Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1218/12.9TJVNF-G.G1
Relator: AFONSO CABRAL DE ANDRADE
Descritores: ESGOTAMENTO DO PODER JURISDICIONAL
PROFERIMENTO DE SEGUNDA SENTENÇA
NULIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/17/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDÊNCIA DA APELAÇÃO – DECLARADA NULA A SENTENÇA
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I. Depois de proferida uma sentença de graduação de créditos, ficou esgotado o poder jurisdicional do Juiz quanto à matéria da causa (art. 613º CPC).

II. Ao ser proferida posteriormente uma segunda sentença, que altera substantivamente a sentença anterior, quer através da inclusão de credores que na sentença anterior não constavam, quer na diferente graduação que nela é feita quanto a diversos créditos, estamos perante uma sentença nula, por aplicação analógica ou interpretação extensiva do preceituado no art. 615º,1,d CPC, por excesso de pronúncia.

III. A sua declaração de nulidade acarreta a declaração de nulidade de todos os actos posteriores que dela dependam absolutamente.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I- Relatório

Por apenso ao processo de insolvência no qual foi declarada a insolvência de J. R., SA, por sentença transitada em julgado, veio a Administradora de Insolvência juntar aos autos a lista dos créditos reconhecidos elaborada ao abrigo do disposto no art. 129.° do C.I.R.E.

O Tribunal proferiu sentença com o seguinte teor:

A) 1. Homologou a lista de credores reconhecidos elaborada pela Srª. Administradora de Insolvência de fls 450 e ss dos autos.

2. Graduou os créditos constantes da lista de credores reconhecidos, elaborada pela Srª. Administradora de Insolvência, nos seguintes termos:

B) Considerando os princípios atrás expostos, procede-se ao pagamento dos créditos através do produto dos bens imóveis artigos ...-X e N (números ...-N e X da Conservatória de ...), artigo ... (número ... da Conservatória ...) descritos no auto de apreensão pela seguinte ordem:

1.º- As dívidas da massa insolvente saem precípuas - artigo 172°, nºs 1 e 2 do C.I.R.E.;
2º- De seguida dar-se-á pagamento aos créditos nº 1 a 10, 19 a 22, 26, 27, 33, 35, 37 a 40, 42 a 45, 48 a 56, 59, 60, 64, 65 (créditos laborais);
3º- De seguida dar-se-á pagamento ao crédito nº 13 (privilégio hipoteca) até ao montante garantido;
4º- De seguida dar-se-á pagamento a parte do crédito nº 36 (privilégios creditórios da SS);
5º- De seguida dar-se-á pagamento a parte do crédito nº 32 (priv. Credit. AT);
6º- De seguida dar-se-á pagamento aos créditos nº 11, 12, parte do 13, 14 a 18, 23 a 25, 28 a 31, parte do 32, 34, parte do 36, 41, 46, parte do 47, 57, parte do 58, 61 a 63 e 66 a 68 e 1 a 12 da relação de créditos verificados (Comuns);
7º- De seguida dar-se-á pagamento a parte do crédito nº 47 e 58 (créditos subordinados).
C) E através do produto dos bens imóveis artigos …, … e … (números …, …, … da Conservatória ...) descritos no auto de apreensão, os pagamentos serão efectuados pela seguinte ordem:
1.º- As dívidas da massa insolvente saem precípuas - artigo 172°, nºs 1 e 2 do C.I.R.E.;
2º- De seguida dar-se-á pagamento ao crédito nº 15 (privilégio hipoteca) até ao montante garantido;
3º- De seguida dar-se-á pagamento a parte do crédito nº 36 (privilégios creditórios da SS);
4º- De seguida dar-se-á pagamento ao crédito nº 32 ( priv. Credit. AT);
5º- De seguida dar-se-á pagamento aos créditos nº 11, 12, parte do 13, 14 a 18, 23 a 25, 28 a 31, parte do 32, 34, parte do 36, 41, 46, parte do 47, 57, parte do 58, 61 a 63 e 66 a 68, e 1 a 12 da relação de créditos verificados (Comuns);
7º- De seguida dar-se-á pagamento a parte do crédito nº 47 e 58 (créditos subordinados).
D) Através do produto do bem imóvel artigo … (número … da Conservatória ...), descrito no auto de apreensão, os pagamentos serão efectuados pela seguinte ordem:
1º- As dívidas da massa insolvente saem precípuas - artigo 172°, nºs 1 e 2 do C.I.R.E.;
2º- De seguida dar-se-á pagamento aos créditos nº 2, 10, 22, 26, 40 e 65 (créditos laborais);
3º- De seguida dar-se-á pagamento ao crédito nº 15 (privilégio hipoteca) até ao montante garantido;
4º- De seguida dar-se-á pagamento a parte do crédito nº 36 (privilégios creditórios da SS);
5º- De seguida dar-se-á pagamento ao crédito nº 32 ( priv. Credit. AT);
6º- De seguida dar-se-á pagamento aos créditos nº 11, 12, parte do 13, 14 a 18, 23 a 25, 28 a 31, parte do 32, 34, parte do 36, 41, 46, parte do 47, 57, parte do 58, 61 a 63 e 66 a 68, e 1 a 12 da relação de créditos verificados (Comuns);
7º- De seguida dar-se-á pagamento a parte do crédito nº 47 e 58 (créditos subordinados).
E) Através do produto dos restantes bens imóveis descritos no auto de apreensão pela seguinte ordem:
1.º- As dívidas da massa insolvente saem precípuas - artigo 172°, nºs 1 e 2 do C.I.R.E.;
2º- De seguida dar-se-á pagamento a parte do crédito nº 36 (privilégios creditórios da SS);
3º- De seguida dar-se-á pagamento a parte do crédito nº 32 (priv. Credit. AT);
4º- De seguida dar-se-á pagamento aos créditos nº 11, 12, parte do 13, 14 a 18, 23 a 25, 28 a 31, parte do 32, 34, parte do 36, 41, 46, parte do 47, 57, parte do 58, 61 a 63 e 66 a 68, e 1 a 12 da relação de créditos verificados (Comuns);
6º- De seguida dar-se-á pagamento a parte do crédito nº 47 e 58 (créditos subordinados).
F) Através do produto do automóvel apreendido para a massa insolvente pela seguinte ordem:
1.º- As dívidas da massa insolvente saem precípuas - artigo 172°, nºs 1 e 2 do C.I.R.E.;
2º- De seguida dar-se-á pagamento a parte do crédito nº 32 (privilégios creditórios- IMI);
3º- De seguida dar-se-á pagamento aos créditos nº 1 a 10, 19 a 22, 26, 27, 33, 35, 37 a 40, 42 a 45, 48 a 56, 59, 60, 64, 65 e 8 a 12 da relação de créditos verificados (créditos laborais);
4º- De seguida dar-se-á pagamento a parte do crédito nº 32 (priv. credit. AT);
5º- De seguida dar-se-á pagamento a parte do crédito nº 36 (privilégios creditórios da SS);
6º- De seguida dar-se-á pagamento aos créditos nº 11, 12, parte do 13, 14 a 18, 23 a 25, 28 a 31, parte do 32, 34, parte do 36, 41, 46, parte do 47, 57, parte do 58, 61 a 63 e 66 a 68 e 1 a 7 da relação de créditos verificados (Comuns);
7º- De seguida dar-se-á pagamento a parte do crédito nº 47 e 58 (créditos subordinados).
G) Através do produto dos restantes móveis apreendidos para a massa insolvente pela seguinte ordem:
1.º- As dívidas da massa insolvente saem precípuas - artigo 172°, nºs 1 e 2 do C.I.R.E.;
2º- De seguida dar-se-á pagamento aos créditos nº 1 a 10, 19 a 22, 26, 27, 33, 35, 37 a 40, 42 a 45, 48 a 56, 59, 60, 64, 65 e 8 a 12 da relação de créditos verificados (créditos laborais);
3º- De seguida dar-se-á pagamento a parte do crédito nº 36 (privilégios creditórios da SS);
4º- De seguida dar-se-á pagamento a parte do crédito nº 32 (priv. credit. AT);
5º- De seguida dar-se-á pagamento aos créditos nº 11, 12, parte do 13, 14 a 18, 23 a 25, 28 a 31, parte do 32, 34, parte do 36, 41, 46, parte do 47, 57, parte do 58, 61 a 63 e 66 a 68 e 1 a 7 da relação de créditos verificados (Comuns);
6º- De seguida dar-se-á pagamento a parte do crédito nº 47 e 58 (créditos subordinados).

