Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2251/22.8T8GMR.G1
Relator: SANDRA MELO
Descritores: LEI INTERPRETATIVA
ATAS DE CONDOMÍNIO
SANÇÕES PECUNIÁRIAS
EXEQUIBILIDADE
ANULABILIDADE DAS DELIBERAÇÕES
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/27/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
.1-Se uma lei posterior define um entendimento que já cabia na lei anterior, resolvendo conflito jurisprudencial e doutrinal sobre qual os sentidos a atribuir-lhe, essa nova lei não é inovadora ou criadora, mas meramente interpretativa, pelo que esse entendimento vale para as situações existentes na vigência da anterior lei.
.2- Tal ocorre com a nova redação dada pela Lei 8/2022 ao artigo 6º do DL n.º 268/94, concedendo força executória ás atas das assembleias de condóminos no que toca às sanções de natureza pecuniária “desde que aprovadas em assembleia de condóminos ou previstas no regulamento do condomínio”.
.3- Dúvidas não há, pois, hoje, que as atas de condomínio podem servir de título executivo quanto a sanções pecuniárias, desde que aprovadas em assembleia de condóminos ou previstas no regulamento do condomínio, interpretação que deve ser a seguida mesmo para o período em que ainda não havia vigorava a Lei 8/2022.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

Recorrente, Exequente e embargado:  Condomínio do Centro Comercial das ...
Recorrido, executada e embargante:  F..., Lda
Apelação em oposição à execução por embargos de executado

I- Relatório

O exequente, ora embargado, no seu requerimento executivo, invocou, em súmula, que a Executada é dona e legítima possuidora de 7 frações autónomas e que nos termos do artigo 26º, nº 1, do Regulamento do Condomínio do Centro Comercial das ..., o proprietário que não pagar os recibos no prazo previsto no artigo 10.º - até ao dia 10 do mês a que disser respeito - fica sujeito ao pagamento de uma multa correspondente a 25% do valor do recibo ou recibos em dívida. Porque a Executada, apesar de instada pelo Exequente, por diversas vezes, não pagou as mensalidades em dívida que totalizam o montante de 64.182,89 €, ao referido valor acresce o montante de 16.045,73 € que corresponde à penalização constante do regulamento do condomínio.

A embargante na sua petição de embargos alegou, também em súmula, que o valor reclamado a título de penalização constante do regulamento do condomínio não é devido, porquanto inexiste título executivo que o sustente, dado que à luz do artigo 6º, n.º 1, do DL n.º 268/94, de 25.10., a ata da assembleia de condóminos não constitui título executivo para cobrança de penalidades em caso de não pagamento tempestivo das prestações devidas pelo condómino. No restante período, tendo por base as atas aprovadas e os valores das quotas constantes das mesmas, o valor total em dívida seria de 43.727,25 €, e não o reclamado de 64.182,89 €.
O embargado contestou, invocando que da ata número cento e onze, relativa à Assembleia Geral Ordinária de Condóminos realizada em 17 de fevereiro de 2022, dada à presente execução, consta que o valor em dívida pela Embargante corresponde a 64.182,89€, relativo a quotas de condomínio devidas pelo período compreendido entre maio de 2017 e fevereiro de 2022. Os valores das quotas de condomínio referidos pela embargante jamais poderiam ser aplicados às frações de que é proprietária, porquanto não correspondem à divisão do valor global constante do orçamento (21.232,30€), aprovado na Assembleia realizada em abril de 2019, por cada fração, na proporção do valor de cada uma das frações; qualquer deliberação que altere o critério estabelecido no artigo 1424.º, n.º 1 do Código Civil sem observância da apontada forma legal sempre seria nula.

Foi proferida decisão que considerou que as deliberações tomadas não foram anuladas ou declaradas nulas em ação com a intervenção da executada, pelo que as mesmas são operantes e por isso o valor das quotas em dívida ascende a € 44.840,42; quanto ao montante exigido a título de penalização considera que a Lei nº 8/2022, de 10/1 não é uma lei interpretativa, pelo que o valor atinente a penalidades não pode ser exigido na presente execução por falta de título executivo bastante. Assim, foi proferida sentença que julgou os embargos de executado parcialmente procedentes e, em conformidade, determinou a extinção da execução, relativamente ao valor que exceda a quantia de €: 44.840,42 devida a título de quotas e juros.

