairá sobre o arguido a imposição de cumprimento efectivo da pena de prisão de 2 anos.
48. Contudo, prescreve aquele artigo constitucional que ninguém poderá ser prejudicado em função da sua situação económica e profissional.
49. O acórdão recorrido violou também o disposto no art. 51.º, n.º 2 do Código Penal, nos termos do qual "Os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir.”
50. A decisão de suspensão de execução da pena de prisão, quando sujeita a condições, deveres ou regras de conduta, nos termos permitidos pelo art. 50.º, n.º 2 C.P., tem de pressupor e conter um razoável equilíbrio entre a natureza das imposições à pessoa condenada e a eficácia e integridade da medida de substituição.
51. Cremos que a imposição de condições de muito difícil ou não suportável cumprimento não satisfaz, nem as injunções para a reintegração dos valores afectados e para a condução de vida de acordo com tais valores, nem a conformação da vontade da pessoa condenada na aceitação e no respeito das sujeições que devem acompanhar e potenciar o reencaminhamento com os valores de direito.
52. Por isso, os deveres ou condições a estabelecer na suspensão da execução da pena devem ser adequados, material e pessoalmente possíveis, num plano de reordenação para os valores do direito que previna, no essencial, a reincidência, ou possa contribuir para a reparação das consequências do crime.
53. Neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 21.03.2013, no processo n.º 506/10.3TAMNC.P1, in www.dgsi.pt
54. Do exposto resulta que a exigência de pagamento integral da indemnização no montante de € 17.500,00 (dezassete mil e quinhentos euros), mesmo no prazo de dois anos é, face à descrita e provada situação económica, à luz da aludida jurisprudência, inexigível.
55. Pelas invocadas razões deve a suspensão da pena de prisão se manter mas ser alterada a condição que lhe está subjacente por outra mais adequada à situação do arguido, atenta a própria fundamentação da sentença recorrida.»
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B. Conclusões do recurso da arguida M. C.:

«1. A arguida não pode conformar-se [com] a decisão proferida nos presentes autos, pois entende que perante a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, outra deveria ter sido a decisão, nomeadamente a sua absolvição.
2. Apesar da segunda repetição do julgamento, a arguida Recorrente continua a não aceitar os factos dados como provados na sentença recorrida e devidamente elencados sob os pontos 22, 24, 25, 26, 27 e 28 por entender que não foi produzida e examinada em sede de audiência de julgamento, prova suficiente para dar como provada esta factualidade e porque os mesmos se encontram em contradição com os pontos iii), iv) e xi) a xiv) dos factos não provados.
3. Consideramos, sem olvidar o princípio da livre apreciação da prova e da livre convicção do juiz para julgar e decidir, que os supra referidos factos se encontram considerados provados e não provados, de forma contraditória entre si, devendo todos ser considerados não provados, para efeitos da alínea a) do n.º 3 do art. 412.º do CPP.
4. Desde logo, os pontos 23, 24 e 25, dos factos provados, encontram-se em contradição com os pontos xi, xii, e xiv dos factos não provados:
5. O Tribunal a quo considerou provado que pelo facto da Tecto ... não ter pago aos arguidos, o preço, nos termos declarados na escritura (ponto 23 e 24), contribuiu para a descapitalização dos arguidos e subsequentemente para a declaração de insolvência dos arguidos (ponto 25).
6. Não obstante, deu como não provado que como consequência directa e necessária da transmissão da propriedade dos bens imóveis para a Tecto ..., os arguidos entraram em situação de insolvência (ponto xi)), bem como que, durante o ano de 2008, a transferência do sobredito património terá resultado no falimento dos arguidos, culminando na sua respectiva insolvência (ponto xii), e ainda que as acções descritas levadas a cabo pelos arguidos, concretizadas na dissipação dos respectivos patrimónios foram causa directa e necessária da posterior decisão judicial de declaração de insolvência de cada um dos arguidos (ponto xiv).
7. Ora, não se considerando provado que a situação de insolvência se ficou a dever à transmissão destes bens,
8. Cremos que o Tribunal a quo não poderia, nunca, ter dado como provado que, o facto do pagamento da aquisição não ter sido efectuado nos termos declarados na escritura, tivesse contribuído para a descapitalização dos arguidos e a subsequente declaração de insolvência, muito menos que tal pagamento foi efectuado de forma fictícia.
9. A testemunha A. R. ouvida de novo acerca deste particular, no Dia 18-09-2020 - 11:05:05 inquirida pela mandatária do Arguido (09m:02s até 10m:44s), refere que os pagamentos efectivamente existiram! Apenas não ocorreram da forma declarada na escritura…
10. E o Senhor Administrador de Insolvência ouvido nesse mesmo dia 10:50:01, a instâncias do Meritíssimo Juiz (03m:05s até 04m:41s), referiu que não pode confirmar que os arguidos tenham efectuado esta venda com o intuito de prejudicar os credores, até porque, propôs que a insolvência fosse qualificada como fortuita, o que veio a acontecer.
11. Por outro lado, os pontos 22, 26, 27 e 28, dos factos provados, encontram-se em contradição com os pontos iii) e iv) dos factos não provados,
12. O Tribunal a quo considerou provado que:
- os arguidos registaram os bens imoveis em nome de entidade terceira, com vista a salvaguarda-los de eventuais penhoras (ponto 22),
- com o intuito alcançado de fazer desaparecer os imoveis, obstando que os credores conseguissem a cobrança coerciva dos seus créditos à custa daqueles bens (ponto 27),
- com o propósito conseguido de privar a sociedade X - Automóveis unipessoal, lda, de créditos que sobre o arguido detinha e com isso conseguir o que efectivamente sucedeu, ocultar os referidos imóveis à credora, prejudicando-a, como pretendiam e conseguiram (ponto 26),
-e tudo isto, de forma livre, voluntária e consciente, apesar de saberem tratar-se de uma conduta ilícita (ponto 28);
13. Mas considerou não provado, que os cheques referidos em 11 consubstanciavam quantias em dinheiro que os arguidos devem à sociedade “X, Automóveis unipessoal, lda”, bem como que as referidas transacções foram efectuadas no exercício do comércio e no interesse comum dos arguidos (pontos iii) e iv) dos factos não provados),
14. Cremos que, uma vez que os cheques emitidos pelo arguido à X não representavam dívida pessoal, nunca se poderá concluir que, subjacente aos negócios por si celebrados estivesse a intenção de prejudicar os credores e, concretamente, a X – Automóveis unipessoal, lda.,
15. Tal como não se poderá considerar que, a arguida tenha agido com a intenção de prejudicar qualquer credor, uma vez que, como resultou provado o prédio urbano, objecto da escritura de compra e venda celebrada entre os arguidos e a Tecto ..., foi transmitido com os ónus a que correspondiam duas hipotecas pelo montante máximo de € 263.126,44,
16. Isto é, com a transmissão de propriedade daquele bem, os arguidos deixaram de estar obrigados ao pagamento de uma prestação mensal, que passou a ser encargo da sociedade Tecto ....
17. Por outro lado, o próprio bem respondia perante a entidade bancária até ao montante máximo de € 263.126,44, pelo que, em bom rigor, ainda que os bens se mantivessem na esfera jurídica dos arguidos, caso os mesmos deixassem de conseguir pagar as respectivas prestações, aquele bem imóvel garantiria quase em exclusivo, o pagamento daquelas hipotecas.
18. Ora, na realidade, esta foi a única intenção e a verdadeira vantagem subjacente à realização deste negócio – ficarem desonerados da obrigação de pagamento de uma prestação mensal.
19. Considerando que a venda foi efectuada pelo preço de €146.000,00 (que receberam embora de forma distinta da declarada na escritura) e que se encontrava em dívida ao Banco (cerca de € 196.000,00), tal representa um valor consideravelmente superior ao valor real dos bens (ainda que se considerem os € 290.000,00). Pelo que, a venda não foi, de todo, prejudicial, nem pode demonstrar qualquer intenção de dissipar património.
20. Face ao supra exposto consideramos, sem olvidar o princípio da livre apreciação da prova e da livre convicção do juiz para julgar e decidir, que os supra referidos factos se encontram considerados provados e não provados, de forma contraditória entre si, devendo ser dados como não provados os pontos 22, 26 a 28 dos factos provados, por irem em sentido contrário à prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, para efeitos da alínea a) do n.º 3 do art. 412.º do CPP.
21. Porém, para além da contradição que supra se demonstrou, nunca poderiam os pontos 22, 24, 25, 26, 27 e 28 serem dados como provados atenta a prova produzida em sede de julgamento, nomeadamente no que decorre do depoimento da testemunha A. M., Administrador da Insolvência dos arguidos, inquirido no dia dia 16.05.2017- 10:59:38, aos minutos 10m:26s até 22m:47s, 24m:56s até 28m:58s, 29m:09s até 29m:13s e 31m:50s até 32m:22s.
22. Cremos assim, que não foi feita prova suficiente para condenar a arguida, que deveria ser absolvido da prática do crime de insolvência dolosa.
23. Ainda relativamente ao ponto 24 dos factos provados, nos parece que não foi produzida prova bastante e cabal quanto ao ficcionado pagamento, verificando-se inclusive salvo devido respeito por melhor opinião a violação do princípio in dúbio pro reo, pois que o tribunal a quo, acaba por dizer que os arguidos é que não provaram o pagamento…
24. Cremos que o que tinha de ficar provado era o não pagamento, e isso efectivamente não ficou.
25. Para prova do ponto 24 dos factos provados, o tribunal bastou-se com o depoimento da senhora Inspetora da Polícia Judiciária, que relativamente a este assunto, apenas ouviu a Contabilista A. R., ainda na fase da investigação e extraiu a conclusão de que o pagamento não existiu, não tendo, para o efeito analisado qualquer documentação, conforme decorre das suas próprias declarações:
26. Salvo o devido respeito por melhor opinião, os factos dados como provados não podiam levar à condenação da arguida pelo crime de insolvência dolosa, previsto no art. 227.º, n.º 1, al. a) do C.P., porquanto não se encontram preenchidos os pressupostos intrínsecos ao referido artigo, verificando-se, por isso, uma errónea interpretação desse artigo e a sua consequente violação.
27. Para que a arguida possa ser condenada pelo crime de insolvência dolosa, necessário se torna que resulte provada a intenção de prejudicar os credores, o que, cremos, não resulta nos presentes autos, pelos motivos supra expostos.
28. Acresce que no âmbito do processo de insolvência, a mesma foi julgada fortuita e pese embora a autonomia das causas penais relativamente às decisões proferidas no âmbito do incidente de qualificação de insolvência, cremos que não estamos em presença de uma autonomia absoluta, e neste sentido, o Mestrado Forense de Luísa Teixeira da Mota, sob a orientação do Professor Doutor Germano Marques da Silva, Março de 2013, Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Direito, intitulado “A insolvência culposa no C.I.R.E. e a insolvência dolosa no Código Penal”:
29. “A figura da insolvência culposa prevista no C.I.R.E., encontra-se, em grande parte, espelhada no crime de insolvência dolosa. ESTRELA DE OLIVEIRA fala de uma “relação de interconexão” entra as normas penal e mercantil, que se verifica tanto em relação ao incidente como ao próprio processo de insolvência.
30. “Da análise individual de cada uma das figuras, partimos para uma análise comparada e concluímos que estão intimamente ligadas, podendo dizer-se que o crime é um espelho do instituto civil, embora não reflicta toda a imagem. Na verdade, há actos susceptíveis de qualificar a insolvência como culposa que não encontram correspondência nas condutas criminosas previstas pelo preceito penal. Por outro lado, todos os actos que constituem crime são presunções de insolvência culposa no âmbito do C.I.R.E., ou melhor, todos os comportamentos tipificados no artigo 227º do Código Penal encontram guarida na definição geral de insolvência culposa acolhida no 186º nº 1 do C.I.R.E..
31. Cremos, assim, que não é possível desligar uma figura da outra.
32. À luz do pensamento de PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE cremos que a declaração judicial de insolvência, não preencherá a condição objectiva de punibilidade do crime de insolvência dolosa quando a insolvência tenha sido qualificada como fortuita, como foi no caso do arguido.
33. A verificação de determinados factos que levam à qualificação da insolvência como culposa preenche, juntamente com a declaração, judicial de insolvência, e, naturalmente, a intenção dolosa do agente (actuação realizada com intenção de prejudicar os credores), os pressupostos do crime.
34. Nos presentes autos, o Tribunal a quo apesar de dar como provado que, no âmbito do processo de insolvência a mesma foi qualificada como fortuita, erradamente não considera tal facto aquando da interpretação desta norma.
35. É assim manifesto que os factos supra referidos foram incorrectamente julgados como provados, devendo ter sido julgados não provados, face à prova produzida e concluir-se pela absolvição da arguida, para efeitos da al. a) e b), n.º 3, do art. 412.º do CPP
36. É manifesta ainda a existência dos vícios do art. 410.º n.º 2 do CPP, nomeadamente erro notório na apreciação da prova,
37. Devendo ainda referir-se que a Douta Sentença recorrida violou o disposto nos art.º 227.º do Código Penal, subsumindo erroneamente os factos a um crime de insolvência dolosa, nos termos do disposto nas al. a) e b) do n.º 2, do art. 412.º do CPP e ainda o artigo 32.º da CRP
38. Pelo que, deveria a arguida ser absolvida do crime de que vinha acusado.
39. Não obstante, e ainda que não se decida pela absolvição, sempre diremos que face à condição socioeconómica da arguida e aos factos provados, a pena se revela elevada, justificando-se a sua redução para o mínimo legalmente admissível.»
*
Os recursos de ambos os arguidos foram admitidos para este Tribunal da Relação de Guimarães, com o regime e efeito adequados.

A Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal a quo respondeu, pugnando pela improcedência dos dois recursos, concluindo da seguinte forma:

«1. A douta sentença impugnada não merece qualquer censura, pois que não enferma de nulidades, irregularidades, insuficiências ou vícios.
2. A prova foi apreciada e valorada em conformidade legal maxime dentro do princípio da livre apreciação (artigo 127º, do Código Processo Penal).
3. O princípio in dubio pro reo só é aplicável quando o julgador, na formação da sua convicção livre (artigo 127.º Código Processo Penal), e no cotejo do acervo da prova disponível e produzida se depare com dúvida séria, razoável ou intransponível.
4. Face aos factos provados e não provados é inequívoco que as condutas dos arguidos preencheram, de modo respectivo, todos os elementos do crime.
5. Cada uma das penas mostra-se justa, adequada e proporcional à gravidade dos factos e da culpa, cumprindo as necessidades de prevenção e de ressocialização.
6. O recurso não pode simplesmente servir para substituir uma convicção (a do tribunal a quo) por outra (a dos recorrentes), se não for apresentada uma razão demonstrativa da existência de erro, nomeadamente a existência de outras provas que contrariem os fundamentos da sentença, tal como neste caso.»

Nesta Relação, o Exmo. Senhor Procurador-Geral adjunto, louvando-se nos argumentos apresentados na resposta do Ministério Público, pronunciou-se igualmente no sentido de os recursos não merecerem provimento.
Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, na sequência do que o arguido J. S. veio responder, alertando para o lapso constante do parecer do Ministério Público nesta instância, na parte em que alude a um inexistente recurso da demandante civil; para além de argumentar que – contrariamente ao defendido na resposta do Ministério Público, para onde remete o parecer – o seu recurso deve ser apreciado na totalidade, por não haver caso julgado relativamente aos pontos da decisão que não foram objeto de reenvio para novo julgamento.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
*
II. FUNDAMENTAÇÃO

Conforme é jurisprudência assente, o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (1).
*
1. Questões a decidir.

A. No recurso do arguido J. S.:

. impugnação da matéria de facto por vícios decisórios e erro de julgamento;
. subsunção jurídica dos factos;
. quantum da medida concreta da pena e condição a que foi subordinada a suspensão da execução da pena de prisão aplicada.

B. no recurso da arguida M. C.:

. impugnação da matéria de facto por vícios decisórios e erro de julgamento;
. subsunção jurídica dos factos;
. quantum da medida concreta da pena.
*
2. FACTOS PROVADOS

Segue-se a enumeração dos factos provados, não provados e respetiva motivação, constantes da sentença recorrida.

«a) Factos Provados

Da acusação pública e do pedido de indemnização civil:

1. Os arguidos foram casados entre si e divorciaram-se, por mútuo consentimento, por decisão de 05.06.2009.
2. Por decisão de 23.05.2008 havia sido declarada a separação de pessoas e bens do casal.
3. A sociedade “Tecto ..., SA” é uma sociedade anónima, que tem por objeto a indústria de construção civil e empreitadas de obras públicas, compra e venda de bens imóveis, arrendamento de imóveis próprios, atividades de promoção imobiliária e comércio, importação e exportação de veículos, sendo que esta sociedade se obriga em todos os seus atos e contratos com a assinatura do Administrador Único.
4. Por deliberação de 26 de março de 2008, o arguido J. S. foi designado como Administrador Único da sociedade denominada “Tecto ..., SA”.
5. Por deliberação de 31 de maio de 2010 a arguida M. C. foi designada como Administradora Única da mesma sociedade, qualidade que mantém.
6. Em 23 de maio de 2008 os arguidos eram detentores de ações da Tecto ..., SA, representativas de 94% do respetivo capital social.
7. Em 12.09.2008, através de escritura pública, os arguidos outorgaram em Cartório Notarial a venda à “Tecto ..., SA” dos prédios seguintes: -» prédio urbano composto de casa de rés-do-chão e primeiro andar, sito no lugar de ..., freguesia de ..., concelho de Ponte de Lima, descrito na Conservatória do Registo Predial de Ponte de Lima, freguesia de ..., sob o n.º ... e inscrito na respetiva matriz predial sob o n.º ..., pelo preço de €145.000,00 (cento e quarenta e cinco mil euros);
-» prédio rústico composto por terreno de mato e lenha denominado “Monte da …”, sito no lugar de ..., da freguesia da ..., concelho de Ponte de Lima, descrito na Conservatória do Registo Predial de Ponte de Lima, freguesia de ..., sob o n.º … e inscrito na respetiva matriz predial sob o n.º ..., pelo preço de €2.000,00 (dois mil euros), sendo o seu valor patrimonial de €60,35 (sessenta euros e trinta e cinco cêntimos);
-» 85/112 indivisos do prédio rústico composto por leira de terreno de cultivo, sito no lugar de ..., ... ou ..., da freguesia de ..., concelho de Ponte de Lima, descrito na Conservatória do Registo Predial de Ponte de Lima, freguesia de …, sob o n.º ... e inscrito na respetiva matriz predial sob o n.º …, pelo preço de €1.000,00 (mil euros), sendo o seu valor patrimonial de €19,46 (dezanove euros e quarenta e seis cêntimos).
8. Os três imóveis acima descritos pertenceram aos arguidos até à data da referida escritura.
9. Estes imóveis constituíam a totalidade do património imobiliário dos arguidos.
10. Com a referida venda ficaram os arguidos sem património para satisfazer os seus credores.
11. O arguido J. S. emitiu a favor de “X – Automóveis Unipessoal, Lda.” os cheques seguintes:
- cheque n.º 0857002447, no montante de €6.750,00, com data de vencimento em 30.09.2008, do Banco ... de Ponte de Lima;
- cheque n.º 6157002495, no montante de €9.000,00, com data de vencimento em 10.10.2008, do Banco ... de Ponte de Lima;
- cheque n.º 0857002156, no montante de €5.500,00, com data de vencimento em 05.10.2008, do Banco ... de Ponte de Lima;
- cheque n.º 5957002506, no montante de €8.250,00, com data de vencimento em 20.10.2008, do Banco ... de Ponte de Lima;
- cheque n.º 1157001703, no montante de €7.250,00, com data de vencimento em 18.09.2008, do Banco ... de Ponte de Lima;
- cheque n.º 4757001699, no montante de €8.750,00, com data de vencimento em 30.08.2008, do Banco ... de Ponte de Lima;
- cheque n.º 2067182337, no montante de €1.500,00, com data de vencimento em 29.08.2008, do Banco ... de Ponte de Lima;
- cheque n.º 3849743655, no montante de €4.000,00, com data de vencimento em 19.08.2008, da Caixa ... de Ponte de Lima;
- cheque n.º 5649743653, no montante de €2.000,00, com data de vencimento em 03.08.2008, da Caixa ... de Ponte de Lima;
- cheque n.º 4749743654, no montante de €3.000,00, com data de vencimento em 05.08.2008, da Caixa ... de Ponte de Lima;
- cheque n.º 0449743648, no montante de €6.000,00, com data de vencimento em 05.11.2008, da Caixa ... de Ponte de Lima;
- cheque n.º 9249743649, no montante de €7.000,00, com data de vencimento em 15.11.2008, da Caixa ... de Ponte de Lima;
- cheque n.º 8349743650, no montante de €8.000,00, com data de vencimento em 25.11.2008, da Caixa ... de Ponte de Lima;
- cheque n.º 1067181519, no montante de €3.000,00, com data de vencimento em 02.09.2008, do Banco ....
12. Todos os sobreditos cheques foram assinados pelo arguido.
13. Todos os cheques, acima descritos, foram entregues à “X – Automóveis Unipessoal, Lda.” com as respetivas datas escritas.
14. Não obstante a venda à “Tecto ..., SA” dos sobreditos imóveis, a arguida continuou a fazer uso do prédio urbano referido em 7, tal como vinha fazendo até então.
15. No imóvel urbano acima melhor identificado a arguida permaneceu a residir com os filhos do casal.
16. O referido imóvel nunca saiu, efetivamente, da esfera de atuação, ou pelo menos da utilização, da arguida.
17. Os arguidos J. S. e M. C. foram declarados insolventes por sentença de 26.10.2010 (P. 931/10.0TBPTL – IL Ponte de Lima J2). 18. O administrador da insolvência dos arguidos reconheceu créditos no montante global de € 806.072,69 (oitocentos e seis mil e setenta e dois euros e sessenta e nove cêntimos).
19. Ainda no âmbito da insolvência dos arguidos foram reclamados e reconhecidos créditos da Segurança Social no montante global de €846,52 (oitocentos e quarenta e seis euros e cinquenta e dois cêntimos), referentes a contribuições incidentes sobre remunerações pagas a J. S., reportadas ao período temporal compreendido entre fevereiro a junho de 2010 e respetivos juros de mora.
20. O administrador da insolvência dos arguidos não logrou apreender a contabilidade dos arguidos.
21. O administrador da insolvência dos arguidos não logrou apreender qualquer bem móvel dos insolventes.
22. Os arguidos registaram os prédios acima referidos, em nome de entidade terceira, com vista a salvaguardá-los de eventuais penhoras.
23. A “Tecto ..., SA” não pagou aos arguidos o preço nos termos declarados na escritura referida em 7.
24. Os pagamentos resultantes das alienações e/ou transferências de tal património predial foram efetuados de forma fictícia.
25. O facto referido em 23 contribuiu para a descapitalização dos arguidos e, subsequentemente para a declaração de insolvência dos arguidos, já que não dispunham de capital para solver as respetivas dívidas.
26. Os arguidos agiram do modo descrito com o propósito conseguido de privar a sociedade “X – Automóveis Unipessoal, Lda.” de créditos que sobre o arguido detinha e com isso conseguir, o que efetivamente sucedeu, ocultar os referidos imóveis à credora, prejudicando-a, como pretendiam e conseguiram.
27. No que respeita às transferências do património, os arguidos agiram no intuito, alcançado, de fazer desaparecer os imóveis descritos em 7, transferindo-os e não efetuando o pagamento das dívidas, e desse modo lograram obstar a que os credores conseguissem a cobrança coerciva dos seus créditos à custa dos bens respetivos, o que representaram, mais sabendo que causavam prejuízos aos credores, na exata medida dos créditos que estes ficaram impedidos de cobrar.
28. Agiram os arguidos livre, voluntária e conscientemente e sabiam que toda a sua respetiva atividade lhes estava legalmente vedada por ser ilícita e criminalmente punível.