Inconformado com esta decisão, o credor BANCO ..., S. A. dela interpôs recurso, que foi recebido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos, e com efeito meramente devolutivo (artigo 14º,5,6 CIRE).

Termina a respectiva motivação com as seguintes conclusões:

1. Com a sentença recorrida, os presentes autos conheceram a terceira sentença de verificação e de graduação de créditos.
2. Em 05.07.2018 (referência 158983688), foi proferida nos autos a primeira sentença de verificação e de graduação de créditos, na qual o crédito do Banco aqui requerente ficou graduado, pelo produto da venda dos imóveis hipotecados a seu favor (fracções autónomas designadas pelas letras “X” e “N” descritas na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º ..., da freguesia de ... e inscritas na matriz predial urbana sob o artigo ....º daquela freguesia), em quarto lugar, após as dívidas da massa insolvente, o crédito laboral n.º 40 e o crédito da Fazenda Nacional a título de IMI.
3. Inconformado com a decisão, o aqui requerente apresentou recurso.
4. Em 27.11.2018 (referência 160765124), foi proferida a segunda sentença de graduação de créditos, sentença de verificação e de graduação de créditos que rectificou a primeira, conforme é referido por despacho que antecede a referida sentença e que aqui se cita: “Perante o esclarecimento da senhora administradora, profere-se novamente a sentença de graduação dos autos, agora de acordo com a lista rectificada apresentada a fls 367 e ss”.
5. Nesta segunda sentença, que transitou pacificamente em julgado, o crédito do Banco requerente ficou graduado em segundo lugar após as dívidas da massa insolvente pelo produto da venda das fracções “N” e “X”.
6. Sucede que em 06.06.2019, foi proferida uma nova sentença de graduação de créditos, na qual o crédito do Banco aqui requerente foi graduado após as dívidas da massa insolvente e os créditos laborais n.ºs 1 a 10, 19 a 22, 26, 27, 33, 35, 37 a 40, 42 a 45, 48 a 56, 59, 60, 64, 65.
7. Nesta fase o Tribunal poderia, apenas proceder à rectificação de erros materiais (artigo 614.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), mas tal não comporta a alteração da graduação anteriormente efectuada.
8. Com o trânsito em julgado, a sentença de verificação e de graduação de créditos passa a ter força obrigatória geral dentro do processo e fora dele – artigo 619.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
9. Estamos, pois, perante um acto que a lei não admite e, por isso, nulo – artigo 195.º. n.º 1, do Código de Processo Civil – nulidade que expressamente se argui.
10. A sentença de verificação e de graduação de créditos deve, pois, ser revogada.
11. Sem prejuízo e para a hipótese – que não se concebe nem se concede de improceder o pedido de nulidade da sentença – entende o Banco recorrente que a douta sentença de verificação e de graduação de créditos padece de erro ao graduar os créditos laborais n.ºs 1 a 10, 19 a 22, 26, 27, 33, 35, 37 a 40, 42 a 45, 48 a 56, 59, 60, 64, 65 antes do crédito do BANCO ..., S. A.
12. Ao Recorrente BANCO ..., S. A. foi reconhecido, pela Sra. Administradora de Insolvência um crédito garantido por hipoteca do montante de € 134.727,35 (cento e trinta e quatro mil, setecentos e vinte e sete euros e trinta e cinco cêntimos) sobre as fracções “N” e “X” melhor identificadas na conclusão 2.
13. As ditas fracções destinavam-se à comercialização e, diga-se, foram adquiridas pela sociedade insolvente em Dezembro de 2005 em estado inacabado, sendo que assim permaneceram, pelo que nunca nenhum trabalhador exerceu nestas fracções “N” e “X” qualquer actividade.
14. A este propósito, refira-se ainda, que os imóveis afectos à actividade da empresa eram os identificados sob as verbas 4 (pedreira) e 5 (estaleiro) do auto de apreensão.
15. Sucede que nenhuma prova os credores laborais fazem que nesses imóveis tenham exercido a sua actividade.
16. Incumbia aos identificados credores fazer prova de que efectivamente exerceu a sua actividade nas fracções “N” e “X”, o que não sucedeu, impendia sobre si o ónus da prova.
17. Ora, não tendo sido provado tal facto, a douta sentença recorrida não poderia ter graduado os créditos laborais após as dívidas da massa insolvente a antes do crédito hipotecário do aqui Recorrente.
18. Todavia, ainda que se considerasse que foi naquele imóvel que os credores laborais exerceram a sua actividade, entende o aqui Recorrente que o privilégio imobiliário especial não pode incidir sobre as fracções “N” e “X”.
19. A questão que se coloca é, pois, a de saber se o privilégio imobiliário especial estabelecido, em benefício dos trabalhadores se estende, no caso de uma empresa de construção civil, sobre os bens imóveis destinados a comercialização.
20. Entende o Recorrente que a resposta a esta questão deve ser negativa, posição essa acompanhada, de resto, pela jurisprudência maioritária.
21. Como refere o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 13.01.2015, concorda-se, pois, com a posição perfilhada no Ac. deste Supremo, de 23.09.10, onde, à semelhança do sustentado nos sobreditos arestos, se entendeu que ”…numa empresa de construção civil, os imóveis que lhe advêm como resultado da actividade que lhe é própria são o produto da organização empresarial, mas não são um elemento que a integra. Por outras palavras, resultam do estabelecimento do empregador, mas dele não fazem parte. Apesar de, após a sua conclusão, pertencerem ao património do empregador, não significa isto que, só por tal, passem a englobar o seu estabelecimento. O destino dos imóveis é, até, normalmente, outro, como seja a sua comercialização. E de acordo com a letra e o espírito do art. 377º” – hoje, 333º - “do C. Trabalho, o que o legislador pretendeu foi que o privilégio em causa versasse imóveis «nos quais» - hoje, imóvel no qual – “o trabalhador presta a sua actividade”.”
22. Posição acompanhada por outros Acórdãos, tais como: Acórdão do STJ de 13.11.2014, Acórdão do STJ de 13.01.2015 (supra referido); Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 22.10.2013 e de 28.04.2014; Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 29.05.2014 e de 17.09.2015; Decisão Sumária do Tribunal da relação de Coimbra de 12.11.2013; Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 08.07.2015.
23. Acresce que em 23.02.2016 foi proferido um Acórdão, pelo Supremo Tribunal de Justiça, que uniformizou jurisprudência no sentido dos imóveis construídos por uma empresa de construção civil, destinados a comercialização, estão excluídos da garantia do privilégio imobiliário especial previsto no artigo 377.º, n.º 1, alínea b), do Código de Trabalho de 2003 – hoje o artigo 333.º, n.º 1, alínea b), do actual Código de Trabalho.
24. O Acórdão de Uniformização e Jurisprudência deve aplicar-se ao caso concreto, pois ainda que a doutrina dos acórdãos uniformizadores de jurisprudência seja entendida como meramente orientador e não vinculativa, o Juiz deve acatar esta jurisprudência para que não se caia numa situação de caos jurisprudencial, em que sobre uma mesma questão recaiam duas ou mais correntes jurisprudenciais, tudo em respeito da certeza e segurança da ordem jurídicas.
25. Acresce que o Acórdão de Uniformização e Jurisprudência tem aplicação imediata e não deve ser tido como uma decisão surpresa e frustradora das expectativas das partes, já que uma acórdão uniformizador decorre de uma querela jurisprudencial, já existente na data da assinatura do contrato promessa discutido nos autos.
26. Por tudo o que vai dito, deve a douta sentença de verificação e de graduação de créditos ser revogada e substituída por outra que gradue o crédito do Recorrente Banco ..., S. A., pelo produto da venda das fracções autónomas designadas pelas letras “X” e “N” descritas na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ..., da freguesia de ... e inscritas na matriz predial urbana sob o artigo ....º daquela freguesia, em segundo lugar após as dívidas da massa insolvente, devendo os créditos laborais ser graduados como créditos comuns pelo produto da venda das identificadas fracções.

J. S., credor reconhecido nos autos de insolvência de pessoa colectiva em referência, notificado das alegações de recurso apresentadas pelo credor BANCO ..., SA, veio apresentar contra-alegações, as quais terminam com as seguintes conclusões:

1. A sentença de verificação e graduação de créditos proferida nos presentes autos não padece de qualquer vício.
2. A mesma foi proferida para corrigir vícios e lacunas existentes na sentença anteriormente proferida.
3. A sentença recorrida foi proferida ao abrigo do disposto no artigo 613º do Código de Processo Civil, segundo o qual o Juiz pode rectificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença,
4. não estando ferida de qualquer nulidade, e como tal devendo ser mantida.
5. A sentença recorrida graduou, pelo produto da venda dos imóveis descritos no auto de apreensão sob os nºs 1, 2, 4 e 5 (artigos ... X e N, ... e …), em segundo lugar o crédito do recorrido.
6. O recorrido alegou, na reclamação de créditos apresentada, ter prestado a sua actividade em todos os imóveis propriedade da insolvente, bem como especificou as funções desempenhadas nos mesmos, nomeadamente nos imóveis correspondentes às verbas nºs 1 e 2 do auto de apreensão (fracções X e N).
7. A Sra. Administradora de Insolvência comunicou aos autos terem os credores laborais, incluindo o recorrido, prestado a sua actividade nas referidas fracções X e N.
8. Considerou já o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 10.05.2011, que ao trabalhador que reclame um crédito incumbe, para poder beneficiar do privilégio imobiliário especial, alegar a existência e montante desse crédito, como também o imóvel onde prestava a sua actividade, fazendo depois, se necessário, a prova de tais factos.
9. O crédito reclamado pelo recorrido foi reconhecido como privilegiado, não tendo a sua qualificação sido objecto de qualquer impugnação, pelo que não precisou aquele de fazer prova dos factos por si alegados.
10. Não se pode assim concluir, como pretende a recorrente, que o recorrido não tenha cumprido o ónus de alegação e prova dos factos atinentes ao privilégio imobiliário especial.
11. O privilégio imobiliário especial previsto no artigo 333º do Código do Trabalho abrange todos os imóveis nos quais o trabalhador tenha prestado a sua actividade, não prevendo essa norma jurídica qualquer limitação ou exclusão ao âmbito de aplicação do referido privilégio.
12. Se o legislador quisesse ter restringido a atribuição do privilégio imobiliário especial aos imóveis onde o empregador tivesse a sua sede ou estabelecimento, certamente teria dado outra redacção a esse normativo legal, referindo claramente que aquele privilégio recairia apenas sobre o imóvel onde funcionasse a sede da empregadora.
13. A insolvente exercia a actividade industrial de construção civil, definindo-se esta como a actividade que engloba a execução de várias obras.
14. A construção civil é uma actividade que se exerce nas várias obras que as empresas têm em execução, e não apenas nas instalações onde funcionam as sedes das empresas.
15. Na construção civil a parte principal da logística, da organização do trabalho, do parqueamento de equipamento ou dos próprios estaleiros das empresas encontram-se precisamente em locais que vêm a ser considerados como o produto da actividade ou da indústria dessas empresas, razão pela qual se justifica que o local de trabalho seja entendido em sentido amplo.
16. No caso dos autos, e atendendo à actividade de construção civil a que a insolvente se dedicava, tem de se concluir que o local onde o recorrido prestava a sua actividade não seria apenas no local da sede da empresa mas preferencialmente nas obras que esta tinha em curso.
17. Como bem decidiu já o Tribunal da Relação de Coimbra, no seu Acórdão de 12.06.2012 “do objecto do privilégio em presença apenas se exclui o património do empregador não afecto à organização empresarial, notadamente os imóveis destinados à fruição pessoal do empregador, tratando-se de pessoa singular, ou de qualquer outro modo integrados em estabelecimento diverso daquele em que o reclamante desempenhou o seu trabalho”.
18. Citando o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 31.01.2013, com a expressa menção que passou a constar do anterior artigo 377º do Código do Trabalho e actual 333º, conferindo privilégio especial somente ao bem imóvel do empregador no qual o trabalhador preste a sua actividade, não se tem em vista uma ligação estritamente física e permanente entre o exercício de funções e aquele, mas apenas excluir desse privilégio todos aqueles imóveis que, no caso de insolventes singulares, estão exclusivamente destinados à fruição pessoal do empregador.
19. Decidiu também já o Supremo Tribunal de Justiça no sentido que o legislador pretendeu que os trabalhadores reclamantes gozam do privilégio relativamente a todos os bens imóveis integrantes do património dos insolventes afectos à sua actividade empresarial e não apenas sobre um específico prédio onde trabalham ou trabalhavam, e independentemente do seu particular posto e local de trabalho ser no interior ou exterior das instalações.
20. Em nosso entender, decidiu bem a sentença recorrida ao considerar que o recorrido prestava a sua actividade, entre outros, nos imóveis da insolvente apreendidos para os autos como verbas nº 1 e 2.
21. A decisão recorrida, ao considerar, para efeitos de atribuição do privilégio imobiliário especial constante do artigo 333º do Código do Trabalho, os imóveis apreendidos nos autos como verbas nº 1, 2, 4 e 5 (artigos ...- X e N, ... e …), fez correcta interpretação e aplicação dos artigos 333º do Código do Trabalho, pelo que deve ser mantida.

II
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635º,3 e 639º,1,3 do Código de Processo Civil, delimitam os poderes de cognição deste Tribunal, sem esquecer as questões que sejam de conhecimento oficioso. Assim, e, considerando as referidas conclusões, as questões a decidir consistem em saber se:

a) a decisão recorrida é ou não nula, por esgotamento do poder jurisdicional
b) Ocorreu erro na graduação dos créditos do recorrente

III
Com interesse para a decisão, importa atentar na seguinte tramitação processual:

1. Por sentença de 5/7/2018, foi homologada a lista de credores reconhecidos elaborada pela sra. Administradora da Insolvência de fls. 22 e seguintes dos autos, e foi feita a graduação dos respectivos créditos, nos termos que aí constam e que aqui damos por reproduzidos.
2. A 18/7/2018 (fls. 367) veio a Administradora da Insolvência informar que constatou existir um lapso na numeração da relação de créditos, penitencia-se do mesmo e junta a lista de credores rectificada, requerendo a rectificação da sentença de graduação de créditos.
3. Por requerimento de 19/7/2018 veio X Financial Corporacion Financiera SA reclamar, tendo constatado que o seu crédito, no valor de € 332.631,26, verificado por douta sentença de 12/1/2015, proferida no âmbito do apenso F, não foi incluído na relação de bens, pretendendo assim a rectificação da mesma, com a inclusão do seu crédito.
4. Por requerimento de 20/7/2018 veio o credor J. S. declarar que aceita a correcção do lapso constante da relação de créditos, uma vez que a sentença em causa atribui ao crédito nº 40 os privilégios que lhe são devidos, pelo que deve agora considerar-se rectificado o erro, e ser mantido o teor da sentença, considerando-se apenas substituído o nome do credor nº 40, que é agora o requerente.
5. Por requerimento de 23/7/2018 … - Aeroportos, SA, veio pretender a rectificação da lista de créditos reclamados, de forma a incluir os créditos, como os da requerente, que foram reconhecidos por via de acções de verificação ulterior de créditos, sendo em conformidade tais créditos graduados na sentença, ou, entendendo-se que tais créditos, porque reclamados e reconhecidos ulteriormente não devem constar dessa lista, ser assim alterada a sentença, com expressa menção a tais créditos.
6. Por requerimento de 27/7/2018 veio o credor J. S. interpor recurso daquela decisão, para esta Relação de Guimarães.
7. Por requerimento de 31/7/2018 veio Y- Equipamento de Construções, Lda, apresentar reclamação da nova relação de créditos, porquanto o seu crédito não surge nela contemplado.
8. Por requerimento de 31/7/2018 veio o credor Banco ..., SA interpor recurso daquela decisão, para esta Relação de Guimarães.
9. Por requerimento de 1/8/2018 veio K Construção e Reparação, Lda dizer que o seu crédito foi reconhecido por sentença de verificação ulterior de créditos, por apenso aos autos de insolvência (apenso D), já transitada em julgado em 24/1/2013. Estranhamente, o crédito da requerente, no valor de € 7.339,02, não consta da lista apresentada pela Administradora. Por isso, requer que se oficie à Administradora da Insolvência para incluir na lista esse crédito.
10. A 16/8/2018 veio o credor J. S. apresentar contra-alegações ao recurso do Banco ..., SA.
11. A Administradora da Insolvência foi notificada para se pronunciar, o que fez a fls. 419v (14/11/2018), dizendo ser seu entendimento que assiste razão aos credores X Financial Corporacion Financiera SA, …- Aeroportos , SA, Y- Equipamento de Construções, Lda, e K Construção e Reparação, Lda.
12. Foi então, a 6/12/2018 (fls. 421), proferida nova sentença de graduação de créditos, de acordo com a lista rectificada apresentada a fls. 367 e seguintes.
13. Notificado dessa sentença, veio K Construção e Reparação, Lda, a fls. 432 (11/12/2018) dizer em síntese que, percorrida a douta sentença proferida no dia 6/12/2018 não só não foi o seu crédito considerado e graduado no lugar que lhe competia, como não lhe é feita qualquer referência, assim como aos demais credores que se encontram na mesma situação, ou seja, cujo crédito foi reconhecido por sentença proferida em acção de verificação ulterior de créditos. Donde, entendendo que se trata de um lapso manifesto, requer a sua rectificação e consequente inclusão do respectivo crédito na sentença.
14. A 12/12/2019 veio a Administradora da Insolvência requerer a rectificação da sentença, por padecer de diversos lapsos, e, sobretudo, porque existe um credor hipotecário, W, SA, na posição do Banco …, por habilitação, que não se encontra contemplado na descrição ... (verba nº 5).
15. A fls. 438 (12/12/2018) veio …- Aeroportos, SA reclamar no mesmo sentido, o de o seu crédito não ter sido verificado nem graduado na sentença, requerendo pois a sua alteração para o contemplar.