A Autora apelou desta sentença, apresentando as seguintes
conclusões:

“ I.   O Condomínio Embargado não se conforma com a decisão que julgou parcialmente procedentes os embargos, determinando a extinção da execução quanto às quantias de 19.702,47€ e de 16.045,73€, por inexistência de título executivo.
II. Contrariamente ao entendimento perfilhado pelo douto Tribunal a quo, que muito se respeita, o Recorrente entende que a Lei n.º 8/2022, de 10/1 reveste a natureza de lei interpretativa no que se reporta à responsabilidade pelas despesas e quotas de condomínio, assim se integrando na lei interpretada, nos termos do disposto no artigo 13º do Código Civil e, como tal, é de aplicação imediata às situações constituídas antes da sua entrada em vigor.
III.   É esta a posição do Recorrente porquanto da Exposição de Motivos constante do Projeto de Lei n.º 718/XIV/2.ª (que antecedeu o referido diploma legal), resulta que a alteração ao regime da propriedade horizontal pretende “contribuir para a pacificação da jurisprudência que é abundante e controversa a propósito de algumas matérias, como, por exemplo, os requisitos de exequibilidade da ata da assembleia de condóminos, a legitimidade processual ativa e passiva no âmbito de um processo judicial e a responsabilidade pelo pagamento das despesas e encargos devidos pelos condóminos alienantes e adquirentes de frações autónomas, colocando fim, neste último aspeto, à vasta e sobejamente conhecida discussão acerca das características de tais obrigações.”
IV. Pese embora na vigência do anterior artigo 6.º do DL n.º 268/94, de 25/10, existissem dúvidas quanto ao alcance da expressão “contribuições devidas ao condomínio”, no sentido de abranger tais sanções pecuniárias, havia já uma parte da jurisprudência que considerava que aquela expressão devia ser entendida em sentido amplo, nela se devendo incluir, além das despesas específicas relativas ao próprio condomínio, e que são de diversa natureza, as penas pecuniárias.
V. In casu, o Recorrente peticionou por meio da execução apensa a quantia de 16.045,73€, relativa à sanção pecuniária que incide sobre o valor de quotas de condomínio em dívida.
VI. Ante o exposto, considerando que a Lei n.º 8/2022, de 10/1 reveste natureza interpretativa no que se reporta à responsabilidade pelas despesas e quotas de condomínio, assim se integrando na lei interpretada, é de aplicar ao caso dos presentes autos o disposto no art. 6.º, n.º 3 do DL n.º 264/98, de 25/10 na sua versão atual,
VII. Assim se concluindo que a Ata número cento e onze dada à execução constitui, efetivamente, título executivo quanto à sanção pecuniária de 25% que incide sobre as quotas de condomínio em dívida, porque tal penalidade consta, expressamente, do regulamento do condomínio.
VIII. Nessa conformidade, ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou o disposto no artigo 6.º, n.º 3 do DL n.º 268/94, de 25/20, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 8/2022, de 10/01.
IX. Ainda e sem prescindir, o Recorrente não se conforma com a decisão que reduziu a quantia exequenda relativa às quotas de condomínio devidas pela Recorrida, no período compreendido entre maio de 2017 a fevereiro de 2022, a 44.840,42€.
X. Com efeito, a ata número cento e nove dada à execução padece de manifesto lapso de escrita, porquanto os valores de quotas de condomínio que ali constam relativos às frações de que é proprietária a Recorrida não corresponde à divisão do valor global constante do orçamento aprovado naquela AGO, dividido por cada fração, na proporção do valor de cada uma das frações – o que, por si só, demonstra a existência do referido lapso.
XI. Certo é que, a considerar-se tais valores, sempre se estaria perante uma deliberação que altera o critério estabelecido no artigo 1424.º, n.º 1 do CC e, em consequência, sempre tal deliberação seria nula, por inobservância da forma legal (cfr. art. 220.º do CC), nulidade essa de conhecimento oficioso, nos termos do disposto no artigo 286.º do CC.
XII. Aliás, nesse sentido decidiu já o douto Tribunal de Guimarães, por sentença proferida no âmbito do processo n.º 222/10....,que correu termos na ... Vara, das Varas de Competência Mista ..., em ação movida por uma condómina contra o Condomínio aqui Recorrente,
XIII. Pelo que, atento o teor da referida decisão judicial, jamais os valores constantes da ata número cento e nove poderiam voltar a vigorar relativamente às quotas de condomínio devidas pelas frações de que a Recorrida é proprietária, sob pena de violação de caso julgado.
XIV. Ocorre, ainda, que na Ata número cento e dez, relativa à AGE ocorrida em 26 de março de 2021, consta a listagem da quota estabelecida para cada fração, para os anos de 2020 e 2021, calculada na proporção do valor de cada uma das frações, na repartição das despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns e dos serviços de interesse comum, constando da referida listagem os valores das quotas relativos às frações de que a Recorrida é proprietária e que são os que constam da alínea d) da matéria de facto assente.
XV. Isto posto, entende o Condomínio Recorrente que não restam dúvidas de que os valores em dívida relativos às quotas de condomínio devidas pelos anos de 2019 e 2020 são aqueles cujo pagamento se peticionou na execução apensa, ou seja, 64.182,89€.
XVI. Deste modo, verifica-se que a decisão recorrida viola o disposto nos artigos 1424.º, n.º 1, 220.º e 286.º, todos do Código Civil.
Termos em que deverá o presente recurso ser admitido, julgado procedente e, consequentemente, revogada a sentença recorrida, tal como é de JUSTIÇA.”
A parte contrária não respondeu.
 