Da alteração não substancial comunicada aos arguidos:
29. No relatório a que alude o artigo 155.º do CIRE, elaborado em dezembro de 2010, o Administrador da Insolvência deu conta da ausência de apreensão de bens para a massa insolvente, posto que o único veículo automóvel registado a favor dos arguidos havia sido vendido há muitos anos e as quotas sobre a insolvente Auto ...-Comércio de Automóveis, Lda. não tinham qualquer valor comercial.
30. Por despacho de 04 de maio de 2011 foram indeferidos liminarmente os pedidos de exoneração do passivo restante formulados pelos arguidos.
31. Os arguidos interpuseram recurso de tal decisão que foi revogada pelo Tribunal da Relação de Guimarães por acórdão de 12/04/2012.
32. Em 14/11/2012 foi proferida decisão que admitiu liminarmente os pedidos de exoneração do passivo restante dos arguidos e nomeado fiduciário.
33. Por sentença proferida em ação apensa ao processo de insolvência, proferida em 14/10/2014, foi julgada improcedente a impugnação da resolução efetuada pelo AI de negócio que versou sobre o prédio urbano, sito em lugar de ..., freguesia de ..., concelho de Ponte de Lima, descrito sob o n.º ... e inscrito na matriz sob o artigo ...; 85/112 indivisos do prédio rústico, sito no lugar de ..., ... ou ..., da freguesia de ..., Ponte de Lima, descrito sob o n.º ... e inscrito na matriz sob o artigo ..; e prédio rústico sito em lugar de ..., freguesia de ..., concelho de Ponte de Lima, descrito sob o n.º .. e inscrito na matriz sob o artigo ...; nela se mantendo a resolução extrajudicialmente efetuada do negócio em benefício da massa insolvente.
34. Em 08 de março de 2016 foi apreendido para a massa insolvente o prédio urbano, sito em lugar de ..., freguesia de ..., concelho de Ponte de Lima, descrito sob o n.º ... e inscrito na matriz sob o artigo .., com o valor atribuído de 273.765,00 €.
35. Nos autos de insolvência dos arguidos foi liquidada a massa insolvente.
36. Foram reconhecidos no âmbito do processo de insolvência dos arguidos os seguintes créditos:
a) Detido pelo Banco .., SA, no valor de 196.107,22 €, vencido em 25/08/2010;
b) Detido pelo Banco … SA, no valor de 47.279,45 €, vencido em 05/11/2009;
c) Detido pelo Banco …, SA, no valor de 59.965,44 €, vencido em 31/08/2009;
d) Detido pelo Banco .., SA, no valor de 127.702,18 €, vencido em 03/04/2009;
e) Detido pelo Banco ... PLC, no valor de 32.703, 99 €, vencido em 20/05/2009;
f) Detido por Y-Consultores de Gestão SA, no valor de 13.954,04 €, vencido em 26/05/2009;
g) Detido pela Caixa ..., SA, no valor de 5.327,68 €, vencido em 10/08/2009;
h) Detido pelo ISS, IP, no valor de 846,52 €, vencido entre 02/2010 e 06/2010.
i) Detido por M. D., no valor de 322 186,17 €, vencido em 30/06/2003.

Da audiência de discussão e julgamento:
37. Aquando do negócio referido em 7 o prédio urbano ali mencionado encontrava-se onerado com hipoteca voluntária a favor do Banco ... SA, registada pela Ap 35 de 2007/12/12, para garantia do capital de 189.611, 95 € e o montante máximo assegurado de 249.472,44 €.
38. Aquando do mesmo negócio, o mesmo prédio urbano encontrava-se onerado com hipoteca voluntária a favor do Banco ... SA, registada pela Ap 36 de 2007/12/12, para garantia do capital de 10.000,00 € e o montante máximo assegurado de 13.154,00 €.
39. O prédio foi transmitido à Tecto ..., SA com os referidos ónus.
40. Em 2008 os prédios referidos em 7 tinham os seguintes valores comerciais Urbano, artigo ...- 280.000,00 €; Rústico, artigo ...- 8.000,00 €; Rústico, artigo 72- 2.996,00 €.
41. Em outubro de 2015 os prédios referidos em 7 tinham os seguintes valores Comerciais Urbano, artigo ...- 294.000,00 €; Rústico, artigo ...- 8.400,00 €; Rústico, artigo ..- 3.100,00 €.
42. A insolvência dos arguidos foi qualificada como fortuita.
43. O arguido trabalha como rececionista numa empresa de reparação automóvel.
44. Aufere o salário mínimo nacional.
45. Vive sozinho, nas instalações da sua entidade patronal.
46. Tem como habilitações escolares o 6.º ano de escolaridade.
47. A arguida é auxiliar no Lar da Santa Casa da Misericórdia.
48. Aufere o salário mínimo nacional.
49. Vive no prédio urbano referido em 7, juntamente com um filho menor e dois filhos maiores, estudantes.
50. Tem como habilitações escolares o 12.º ano de escolaridade.
51. A arguida não tem antecedentes criminais averbados no seu certificado do registo criminal.
52. O arguido tem averbadas no seu certificado do registo criminal as seguintes condenações:
- No processo 9866/09.8TDPRT da 2.ª secção do 1.º Juízo Criminal do Porto, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de 7 €, aplicada por sentença transitada em julgado em 2010/07/08, pela prática em 2009/06/01 de um crime de difamação, pena essa declarada extinta por cumprimento;
- No processo 306/09.3TAPTL do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Ponte de Lima, na pena de 350 dias de multa, à taxa diária de 8 €, aplicada por sentença transitada em julgado em 2011/03/09, pela prática em 2008/11/12 de um crime de abuso de confiança, pena essa declarada extinta por cumprimento;
- No processo 728/09.0GAPTL do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Ponte de Lima, na pena de 420 dias de multa, à taxa diária de 8 €, aplicada por sentença transitada em julgado em 2011/09/19, pela prática em 2008/10 de um crime de burla qualificada, pena essa declarada extinta, por cumprimento;
- No processo 444/10.0TAPTL da Instância Central Criminal de Viana do Castelo, J2, na pena de 2 anos e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, condicionada ao pagamento de quantia em dinheiro a A. J., dentro do prazo da suspensão, por acórdão transitado em julgado em 2014/11/24, pela prática em 2008, dos crimes de falsificação ou contrafação de documento e burla qualificada.

Do pedido de indemnização civil (não contidos na matéria supra):
53. A sociedade “Tecto ... SA” teve como administradores únicos e sucessivamente: a arguida M. C., o arguido J. S., M. D. (pai da arguida M. C.) e, de novo, a arguida M. C..
54. M. D. foi administrador único da Tecto ... desde 02/12/2008 a 31/05/2010.
55. Em setembro de 2008, e até antes, os arguidos estavam endividados.
56. X Automóveis Unipessoal, Lda. intentou a ação ordinária 738/09.7TBPTL que seguiu termos pela instância local, Sec. Comp. Gen.- J2, em 24 de julho de 2009, em que são réus os arguidos e a Tecto ..., SA.
57. Mais intentou a execução n.º 954/08.9TBPTL- 1.º Juízo- sendo executado J. S., oferecendo como título executivo, entre outros, os cheques:
- cheque n.º 1157001703, no montante de €7.250,00, com data de vencimento em 18.09.2008, do Banco ... de Ponte de Lima; - cheque n.º 4757001699, no montante de €8.750,00, com data de vencimento em 30.08.2008, do Banco ... de Ponte de Lima; - cheque n.º 2067182337, no montante de €1.500,00, com data de vencimento em 29.08.2008, do Banco ... de Ponte de Lima.
58. A demandante intentou a execução 953/08.0TBPTL- 2.º Juízo – em que é executado J. S., no valor de 19.864 €.
59. A demandante nada recebeu, nada conseguiu penhorar.
*
Factos não provados

Da acusação pública e do pedido de indemnização civil:

i) A arguida emitiu os cheques referidos em 11.
ii) A arguida subscreveu e assinou os cheques a que se alude em 11.
iii) Os cheques referidos em 11 consubstanciavam quantias em dinheiro, que os arguidos devem à sociedade “X – Automóveis Unipessoal, Lda”, correspondente a parte do custo de veículos automóveis por esta vendidos aos arguidos e que nunca foram pagos.
iv) As sobreditas transações comerciais foram efetuadas no exercício do comércio e no interesse comum dos arguidos, à data, ainda casal.
v) Todos os cheques aludidos em 11 venciam-se três meses após a sua entrega.
vi) Não obstante a venda à “Tecto ..., SA” dos imóveis referidos em 7, o arguido continuou a fazer uso dos mesmos tal como vinha fazendo até então.
vii) Não obstante a venda à “Tecto ..., SA” dos imóveis referidos em 7, a arguida continuou a fazer uso dos prédios rústicos ali mencionados, como vinha fazendo até então.
viii) O prédio urbano referido em 7 continuou a constituir a casa de morada de família dos arguidos, tal como ficou acordado no seu divórcio.
ix) O referido imóvel nunca saiu, efetivamente, da esfera de atuação, ou pelo menos da utilização, do arguido.
x) O administrador da insolvência dos arguidos não logrou apreender qualquer bem imóvel dos insolventes.
xi) Como consequência direta e necessária da transmissão da propriedade dos três imóveis acima referidos para sociedade comercial anónima em que os arguidos foram, sucessivamente, administradores únicos, os arguidos entraram em situação de insolvência.
xii) Assim, durante o ano de 2008, a transferência do sobredito património terá resultado no falimento dos arguidos, culminando na sua respetiva insolvência.
xiii) Mercê do negócio referido em 7 o arguido não pôde pagar à Segurança Social, reclamante do seu crédito no processo de insolvência em causa.
xiv) As ações acima descritas levadas a cabo pelos arguidos J. S. e M. C. concretizadas na dissipação dos respetivos patrimónios foram causa direta e necessária da posterior decisão judicial de declaração de insolvência de cada um dos arguidos.
xv) Os arguidos agiram do modo descrito em 26 e com o propósito ali mencionado relativamente à Segurança Social.
xvi) As ações da Tecto ... SA têm sido distribuídas, em primeiro tempo com maior incidência pelos arguidos J. S. e M. C., mas ultimamente com predominância pelo requerido M. D..
xvii) M. D. foi detentor inicial de ações do capital social da Tecto ... SA.
xviii) M. D. sempre teve intervenção direta e decisiva na urdidura do plano de venda referido em 7, que quis e pensou juntamente com os arguidos.
xix) Após a declarada alienação de todo o património os arguidos apresentaram-se à insolvência.
xx) M. D. atuou em conjugação de esforços e objetivos com os arguidos para que os mesmos não tivessem património para saldar as suas dívidas.
xxi) A execução referida em 55 foi intentada em 17/10/2008.
xxii) A execução referida em 56 foi intentada em 16/10/2008.

Da contestação do arguido J. S.
xxiii) A demandante reclamou os seus créditos no âmbito do processo de insolvência, tendo os mesmos sido reconhecidos pelo Administrador da Insolvência.
*
III - Motivação da decisão de facto

A convicção do Tribunal resultou da avaliação englobante do contexto probatório dos autos, designadamente, os documentos que deles constam, a prova pericial, por declarações e testemunhal ouvida em sede de audiência de discussão e julgamento, enriquecida pelo que foi dado ao Tribunal ouvir e ver, resultado da oralidade e imediação de que beneficiou.