16. A fls. 443 (19/12/2018) veio X Financial Corporacion Financiera SA requerer que a Sr.ª AI seja notificada para juntar aos autos nova lista de credores rectificada que contemple (entre outros que também foram omitidos) o crédito da requerente “X Financial Corporacion Financiera, S.A”, no valor de € 332.631,26, verificado por douta sentença 12-01-2015, ref.ª 137213974, proferida no âmbito do apenso F, e deve a douta sentença de graduação de créditos também ser rectificada em conformidade.
17. A 17/1/2019 e 21/2/2019 foram proferidos despachos a determinar que a Administradora da Insolvência junte aos autos nova lista de credores devidamente rectificada, incluindo na lista de créditos verificados os dos impugnantes X, J. S., … Aeroportos, Y e K, que terão sido reconhecidos em acção de verificação ulterior de créditos, sem o que a sentença de graduação, que remete para a referida lista, sempre será omissa.
18. A Administradora da Insolvência vem juntar nova relação de créditos a fls. 450 e ss (26/4/2019).
19. A fls. 455 foi proferido um despacho, com o seguinte teor: “nos termos do disposto nos artigos 613º e 614º, nº1 CPC, por força do artigo 17º CIRE, importa rectificar a sentença dos autos que é omissa relativamente aos créditos dos credores X, J. S., … Aeroportos, Y, K, AV., Ministério Público, Joaquim, A. V., J. M., M. C., e R. B.. Mas surge a incógnita, por não estar referido na lista se os trabalhadores cujo crédito foi reconhecido em acção de verificação ulterior e atrás mencionados, laboravam em algum imóvel da insolvente apreendido para os autos, pois só nessa medida é que podem beneficiar do privilégio imobiliário especial. Assim sendo, notifique a senhora administradora de insolvência para ter a amabilidade de informar os autos se e quais destes trabalhadores laboravam em algum imóvel da insolvente apreendido para os autos”.
20. A 9/5/2019 veio a Administradora da Insolvência “na sequencia da notificação de V. Excia, esclarecer que nenhum trabalhador laborava nos imóveis da insolvente apreendidos nos autos”.
21. A 11/6/2019 (fls. 448) foi proferida a sentença ora recorrida.
22. A 1/7/2019 veio o Ministério Público pronunciar-se sobre as arguições de nulidade da referida sentença, nos seguintes termos:
Notificado para emitir pronúncia quanto à nulidade invocada, o Ministério Público vem expor e requerer a Vossa Excelência o seguinte:
No pretérito dia 06 de Dezembro de 2018 (a referência a 2019 é um lapso de escrita) foi proferida a seguinte (nova) sentença: “Perante o esclarecimento da senhora administradora, profere-se novamente a sentença de graduação dos autos, agora de acordo com a lista rectificada apresentada a fls 367 e ss.
(…)”
No dia 07 de Maio de 2019 a Meritíssima juiz proferiu o seguinte despacho: “nos termos do disposto nos artigos 613º e 614º, nº 1 CPC, por força do artigo 17º CIRE, importa rectificar a sentença dos autos que é omissa relativamente aos créditos dos credores X, J. S., … Aeroportos, Y, K, AV., Ministério Público, Joaquim, A. V., J. M., M. C., e R. B.”, créditos reconhecidos nos apensos de verificação ulterior de créditos.
Porque da referida sentença nunca chegou a ser interposto recurso, a mesma transitou em julgado e apenas poderia rectificar-se o aludido erro material nos termos do artº 614º, nº 1, do Código de Processo Civil (este despacho a ser complemento da aludida sentença e, aí sim, recorrível no seu todo).
Todavia, em 11 de Junho de 2019 o Tribunal optou por proferir nova sentença e, sem sequer o fundamentar, alterar a graduação dos créditos do Estado nos seguintes moldes:
“(…)
Ou seja, anteriormente os créditos privilegiados da Autoridade Tributária e Aduaneira foram sempre graduados antes da Segurança Social (houve uma situação em que o Tribunal deverá ter-se olvidado de graduar os créditos da Autoridade Tributária e Aduaneira), que nunca apresentou qualquer requerimento de rectificação, e, sem se perceber qual o motivo, agora existe uma indiscriminada graduação alternativa entre os créditos da Autoridade Tributária e Aduaneira e da Segurança Social!

De acordo com a “última lista definitiva de credores” apresentada no dia 26 de Abril de 2019, à Autoridade Tributária e Aduaneira foram reconhecidos (credor nº 32) créditos garantidos (IMI), privilegiados (IRS) e comuns (coimas).