II- Objeto do recurso

O objeto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, mas esta limitação não abarca as questões de conhecimento oficioso, nem a qualificação jurídica dos factos (artigos 635º nº 4, 639º nº 1, 5º nº 3 do Código de Processo Civil).
Este tribunal também não pode decidir questões novas, exceto se estas se tornaram relevantes em função da solução jurídica encontrada no recurso e os autos contenham os elementos necessários para o efeito. - artigo 665º nº 2 do mesmo diploma.

Face ao alegado nas conclusões das alegações, há que verificar:

.1-- se a Lei n.º 8/2022, de 10/1 reveste a natureza de lei interpretativa no que se reporta à responsabilidade pelas despesas e quotas de condomínio;
.2-- Se os valores constantes da ata nº ...10 não são atendíveis, por ter ocorrido lapso de escrita, ou, não sendo disso o caso, a mesma conter uma deliberação nula, por alterar o critério estabelecido no artigo 1424.º, n.º 1 do Código Civil

III - Fundamentação de Facto

Foi dado como assente que:
a) O exequente instaurou ação executiva, dando à execução as atas nºs 107, 108, 109, 110 e 111, juntas ao requerimento executivo e pelo requerimento cujo teor se dá por reproduzido, peticionando, com base nas mesmas quotas ordinárias do período entre Março de 2017 e Fevereiro de 2022 e penalidades.—
b) Em 1995, os valores das quotas do condomínio das frações da Embargante foram fixadas nos seguintes valores: - Fração ...: 120,81 €; - Fração ...: 0,71 €; - Fração ...: 0,71 €;- Fração ...: 0,71 €; - Fração ...: 0,71 €;- Fração ...: 25,58 €; e - Fração ...: 142,13 €.--
c) Tendo-se mantido até ao ano de 2016, nos termos constantes da acta nº ...06, junta à petição de embargos e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.-
d) Em 2017, na Assembleia de Condóminos de 31/03/2017, procedeu-se à alteração dos valores das quotas das frações da Embargante, para os seguintes valores: - Fração ...: 461,55 €; - Fração ...: 2,72 €; - Fração ...: 2,72 €;- Fração ...: 2,72 €; - Fração ...: 2,72 €;- Fração ...: 97,74 €; e - Fração ...: 543,00 €.
e) Em 2019, os valores das quotas voltaram a ser alterados e regressaram aos valores referidos em b), nos termos constantes da ata nº ...09, junta ao requerimento de 2/5/2022 da exequente na execução. -
f) Em 2021, na Assembleia de Condóminos de 26/03/2021, os valores das quotas voltaram a ser alterados para os valores referidos em d) nos termos constantes da ata nº ...10, junta ao requerimento executivo.  
f) No processo n.º 222/10...., que correu termos na ... Vara, das Varas de Competência Mista ..., em ação movida por uma condómina contra o Condomínio aqui Embargado, ficou decidido que era nula a deliberação constante da Ata número ...9 da Assembleia de Condóminos do edifício do “Centro Comercial ...”, realizada em 7 de julho de 1995, relativa à fixação do valor das quotas de condomínio das frações de que a Embargante era (e é) proprietária, não tendo a embargante tido intervenção nesses autos.
Nos termos do artigo 607º nº artigo 607º nº 4 do Código de Processo Civil ex vi artigo 663º nº 2 do mesmo diploma, aditam-se ainda os seguintes factos, provados por documento e acordo das partes:
g) Na Assembleia de Condóminos de 26/03/2021, foram aprovadas as quotas devidas por cada fração, resultante dos encargos de conservação e fruição das partes comuns e dos serviços de interesse comum, para os anos de 2020 e 2021.
h) No artigo 26º, nº 1, do Regulamento do Condomínio do Centro Comercial das ... estatuiu-se que se o proprietário que não pagasse os recibos no prazo previsto no artigo 10.º - até ao dia 10 do mês a que disser respeito ficava sujeito ao pagamento de uma multa correspondente a 25% do valor do recibo ou recibos em dívida.