Especificando:
A prova dos factos vertidos em 1 e 2 emana da valoração da decisão de fls. 62 e do assento de nascimento de fls. 112-113, juntas na certidão judicial de fls. 2 e seguintes do apenso A.
A prova dos factos vertidos em 3 a 5, 53 e 54 resulta da análise da certidão comercial de fls. 812-821.
A prova do facto vertido em 6 resulta da relação de bens apresentada pelos arguidos aquando da separação de pessoas e bens, junta a fls. 879-880.
A prova do facto referido em 7 extrai-se da escritura de compra e venda junta a fls. 16-21.
A prova do facto referido em 8 emana da certidão predial de fls. 320-334.
A prova dos factos referidos em 9 resulta da conjugação dos depoimentos das testemunhas T. A. (inspetora da Polícia Judiciária) que, no âmbito da investigação a que procedeu efetuou buscas na Conservatória do Registo Predial não detetando outros bens dos arguidos que não os transmitidos pela escritura referida em 7 dos factos provados; com o depoimento da testemunha A. M., administrador da insolvência em funções no processo da insolvência particular dos arguidos que, no âmbito delas, averiguou pela existência de bens dos insolventes, fazendo verter no relatório a que alude ao artigo 155.º do CIRE, junto a fls. 1188 e seguintes da certidão judicial de fls. 1182 e seguintes, que os únicos bens constantes da DGCI em nome dos insolventes (ora arguidos) eram um veículo Datsun 160B do ano de 1974, que todavia tinha sido alienado há largos anos, e duas quotas da sociedade Auto-...-Comércio de Automóveis, Lda., então declarada insolvente, sem qualquer valor comercial. Daí que, no referido panorama, não tenham sido, na fase processual em que o referido relatório foi apresentado, apreendidos bens para a massa insolvente. Outrossim, resultou do depoimento da testemunha A. J. (legal representante da X-Automóveis Unipessoal, Lda) que o processo executivo que moveu contra o arguido não foram penhorados bens, por inexistentes.
A prova do facto referido em 10 resulta da conjugação dos depoimentos vindos de referir, posto que, não sendo proprietários de outros bens imóveis além dos transmitidos e apenas possuindo as quotas de uma sociedade insolvente, é manifesto que o património dos arguidos era insuficiente para solver quaisquer dívidas.
A prova dos factos mencionados em 11 a 13 emana da valoração das cópias dos cheques juntas a fls. 31 e seguintes da certidão judicial de fls. 2 e seguintes do apenso A, conjugadamente com o teor do depoimento prestado pela testemunha J. S., irmão do arguido, com quem trabalhou durante 15 anos, que não só reconheceu a assinatura aposta nos cheques como sendo a do seu irmão, como afirmou ter sido ele quem, pessoalmente, preencheu a maioria dos títulos, que foram efetivamente entregues a X-Automóveis Unipessoal, Lda., pese embora num contexto distinto da transação comercial de veículos automóveis.
A prova dos factos referidos em 14 a 16 emana da valoração das declarações prestadas pela arguida em sede de identificação, que forneceu morada compatível com a localização do prédio urbano objeto da transmissão aludida em 7 dos factos provados, conjugadamente com o depoimento prestado pelo Administrador da Insolvência A. M., que o confirmou, e pela testemunha A. R., contabilista da Tecto ... SA, que mencionou o arrendamento de parte do imóvel à arguida.
A prova dos factos mencionados em 17 a 19 resulta da valoração dos elementos documentais juntos na certidão judicial de fls. 1182 e seguintes dos autos, conjugadamente com a listagem junta pelo administrador da insolvência a fls. 1380.
O facto referido em 20 resulta da circunstância de os arguidos serem pessoas singulares, não sujeitas à obrigação de manter contabilidade organizada.
O facto referido em 21 emana da análise do relatório a que alude o artigo 155.º do CIRE junto a fls. 1188 e seguintes da certidão judicial de fls. 1182 e seguintes.
A prova dos factos vertidos em 23 e 24 retira-se da valoração conjunta dos depoimentos prestados pela testemunha T. A. (que da análise documental a que procedeu concluiu que não houve transferência da verba declarada como preço na escritura da esfera patrimonial da Tecto ... para os arguidos) corroborada digo respaldada com as declarações prestadas pela testemunha A. R. que soube explicar que na contabilidade da Tecto ..., SA o pagamento ficou espelhado, não por transferência do preço na data da escritura (na qual foi declarado o seu prévio recebimento), mas por uma declaração de pagamento efetuada por M. D. (em parte), e mediante entregas de rendas auferidas pela empresa (noutra parte). Por seu turno, declarou o Administrador da Insolvência dos arguidos que, da análise documental a que procedeu, não encontrou evidências do recebimento pelos arguidos do preço declarado na escritura, sendo que interpelados para o efeito não lograram os mesmos a sua demonstração. Explicou que essa foi a razão determinante para a resolução do negócio em benefício da massa insolvente a que procedeu e que, não obstante a impugnação judicial de que foi alvo, manteve a sua eficácia, permitindo a apreensão dos imóveis para a massa insolvente dos arguidos e a sua transmissão em sede de liquidação.
Desses depoimentos o Tribunal inferiu com segurança de que a declaração efetuada na escritura quanto ao recebimento do preço, na data da sua outorga, é inverídica.
Outrossim, convenceu-se o Tribunal que o invocado pagamento não ocorreu sequer em moldes distintos dos declarados na escritura, em concreto, da forma como foram contabilisticamente tratados na Tecto ..., SA. Com efeito, não é consentâneo com as máximas da experiência comum que os arguidos, já assoberbados com dificuldades económicas, tivessem transmitido todo o seu património imobiliário contra um pagamento fracionado e dilatado no tempo, incapaz de lhes garantir liquidez imediata. Em termos racionais lógicos, ao normal acontecer, se fosse essa a sua pretensão, nada impediria os arguidos de, por si próprios, arrendarem os imóveis, auferindo diretamente as respetivas contraprestações. Também para a sociedade adquirente o negócio não seria inteiramente proveitoso, posto que seria tributada em IRC sobre valores (rendas) de que não usufruía. Outrossim, nenhuma prova objetiva, designadamente documental, foi produzida que atestasse que as aludidas rendas tenham efetivamente sido entregues aos arguidos, nem é conhecido o teor da invocada declaração alegadamente emitida por M. D.. Neste particular, recorde-se que a única testemunha que aludiu a esses factos – a contabilista A. R. – esclareceu que apenas tratava documentos, não tendo qualquer intervenção na sua emissão e, por conseguinte, nas relações a eles subjacentes.
É de salientar que logo que os cheques pós-datados emitidos a favor da X – Automóveis L.da, foi feita a venda. Assim sendo é muito verosímil de que os arguidos ao procederem à venda procuraram diminuir o seu património e assim prejudicar este credor. (Cfr. factos 7 e 11 provados)
Inexistindo o pagamento, conclui-se que a sua representação contabilística é fictícia.
O facto referido em 25 é decorrência lógica da transmissão do património imobiliário sem o recebimento do correspondente valor. Com efeito, tendo os arguidos transmitido o seu património imobiliário, sem receber o correspetivo preço e mantendo as obrigações bancárias subjacentes aos ónus registados no prédio urbano (cfr. 37 e 38 dos factos provados) – posto que a transmissão do prédio não os desobrigou do pagamento do capital garantido – o negócio realizado traduziu-se numa perda patrimonial sem o correspetivo aporte financeiro (que mesmo que tivesse existido seria sempre por preços inferiores aos de mercado – cfr. 40 dos factos provados), assim contribuindo para a falta de liquidez financeira dos arguidos.
Os elementos subjetivos referidos em 22, 26 a 28 retiram-se da conjugação do comportamento adotado pelos arguidos com as regras da experiência comum. Com efeito, é perfeitamente consentâneo com o normal devir das coisas que quem, como os arguidos, à data da realização da escritura com débitos vencidos de 327,513,85 € (cfr. fls. 1380) e 10.250 € (cfr. cheques 475001699 e 2067182337 vencidos em data anterior à da outorga da escritura e que constituem títulos cuja força executiva foi reconhecida na ação executiva movida por X, Ld. contra o arguido), transfere todo o seu património imobiliário no valor - à data- de 290.996,00 € (cfr. relatório pericial de fls. 925 e seguintes), pelo preço declarado de 146.000,00 € (cfr. fls. 16 e seguintes), que não receberam, para uma sociedade anónima na qual são titulares da maioria das ações, não tem outra intenção senão tentar acautelar o património. Todo o comportamento desenvolvido por ambos os arguidos e espelhado na factualidade supra descrita denuncia a vontade de fazer desaparecer o património das suas esferas jurídicas, com o intuito de prejudicar os seus credores, impedindo-os que conseguissem obter a cobrança dos seus legítimos créditos à custa dos seus bens, bem sabendo que lesavam os legítimos interesses daqueles e lhe causariam prejuízos. Nesse contexto se afirma a voluntariedade das suas condutas e a consciência da ilicitude, sendo que nenhuma prova, com consistência, foi produzida que abalasse a convicção a que se chegou nos termos expostos.
Os factos vertidos em 29 a 35 e 42 resultam documentados na certidão judicial de fls. 1182 e seguintes e foram, na íntegra, confirmados pelo Administrador da Insolvência, A. M..
Os factos referidos em 36 resultam da conjugação da sentença proferida em sede de reclamação de créditos no processo de insolvência dos arguidos, documentada na certidão judicial vinda de aludir, conjugadamente com a listagem apresentada pelo Administrador da Insolvência, A. M. a fls. 1380.
Os factos referidos em 37 a 39 resultam da análise da certidão predial e fls. 320-334, conjugadamente com o teor da escritura de fls. 16-21.
A prova dos factos referidos em 40 e 41 resulta da valoração da prova pericial realizada nos autos, cujo relatório se mostra junto a fls. 925 e seguintes.
Os factos relativos às condições pessoais dos arguidos (43 a 50) extraíram-se das declarações a propósito prestadas pelos arguidos que, nesse particular, e considerando que se tratam de aspetos alheios à matéria com relevância penal em discussão, se nos afiguraram verosímeis e, consequentemente, credíveis.
A ausência de antecedentes criminais registados da arguida (51) e os antecedentes criminais do arguido elencados em 52, retiram-se dos certificados do registo criminal de fls. 743 e 746-754.
O facto mencionado em 55 resulta da valoração das datas dos vencimentos dos créditos elencados a fls. 1380 e da constatação extraída do requerimento executivo de fls. 579-581, conjugado com a decisão da oposição à execução junta a fls. 836 e seguintes, das quais resulta inequívoco que à data da celebração do negócio de transmissão do património os arguidos eram devedores, pelo menos, de M. D. e de X no montantes de 322.186,17 € e 17.500,00 €, estes documentados em título de crédito com força executiva bastante.
Os factos referidos em 56 a 59 resultam da valoração dos documentos juntos a fls. 574-593 e da certidão de fls. 2 e seguintes do apenso A, conjugada com o depoimento prestado pela testemunha A. J., que os confirmou.
No que aos factos não provados concerne a sua consideração nessa qualidade resulta ou da sua infirmação pela prova produzida ou da ausência de prova bastante que os permitisse confirmar.
Com efeito, os factos mencionados em i) e ii) foram infirmados pela análise dos cheques juntos a fls. 31 e seguintes da certidão judicial de fls. 2 e seguintes do apenso A, conjugadamente com o teor do depoimento prestado pela testemunha J. S., que atestou a autoria do seu preenchimento, resultando deles inequívoco que apenas está aposta a assinatura do arguido.
A consideração como não provado dos factos mencionados em iii) e iv) resulta da dúvida instalada quanto à real finalidade da emissão dos cheques, decorrente da valoração do depoimento da testemunha J. S. que apresentou uma versão distinta da acusação, igualmente sustentável. Com efeito, referiu a testemunha que os cheques se destinavam à gestão da conta corrente de cheques pós datados da X e eram emitidos em nome pessoal do arguido pelo facto de haver um plafond por cliente, assim sucedendo quando o plafond da Auto ... estava esgotado. O procedimento habitual era a substituição dos cheques na data dos respetivos vencimentos – posto que se inseriamna atividade comercial da Auto ... e não do arguido em nome pessoal - e quando assim não ocorria e os cheques eram descontados, a empresa pagava ao arguido a quantia respetiva. Esta versão, apesar das suas fragilidades, constitui uma hipótese de realidade alternativa à tese apresentada pela testemunha A. J., também ela com algumas incongruências. Veja-se a cópia da fatura de fls. 860 cuja fiabilidade foi infirmada pelo depoimento das testemunhas J. O., J. L. e M. R., adquirentes dos veículos de matrículas RQ, UA, ZM, respetivamente, que atestaram que efetuaram o negócio com a Auto ... e não com o arguido em nome individual, tendo sido aquela empresa quem emitiu os documentos necessários à circulação imediata das viaturas e, quanto aos dois últimos veículos, quem intermediou os contratos de crédito que permitiram a aquisição dos veículos, tendo recebido da Credora … o respetivo preço. Note-se que quanto ao veículo RQ consta efetivamente do apenso A uma nota de crédito a ele respeitante, emitida pela Auto ... a favor da X, datada de 17/06/2008, ou seja em data anterior à da emissão da fatura (31/10/2008) e com ela desconforme no que tange ao adquirente (cfr. fls. 98 do apenso A).
Por outro lado, o teor das notas de crédito juntas a fls. 91 a 98 da certidão judicial junta ao apenso A credibilizaram o depoimento da testemunha J. S. e E. D. na parte em que referiram que as compras e vendas de veículos eram habitualmente documentadas por notas de lançamento.
Refira-se, ainda, que não descuramos que os autos contêm a cópia da sentença proferida na oposição à execução 954/08.9TBPTL-A de fls. 861-866, da qual consta como factos provados que o arguido emitiu 3 dos cheques vertidos em 11 supra e que os mesmos titulam dívidas resultantes do negócio de automóveis. Por outro lado, provou-se ali que a X vendeu veículos automóveis ao arguido e à Auto ..., Lda.. Porém, nem a decisão esclarece a concreta relação causal que determinou a emissão dos aludidos cheques (“dívidas resultantes de compras e de vendas de veículos automóveis”, sem a definição do concreto objeto do negócio ou dos sujeitos contratantes, é uma expressão demasiado imprecisa que permite integrar vários tipos de obrigações geradas pelo próprio negócio) nem aquela decisão vincula este Tribunal, não operando a sentença cível, no que à fundamentação de facto concerne, no processo penal qualquer caso julgado que, por imposição legal, importe respeitar.
O que se pode retirar daquela ação executiva é apenas que, pelo menos quanto aos cheques a ela subjacentes, a credora X, Lda. é detentora de título de crédito com força executiva bastante, independentemente da relação jurídica subjacente à sua emissão.
Aqui chegados, no que à factualidade ora em foco concerne, o princípio in dubio pro reo dá resposta à questão processual da dúvida sobre o facto, impondo ao juiz que o non liquet da prova seja resolvido a favor do arguido.
A prova produzida não permitiu confirmar o vertido em v). Refira-se que, mesmo na versão sustentada pela testemunha A. J. a dilação dos pagamentos que – em sua tese – os cheques prosseguiam variava entre os 30 e os 180 dias.
O depoimento que a propósito prestou a testemunha J. S., infirmou o facto vertido em vi) e viii), resultando antes que apenas a arguida se manteve a residir permanentemente no prédio urbano após o divórcio.
Nenhuma prova foi produzida que confirmasse os factos mencionados em vii), sendo que, no que ao referido em viii) respeita, o que foi acordado em sede de separação de pessoas e bens (e não de divórcio), foi a atribuição da casa a ambos os cônjuges até à partilha (cfr. fls. 877-878).
O facto mencionado em x), embora verídico à data da acusação, foi superveniente infirmado pela apreensão decorrente da resolução do negócio referido em 7 em benefício da massa insolvente operada pelo Administrador da Insolvência e da improcedência da ação de impugnação dessa resolução, culminando na apreensão referida em 34.
Os factos referidos em xi) e xii) foram infirmados pela evidência que se retira da conjugação do passivo reconhecido nos autos de insolvência dos arguidos (cfr. fls. 1380) com o valor do património imobiliário que os arguidos possuíam (cfr. a fls. 925 e seguintes), expressiva de que à data em que operaram a transmissão já o ativo dos arguidos era superior ao seu passivo, pelo que não pode afirmar-se que foi o negócio que conduziu à situação da insolvência, embora a tenha agravado, colocando os credores perante a impossibilidade de satisfação dos seus créditos à custa do património dos arguidos.
A consideração como não provados dos factos referidos em xiii) e xv) resulta da evidência recolhida a fls. 1380 de que a dívida à segurança social apenas se venceu em 2010, ou seja, à data do negócio era inexistente, logo, não poderia ser pela realização dele que o seu pagamento não foi possível, ou com o propósito de impedir a sua cobrança que os arguidos atuaram.
Nem da sentença proferida no processo de insolvência, nem da petição inicial em que assentou (cfr. fls. 1182 e seguintes e certidão de fls. 2 e seguintes do apenso B) se retira qualquer conexão entre o negócio e a situação de insolvência que, como já referido, era já inequívoca antes da venda dos imóveis, que veio agravá-la.
Nenhuma prova sustentou os factos referidos em xvi), xvii), xviii) e xx). Pese embora se reconheça a proximidade relacional do pai da arguida, M. D., ao casal formado pelos arguidos, a estranheza suscitada pela grandeza do valor da dívida que viu reconhecida na insolvência, o impulso desta a seu cargo (quando nada nos autos ou na prova produzida indicia um mau relacionamento que culminasse na propositura da ação), as funções que desempenhou na Tecto ..., não pode o Tribunal julgar com base em meras desconfianças, ultrapassada que está a fase da mera indiciação. O grau de certeza que se impõe ao julgador ou a sustentação da prova a partir de indícios fortes que possam ser objetivados e relacionados entre si de forma inequívoca, impedem que se considere provada a referida factualidade, mercê da insuficiência de ambos.
Porquanto a alienação ocorreu em 12/09/2008 e a insolvência foi requerida por terceiro, que não os arguidos, em 22/09/2010, se considerou não provado o facto vertido em xix).
Nenhum dos documentos juntos pela demandante cível certifica as datas referidas em xxi) e xxii), razão pela qual se tiveram por não provadas.
O facto vertido em xxiii) não encontrou apoio na sentença proferida em sede de reclamação de créditos no processo de insolvência dos arguidos, documentada na certidão judicial de fls. 1182 e seguintes.»
***
3. APRECIAÇÃO DOS RECURSOS DOS ARGUIDOS (J. S. e M. C.)