Como na graduação de créditos o Tribunal não se refere expressamente ao crédito garantido, também o apodando como privilegiado (que não é, é garantido, tendo antes um privilégio especial), por exclusão de partes infere-se que se alude ao IRS quando se utiliza a expressão “de seguida dar-se-á pagamento a parte do crédito nº 32 (priv. Credit. AT)”.

O crédito de IRS traduz a cobrança de um imposto directo, goza de privilégio mobiliário geral e privilégio imobiliário sobre os bens existentes no património do sujeito passivo à data da penhora ou outro acto equivalente e foi liquidado há menos de 12 meses desde a data da instauração da insolvência [arts. 111º do Código do IRS, 735º, nº 1 e nº 2, e 736º, nº 1, do Código Civil, e 47º, nº 4, al. a), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas].

Como esta prática de um acto que a lei não admite influencia decisivamente o andamento da causa, por contender directamente com a realização do rateio quanto a variadas verbas, há que concluir que a “nova” sentença é nula nos termos do artº 195º do Código de Processo Civil, assim devendo manter-se aquela que gradua os créditos da Autoridade Tributária e Aduaneira antes da Segurança Social (pese embora se entenda que devem ser graduados em paridade, como se tem vindo a defender nos recursos interpostos; faz-se constar que o Ministério Público iria interpor recurso da sentença, apenas não o tendo feito devida à notificação para pronúncia quanto à nulidade)”.

IV
Conhecendo do recurso.

Como é sabido, proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa (art. 613º,1 CPC).
É-lhe lícito, porém, rectificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes (art. 613º,2 CPC).

Mais concretamente, apesar do esgotamento do poder jurisdicional, que é a regra nesta matéria, o Juiz pode ainda:

a) rectificar erros materiais (614º,1): se a sentença omitir o nome das partes, for omissa quanto a custas ou a algum dos elementos previstos no nº 6 do artigo 607º, ou contiver erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexactidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz.
b) no caso de a sentença não estar assinada pelo Juiz que a proferiu (o que é causa de nulidade da mesma- 615º,1,a), tal omissão pode ser suprida oficiosamente, ou a requerimento de qualquer das partes (615º,2).
c) O próprio tribunal que proferiu a sentença, pode proceder à sua reforma quanto a custas e multa, sem prejuízo do disposto no n.º 3 (art. 616º1).
d) não cabendo recurso da decisão, é ainda lícito a qualquer das partes requerer a reforma da sentença quando, por manifesto lapso do juiz (art. 616º,2 CPC):
i) tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos;
ii) constem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida.

Como ficou expresso, nestes autos foram proferidas três sentenças de graduação de créditos. A primeira em 5/7/2018, a segunda em 6/12/2018, e a terceira em 11/6/2019.

Considerando que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, e nestas não é colocada qualquer questão quanto à primeira sentença proferida, vamos deixar a mesma de parte, por estar fora do objecto do processo.

Assim, e considerando, como acabámos de ver, que proferida a segunda sentença ficou esgotado o poder jurisdicional do Juiz quanto à matéria da causa, e que ninguém dela interpôs recurso, como interpretar a prolação da terceira, e sobretudo, que valor jurídico lhe deve ser atribuído ?

Em primeiro lugar, como e bem chama a atenção o MP na sua tomada de posição de 1/7/2019, a última sentença proferida (a recorrida) altera substantivamente a sentença anterior, quer através da inclusão de credores que na sentença anterior não constavam, quer na diferente graduação que nela é feita quanto aos créditos do Estado e quanto ao crédito do recorrente Banco ....

Ora bem. “Da extinção do poder jurisdicional consequente ao proferimento da decisão decorrem dois efeitos: um positivo, que se traduz na vinculação do tribunal à decisão que proferiu; outro negativo, consistente na insusceptibilidade de o tribunal que proferiu a decisão tomar a iniciativa de a modificar ou revogar (RC 17-4-12, 116/11)” (1).

Os mesmos autores explicam a seguir que “o rigor que decorre do preceito e que se justifica pela necessidade de evitar a insegurança e a incerteza que, fora do quadro do regime dos recursos, derivaria da possibilidade de ser alterada a decisão, poderá encontrar alguma atenuação na confluência de situações excepcionais como a que decorre do justo impedimento, nos termos do art. 140º”.

“O princípio da extinção do poder jurisdicional, consagrado no citado art. 613º do CPC, significa que o “juiz não pode, por sua iniciativa, alterar a decisão que proferiu; nem a decisão, nem os fundamentos em que ela se apoia e que constituem com ela um todo incindível. Ainda que logo a seguir ou passado algum tempo, o juiz se arrependa, por adquirir a convicção que errou, não pode emendar o suposto erro. Para ele a decisão fica sendo intangível” (Acórdão desta Relação de 18 de Maio de 2017 - Relator Pedro Damião).

Com efeito, temos como pacífico que o que se passou nestes autos, com a prolação da sentença recorrida, não foi a rectificação de erros materiais, não foi uma simples omissão quanto a custas, nem foi a correcção de erros de escrita ou de cálculo, e nem sequer foi a correcção de uma inexactidão devida a omissão ou lapso manifesto.

O que a sentença recorrida veio fazer foi alterar substantivamente a graduação e elenco dos créditos reconhecidos, dela emergindo uma solução jurídica ostensivamente diversa da que emergia da sentença anterior, com repercussão directa e imediata na esfera patrimonial dos credores, que vale por dizer, com repercussão directa na afirmação e graduação dos seus direitos de crédito.

E, como já vimos, o esgotamento do poder jurisdicional ocorrido aquando da prolação da sentença anterior impedia-o.

Poderia suscitar-se a questão da aplicabilidade ao caso em apreço da norma do art. 616º,2,a CPC: não cabendo recurso da decisão, é ainda lícito a qualquer das partes requerer a reforma da sentença quando, por manifesto lapso do juiz tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos.

Mas pensamos que essa aplicabilidade está afastada por duas ordens de razões: primeiro, porque era necessário que não coubesse recurso da decisão, e a mesma é recorrível (arts. 629º e 630º,1, a contrario CPC): e segundo porque o que está em causa aqui nestes autos não é, ostensivamente, um erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos.