III- Fundamentação de Direito

Como determina o artigo 10º, nº 5 do Código de Processo Civil, toda a execução tem de ter por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da ação executiva.
Esclarecem nesse sentido Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 1º, 3ª Edição, Coimbra Editora, pág 33: “O título executivo constitui pressuposto de caráter formal da ação executiva, destinado a conferir à pretensão substantiva um grau de certeza reputado suficiente para consentir a subsequente agressão patrimonial aos bens do devedor. Constitui a base da execução, por ele se determinando o tipo de ação e o seu objeto (nº 5), assim como a legitimidade ativa e passiva para a ação (art. 53º, nº 1).
Assim, a ação executiva só pode ser intentada se tiver por base um título executivo (nulla executio sine titulo), o qual, para além de documentar os factos jurídicos que constituem a causa de pedir da pretensão deduzida pelo exequente, confere igualmente o grau de certeza necessário para que sejam aplicadas medidas coercivas no património do executado.

Daqui se conclui que “o título executivo realiza duas funções essenciais:
- por um lado, delimita o fim da execução, isto é determina, em função da obrigação que ele encerra, se a ação executiva tem por finalidade o pagamento de quantia certa, a entrega de coisa certa ou a prestação de facto;
- por outro lado, estabelece os limites da execução, ou seja, o credor não pode pedir mais do que aquilo que o título executivo lhe dá..
O art. 703º, apresenta uma enumeração taxativa (numerus clausus) dos títulos executivos que podem servir de base a uma ação executiva, sendo que cotejando as diversas alíneas do nº 1, se constata que a lei estabelece uma distinção entre títulos executivos judiciais, títulos executivos parajudiciais ou de “formação judicial” e títulos executivos extrajudiciais[1]
É também regra, no que rege os títulos executivos, que estes devem ser autossuficiente no que respeita à determinação do objeto e da finalidade da execução, revelando por si só os elementos essenciais da obrigação exequenda, a fim de assegurar, com considerável grau de probabilidade, a existência e conteúdo da obrigação que se executa. No entanto, este princípio da autossuficiência tem múltiplas exceções, sendo no presente código colhido com menor exigência, face ao disposto na alínea e) do nº 1 do artigo 724º do Código de Processo Civil.
Enfim, como a ação executiva visa a realização coativa de uma prestação (ou de um seu equivalente pecuniário), a obrigação exequenda tem que estar apresentada com a necessária segurança no título que a funda, seja no que toca aos seus sujeitos, quer na sua existência e conteúdo, e revelar-se com clareza, seja pela sua constituição, seja pelo seu reconhecimento.