- Questão Prévia do Caso Julgado (Levantada na resposta do Ministério Público aos recursos e, por remissão, igualmente sustentada pelo Exmo. Senhor Procurador-Geral adjunto nesta instância)

De harmonia com os elementos constantes dos autos importa desde já exarar que a sentença recorrida, datada de 23 de outubro de 2020, e que agora se impugna nos recursos dos arguidos, surge na sequência do novo julgamento determinado pelo acórdão de 14 de janeiro de 2019, proferido por este Tribunal da Relação do Guimarães, que determinou:
«conceder parcial provimento aos recursos do arguido J. S., da arguida M. C. e da demandante civil X – Automóveis, Unipessoal, Lda.,» decidindo-se «o reenvio parcial do processo para novo julgamento, restrito à matéria dos n.ºs 23 e 24 dos factos provados e n.º xiii dos factos não provados (e respetiva fundamentação factual).»
Resulta expressamente deste acórdão da Relação ter-se detetado na sentença recorrida uma contradição insanável entre os n.ºs 23 e 24 dos Factos Provados e o n.º xiii dos Factos Não Provados, extensível às passagens da motivação factual a eles respeitantes e que, não permitindo descortinar qual o verdadeiro sentido desses pontos da decisão, fundamentou só por si, nos termos do artigo 426º do Código de Processo Penal, o decretado «reenvio parcial do processo para novo julgamento, restrito à matéria dos n.ºs 23 e 24 dos factos provados e n.º xiii dos factos não provados (e respetiva fundamentação factual)».
Tendo-se consignado também no mesmo acórdão, que o detetado vício da contradição insanável não podia ser corrigido pelo Tribunal de recurso, «pois as incoerências detetadas não permitem que se possa saber qual o verdadeiro sentido da decisão recorrida» em conformidade com o que ficava «prejudicado o conhecimento das demais questões neles [nos recursos] suscitadas.»
Neste contexto processual não pode obviamente considerar-se – como pretende o Ministério Público – ter-se formado caso julgado quanto aos demais factos constantes da sentença da 1ª instância que não foram objeto do reenvio, pelo simples facto de eles nunca terem chegado a ser conhecidos pelo Tribunal de recurso (pela sua declarada prejudicialidade face à decisão de reenvio), não havendo assim qualquer razão para coartar aos arguidos a possibilidade legal do duplo grau de jurisdição nessa matéria.
***
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO (Por vícios decisórios e erro de julgamento, feita em ambos os recursos dos arguidos J. S. e M. C.)

Embora em recursos independentes, os recorrentes J. S. e M. C. insurgem–se com decisão da matéria de facto, ambos entendendo que as provas produzidas e examinadas em sede de audiência de julgamento não permitiam o apuramento da factualidade descrita nos pontos 22, 24, 25, 26, 27 e 28 dos Factos Provados; defendendo, também, que os pontos 23, 24 e 25 dos Factos Provados se encontram em contradição com os pontos xi, xii, e xiv dos Factos Não Provados, e os pontos 22, 26, 27 e 28 dos Factos Provados em contradição com os pontos iii) e iv) dos Factos Não Provados; por fim, aludem ainda os dois recorrentes à existência do vício do erro notório na apreciação da prova.
Vejamos.
A matéria de facto pode ser impugnada de duas formas distintas, através da invocação dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que respeita o artigo 412.º, n.ºs 3, 4 e 6, do mesmo diploma.
No primeiro caso estamos perante a arguição dos vícios da sentença, previstos nas alíneas a), b) e c), do nº 2, do artigo 410.º do Código de Processo Penal.
No segundo caso, ou seja, na impugnação ampla da matéria de facto, a apreciação já não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e se pode extrair da prova produzida em audiência, devidamente documentada, embora sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente, no cumprimento do ónus de especificação que lhe é imposto pelos n.º 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal.
Os recorrentes – para além do mais – sustentam que a sentença enferma dos vícios decisórios da contradição insanável da fundamentação e do erro notório na apreciação da prova, previstos no artigo 410.º, n.º 2, als. b) e c) do Código de Processo Penal.
Os vícios da sentença têm necessariamente de resultar «do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum», isto é, sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, como estabelece a respetiva previsão legal (2).
Significa isto que mesmo relativamente às declarações e depoimentos prestados oralmente e que sejam mencionados na sentença, a existência daqueles vícios tem de ser aferida exclusivamente pelo que da própria sentença sobre eles consta e não por referência aos respetivos registos áudio.
Caso não seja possível demonstrar o erro em que incorreu o julgador sem recurso ao registo áudio, então é porque o erro não emana diretamente do texto da sentença recorrida, ficando logo definitivamente afastada a sua integração no artigo 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, como vício decisório. (3)
Analisemos pois a sentença por este prisma, começando com as contradições que os recorrentes defendem verificarem-se entre os factos provados e não provados.

- A alegada contradição entre os pontos 23, 24 e 25 dos Factos Provados, por um lado, e os pontos xi, xii, e xiv dos Factos Não Provados, por outro.
Argumentam a propósito os recorrentes que «O Tribunal a quo considerou provado que pelo facto da Tecto ... não ter pago aos arguidos, o preço, nos termos declarados na escritura (ponto 23 e 24), contribuiu para a descapitalização dos arguidos e subsequentemente para a declaração de insolvência dos arguidos (ponto 25).
Não obstante, deu como não provado que como consequência directa e necessária da transmissão da propriedade dos bens imoveis para a Tecto ..., os arguidos entraram em situação de insolvência (ponto xi)), bem como que, durante o ano de 2008, a transferência do sobredito património terá resultado no falimento dos arguidos, culminando na sua respectiva insolvência (ponto xii), e ainda que as acções descritas levadas a cabo pelos arguidos, concretizadas na dissipação dos respectivos patrimónios foram causa directa e necessária da posterior decisão judicial de declaração de insolvência de cada um dos arguidos (ponto xiv).
Ora, não se considerando provado que a situação de insolvência se ficou a dever à transmissão destes bens, cremos que o Tribunal a quo não poderia, nunca, ter dado como provado que, o facto do pagamento da aquisição não ter sido efectuado nos termos declarados na escritura, tivesse contribuído para a descapitalização dos arguidos e a subsequente declaração de insolvência, muito menos que tal pagamento foi efectuado de forma fictícia.»