E quanto à possibilidade aberta pela alínea b) do nº 2 do art. 616º, ou seja, a situação de constarem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, implique necessariamente decisão diversa da proferida, admitimos que se poderia configurar a aplicabilidade desta alínea, não fora o obstáculo intransponível de a decisão ser sempre passível de recurso. Como tal, sendo a decisão recorrível, a ocorrência de manifesto lapso do juiz que tenha levado a erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos, ou que tenha ignorado documentos ou outro meio de prova plena que só por si levariam necessariamente a decisão diversa da proferida, só pode ser alvo de correcção não com a emissão oficiosa de nova sentença, porque tal já não é possível, mas antes mediante a interposição de recurso.

E bem se percebe porque é que é esta a melhor solução.

Citando o Prof. Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil anotado, 1981, volume V, pág. 127, em anotação ao art. 666.º do CPC de 1939: “O juiz, quando decide, cumpre um dever – o dever jurisdicional – que é a contrapartida do direito de acção e de defesa. Cumprido o dever, o magistrado fica em posição jurídica semelhante à do devedor que satisfaz a obrigação. Assim como o pagamento e as outras formas de cumprimento da obrigação exoneram o devedor, também o julgamento exonera o juiz; a obrigação que este tinha de resolver a questão proposta, extinguiu-se pela decisão. E como o poder jurisdicional só existe como instrumento destinado a habilitar o juiz a cumprir o dever que sobre ele impende, segue-se logicamente que, uma vez extinto o dever pelo respectivo cumprimento, o poder extingue-se e esgota-se. Justifica-se também por uma razão pragmática. Consiste esta na necessidade de assegurar a estabilidade da decisão jurisdicional. Que o tribunal superior possa, por via do recurso, alterar ou revogar a sentença ou despacho, é perfeitamente compreensível; que seja lícito ao próprio juiz reconsiderar e dar o dito por não dito, é de todo intolerável, sob pena de se criar a desordem, a incerteza, a confusão.”

Acresce que a inobservância do princípio em causa dá origem à situação patológica da existência de casos julgados contraditórios, e para remover o conflito, a lei, baseando-se no princípio de prioridade, considera que, havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar (art. 625º,1 CPC).

Como se escreveu no Acórdão do STJ de 20.5.2010, com o n.º 826/04.6TBTMR-C.C1-S1, publicado no site da dgsi, “a infracção da regra da extinção do poder jurisdicional (nº 1 do artigo 666º do Código de Processo Civil) é mais grave do que o excesso de pronúncia, correspondente à violação dos limites definidos pelo nº 2 do artigo 660.º do Código de Processo Civil, gerador de nulidade da decisão (al. d) do n.º 1 do artigo 668.º do Código de Processo Civil) e, como tal, insusceptível de conhecimento oficioso (nºs 3 e 4 do mesmo artigo 668.º)”.

“Significa”, como escrevem Antunes Varela, J. M. Bezerra e Sampaio e Nora (Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra, 1985, pág. 684) “que, lavrada e incorporada nos autos a sentença, o juiz já não pode alterar a decisão da causa, nem modificar os fundamentos dela”, não estando na disponibilidade das partes decidir da sua relevância ou irrelevância.

A propósito da limitação ao princípio do “esgotamento do poder jurisdicional” através da reforma de 1995/96 pronunciou-se o Ac. do S.T.J. de 24/10/2006 (Sebastião Póvoas), in www.dgsi.pt, nos seguintes termos: “(…) Dizendo buscar maior economia processual, no evitar a interposição de recursos, ou suprir a impossibilidade legal de recorrer, o legislador conferiu ao juíz "a quo" a possibilidade de corrigir uma situação de erro notório e, assim, repor a legalidade. Refere-se no relatório preambular do citado DL nº 329/A/95 que esta solução "será mais útil à paz social e ao prestígio e dignidade que a administração da Justiça co-envolve corrigir que perpetuar um erro juridicamente insustentável (...) embora em termos necessariamente circunscritos e com garantia do contraditório. (…) É necessária a demonstração de lapso manifesto o que, quer na determinação da norma, quer na subsunção dos factos, tem a ver com uma totalmente errada interpretação dos preceitos legais, não por adesão a esta ou outra corrente doutrinária ou jurisprudencial (que até as há opostas) mas a um erro gritante que pode ser resultado de "lapsus scribendi", ou outro, obviamente perceptível (mas a não confundir com mero erro ou lapso material do artº 667º), senão, e no limite, um desconhecimento ("ignorantia facti et juris") da matéria tratada na decisão, gerador de erro essencial na decisão. Isto nas hipóteses da alínea a). A situação da alínea b) - olvidar ostensivo de elemento constante dos autos - será reveladora de menor zelo no estudo do processo ou de falta de cuidado na preparação da decisão, perfilando-se, embora, como possível, ainda assim, surge com menor grau de probabilidade. Este incidente não tem a ver com a mera discordância da decisão, com o inconformismo perante a solução jurídica encontrada, ou com a decepção face ao sentenciado "quo tale". Aqui, trata-se de considerar a existência de "error in judicando", o que só pode ser motivador dos recursos”.

E assim, nesse acórdão do STJ extraem-se as seguintes conclusões:

a) A reforma do mérito prevista no nº 2 do artigo 669º do Código de Processo Civil, tem o perfil substancial do recurso, já que se traduz na reapreciação do julgado, ainda pelo tribunal que proferiu a decisão.
b) Mas como faculdade excepcional que é, deve conter-se nos apertados limites definidos pela expressão "manifesto lapso", reportada à determinação da norma aplicável, à qualificação jurídica dos factos ou à desconsideração de elementos de prova conducentes a solução diversa.
c) O lapso manifesto (que não se confunde com erro ou lapso material) tem a ver com uma flagrantemente errada interpretação de preceitos legais (não por opção por discutível corrente doutrinária ou jurisprudencial) podendo, no limite, ter na base o desconhecimento.
d) O incidente de reforma não deve ser usado para manifestar discordância do julgado ou tentar demonstrar "error in judicando" (que é fundamento de recurso) mas apenas perante erro grosseiro e patente, ou "aberratio legis", causado por desconhecimento, ou má compreensão, do regime legal
”.