2.1 Dos requisitos das atas de condomínio para valerem como títulos executivos
Quanto a esta matéria rege o artigo 6º do DL n.º 268/94, de 25 de outubro, que concedeu força executiva às atas da reunião da assembleia de condóminos.
Na sua versão original estipulava que a ata da reunião da assembleia que tivesse deliberado o montante das contribuições devidas ao condomínio ou quaisquer despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns e ao pagamento de serviços de interesse comum que não devam ser suportados pelo condomínio, constituíam título executivo contra o proprietário que deixasse de pagar, no prazo estabelecido, a sua quota parte.
Esta norma teve as mais variadas interpretações, encontrando-se uma miríade de entendimentos sobre os requisitos exigíveis às atas para servirem de título executivo, o que, além do mais, dificultava o recurso ao processo executivo pelos condomínios. No que aqui nos interessa, é claro que a jurisprudência se dividia, entre muitos outros aspetos, quanto ao leque das obrigações que gozavam da executoriedade dada pelas atas de condomínio: se as sanções de natureza pecuniária também eram abrangidas por tal força.
Remetendo para a exaustiva resenha efetuada, recentemente, no acórdão proferido em 15-12-2022, pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no processo nº 4678/18...., rel. Carlos Castelo Branco, (sendo este e todos os demais acórdãos citados sem menção de fonte, consultados in dgsi.pt) não encontramos posição dominante na nossa jurisprudência no que toca à inclusão  da força executória das atas da reunião de condomínio para as sanções pecuniárias, parecendo-nos muito semelhante o número de acórdãos publicados num e noutro sentido.
A Lei 8/2022, além de outras intervenções, neste e noutros diplomas, veio modificar este artigo, trazendo-lhe nova redação, resolvendo pelo menos parte dos problemas que dividiam a doutrina e jurisprudência.
Explicita-se agora, na redação dada por esta Lei, nos  nº 1 e 2 do artigo 6º do DL n.º 268/94, que a ata da reunião da assembleia de condóminos que tiver deliberado o montante das contribuições a pagar ao condomínio e mencione o montante anual a pagar por cada condómino e a data de vencimento das respetivas obrigações constitui título executivo contra o proprietário que deixar de pagar, no prazo estabelecido, a sua quota-parte.
Mais explicitou, no nº 3 deste artigo 6º, o qual aditou: “Consideram-se abrangidos pelo título executivo os juros de mora, à taxa legal, da obrigação dele constante, bem como as sanções pecuniárias, desde que aprovadas em assembleia de condóminos ou previstas no regulamento do condomínio.”
Não é claro que a lei ordinária não possa atribuir força executiva a título que a não tinha à face da lei vigente ao tempo da instauração da execução, em todo e qualquer caso, como veio a ser decidido no Assento (hoje com força de acórdão para fixação de jurisprudência) n.º 9/93, publicado no DR nº 294, de 18.12.1993, Série I-A DE 1993-12-18.
Mas mesmo que assim se venha a entender, nesta situação  é manifesto o objetivo interpretativo desta norma que deu corpo a posição que já valia anteriormente na vigência da anterior redação deste artigo: nada traz de inovador, limitando-se a escolher de entre as várias leituras que se litigavam, a que se entendeu ser a mais consentânea com os seus objetivos.

- Da lei interpretativa
Vindo uma lei posterior definir um entendimento que já cabia na lei anterior (mais a mais quando esse era um dos sentidos que era seguido pela jurisprudência) dúvidas não há que a nova lei não é inovadora ou criadora, mas meramente interpretativa.
 “Na ausência de outros elementos que permitam dar valor interpretativo a uma norma, o critério fundamental a utilizar para tal fim é ‘que o princípio contido na nova lei possa considerar-se ínsito na lei anterior. Ora esse requisito deve julgar-se satisfeito sempre que possa dizer-se que os tribunais decidiriam normalmente, no domínio da legislação anterior, de acordo com tal princípio. (…) É que, verificando-se este pressuposto, cessam as razões que estão na base do princípio da não retroatividade da lei, que se consubstanciam na tutela dos direitos adquiridos e das expectativas concebidas pelos particulares ao agirem ao abrigo das normas da lei precedente. Se a jurisprudência era claramente favorável a um certo entendimento da legislação anterior, e a nova lei o vem confirmar de modo expresso não se vê razão para não definir esta lei como interpretativa e como tal aplicável mesmo para o passado. Em boas contas ninguém poderá queixar-se de ofensas de direitos subjetivos ou de frustração de expectativas, já que os interessados, se tivessem recorrido aos tribunais para fazer valer um suposto direito ou ver esclarecida determinada situação, não teriam muito provavelmente obtido resultado diverso daquele que agora se tornou certo”. In Coletânea de Jurisprudência, Ano XIV, Tomo IV, p. 35, Ferrer Correia.
Prescindindo dessa difícil contabilidade, quanto à vantagem numérica na defesa do entendimento que vem a ser coberto pela lei ,diz Batista Machado, In Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1994, p. 246 e seguintes “No que respeita à questão de saber se a lei em causa deve ou não ser considerada lei interpretativa que é a lei aplicável a factos e situações anteriores conforme decorre do disposto no artigo 13.º do Código Civil, importa atentar nas razões que levam a considerar assim determinada lei. Uma das razões "reside fundamentalmente em que ela, vindo consagrar e fixar uma das interpretações possíveis da lei antiga com que os interessados podiam e deviam contar, não é suscetível de violar expectativas seguras e legitimamente fundadas. Poderemos consequentemente dizer que são da sua natureza interpretativas aquelas leis que, sobre pontos ou questões em que as regras jurídicas aplicáveis são incertas ou o seu conteúdo controvertido, vem consagrar uma solução que os tribunais poderiam ter adotado […]. Para que uma lei nova possa ser realmente interpretativa são necessários, portanto, dois requisitos; que a solução do direito anterior seja controvertida ou pelo menos incerta; e que a solução definida pela nova lei se situe dentro dos quadros da controvérsia e seja tal que o julgador ou o intérprete a ela poderiam chegar sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei" (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, J. Baptista Machado, Almedina, 1993, pág. 246/247) […]. A razão pela qual a lei interpretativa se aplica a factos e situações anteriores reside fundamentalmente em que ela, vindo consagrar uma das interpretações possíveis da lei antiga com que os interessados podiam e deviam contar, não é suscetível de violar expectativas seguras e legitimamente fundadas”.
Concordamos com esta visão mais abrangente, pelos motivos acabados de enunciar: a lei nova interpreta, escolhendo um dos sentidos, a lei antiga, sendo que as expetativas dos destinatários da norma não são defraudadas, porque já deviam contar com a possibilidade de vir a ser seguido esse sentido, por ser um dos que estava em disputa.
E assim, há que aplicar o disposto no nº 1 do artigo 13º do Código Civil: A lei interpretativa integra-se na lei interpretada, ficando salvos, porém, os efeitos já produzidos pelo cumprimento da obrigação, por sentença passada em julgado, por transação, ainda que não homologada, ou por atos de análoga natureza. Passa, assim, a ter como que efeitos retroativos.
No presente caso, quanto à exequibilidade dada pelas atas da assembleia de condomínio, como título executivo, às sanções pecuniárias (desde que aprovadas em assembleia de condóminos ou previstas no regulamento do condomínio), estamos perante norma interpretativa material, que veio solucionar a incerteza de lei anterior, especificando-lhe um (dos vários) conteúdos que aquela comportava, que até já era seguido por grande parte da jurisprudência (embora não por nós). Esta norma não apresenta qualquer conteúdo inovador e a sua aplicação retroativa não pode, por conter um dos sentidos acolhidos em decisões jurisprudenciais, lesar expetativas legitimas de que tal interpretação não viria a ser a adotada.
Desta forma, não é possível seguir a posição recorrida quando afirma que a lei 8/2022 não é uma lei interpretativa: por um lado, e essencialmente, porque é norma a norma que se tem que verificar o seu carater, não toda  a lei na sua globalidade, que alterou diversos diplomas; por outro, porque uma norma é, como vimos, materialmente interpretativa quando escolhe um sentido, de entre os vários propugnados no âmbito da redação da norma anteriormente vigente, visto que sendo possível e expectável o entendimento escolhido pela nova lei, não pode colocar em causa, por natureza, a certeza e segurança jurídica.
A jurisprudência dos tribunais superiores tem, aliás, chamado à atenção para o caracter interpretativo de muitas das soluções adotadas pela Lei 8/2022: “A nova regulação normativa do artigo 6.º, n.º 3, do DL n.º 268/94, de 25 de outubro, na redação da Lei n.º 8/2022, contemplando a previsão de que se consideram abrangidos pelo título executivo a que se reporta o n.º 2 do mesmo artigo, os juros de mora, à taxa legal, da obrigação nele constante, bem como as sanções pecuniárias, desde que aprovadas em assembleia de condóminos ou previstas no regulamento do condomínio, tem caráter interpretativo (cfr. artigo 13.º, n.º 1, do CC) e não inovador. Em face do referido, poderá entender-se que, por via da interpretação decorrente da publicação da Lei n.º 8/2022, de 10 de janeiro, no título executivo poderão considerar-se contempladas as sanções pecuniárias que sejam aprovadas em assembleia de condóminos ou previstas no regulamento do condomínio.”, sumariou-se no já citado acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa no processo nº 4678/18..... No mesmo sentido se pronunciou o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto nº 5404/09...., de 02/21/2022, rel Pedro Damião e Cunha. Como se salientou no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido no processo 1489/20...., em 06/28/2022, rel. Cristina Neves, é, aliás, possível recorrer à Exposição de Motivos constante do Projecto de Lei N.º 718/XIV/2.ª, em  que antecedeu este Diploma, onde se esclarece que se pretendeu “contribuir para a pacificação da jurisprudência que é abundante e controversa a propósito de algumas matérias, como, por exemplo, os requisitos de exequibilidade da ata da assembleia de condóminos, a legitimidade processual ativa e passiva no âmbito de um processo judicial e a responsabilidade pelo pagamento das despesas e encargos devidos pelos condóminos alienantes e adquirentes de frações autónomas, colocando fim, neste último aspeto, à vasta e sobejamente conhecida discussão acerca das características de tais obrigações.”
Da mesma forma, salientando o carater interpretativo da alteração que este diploma efetuou ao artigo 1437º do Código Civil, cf o acórdão de 10-03-2022, no processo 54/21...., rel Paulo Duarte Teixeira.
Dúvidas não há, pois, hoje, que as atas de condomínio podem servir de título executivo quanto a sanções pecuniárias, desde que aprovadas em assembleia de condóminos ou previstas no regulamento do condomínio, interpretação que deve ser a seguida mesmo para o período em que ainda não havia sido publicada e vigorasse a lei 8/2022.
Assim, tem razão o Recorrente quando pretende que o valor das sanções pecuniárias não deve ser afastado do objeto da obrigação exequenda.
Visto que a sanção pecuniária consta, expressamente, do regulamento do condomínio, que prevê que deve perfazer 25% das quotas de condomínio em dívida, para já  há que previamente verificar esse valor, visto que as partes também discordam neste aspeto.

- Quanto ao teor da ata
Discutem as partes o valor da prestação devida nos anos de 2019 e 2020, porquanto, na versão da embargante a ata nº ...09, de 5-4-2019, documento ... com o requerimento execução, alterou os valores para os que haviam sido aplicados em 2016, data em que tais valores voltaram a ser alterados.

Do valor das prestações em 2019
Do erro de cálculo
A embargada afirma que ocorreu claramente um lapso de escrita/transcrição, porquanto os valores de quotas de condomínio que ali constam relativos às frações de que é proprietária a Embargante não corresponde à divisão do valor global constante do orçamento aprovado naquela AGO, divido por cada fração, na proporção do valor de cada uma das frações.
No entanto, não se verifica tal erro de cálculo face à documentação junta, não se vislumbrando um orçamento autónomo aprovado, mas que “foi também posto à votação a quota estabelecida para cada fração, calculada na proporção de cada uma das frações…”, ficando a constar da própria ata esses valores especificados relativamente a cada fração autónoma.
Assim, mesmo que se descortinasse alguma discrepância entre o valor global do orçamento e as quotas propostas, não seria possível, sem mais, verificar algum erro manifesto no sentido pretendido apontado pelo exequente, decorrente da simples leitura dos documentos juntos.

Da nulidade da deliberação
Pretende ainda o exequente que esta deliberação é nula, considerando que a mesma altera o critério estabelecido no artigo 1424.º, n.º 1 do Código Civil, por violar o disposto no artigo 220º do Código Civil, de conhecimento oficioso.
No entanto, a violação da proporcionalidade entre o valor das frações autónomas e das despesas do condomínio imposta no artigo 1424º nº 1 do Código Civil em determinado ano, nada tem a ver com a violação de forma legal, sendo este o objeto do artigo 220º o Código Civil (com a epígrafe “Inobservância da forma legal”)
É o conteúdo da própria deliberação que é ilegal, não se lhe aplicando o regime imposto para a violação do artigo 220º do Código Civil.
Em regra, o nosso sistema jurídico sanciona com a nulidade a violação de interesses públicos e com a simples anulabilidade a violação de interesses meramente privados, tendo de mais relevantes, e também como regra, as seguintes diferenças de tratamento: a nulidade é invocável a todo o tempo, enquanto a anulabilidade apenas o é em determinado período subsequente à cessação do vício; a nulidade é de conhecimento oficioso e pode ser invocada por qualquer interessado, enquanto a anulabilidade só pode ser arguida por aqueles em cujo interesse foi estabelecida (artigo 285º  a 294º do Código Civil).
A regra no que toca às deliberações tomadas em assembleia de condóminos contrárias à lei ou a regulamentos é a da anulabilidade como decorre do artigo 1433º, nº 1, do Código Civil. Assim, para que a parte possa obter a sua anulação tem que propor a ação nos vinte dias contados sobre a deliberação da assembleia extraordinária ou, caso esta não tenha sido solicitada, no prazo de sessenta dias sobre a data da deliberação (artigo 1433º, n.º 4, do Código Civil). Não opera a invocação, muito posterior à deliberação, em sede incidental e muito menos uma decisão proferida noutros autos em que não foi parte quem se pretende fazer valer da invocada anulabilidade.
Assim, não procede este argumentário da exequente, havendo que atender às deliberações tomadas na ata de 2019 para fixar os montantes em dívida nesse ano.

Do valor das prestações em 2020
Já quanto ao ano de 2020 foi tomada deliberação que também não foi impugnada, juntamente com a que definiu o valor das quotas para o ano de 2021, como se aditou supra à matéria de facto provada, pelo que os valores a atender para o período janeiro de 2020 a fevereiro de 2022 são os retratados na ata 110.
Desta forma, o total das prestações de condomínio em dívida exigidas na execução perfaz 56.928,48 € (48 meses, correspondentes ao período que vai de março de 2017 a dezembro de 2018 e de janeiro de 2020 a fevereiro de 2022, X 1.113,17 €, correspondente à soma dos valores especificados na alínea d) da matéria de facto provada), somado aos 12 meses, correspondentes ao período que vai de janeiro de 2019 a dezembro de 2019, X 291,36, correspondente à soma dos valores especificados na alínea b) da matéria de facto provada).
Porque 25% deste valor perfaz 13.358,04 €, este é o valor da sanção pecuniária devida.
Assim, a execução terá de prosseguir para a obtenção destes valores, os quais perfazem 70.286,52 €, extinguindo-se quanto ao valor de 9.941,80, visto que foram exigidos no requerimento executivo 80.228,32, procedendo parcialmente o recurso.

V- Decisão

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente a presente apelação, revogando a decisão recorrida e determinando-se a extinção da execução, relativamente à quantia de 9.941,80 €, devendo prosseguir quanto à quantia de 70.286,52 € (setenta mil, duzentos e oitenta e seis euros e cinquenta e dois cêntimos).
Custas dos embargos de executado na proporção de 12,39% para o Embargado e o restante pela Embargante e do recurso na proporção de 28% pelo Recorrente e o restante pelo Recorrido (artigo 527º nº 1 do Código de Processo Civil).

Guimarães, 27/4/2023


Sandra Melo
Conceição Sampaio
Fernanda Proença Fernandes


[1] como se explica no acórdão proferido no processo 2808/14.0T8VNF-A. G1, de 02/21/2019, Relator: José Flores, que subscrevemos como adjunta.