É o seguinte o conteúdo dos referidos pontos da sentença recorrida:

FACTOS PROVADOS

«23. A “Tecto ..., SA” não pagou aos arguidos o preço nos termos declarados na escritura referida em 7.
24. Os pagamentos resultantes das alienações e/ou transferências de tal património predial foram efetuados de forma fictícia.
25. O facto referido em 23 contribuiu para a descapitalização dos arguidos e, subsequentemente para a declaração de insolvência dos arguidos, já que não dispunham de capital para solver as respetivas dívidas.

FACTOS NÃO PROVADOS

«xi) Como consequência direta e necessária da transmissão da propriedade dos três imóveis acima referidos para sociedade comercial anónima em que os arguidos foram, sucessivamente, administradores únicos, os arguidos entraram em situação de insolvência.
xii) Assim, durante o ano de 2008, a transferência do sobredito património terá resultado no falimento dos arguidos, culminando na sua respetiva insolvência.
(…)
xiv) As ações acima descritas levadas a cabo pelos arguidos J. S. e M. C. concretizadas na dissipação dos respetivos patrimónios foram causa direta e necessária da posterior decisão judicial de declaração de insolvência de cada um dos arguidos.»

Ora, no que respeita ao papel que o não pagamento aos arguidos do preço dos bens imóveis que aqueles venderam à sociedade Tecto …, S.A, o que resulta dos factos provados é claramente que tal circunstância contribuiu para a posterior declaração de insolvência dos arguidos, mas não que tivesse sido a única causa dessa situação ou que tivesse sido causa direta e necessária de tal declaração.
Por conseguinte, a prova desse circunstancialismo não está em contradição com a consignação como não provada da factualidade descrita nos pontos xi, xii, e xiv dos factos não provados.

- A alegada contradição entre os pontos 22, 26, 27 e 28, dos Factos Provados, por um lado, e os pontos iii) e iv) dos Factos Não Provados, por outro.
Argumentam a este propósito os recorrentes, que «uma vez que os cheques emitidos pelo arguido à X não representavam dívida pessoal, nunca se poderá concluir que, subjacente aos negócios por si celebrados estivesse a intenção de prejudicar os credores e, concretamente, a X – Automóveis unipessoal, lda.»

É o seguinte o conteúdo dos referidos pontos da sentença recorrida:

FACTOS PROVADOS

«22. Os arguidos registaram os prédios acima referidos, em nome de entidade terceira, com vista a salvaguardá-los de eventuais penhoras.
(…)
26. Os arguidos agiram do modo descrito com o propósito conseguido de privar a sociedade “X – Automóveis Unipessoal, Lda.” de créditos que sobre o arguido detinha e com isso conseguir, o que efetivamente sucedeu, ocultar os referidos imóveis à credora, prejudicando-a, como pretendiam e conseguiram.
27. No que respeita às transferências do património, os arguidos agiram no intuito, alcançado, de fazer desaparecer os imóveis descritos em 7, transferindo-os e não efetuando o pagamento das dívidas, e desse modo lograram obstar a que os credores conseguissem a cobrança coerciva dos seus créditos à custa dos bens respetivos, o que representaram, mais sabendo que causavam prejuízos aos credores, na exata medida dos créditos que estes ficaram impedidos de cobrar.
28. Agiram os arguidos livre, voluntária e conscientemente e sabiam que toda a sua respetiva atividade lhes estava legalmente vedada por ser ilícita e criminalmente punível.»

FACTOS NÃO PROVADOS

«iii) Os cheques referidos em 11 consubstanciavam quantias em dinheiro, que os arguidos devem à sociedade “X – Automóveis Unipessoal, Lda”, correspondente a parte do custo de veículos automóveis por esta vendidos aos arguidos e que nunca foram pagos.
iv) As sobreditas transações comerciais foram efetuadas no exercício do comércio e no interesse comum dos arguidos, à data, ainda casal.»

Como resulta da leitura do excerto acabado de transcrever, não consta da factualidade não apurada que a sociedade X – Automóveis Unipessoal, Lda. não detivesse créditos sobre o arguido, mas apenas que tais créditos não tinham a sua origem em «parte do custo de veículos automóveis por esta vendidos aos arguidos», o que naturalmente não permite a conclusão de que não houvesse créditos daquela sociedade sobre o arguido e que, tanto este como a arguida, tenham atuado da forma e com a intenção descrita nos factos provados.

Não enferma assim a sentença do vício decisório da contradição insanável que os recorrentes lhe assacam.

Quanto ao vício do erro notório na apreciação da prova a que os recorrentes também aludem, apesar da referência expressa que a esse propósito fazem ao nº 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal (cfr. 35ª conclusão do recurso do arguido e 36ª conclusão do recurso da arguida), da leitura integral das respetivas motivações e conclusões dos recursos tudo indica que os recorrentes, apesar de imputarem expressamente à sentença tal vício, o que na realidade pretendem fazer nesse âmbito é uma impugnação ampla da matéria de facto, com fundamento não apenas ao que consta do texto da sentença, mas antes alargada à análise do que em seu entender se pode, ou não, extrair da prova produzida em audiência, criticando a convicção do Tribunal. Insurgindo-se com a valoração feita pelo Tribunal a quo da prova produzida em audiência de julgamento, para o que se socorrem do registo áudio das partes dos depoimentos das testemunhas em que se fundam, alegando que a decisão da matéria de facto não está em conformidade com essa prova.
Ora, tal questão tem unicamente lugar na impugnação da matéria de facto, por erro de julgamento, que irá ser apreciada de seguida.
Improcedendo a alegação da existência do vício decisório do erro notório na apreciação da prova, que os recorrentes invocam mas, como vimos, nem sequer concretizam nos termos da respetiva definição legal da al. c) do nº 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal.
Não se vislumbrando no texto da decisão recorrida alguma outra incoerência factual ou lógica que a inquine de qualquer dos vícios decisórios legalmente previstos.
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Passemos agora à impugnação da matéria de facto feita com base em alegado erro de julgamento, por errada apreciação e valoração da prova.

O recurso deste tipo não se destina a um novo julgamento com reapreciação de toda a prova, como se o julgamento efetuado na primeira instância não tivesse existido. Nestes casos, o Tribunal da Relação não faz um segundo julgamento, não vai à procura de uma nova convicção, antes se limitando a fazer o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento que tenham sido referidos no recurso e das provas que imponham, e não só que permitam, decisão diferente.
A decisão do recurso sobre a matéria de facto não pode ignorar, antes tendo de respeitar, o princípio da livre apreciação da prova do julgador, expresso no artigo 127.º do Código de Processo Penal e a sua relação com a imediação e oralidade, sobretudo quando tem que se debruçar sobre a valoração efetuada na primeira instância da prova testemunhal, face à ausência de contacto direto com essa prova, o que integra uma das grandes limitações deste tipo de recursos.
Posto isto, e dentro dos limites que a lei estabelece para a apreciação do recurso da matéria de facto, vejamos pois se o Tribunal a quo errou na apreciação e valoração da prova produzida na audiência e se o resultado do processo probatório devia ser outro.
Neste âmbito, a divergência dos recorrentes circunscreve-se à prova da factualidade descrita nos pontos 22, 24, 25, 26, 27 e 28 dos Factos Provados.
Ouvido o registo áudio dos depoimentos integrais prestados oralmente pelas testemunhas T. A., A. M. e A. R., e não só as partes deles indicadas nos recursos (como permite o nº 6 do artigo 412.º do Código de Processo Penal), adianta-se já que tal prova não impõe as conclusões que dela retiram os recorrentes.
A testemunha T. A., inspetora da Polícia Judiciária – que no exercício dessas suas funções profissionais procedeu à investigação da situação em causa nos autos – afirmou que da análise documental pode constatar que relativamente aos três prédios vendidos pelos arguidos à sociedade Tecto ..., S.A., embora exista escritura pública de compra e venda, não houve transferência da verba declarada como preço nessa mesma escritura.
O que foi confirmado e pormenorizado pela testemunha A. R., contabilista, que mostrou conhecimento direto de que na contabilidade da sociedade Tecto ..., S.A. o pagamento daquele preço não ficou consignado por transferência do respetivo valor na data da escritura (na qual foi declarado o seu prévio recebimento), mas numa parte por uma declaração de pagamento efetuada por M. D. e, noutra parte, mediante entregas de rendas auferidas pela empresa.
Também a testemunha A. M., que exerceu o cargo de Administrador da Insolvência dos arguidos, com base na análise documental a que procedeu, afirmou não ter encontrado evidências do recebimento pelos arguidos do preço declarado na escritura e, mesmo depois de os interpelar para o efeito, não lograram os mesmos a sua demonstração. Explicando, ainda, ter sido essa a razão determinante para ter procedido à resolução do negócio em benefício da massa insolvente, que não obstante a impugnação judicial de que foi alvo, manteve a sua eficácia, permitindo a apreensão dos imóveis para a massa insolvente dos arguidos e a sua transmissão em sede de liquidação.
Dos depoimentos destas três testemunhas resulta diretamente que a declaração efetuada na escritura de compra e venda quanto ao recebimento do preço dos três prédios dela objeto na data da sua outorga é inverídica, o que não é sequer impugnado pelos recorrentes.
Por sua vez, apreciada a descrita prova segundo as regras da experiência comum, como impõe o artigo 127.º do Código de Processo Penal, do núcleo de factos dela diretamente resultante outras conclusões se podem extrair, como fez o Tribunal a quo, disso dando conta na motivação, designadamente no seguinte excerto dela retirado, que subscrevemos:
«Outrossim, convenceu-se o Tribunal que o invocado pagamento não ocorreu sequer em moldes distintos dos declarados na escritura, em concreto, da forma como foram contabilisticamente tratados na Tecto ..., SA. Com efeito, não é consentâneo com as máximas da experiência comum que os arguidos, já assoberbados com dificuldades económicas, tivessem transmitido todo o seu património imobiliário contra um pagamento fracionado e dilatado no tempo, incapaz de lhes garantir liquidez imediata. Em termos racionais lógicos, ao normal acontecer, se fosse essa a sua pretensão, nada impediria os arguidos de, por si próprios, arrendarem os imóveis, auferindo diretamente as respetivas contraprestações. Também para a sociedade adquirente o negócio não seria inteiramente proveitoso, posto que seria tributada em IRC sobre valores (rendas) de que não usufruía. Outrossim, nenhuma prova objetiva, designadamente documental, foi produzida que atestasse que as aludidas rendas tenham efetivamente sido entregues aos arguidos, nem é conhecido o teor da invocada declaração alegadamente emitida por M. D.. Neste particular, recorde-se que a única testemunha que aludiu a esses factos – a contabilista A. R. – esclareceu que apenas tratava documentos, não tendo qualquer intervenção na sua emissão e, por conseguinte, nas relações a eles subjacentes.
É de salientar que logo que os cheques pós-datados [foram] emitidos a favor da X – Automóveis Lda., foi feita a venda. Assim sendo é muito verosímil de que os arguidos ao procederem à venda procuraram diminuir o seu património e assim prejudicar este credor. (Cfr. factos 7 e 11 provados)
Inexistindo o pagamento, conclui-se que a sua representação contabilística é fictícia.
O facto referido em 25 é decorrência lógica da transmissão do património imobiliário sem o recebimento do correspondente valor. Com efeito, tendo os arguidos transmitido o seu património imobiliário, sem receber o correspetivo preço e mantendo as obrigações bancárias subjacentes aos ónus registados no prédio urbano (cfr. 37 e 38 dos factos provados) – posto que a transmissão do prédio não os desobrigou do pagamento do capital garantido – o negócio realizado traduziu-se numa perda patrimonial sem o correspetivo aporte financeiro (que mesmo que tivesse existido seria sempre por preços inferiores aos de mercado – cfr. 40 dos factos provados), assim contribuindo para a falta de liquidez financeira dos arguidos.
Por sua vez, «Os elementos subjetivos referidos em 22, 26 a 28 retiram-se da conjugação do comportamento adotado pelos arguidos com as regras da experiência comum. Com efeito, é perfeitamente consentâneo com o normal devir das coisas que quem, como os arguidos, à data da realização da escritura com débitos vencidos de 327,513,85 € (cfr. fls. 1380) e 10.250 € (cfr. cheques 475001699 e 2067182337 vencidos em data anterior à da outorga da escritura e que constituem títulos cuja força executiva foi reconhecida na ação executiva movida por X, Lda. contra o arguido), transfere todo o seu património imobiliário no valor - à data- de 290.996,00 € (cfr. relatório pericial de fls. 925 e seguintes), pelo preço declarado de 146.000,00 € (cfr. fls. 16 e seguintes), que não receberam, para uma sociedade anónima na qual são titulares da maioria das ações, não tem outra intenção senão tentar acautelar o património. Todo o comportamento desenvolvido por ambos os arguidos e espelhado na factualidade supra descrita denuncia a vontade de fazer desaparecer o património das suas esferas jurídicas, com o intuito de prejudicar os seus credores, impedindo-os que conseguissem obter a cobrança dos seus legítimos créditos à custa dos seus bens, bem sabendo que lesavam os legítimos interesses daqueles e lhe causariam prejuízos. Nesse contexto se afirma a voluntariedade das suas condutas e a consciência da ilicitude, sendo que nenhuma prova, com consistência, foi produzida que abalasse a convicção a que se chegou nos termos expostos.
Toda a prova descrita no excerto acabado de transcrever – denominada indireta ou por presunção – em que se parte de um facto conhecido (o facto base ou facto indiciante, que funciona como indício) para se afirmar um facto desconhecido (o factum probandum), através de recurso a um juízo de normalidade e probabilidade, em conformidade com regras da experiência comum, é também uma prova válida, com virtualidade incriminatória para afastar a presunção de inocência, uma vez que em processo penal são admissíveis todas as provas que não forem proibidas por lei (cfr. artigo 125.º do Código de Processo Penal (4)).
Assim, tendo o Tribunal a quo formado a sua convicção fundamentadamente, de acordo com as regras da lógica e máximas da experiência, exteriorizando esse processo de forma racional e afastando qualquer dúvida razoável, não há motivo para não a considerar válida.
Poderá seguramente haver outras interpretações da prova, entre elas a indicada pelos arguidos, mas o certo é que ela não obsta a que a interpretação feita na sentença recorrida seja uma de entre as várias possíveis, lógicas e racionais, o que basta para que ela não possa ser modificada por outra, tão plausível quanto aquela, tanto mais que não foi feita qualquer prova suscetível de infirmar o juízo extraído dos factos indiciantes.
Aliás, o legislador, consciente das limitações que o recurso da matéria de facto necessariamente tem envolver, teve o cuidado de dizer que as provas a atender pelo Tribunal ad quem são aquelas que «impõem» e não as que «permitiriam» decisão diversa (5).
Sendo no caso em apreço indubitável que a argumentação e prova indicadas pelos recorrentes não impõem decisão diversa da proferida, nos termos da al. b), do n.º 3 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, apenas sendo exemplificativa de outra interpretação da prova.
Não podendo a interpretação da prova feita por uma das partes com interesse direto no desfecho da causa sobrepor-se nestas circunstâncias à interpretação que justificadamente é feita pelo órgão jurisdicional com competência para administrar a justiça.
Sendo assim a decisão do Tribunal a quo inatacável neste ponto, porque proferida de acordo com a livre convicção da entidade competente, em absoluto respeito dos dispositivos legais aplicáveis, nos termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal.
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Resta fazer uma alusão à alegada violação do princípio in dubio pro reo, cuja demonstração pode afirmar-se pela respetiva notoriedade, aferida pelo texto da decisão, ou seja, em termos idênticos aos que vigoram para os vícios da sentença.
O princípio do in dubio pro reo, postulado do princípio da presunção de inocência – consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa – surge como resposta ao problema da incerteza em processo penal, impondo a absolvição sempre que a prova não permite resolver a dúvida acerca da culpabilidade ou dos concretos contornos da atuação do acusado. Tendo esse non liquet de ser resolvido sempre a favor do arguido, sob pena de preterição do referido princípio da presunção de inocência.
Nesta perspetiva, o princípio do in dubio pro reo constitui um verdadeiro limite normativo ao princípio da livre apreciação da prova, regulando o procedimento do tribunal quando tenha dúvidas sobre a matéria de facto.
Não resultando da sentença recorrida que exista confronto do julgador com qualquer dúvida insanável sobre factos ou que ela devesse existir, não houve nem há in casu dúvida para ser valorada a favor dos arguidos/recorrentes.
Não tendo por conseguinte aqui aplicação o princípio do in dubio pro reo, que não se destina a resolver as dúvidas que o recorrente entende que o julgador a quo devia ter tido e não teve, mas unicamente as do próprio julgador, que no caso inexistem.
Improcedendo totalmente a impugnação da matéria de facto feita pelos recorrentes.
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SUBSUNÇÃO JURÍDICA DOS FACTOS feita em ambos os recursos dos arguidos J. S. e M. C..

Sustentam ainda os dois recorrentes que a factualidade considerada apurada não podia levar às suas condenações pelo crime de insolvência dolosa, previsto no artigo 227.º, n.º 1, al. a) do Código Penal, porquanto não se encontram preenchidos os pressupostos intrínsecos do referido tipo, desde logo a intenção de prejudicar os credores, para além de não se poder descurar que no âmbito do processo de insolvência a mesma foi julgada fortuita.

Vejamos.

O artigo 227.º, nº 1, do Código Penal, sob a epígrafe «Insolvência dolosa» estabelece:

«1 - O devedor que com intenção de prejudicar os credores:
a) Destruir, danificar, inutilizar ou fizer desaparecer parte do seu património;
b) Diminuir ficticiamente o seu ativo, dissimulando coisas ou animais, invocando dívidas supostas, reconhecendo créditos fictícios, incitando terceiros a apresentá-los, ou simulando, por qualquer outra forma, uma situação patrimonial inferior à realidade, nomeadamente por meio de contabilidade inexata, falso balanço, destruição ou ocultação de documentos contabilísticos ou não organizando a contabilidade apesar de devida;
c) Criar ou agravar artificialmente prejuízos ou reduzir lucros; ou
d) Para retardar falência, comprar mercadorias a crédito, com o fim de as vender ou utilizar em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente;
é punido, se ocorrer a situação de insolvência e esta vier a ser reconhecida judicialmente, com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.»
O elemento objetivo (material) do tipo concretiza-se aqui em qualquer das ações típicas descritas nas várias alíneas do seu nº, 1, tratando-se assim de um crime de execução vinculada, pois o respetivo processo executivo tem que revestir uma dessas modalidades.
Quanto ao elemento subjetivo, para além do dolo genérico, exige também um dolo específico, consistente na intenção do agente de prejudicar os credores (6).
Apresenta ainda este crime uma condição objectiva de punibilidade: a situação de insolvência com reconhecimento judicial (o que significa que sem esse reconhecimento não pode iniciar-se o procedimento criminal).
O bem jurídico protegido é identificado por uns como sendo o património dos credores (7) e por outros como a economia de crédito ou até a economia em geral (8).
Quanto a nós, subscrevemos aquela primeira posição seguindo a linha de pensamento de Pedro Caeiro (9), que a propósito escreve: «a ofensa ao património dos credores surge, na sua forma mais imediata, quando o devedor, violando o dever de manter um volume patrimonial suficiente para a integral satisfação dos credores, se coloca em (ou agrava) uma situação de défice patrimonial real ou fictício (insuficiência ostensiva do activo para prover ao passivo): o património dos credores é ofendido em virtude da diminuição patrimonial causada pela virtual impossibilidade de ressarcimento integral dos créditos (perigo abstracto), pelo que a área de tutela típica do bem jurídico se circunscreve aos montantes inscritos nos concretos direitos de crédito titulados pelos credores.»
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Relativamente à subsunção jurídica das suas condutas, os recorrentes começam por questionar a verificação do dolo específico da intenção de prejudicar os credores.

Não obstante, tal intenção encontra-se bem patente no elenco dos factos apurados, designadamente nos seus pontos 22 a 28 dos Factos Provados, com a seguinte redação:

«22. Os arguidos registaram os prédios acima referidos, em nome de entidade terceira, com vista a salvaguardá-los de eventuais penhoras.
23. A “Tecto ..., SA” não pagou aos arguidos o preço nos termos declarados na escritura referida em 7.
24. Os pagamentos resultantes das alienações e/ou transferências de tal património predial foram efetuados de forma fictícia.
25. O facto referido em 23 contribuiu para a descapitalização dos arguidos e, subsequentemente para a declaração de insolvência dos arguidos, já que não dispunham de capital para solver as respetivas dívidas.
26. Os arguidos agiram do modo descrito com o propósito conseguido de privar a sociedade “X – Automóveis Unipessoal, Lda” de créditos que sobre o arguido detinha e com isso conseguir, o que efetivamente sucedeu, ocultar os referidos imóveis à credora, prejudicando-a, como pretendiam e conseguiram.
27. No que respeita às transferências do património, os arguidos agiram no intuito, alcançado, de fazer desaparecer os imóveis descritos em 7, transferindo-os e não efetuando o pagamento das dívidas, e desse modo lograram obstar a que os credores conseguissem a cobrança coerciva dos seus créditos à custa dos bens respetivos, o que representaram, mais sabendo que causavam prejuízos aos credores, na exata medida dos créditos que estes ficaram impedidos de cobrar.
28. Agiram os arguidos livre, voluntária e conscientemente e sabiam que toda a sua respetiva atividade lhes estava legalmente vedada por ser ilícita e criminalmente punível.»

Tudo indica assim que esta objeção dos recorrentes estaria no fundo mais dependente da procedência da impugnação da matéria de facto (que não ocorreu) do que com a factualidade que consta como provada na sentença recorrida, que espelha de forma direta essa mesma intenção.
Note-se que atualmente e já desde a revisão do Código Penal levada a efeito pelo DL n.º 48/95, de 15.03 (10), o crime de insolvência dolosa não tem resultado típico, sendo um crime de mera atividade, não exigindo que a atuação do devedor seja causa direta da situação de insolvência e do respetivo reconhecimento judicial, bastando que aquela atuação integre uma das ações típicas descritas previstas no n.º 1 do artigo 227.º do Código Penal (11) realizada com intenção de prejudicar os credores.
Precisamente neste sentido escreve Menezes Leitão (12): «No âmbito da redacção anterior, exigia-se que a falência viesse a ser declarada em consequência da prática dos referidos factos, o que implicava a exigência de uma relação de causalidade entre os referidos comportamentos e a declaração de falência. Actualmente, no entanto, deixou de se exigir essa relação, exigindo-se apenas que ocorra a situação de insolvência e esta venha a ser judicialmente reconhecida (art. 227º, n.º 1, 228º, n.º 1, e 229º, n.º 1, in fine CP). Estamos assim perante meras condições objectivas de punibilidade do agente, o que implica que hoje estes crimes insolvenciais tenham que ser qualificados como crimes de perigo abstracto, cuja ilicitude corresponderia aos comportamentos previstos no tipo respectivo e cuja punibilidade seria limitada de duas condições objectivas: a ocorrência da insolvência e o respectivo reconhecimento judicial.»
Por outro lado, a circunstância de no âmbito do respetivo processo de insolvência dos arguidos a mesma ter sido julgada fortuita, como consta do ponto 42 dos Factos Provados, não assume qualquer relevância, contrariamente ao que argumentam os recorrentes.
A única condição objetiva de punibilidade que decorre do artigo 227.º do Código Penal é a verificação da situação de insolvência com reconhecimento judicial (e não uma situação de mera falência técnica), mas já não a classificação que lhe foi atribuída.
Aliás, se dúvidas restassem, elas seriam dissipadas pelo texto do artigo 185.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), que direta e expressamente estabelece que a qualificação da insolvência como culposa ou fortuita «não é vinculativa para efeitos da decisão de causas penais». (13)
De tudo assim resultando que a apurada conduta dos arguidos é subsumível ao crime de insolvência dolosa p. e p. pelo artigo 227.º. nº 1, al. a) do Código Penal.

Nenhuma censura merecendo também este ponto da sentença.
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QUANTUM da MEDIDA CONCRETA DAS PENAS aplicadas a cada um dos recorrentes J. S. e M. C..
E
CONDIÇÃO A QUE FOI SUBORDINADA A SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO aplicada ao arguido J. S..

Sustentam ambos os recorrentes que as penas concretas que lhes foram aplicadas são exageradas e deveriam ser reduzidas aos respetivos mínimos legais. Argumentando ainda o recorrente J. S. que a condição mediante a qual foi subordinada a suspensão da execução da pena de prisão em que foi condenado deve ser alterada para outra mais adequada à sua situação económica e financeira.
Vejamos.
Cada um dos recorrentes foi condenado pela prática de um crime de insolvência dolosa, p. e p. pelo artigo 227.º, n.º1, al. a) do Código Penal, a que corresponde pena de prisão de 1 mês até 5 anos ou pena de multa de 10 até 600 dias.
Nenhum dos arguidos questiona a escolha da pena (de prisão para o arguido J. S. e de multa para a arguida M. C.).
A concretização das penas dentro das respetivas molduras legais aplicáveis obedece aos critérios definidos nos artigos 40.º, n.º 1 e n.º 2 e 71.º do Código Penal.
Em conformidade com o estatuído no artigo 40.º, n.º 1 do Código Penal, a aplicação das penas «…visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade», ou seja, visa fundamentalmente atingir fins de prevenção geral (proteção dos bens jurídicos) e fins de prevenção especial (reintegração do agente). Não podendo em caso algum a pena ultrapassar a medida da culpa (14). A quantificação da culpa e o grau de exigência das razões de prevenção, em função das quais se vão dimensionar as correspondentes molduras, faz-se através da «ponderação das circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuseram a favor do agente ou contra ele», tal como decorre do artigo 71.º, n.º2 do Código Penal.
O limite máximo da pena fixar-se-á – atendendo à salvaguarda da dignidade humana do agente – em função da medida da culpa, que a delimitará por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que se façam sentir. O seu limite mínimo é dado pelo quantum da pena que, em concreto, ainda realize, eficazmente, essa proteção dos bens jurídicos penalmente protegidos. Dentro desses dois limites, encontrar-se-á o espaço possível de resposta às necessidades de reintegração social do agente.

O Tribunal a quo justificou do seguinte modo as penas concretas que aplicou:

«- a ilicitude é grave, considerando a forma como os arguidos procederam, espelhada na grandeza dos valores retirados da disponibilidade dos credores sociais. Assim, em sentido agravante, perfilam-se as consequências dos factos quer fundamentalmente no que concerne aos legítimos interesses dos credores, quer no que respeita ao interesse público nas relações de comércio, o que implica um elevado grau de violação dos deveres impostos aos agentes que nelas operam.
- a arguido agiu com dolo direto intenso;
- O arguido tem antecedentes criminais, como supra resultou provado, dois dos quais por factos praticados antes da conduta ilícita ora em foco, mas todos eles respeitantes a condenações sofridas após a prática dos factos a que os presentes autos se reportam. Não obstante, a existência de tais antecedentes, é expressiva da insensibilidade da personalidade do arguido à violação de comandos penais.
- A arguida não tem antecedentes criminais.
- as exigências de prevenção geral são elevadas, urgindo reafirmar perante a comunidade a validade das normas que tutelam a autoridade pública do Estado, pilar fundamental de qualquer Estado de Direito.
- Militam a favor dos arguidos, em sentido atenuante das exigências de prevenção especial, a sua integração familiar e profissional (na perspetiva da autossuficiência económica que permite e da inserção social que promove).»

Sopesando todas as considerações expendidas no transcrito excerto da sentença recorrida, a pena de 2 (dois) anos de prisão aplicada ao arguido e a pena de 290 (duzentos e noventa) dias de multa aplicada à arguida, ambas ainda abaixo do ponto médio das respetivas molduras legais, mostram-se perfeitamente justas e equitativas.
De todo o modo, é hoje jurisprudência unânime ao nível do STJ que pequenas divergências na fixação da pena concreta, absolutamente alheias a incorreções ou distorções no seu processo de aplicação legal não devem, em princípio, ser fundamento para a sua alteração pelo Tribunal de recurso. Precisamente neste sentido, é muito esclarecedor o Acórdão do STJ de 12.07.2018, proc. nº 116/15.9JACBR.C1.S1 (15), no qual se escreveu: «pode sindicar-se a decisão, quer quanto à desconsideração ou errada aplicação pelo tribunal dos princípios gerais de determinação da medida da pena, à correcção das operações nela efectuadas, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação dos factores relevantes, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como à forma de actuação dos fins das penas no quadro de prevenção. Mas o recurso não visa nem pretende eliminar alguma margem de actuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do acto de julgar.»
Assim improcedendo mais este ponto do recurso relativo às medidas concretas das penas.
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Resta apreciar a condição mediante a qual foi subordinada a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao recorrente J. S., que este entende dever ser alterada para outra mais adequada à sua situação económica e financeira.
A sentença recorrida condenou o arguido J. S. na pena de 2 (dois) anos de prisão com execução suspensa por igual período, subordinada à condição de o arguido, no prazo da suspensão, pagar a indemnização devida à demandante X, Lda., fixada no mesmo montante da condenação no respetivo pedido de indemnização civil [ou seja, em 17.500,00 € (dezassete mil e quinhentos euros), correspondente aos valores inscritos nos cheques referidos em 57 dos factos provados, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, contados sobre cada uma das quantias tituladas nos referidos cheques e desde a data de vencimento respetiva].
Admitindo o artigo 51.º, n.º 1 do Código Penal que a suspensão da execução da pena de prisão possa ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime, nomeadamente a pagar a indemnização devida ao lesado; prescreve depois o n.º 2 do mesma norma que «os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir».
De onde decorre que a subordinação da suspensão da execução da pena ao dever de pagamento de determinada quantia monetária deve estar dependente de um juízo de prognose balizado por critérios de razoabilidade e proporcionalidade, assentes no pressuposto de que o agente do crime deve proceder ao pagamento segundo aquilo que puder e de acordo com as suas forças
Sobre esta matéria é muito elucidativo o acórdão do STJ de 13.12.2006, processo 06P3116 (16), em cujo sumário se pode logo ler: «Consagra, também, no n.º 2 do art. 51.º do CP, o chamado princípio da razoabilidade, que, segundo vem entendendo este Supremo Tribunal, significa que a decisão de imposição do dever ali previsto deve ter na devida conta “as forças” do destinatário, de modo a não frustrar, à partida, o efeito reeducativo e pedagógico que se pretende extrair da medida, sem contudo se cair no extremo de tudo se reconduzir e submeter às possibilidades Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça Secções Criminais Número 108 - Dezembro de 2006 11 económicas e financeiras oferecidas pelos proventos certos e conhecidos do condenado, sob pena de se inviabilizar, na maioria dos casos, o propósito que lhe está subjacente, qual seja o de dar ao arguido margem de manobra suficiente para desenvolver diligências que lhe permitam obter recursos indispensáveis à satisfação do dever ou condição.»

No caso em apreço, a formulação do juízo de prognose sobre as possibilidades do recorrente para o pagamento da condição passa, antes de mais, pela consideração de que embora a declaração de insolvência seja uma realidade que carateriza a situação económica e financeira do recorrente como deficitária, o certo é que os seus efeitos não abrangem os atos decorrentes da condenação, através de sentença penal, que é eminentemente pessoal (artigo 11º do Código Penal) e está ligada aos fins das penas (artigo 40º do C. Penal), nada tendo por isso a ver com atos de disposição de bens por parte do arguido.
A declaração de insolvência não é assim de modo algum suscetível de impedir o insolvente condenado em processo crime de canalizar os rendimentos de que disponha para o pagamento de condição de caratér económico a que foi subordinada a suspensão da execução de uma pena de prisão aplicada pelo crime de insolvência dolosa.
Por outro lado, a adequação do montante cujo pagamento foi fixado ao recorrente como condição da suspensão da execução da pena mostra-se perfeitamente adequada às consequências provocadas pelo facto, já que corresponde exatamente à totalidade da contabilização dos danos sofridos pela X, Lda. em consequência do crime cometido.
Haverá ainda que conjugar aquele montante com a atividade profissional do arguido, que sabemos ser rececionista numa empresa de reparação automóvel, com o salário mínimo nacional, mas a que acresce a possibilidade de viver em instalações da sua entidade patronal (o que tem um valor económico muito significativo), sendo certo que não tem outros encargos para além do seu próprio sustento.
Neste quadro fático, sendo o arguido um homem em fase ativa da vida, com experiência profissional, há pelo menos expetativas objetivas de que venha a ter meios financeiros que lhe permitam pagar em dois anos a quantia correspondente à condenação cível.
É claro que o cumprimento de tal condição nunca será conseguido sem um esforço adicional e sacrifício do recorrente, mas não se pode olvidar que é isso mesmo que se pretende com a imposição daquela condição, pois sem esse esforço e sacrifício nunca haverá verdadeira responsabilização do condenado e, sem ela, falecem as finalidades punitivas da sanção. Tanto mais que no caso de pena de prisão com execução suspensa o que o condenado realmente sente é, em regra, a condição fixada.
De todo o modo, no momento em que o recorrente tiver de prestar contas sobre o cumprimento da condição da suspensão, o Tribunal só poderá declarar revogada a suspensão da execução da pena por incumprimento (total ou parcial) dessa condição se este for culposo. Decisão que, aliás, a lei condiciona à prévia audição das razões que então forem apresentadas pelo condenado, se não resultarem as demais medidas referidas no artigo 55.º do Código Penal e se forem infringidas grosseira ou repetidamente os deveres impostos (artigo 56.º, n.º 1, al. a), do Código Penal) (17).
Nenhuma censura nos merecendo o montante da condição subordinante da suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao recorrente J. S..
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III. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta secção do Tribunal da Relação de Guimarães em:

A. Negar provimento ao recurso do arguido J. S..
Vai o recorrente condenado em custas, fixando-se em 4 (quatro) Ucs a taxa de justiça.
*
B. Negar provimento ao recurso da arguida M. C..
Vai a recorrente condenada em custas, fixando-se em 4 (quatro) Ucs a taxa de justiça.
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Guimarães, 12 de abril de 2021
(Elaborado e revisto pela relatora)

Fátima Furtado
Armando Azevedo
(assinado digitalmente)



1. Cfr. artigo 412º, nº 1 do Código de Processo Penal e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição revista e atualizada, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V.
2. Cfr. n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal.
3. O que não quer dizer que não possa haver um erro de julgamento por errada valoração da prova, nos termos do disposto no artigo 412.º do Código de Processo Penal, que como já vimos é questão diversa.
4. Com exceção da prova vinculada.
5. Cfr. artigo 412.º, n.º 3, al. b) do Código de Processo Penal.
6. Cfr. Maia Gonçalves, Código Penal Português, Editora. Almedina, 16ª edição, p. 773
7. Como é o caso de Pedro Caeiro, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, págs. 404, 407 e 408 .
8. Como é o caso de Teresa Palma, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, pág. 625.
9. Cfr. obra e local citado no ponto 7.
10. Que eliminou o nº 2 do artigo 227.º do Código Penal, que estabelecia: «Se a falência vier a ser declarada em consequência da prática de qualquer dos factos descritos no número anterior, o devedor é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias»; sendo que esta é precisamente a pena hoje cominada para o n.º 1.
11. Neste sentido o acórdão do TRC de 13.03.2019 proc. 1530/12.7TALRA.C1, disponível em www.dgas.pt
12. Direito da Insolvência, Editora Almedina, 2015, 6.ª Edição, págs. 343 e 344.
13. Neste sentido, cfr. o acórdão do TRC de 24.05.2017, proc. 144/13.9TAACB.C1, disponível em www.dgsi.pt.
14. Cfr. artigo 40º, n.º 2 do Código Penal.
15. Disponível em www.dgsi.pt.
16. Disponível em www.dgsi.pt.
17. Cfr., neste sentido, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06.01.2005, CJ, ACSTJ, Ano XIII, tomo I, página 165.