“Na arquitectura básica do due process of law, este princípio de extinção do poder jurisdicional não ocupa um lugar qualquer. Se a lei do processo o não consagrasse, e se se permitisse portanto que o juiz da causa pudesse, sem limites e de motu próprio, rever as decisões ou os fundamentos das sentenças que ele próprio proferisse, não se garantiria por certo a existência de um processo justo. Um poder jurisdicional que se mantivesse para além da emissão da sentença comprometeria o próprio direito a uma solução jurídica dos conflitos” (acórdão do Tribunal Constitucional de 09.11.2010 – Relatora Maria Lúcia Amaral).

Donde, tendo presente esta jurisprudência claríssima, temos como incontroverso que o Juiz recorrido não podia ter substituído a sentença anterior que proferiu pela sentença actual, alterando direitos e a graduação dos créditos. Se fosse de admitir essa prolação de nova sentença, então cabe perguntar, o que impediria que o mesmo Juiz, ainda não satisfeito com o texto final da sentença ora recorrida, a substituísse mais uma vez, e mais outra e outra, potencialmente ad infinitum.

Donde a sentença recorrida não se pode manter.

A dúvida que se coloca agora é saber que tipo de vício temos aqui. A exacta caracterização desta invalidade tem gerado controvérsia doutrinária e jurisprudencial, considerando alguns que este vício essencial da sentença constitui uma situação de inexistência jurídica (Ac. do STJ de 06-05-2010, P. 4670/2000.S1, 2. ª Secção (Álvaro Rodrigues) e Ac. do TRP de 15-12-2010, P. 2006/09.5TTPRT.P1/Machado da Silva) em que não há sequer lugar à produção de caso julgado, enquanto para outros – considerando que, apesar de se ter esgotado o poder jurisdicional do tribunal quanto à matéria da causa, a decisão foi proferida por órgão investido de poder jurisdicional –, se trata de uma nulidade absoluta (Cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, V, p. 113 e ss).

Sobre esta matéria, vamos aderir à posição assumida no acórdão da Relação do Porto de 02.06.2016 (Relator Jorge Seabra), assim claramente explanada: “a doutrina e a jurisprudência têm perfilhado posições que vão desde a nulidade da sentença, à sua ineficácia ou à sua inexistência – Vide, por todos, sobre a matéria, A. VARELA, “ Manual de Processo Civil “, 2ª edição, pág. 686, nota 3, ALBERTO dos REIS, “ Código de Processo Civil Anotado “, 1984, pág. 113 e segs…, AC RC de 20.10.2015, relator Des. MARIA DOMINGAS SIMÕES, AC RP de 21.02.2013, relator Des. ARISTIDES RODRIGUES de ALMEIDA, AC RP de 26.09.2023, já antes citado, AC STJ de 6.05.2010, relator Cons. ALVARO RODRIGUES, AC RG de 22.05.2014, relator Des. HELENA MELO, todos disponíveis in www.dgsi.pt. Melhor reponderada a questão, e não obstante, de alguma forma se tenha, ainda que «ad latere», exprimido a possibilidade de o vício em causa poder configurar a inexistência jurídica, resulta hoje, a nosso ver, e com o devido respeito por opinião em contrário, que, sendo indiscutível que o juiz detém jurisdição e competência no âmbito do processo em apreço (como avulta desde logo do preceituado no art. 614º, n.ºs 1 e 2 do CPC), o vício em apreço não deverá ser o da inexistência jurídica do despacho/sentença, sendo que este outro vício supõe que o autor da sentença/despacho não esteja pessoal ou funcionalmente investido ou provido de jurisdição ou competência, o que, segundo cremos, não é defensável no caso dos autos, pois que dúvidas não existem que o juiz titular do processo detém tais poderes e competência. Vide sobre as hipóteses de inexistência, A. VARELA, op. cit., pág. 686, nota 3, citando a doutrina de Betti in Diritto processuale, 2ª edição, pág. 634 e segs..

De facto, as situações de inexistência do despacho ou sentença deverão ser reservadas apenas às hipóteses em que, de todo e em absoluto, falece ao autor da sentença ou do despacho competência ou jurisdição, como sucederá, por exemplo, se a sentença ou despacho é proferido por um «falso» juiz, por um juiz suspenso de funções ou até por alguém estranho à carreira judicial (v.g., um funcionário judicial, um médico, um pároco, um barbeiro, exemplos invocados por ALBERTO dos REIS, op. cit., pág. 113). Em tais situações, como refere ALBERTO dos REIS, op. cit., pág. 114, «semelhante acto, posto que tenha a forma externa de sentença, não vale como tal. Falta-lhe o requisito essencial: ter sido praticado por pessoa investida de poder jurisdicional» (sublinhado nosso). Sendo assim, a nosso ver, de excluir a figura da inexistência jurídica, a resposta ao vício em causa haverá de ser colhida, por aplicação analógica ou interpretação extensiva, do preceituado no art. 615º, n.º 1 al. d) - do CPC, enquanto nulidade por excesso de pronúncia, na estrita medida em que o juiz, ao decidir do específico tema em discussão (in casu, litigância de má-fé), fê-lo já, em momento em que, por esgotamento do seu poder jurisdicional (e não por estar desprovido, em termos pessoais ou funcionais e absolutos, da qualidade necessária ao exercício do poder jurisdicional), o não podia fazer, conhecendo, portanto, nesse circunstancialismo, de questão de que não podia tomar conhecimento, decidindo, por isso, «em excesso».

O que, portanto, conduz, em nosso julgamento à declaração de nulidade do despacho ora em crise (…) que resta sem efeito, o que se julga”.

Assim sendo, a sentença recorrida é integralmente nula, porque proferida por quem já não tinha poder jurisdicional para o fazer.
Assim, todas as outras questões suscitadas no recurso ficam prejudicadas.
E, nos termos do art. 195º,2 CPC, com a declaração de nulidade da sentença recorrida, vão igualmente anulados os termos subsequentes que dele dependam absolutamente, ficando válida a sentença proferida em 6/12/2018.

V- DECISÃO

Por todo o exposto, este Tribunal da Relação de Guimarães decide julgar o recurso procedente, e em consequência declara nula a sentença recorrida, por esgotamento do poder jurisdicional, declarando igualmente nulos os termos subsequentes que dela dependam absolutamente.

Custas pelo recorrido (art. 527º,1,2 CPC).
Data: 17/10/2019

Relator (Afonso Cabral de Andrade)
1º Adjunto (Alcides Rodrigues)
2º Adjunto (Joaquim Boavida)


1 - Código de Processo Civil anotado, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa.