Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2109/16.0T9BRG.G1
Relator: ALDA CASIMIRO
Descritores: RAI
RECOLHA DE NOVAS PROVAS
REJEIÇÃO
INTERVENÇÃO HIERÁRQUICA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/18/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) Perante um despacho de abstenção, do Mº Pº, de deduzir acusação (como é o caso dos autos), o requerimento para abertura de instrução tem que configurar substancialmente uma acusação (uma "acusação alternativa") constituída pelos factos concretos que o assistente pretende imputar ao arguido.

II) Com efeito, é essa acusação, que terá que constar do RAI, que fixa o objecto do processo, limitando e condicionando os poderes de cognição do tribunal. São os factos descritos no RAI que delimitam a actividade instrutória do Juiz, sendo nula a decisão instrutória que pronuncia o arguido por aqueles que constituam "alteração substancial" dos definidos no referido RAI (artºs 303º e 309º, nº 1, do CPP).
E esta "acusação alternativa" terá necessariamente que dirigir-se contra pessoa determinada.

III) No caso dos autos, visando-se com o RAI a recolha de novas provas que possibilitassem a determinação dos responsáveis pela manutenção de determinados blogues e páginas de Facebook e fazer com que cessassem ta actividade, dúvidas não subsistem de que o mecanismo processual adequado para fazer valer as pretensões do recorrente/assistente não era o pedido de instrução, mas antes o requerimento de intervenção hierárquica previsto no artº 278º do CPP.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães,

Relatório

No âmbito da Instrução com o nº 2109/16.0T9BRG, que corre termos no Juízo de Instrução Criminal de Braga (J1) do Tribunal da Comarca de Braga, vem o assistente A. P. recorrer do despacho que rejeitou o seu requerimento de abertura de instrução, pedindo que seja admitido tal requerimento, nos termos e para os efeitos previstos no art. 287º do Cód. Proc. Penal.
Para tanto, formula as conclusões que se transcrevem:

A. Notificado da recusa de Requerimento de Abertura de Instrução (RAI), por despacho recebido em 04-07-2017, e não se podendo conformar com o conteúdo do mesmo, vem a ora Recorrente interpor competente recurso de jurisdicional.
B. A interposição do presente recurso legitima-se ainda, porquanto a discussão que se envida levar ao Juiz de Instrução importa debater em sede adequada (em tribunal), para que se possa abrir um caminho para a procura de uma solução de salvaguarda do direito que cada um tem à sua imagem, reputação e bom nome, o que parece não existir em redes sociais e meios semelhantes.
C. Não se conformando com os fundamentos do Digm.º Magistrado do MP para justificar despacho de arquivamento, o Recorrente apresentou RAI fundamentando a manutenção da pertinência da investigação e adequação do meio, todos como melhor constam nos autos, a saber: (i) a insuficiência dos actos praticados no inquérito, (ii) manutenção das condutas criminosas, (iii) a imprescindibilidade de realização de diligências tendentes à descoberta da verdade material, (iv) proteção dos bens jurídicos em causa, (v) indícios de prova dos factos narrados.
D. Com a participação criminal materializada nos autos e através da qual se instaurou o inquérito, após o qual foi proferido despacho de arquivamento e, na sequência do qual, após apresentação de RAI pelo Assistente, o Exmo. Senhor Juiz de Instrução o recusou, pretendeu o cidadão e Presidente da Câmara A. P. recorrer aos órgãos de polícia criminal competentes no sentido de (i) fazer cessar de imediato contra si actos deliberados praticados por terceiros, (ii) públicos e notórios, com repercussões globais, porquanto praticados através de meios informáticos e redes sociais, e (iii) danosos para a sua imagem, reputação e bom nome, bem como vexatórios a todos os níveis.
E. Os actos foram e continuam a ser perpetrados (i) nos blogs intitulados “ESP" e "ESP ii", acessíveis publicamente nos endereços que indicou e, (ii) da construção, manutenção em funcionamento e divulgação de conteúdos da página de facebook intitulada "ESP", acessível através dos endereços eletrónicos que também indicou.
F. Evidências e indícios não faltam dos conteúdos colhidos e que instruíram a participação criminal, que o Assistente foi e ainda é alvo de uma campanha destinada a denegrir publicamente a sua imagem.
G. O Assistente-Ofendido, ora Recorrente defende e fundamenta em detalhe a sua não conformação com a quantidade e qualidade das diligências levadas a cabo em sede de inquérito, as quais reputa de insuficientes e impróprias para a realização das finalidades do inquérito.
H. No despacho de arquivamento pelo MP é referido que não foi possível identificar os autores dos conteúdos vexatórios à pessoa do Assistente, no entanto, tal impossibilidade advém de (i) uma inação do MP na própria investigação, (ii) de uma limitação das competências do MP, que poderão ser supridas pela intervenção do JIC, nomeadamente através da emissão de ordens judiciais a certas entidades.
I. Em relação ao ponto (i) – a inacção do MP – sugeriu o Assistente as seguintes formas de actuar:

a. No tocante ao crime de violação de segredo,
i. não foi praticada a diligência sugerida pelo Assistente, ou seja, fosse solicitado à Polícia Judiciária que, através da sua divisão efectuasse perícia aos sistemas informáticos (redes, servidores e postos) do Município de Esposende no sentido de proceder ao apuramento de eventual fuga de informação (ara efeitos de apuramento de violação de segredo de funcionário), ou outros diligências que se mostrem igualmente pertinentes para os efeitos referidos, por motivos que não se vislumbram;
ii. não ordenou o MP a audição, em sede de declarações, das pessoas funcionalmente mais relacionadas com os documentos especificadamente identificados na participação, e/ou responsabilidades na sua produção e transmissão, com vista ao apuramento de factos que possam permitir a descoberta dos factos e da verdade material;
b. No tocante aos restantes factos suscetíveis de preenchimento dos restantes tipos criminais melhor descritos nos autos, negou o MP. ao Recorrido:
i. a prática de todas as diligências solicitadas e adequadas para proceder ao apuramento da identidade do administrador da página de facebook e do blog ESP, e a sua inquirição e responsabilização por eventual cumplicidade ou prática dos factos ilícitos e criminosos;
ii. a análise dos comentários das páginas de internet e blog (leia-se o antigo, à data do conhecimento dos factos pelo Recorrente e o renovado, fundado já em 2017 e em clara contravenção e confronto com as instâncias investigatórias e penais) e a competente rede de “amigos” destes instrumentos de comunicação em massa, designadamente apurar aqueles mais ativos e/ou com comentários mais “informados”, procedendo dessa forma à respetiva inquirição para assim lograr chegar a uma maior e mais efetiva possibilidade de apurar os autores dos factos ilícitos, criminosos e altamente lesivos para o ora Recorrente.
c. Fossem tomadas todas as medidas necessárias para interromper de imediato a actuação lesiva da acção dos Participados, e proteger os bens jurídicos sistematicamente violados, pelo menos à semelhança do que exemplificativamente vem sido feito pelas autoridades administrativas (IGAC) e pelas respetivas operadoras relativamente aos seguintes sites de alegada pirataria informática.
J. Não só foi negado o acesso à fase de instrução, como nenhuma das diligências requeridas realizar foi acolhida pelo MP., a qualquer nível. Qualquer uma destas diligências poderia e teria seguramente alcançado resultados práticos.
K. Apesar de o inquérito ser da exclusiva titularidade do MP, conforme a letra do acórdão do STJ, processo n.º 06P1403, em que foi relator o Ilmo. Juiz Conselheiro Pereira Madeira, “II – encerrado o inquérito e aberta a instrução, abre-se uma fase autónoma do processado cuja direcção radica doravante no juiz de instrução, que, com total autonomia ordena as diligências que tenha por necessárias ao fim dessa fase eventual: proferir decisão instrutória.
L. Ora, o que se pretendeu com o RAI, foi discutir, de forma legítima, adequada e fundamentada, a inação do MP. durante a fase de inquérito, realizando exatamente as finalidades dessa fase. Conforme nos demonstra Paulo Pinto de Albuquerque, in "Comentário do Código de Processo Penal", 2ª ed., “(...) a instrução visa discutir a decisão de arquivamento apenas no que respeita ao juízo do M.P. de inexistência de indícios suficientes”.
M. É claro que existem indícios mais do que suficientes da prática de vários crimes. O MP não discorda com essa questão, no entanto, escusa-se da responsabilidade de continuar a investigar a questão de forma mais profunda, com o objectivo de poder identificar o(s) perpetrador(es) dos referidos e identificados crimes.
N. O Recorrente elaborou uma queixa-crime extremamente completa e minuciosa, tendo requerido ao MP., dentro da posição processual que ocupa e deve ser respeitada, diversas diligências, segundo as quais as chances de realização da tutela jurídico-penal efetiva resultariam grandemente aumentadas. Mas ao invés de divisar a realização de diligências intrincadas e/ou extremamente dispendiosas do ponto de vista da investigação ou cooperação judiciária, na realidade nem a diligência requerida de abrir a página do facebook “ESP” ou “ESP II” e procurar eventuais associações entre utilizadores que pudessem aparecer nas caixas de comentários das publicações e alguma posição – profissional ou pessoal – que pudesse demonstrar algum especial conhecimento dos factos mereceu qualquer acolhimento.
O. Os ilícitos continuaram a ser praticados impunemente, designadamente renovando os meios em 2017 (já o inquérito estava francamente lançado), pelo que a investigação deveria ter sido mais minuciosa, vigorosa e sobretudo mais abrangente, o que se pretende seja repristinado através da atuação dos Venerandos Desembargadores e do presente recurso.
P. A título de exemplo de situações análogas merecedoras de tutela idêntica, cumpre recordar o caso do blog “PON”, que tal como o “ESP” se dedicava a publicar “artigos de opinião” em que os autores criticavam aqueles que à altura eram Presidente e Vice-Presidente da Câmara Municipal da ….
Q. Este caso mereceu acompanhamento e tutela efetiva por parte dos OPC e do MP., e através das instâncias investigatórias que o MP. bem conhece foi encerrado na sequência de queixa judicial contra o mesmo, tendo as Varas Cíveis de Lisboa determinado que a “Google” impedisse de imediato o acesso ao blogue.
R. O tribunal considerou que (i) o PON não se bastava com “artigos de opinião” em que se criticavam os queixosos como autarcas, mas também como “cidadãos, pais, familiares e amigos.” (ii) considerou que os referidos artigos não eram feitos como uma “crítica construtiva, baseada em factos provados, concretos e objectivos, mas com o objectivo de difundir, junto do público, de forma gratuita, a ideia de que os requerentes são corruptos e corruptíveis.”
S. Para além do principal resultado pretendido alcançar com o pedido de intervenção judicial – encerrar de imediato o blog, terminando com a lesão dos bens jurídico-penais lesados – ter sido atingido, ainda se conseguiu identificar dois sujeitos, constituídos arguidos, por suspeita de serem os autores dos referidos textos, resultado apenas possível através de uma ordem judicial emitida pelo tribunal e dirigida à Google.
T. Também o presidente da Câmara Municipal da c. apresentou queixa contra um outro blog e, através de diligências operadas pelo MP e pelos OPC competentes foi possível através de uma caixa de correio electrónico associada ao blog, chegar até um número de telefone associado a uma determinada pessoa, sendo assim possível deduzir-se acusação contra o proprietário desse número de telefone.
U. Sempre com consideração pela actuação e competências do MP e dos OPC, frustrados os pedidos junto do Facebook e da Google, nos termos constantes do despacho de arquivamento do inquérito, não tinha o Recorrente qualquer motivo para concluir que o MP. agiria diferentemente, ainda que houvesse aquele suscitado o mecanismo da intervenção hierárquica do Ministério Público. Aliás, analisados os tempos e a urgência nos autos, temos que o inquérito durou cerca de um ano até ao seu anunciado encerramento, sem que o MP. lograsse realizar sequer a totalidade das diligências requeridas pelo Recorrente.
V. O Recorrente sente, desde o início, um total isolamento e solidão na vontade de obter a realização da justiça material, tendo toda a convicção que, a ter desencadeado a intervenção hierárquica, tal iria conhecer o mesmo resultado e empenho até à data (sem qualquer intervenção imediata de interrupção da prática do ilícito).
W. Motivo pelo qual se optou pela formulação de competente RAI, com vista a abrir uma instância judicial putativamente mais assertiva e capaz de responder às solicitações do Recorrente e para a obtenção da efetiva justiça material (na forma da descoberta dos autores dos factos, ou pelo menos de se extinguirem de forma convincente as diligências razoáveis em sede investigatória).
X. Não se pode o Recorrente conformar com o despacho de indeferimento do qual ora se recorre em toda a sua extensão, muito menos quanto às conclusões constantes relativamente à Instrução ser o instituto desadequado às pretensões do Recorrente, quando se refere que: “Serve o que vem de dizer-se para significar, derradeiramente, ao assistente que, considerando o mesmo insuficiente a investigação levada a efeito pelo Ministério Público, deveria ter suscitado o mecanismo da reclamação hierárquica, ao invés de ter requerido a abertura de instrução (…)” (negritos nossos)
Y. O Recorrente considera insuficiente a investigação pelo Ministério Público mas, sucede que o RAI nos autos não encontra apenas esse fundamento para a sua formulação.
Z. Não se pode concordar com o despacho de indeferimento do qual se recorre no seu todo, mas importa neste momento ressalvar as conclusões sobre a Instrução ser o instituto. O Assistente não coloca em causa que o MP tenha efectuado as diligências que entendeu serem suficientes junto do Facebook e do Google. Até o aceita como um facto no seu RAI. O que coloca em causa, após esse recusar por parte do Facebook e do Google, é que posteriormente, invocado o instituto da Intervenção Hierárquica, possam essas entidades responder de forma diferente aos mesmos órgãos que,
AA. O Assistente não se conforma com a resignação face à resposta do facebook e do Google, que informaram que já não dispõem das informações requeridas, e não se aceita o alegado esclarecimento prestado segundo o qual em casos análogos aos dos crimes nos autos - ou seja, em que em causa estão crimes de difamação e injúria -, tais entidades entendem que o fornecimento de informação colide com a política de privacidade das suas plataformas on-line, não respondendo aos pedidos de informação solicitados. O que significa abrir alas, sem indignação ou inconformismo, a uma autêntica, atual, acessível e absoluta denegação de justiça na forma de aceitação de um modus operandi e conduta de apologismo ao livre passe e branqueamento de ilícitos criminais de grande gravidade.
BB. O que o Recorrente coloca em causa é que ainda que fosse invocado o instituto da Intervenção Hierárquica pudessem de alguma forma tais entidades responder de forma diferente aos mesmos órgãos desprovidos do poder de emanar verdadeiras ordens judiciais com carácter de obrigatoriedade, como sucede com os Tribunais, e com as ordens judiciais stricto sensu.
CC. No RAI o Recorrente manifesta a sua não conformação com a resposta do Facebook e do Google e a aparente resignação do MP. É que já vimos que assim não sucedeu em casos análogos supra, e não se pode aceitar de ânimo leve que uma situação como a presente ausência de colaboração e investigação efetivas seja tida como normal.
DD. Como se disse, qualquer ordem judicial a emitir, com carácter obrigatório, ao Facebook e à Google, ultrapassaria as competências do MP nesta fase processual.
EE. Recorremos ao Acórdão do STJ (1) que decide precisamente sobre a questão: “III - Do regime legal resulta, pois, que é autónoma a intervenção do MP no inquérito e do juiz de instrução na fase eventual que se lhe segue. IV - E se existe autonomia de actuação, não tem fundamento legal qualquer «ordem», nomeadamente do juiz de instrução, para ser cumprida no âmbito do inquérito por quem não deve obediência institucional, nem hierárquica a tal injunção.”
FF. Sendo este o último recurso e hipótese de justiça do Recorrente, teria que ser aceite, transitando a instância para o JIC, a quem, conforme é consabida, segundo o artigo 17.º do CPP, “compete ao juiz de instrução proceder à instrução, decidir quanto à pronúncia e exercer todas as funções jurisdicionais até à remessa do processo para julgamento”. No âmbito da sua tríplice competência, é este o único sujeito processual com a competência de emitir qualquer ordem judicial no âmbito do exercício das funções judiciais competentes, de forma a que fossem efetiva e imediatamente encerrados os blogues e páginas de Facebook participados, coisa que o MP se recusou a fazer ainda que expressamente requerido para tal.
GG. O Recorrente veio atempadamente perante o Tribunal e o juiz competente, sem existir qualquer inadmissibilidade legal, requerer de forma articulada e fundamentada a abertura de instrução nos autos.
HH. No esteio da melhor jurisprudência, designadamente da que flui do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 08-03-2005, do processo n.º 264/05-1, em que foi relator o Ilmo. Juiz Desembargador Orlando Afonso, conclui-se que: “III – A arguição da nulidade prevista no art.120.º, n.º 2, d), do CPP (insuficiência do inquérito) não pode ser deduzida a todo o tempo, mas, apenas, após o encerramento do inquérito.”
II. O âmbito do art. 120.º, n.º 2, d), do CPP deve ser interpretado enquanto abrangendo situações nas quais, de forma subjectiva, se possa inferir pela insuficiência do inquérito, uma vez que a lex litera permite efetivamente essa interpretação sistémica e teleológica, tal como entendeu o Ilmo. Juiz Conselheiro Costa Pereira, no Acórdão do STJ, processo 044982, de 11-11-1993, quando refere que: “I - Se a omissão de um exame pericial especializado integrasse nulidade, esta caberia na previsão do artigo 120, n. 2, alínea d) do Código de Processo Penal, só podendo ser arguida até ao encerramento do debate instrutório ou, não havendo lugar a instrução, até cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito.”
JJ. A clara insuficiência do inquérito tem de ser considerada pela omissão de diligências efetivamente requeridas e que foram consideradas essenciais para a descoberta da verdade material, ainda que o MP considere não terem ficado por praticar actos legalmente obrigatórios. Tendo por base da sua motivação matéria de direito, o MP omitiu diligências essenciais para a descoberta da verdade, o que mais reforça a convicção que tal manifestação deve ser apreciada por um juiz, ao invés de um qualquer superior hierárquico do MP.
KK. Finalmente, refira-se ainda que no despacho de indeferimento do Requerimento de Abertura de Instrução, refere o JIC que “(i) a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicável, e (ii) a indicação das disposições legais aplicáveis.”
LL. Não se percebe como pode assim concluir-se, já que, em relação à narração dos factos, podemos verificar no RAI que tal foi minuciosa e detalhadamente efectuado.
50. “Publicamente afrontar o Assistente com várias e sucessivas publicações eletrónicas, acessíveis a todos os que delas quiserem tomar conhecimento, contendo imputações e insinuações gravíssimas, difamatórias e caluniosas para si enquanto cidadão e enquanto edil,
51. Todos estes conteúdos adicionais também voluntaria e intencional e seguramente construídos e colocados pelos Participados em meios públicos, tornando-os passíveis de conhecimento vasto pela generalidade das pessoas,
52. Em forma suscetível de produzir enorme impacto social, e atingir divulgação mundial, por intermédio da Internet (blog) e redes sociais mais conhecidas deste tempo (Facebook),
53. Novamente em conduta premeditada, intencional, voluntária e organizada dos Participados por forma a provocar e atingir gravemente o Assistente e os valores que constituem a reserva inatingível da dignidade de qualquer cidadão e da sua família, designadamente o seu direito à imagem, bom nome, integridade moral e reputação.
54. Os quais resultam amplificados, como os Participados não desconhecem, no caso de um eleito público e mais alto representante da Câmara Municipal e do Estado, como o Assistente.
55. A produção e divulgação sucessiva e recorrente de tais imagens e conteúdos inverídicos e ofensivos, com notória reafirmação pública e difusão nacional e internacional, constituem um novo ataque inqualificável ao bom nome e honorabilidade do Assistente, que não pode ser escamoteado ou deixado impune,
56. Que apenas emerge porquanto desde a participação criminal não foram tomadas quaisquer medidas efetivas por parte do MP e dos OPC, tendo os autores sentido até à data o doce sabor da impunidade.
57. Todos estes ataques na forma das condutas criminosas nos autos exigem não só (i) a responsabilização integral e sem reservas por parte dos seus autores, bem como todas as diligências necessárias e convenientes para a (ii) interrupção imediata e absoluta das fontes de produção e difusão pública destes atos difamatórios e devastadores para a vida pessoal e imagem do Assistente,
58. O que desde já, nova e reiteradamente, se requer a V.ª Ex.ª.”
(negritos e sublinhados nossos)
MM. Em relação à indicação das disposições legais aplicáveis, referiu o Recorrente, nessa sede, o seguinte:

10 - Que cometeram (os Participados), e como veremos continuam a cometer actos ilícitos criminosos passíveis de integrar a previsão dos seguintes tipos penais:
a. de crimes de difamação agravada, p. e p. pelos art.°s 180.° n.° 1 e 184.°, por referência à al. I) do art.° 132.°, todos do Cód. Penal,
b. de fotografias ilícitas, p. e p. pelo art.° 199.° do Cód. Penal, e
c. de violação de segredo de funcionário, p. e p. pelo art.° 383.° do Cód. Penal.”
68. Persistem assim os Participados na prática de factos ilícitos, ofensivos da probidade, honra e consideração do Assistente, e vão sistematicamente denegrindo através de falsidades a sua imagem, honra e dignidade, e bom nome perante os Esposendenses e a sociedade em geral.
69. Não pode deixar de se concluir novamente pela existência de factos lesivos, perturbadores e humilhantes que, salvo melhor opinião, cabem na previsão das normas dos arts. 180°, 181°, 193.º e 199.º todos do Código Penal,
NN. O que não só não se percebe a fundamentação do douto juiz que indeferiu o RAI apresentado com esta fundamentação, como a mesma carece de ser revogada, concluindo-se em sentido contrário.
OO. Mas ainda que assim se entendesse – o que por mera tese académica se concebe -, não é verdade que se deva recusar o RAI apenas com base nestes pressupostos, conforme traz à colação a matéria do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 17-04-2012, do processo n.º 138/10.6PAETZ.E1, em que foi relator o Ilmo. Juiz Desembargador Proença da Costa, que refere:
“3. Não é de rejeitar o requerimento de abertura da instrução quando neste são narrados os elementos objectivos dos crimes em presença e deles podem depreender-se os respectivos elementos subjectivos, em que seja de exigir ao Sr. Juiz algum esforço para além do que lhe é pedido no exercício regular do seu múnus.”
PP. É possível extrair-se um quadro factual, apoiado por prova (documental e mais requerida a produzir), que contém a narração dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ou de medida de segurança ao(s) autor(es) dos textos difamatórios, bem como o encerramento das páginas denunciadas, pelo que também por este motivo deve ser conferido provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão de indeferimento recorrida e admitindo-se a abertura da instrução nos autos.
*
O Digno Magistrado do Ministério Público junto da primeira instância contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso e apresentando as seguintes conclusões:

1. O recurso em apreço pressupõe que a instrução é um prolongamento do inquérito e que ao JIC compete efectuar diligências de recolha de prova até obter indícios suficientes para a decisão de pronúncia;
2. No entanto, no actual paradigma, a instrução é uma fase de apreciação dos indícios recolhidos no inquérito, tendo em vista avaliar se esses indícios permitiam uma decisão diferente da que foi tomada pelo Ministério Público;
3. A actividade investigatória que o JIC pode levar a cabo não tem a amplitude que o recorrente lhe atribui, não estando prevista para servir o requerente da instrução, mas sim para o esclarecimento das dúvidas do próprio JIC;
4. Só este enfoque garante a igualdade de tratamento entre arguidos e assistentes, impedindo que uns e outros se vejam confrontados com novos meios de prova, relativamente aos quais já não poderiam, eles próprios, requerer a instrução;
5. Também só assim se compreende a obrigação legal de o assistente, no seu RAI, deduzir uma «acusação alternativa», a qual só pode ter por objecto prova constituída nos autos, e não prova a constituir;
6. Sendo manifesto que os indícios recolhidos em inquérito não suportavam a dedução de uma acusação, e entendendo que mais e melhores diligências nesse sentido podiam ser feitas, o recorrente deveria ter pedido a reabertura do inquérito ou a intervenção hierárquica, mecanismos que poderiam possibilitar a pretendida recolha de prova indiciária;
7. O assistente não deduziu qualquer «acusação alternativa», limitando-se a alinhavar um amontoado de conclusões, opiniões e juízos de valor, sem qualquer referência a factos concretos.
8. Pretendia, de resto, o assistente, que a instrução corresse contra incertos, o que também não pode suceder, precisamente porque a «acusação alternativa» não pode ser deduzida contra incertos, o que tudo resulta da natureza da instrução como fase processual de apreciação dos indícios recolhidos na fase de inquérito e não como fase de investigação.
9. Em sede de recurso, veio o assistente arguir a nulidade do inquérito, por omissão de diligências essenciais à descoberta da verdade
10. No entanto, na fase de inquérito não foi postergado qualquer acto legalmente obrigatório, razão pela qual se não verifica a nulidade prevista na alínea d) do n.º 2 do art. 120.º do CPP;
11. A omissão de diligências que possam reputar-se essenciais para a descoberta da verdade corresponde a um segmento desta norma que apenas é aplicável às fases posteriores ao inquérito e à instrução;
12. De todo o modo, no RAI que apresentou, o assistente, embora discorrendo sobre o que entendeu serem insuficiências da investigação, nunca, em momento algum, arguiu a referida nulidade.
13. Ora, tratando-se de uma nulidade dependente de arguição, deveria ter suscitado a questão no RAI, sendo que, se o tivesse feito, muito provavelmente o RAI, nessa parte, não seria rejeitado, posto que a fase de instrução é uma fase que tem também como objecto conhecer das eventuais nulidades do inquérito.
14. Porém, não o tendo feito, também não pode levantar a questão em sede de recurso, por se tratar de questão não colocada à apreciação do tribunal recorrido.
*

Nesta Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu douto Parecer no sentido da improcedência do recurso.

Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
***

Fundamentação

O despacho que rejeitou o requerimento de abertura de instrução do assistente, tem o seguinte teor:
No culminar da fase de inquérito posta a seu cargo, o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento, pelos fundamentos constantes de fls. 221 a 224 e que, por economia de meios, se dão por integralmente reproduzidos.
Com isso inconformado, o assistente A. P. requereu, 234 a 263, a abertura da instrução.
Fundamentou as razões da sua discordância, sustentando, em síntese, que os factos por si participados, integrativos da previsão dos artºs 180º, nº 1, 181º, 184º, 193º, 199º e 383º do Cód. Penal, tiveram efectiva verificação e que os mesmos deveriam ter sido objecto de mais aturada investigação por banda do Ministério Público, tendo em vista a recolha de reforçados indícios da sua ocorrência, bem como a identificação dos seus autores; que, para além disso, tiveram, ainda, verificação novos e vários crimes de difamação, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artºs 180º, nº 1 e 183º, nºs 1, als. a) e b) e 2 do Cód. Penal. Concluiu, demandando do Tribunal a realização, nesta fase de instrução, das diligências de prova que manifestou entender terem sido omitidas em inquérito, mais requerendo sejam tomadas providências para cessação dos comportamentos delituosos ainda em curso.
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A questão posta, nesta sede e momento processual, consiste em saber se deve, ou não, receber-se o requerimento de abertura de instrução apresentado. E a resposta é, adiantamo-lo já, negativa.
Passamos a explicar.
Conforme decorre do disposto no artº 287º, nº 1 do Cód. de Proc. Penal, a instrução – com as finalidades designadas pelo nº 1 do antecedente normativo legal – pode ser requerida, no prazo de 20 [vinte] dias a contar da notificação da acusação ou do arquivamento:

a) Pelo arguido, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação;
b) Pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.
Mais se dispõe no nº 2 da indicada disposição legal que, embora o requerimento, destinado àqueles fins, não esteja sujeito a formalidades especiais, deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito, de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar.
Prescreve-se, porém e acrescidamente, na parte final daquele nº 2 do artº 287º que é aplicável ao requerimento apresentado pelo assistente o disposto no artº 283º, nº 3, als. b) e c).
Pois bem. Dispõe-se no artº 283º, nº 3, als. b) e c) do Cód. de Proc. Penal que a acusação deve conter, sob pena de nulidade:
- A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
- A indicação das disposições legais aplicáveis.
Serve isto por dizer que, pese embora o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, em reacção a arquivamento levado a efeito pelo Ministério Público, não esteja sujeito a formalidades especiais no que tange à exposição das razões de facto e de direito da discordância, certo é, porém, que já assim não sucede quanto à necessidade de no mesmo se encontrarem satisfeitas as exigências reclamadas pelo citado artº 283º, nº 3, als. b) e c), aplicável por via da remissão operada pela parte final do nº 2 do artº 287º.
Conforme refere Germano Marques da Silva [“in” Curso de Processo Penal, Vol. III, Editorial Verbo, 2ª edição, 2000, pp. 139 e 140], o requerimento de abertura de instrução requerido pelo assistente deve, substancialmente, conter uma verdadeira acusação.
E compreende-se que assim seja.
É que, em decorrência do que se dispõe no artº 32º, nº 5 da CRP, o processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e, para o que ao caso importa, os actos instrutórios subordinados ao princípio do contraditório. Significa isto que o objecto do processo penal é, justamente, definido pela acusação que serve a função de delimitar a actividade cognitiva e decisória do Tribunal, permitindo, correlativamente, assegurar as garantias de defesa do arguido, em particular contra a alteração ou o alargamento do processo.
Como, de resto, se escreveu no acórdão de fixação de jurisprudência nº 7/2005 [publ. “in” DR, 1ª Série- A, nº 212, de 4 de Novembro de 2005], acompanhando a posição de Germano Marques da Silva [“in” Ob. e Loc. Cit.], “Integrando o requerimento de instrução razões de perseguibilidade penal, aquele requerimento contém uma verdadeira acusação (...); o requerimento funciona como acusação em alternativa, respeitando-se, assim, “formal e materialmente a acusatoriedade do processo”, delimitando e condicionando a actividade de investigação do juiz e a decisão de pronúncia ou não pronúncia”.
No mesmo aresto é citado o acórdão do TC nº 358/2003, Proc. nº 807/2003 [publ. DR, 2ª Série, nº 150, de 28 de Junho de 2004], no qual se escreveu que “A estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objecto do processo seja fixado com rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução”. Mais adiante, no mesmo acórdão do TC, escreveu-se que “Assim, o assistente tem de fazer constar do requerimento para a abertura da instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas no nº 3 do artigo 283º do Código de Processo Penal. Tal exigência decorre (…) de princípios fundamentais de processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória”.
Isto posto e vertendo ao caso que nos ocupa, temos que o assistente, como se disse já, discordando do procedimento do Ministério Público que, no culminar da fase de inquérito, arquivou os autos, demandou do Tribunal que, nesta fase de instrução, supra os termos da investigação feita e que reputou de insuficiente, tendo em vista o reforço dos indícios colhidos nos autos e, muito em particular, a identificação do(s) autor(es) dos factos que denunciou. Requereu, também e do que nos é dado perceber pelos termos do requerimento apresentado, que se prossiga investigação relativamente a novos delitos que declarou terem tido, entretanto, verificação.
Pois bem.
Observados os termos do requerimento de abertura de instrução que deu início à presente fase, verifica-se não conter o mesmo, materialmente, qualquer acusação. É que, só pode haver acusação contra pessoa(s) determinada(s), constituindo isso, de resto, o pressuposto [a montante] da possibilidade de cumprimento das exigências reclamadas pelo artº 283º, nº 3, als. b) e c).
Na realidade, estamos, no caso que nos ocupa, na presença de requerimento de abertura de instrução contra incertos, limitando-se nele o assistente a expor, no essencial, as razões da sua discordância relativamente ao despacho de arquivamento que pôs termo ao inquérito, reputando de insuficiente a investigação prosseguida, quanto à verificação dos delitos que manifesta entender terem tido verificação e no que respeita à determinação da identidade dos seus autores.
Aliás, verifica-se, até, que o requerimento em causa, para além de se apresentar naquela apontada condição, não contém, sequer, a narração da materialidade objectiva em que se realizam os delitos em causa, sendo que, no que respeita aos elementos subjectivos típicos, é totalmente omisso quanto ao crime de violação de segredo por funcionário.
No entanto, e como vimos já, a estrutura acusatória do processo penal e, bem assim, as garantias de defesa que o enformam reclamam que o requerimento de abertura de instrução contenha uma acusação em sentido próprio, que o assumido desconhecimento, na circunstância, do(s) autor(es) dos factos participados desde logo comprometeu em absoluto.
Aliás, embora nunca fosse caso, pela evidência do desconhecimento do(s) autor(es) dos factos participados, de convidar o assistente a aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, certo é, também, que o acima citado acórdão nº 7/2005 fixou jurisprudência no sentido de afastar a aplicabilidade desse instituto civil.
Isto posto, admitir a abertura da instrução, em casos como o vertente, ou seja, em que dela nunca poderia resultar a prolação de despacho de pronúncia – só configurável num contexto virtual de alteração substancial, não permitido [cfr. artº 303º, nºs 3 e 4 do Cód. de Proc. Penal] - constituiria acto absolutamente inútil e, como tal, postergado por lei.
Nesses termos, impõe-se, com esse fundamento, rejeitar o requerimento de abertura de instrução.
Algumas notas finais, porém, se impõem.
A primeira delas é a de que a direcção do inquérito cabe, nos termos do disposto no artº 263º do Cód. de Proc. Penal, ao Ministério Público, que, assistido pelos órgãos de polícia criminal, pratica, em conformidade com o que se dispõe no artº 267º do citado diploma legal, os actos e assegura os meios de prova necessários à realização das finalidades referidas no artº 262º, nº 1, ou seja, realiza o “conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles”, bem como recolher as provas em ordem a decidir pela acusação ou o arquivamento dos autos.
E, não obstante compita, durante a fase de inquérito, ao juiz praticar, ordenar ou autorizar, os actos referidos nos artºs 268º e 269º do Cód. de Proc. Penal, não lhe é permitido que se intrometa na actividade de investigação e recolha de provas, salvo, como é evidente, nos casos previstos pelas indicadas disposições legais e para salvaguarda de direitos fundamentais.
Sendo atributo do Ministério Público, como decorrência até do seu estatuto próprio e correlativa autonomia, a direcção do inquérito e, por conseguinte, tomar, orientado pelo princípio da legalidade e dentro do quadro legal e estatutário em que se move, decisão quanto aos actos que entende dever levar a cabo para realizar as finalidades da fase processual considerada, não só aquela intromissão jurisdicional está vedada em fase de inquérito, como o está, também, em fase de instrução. Dito por outras palavras, a instrução é uma instância judicial de controlo e não de investigação, embora, no seu âmbito, possa ser feita a investigação que o juiz, nos termos previstos pelos artºs 288º, nº 4 e 289º, nº 1 do Cód. de Proc. Penal, vier a considerar pertinente às finalidades da correspondente fase processual. A instrução não constitui, portanto e do ponto de vista da sua estrutura essencial, uma actividade materialmente policial ou de averiguação, pelo que não se destina, nem pode ter por fim, suprir as insuficiências de inquérito. Não pode, por essas indicadas razões, o assistente, confrontado que seja com o arquivamento total ou parcial do inquérito, pedir do juiz, em fase de instrução, que investigue mais ou que investigue factos novos, diversos, portanto, dos que foram objecto de investigação em fase de inquérito [vd., por tudo e entre outros, Ac. da Relação do Porto, de 30.01.2008, nº TRP_0716298, “in” http://bdjur.Almedina.net/; de 30.04.2014, Proc. nº 1643/08.6PIPRT.P2; de 02.07.2014, Proc. nº 2720/09.5TAVLG.P1; Ac. da Relação de Lisboa de 06.11.2007, Proc. nº 6231/2007-5, e Ac. da Relação de Guimarães de 01.02.2010, Proc. nº 333/06.2GBVAVV, os últimos “in” http//www.dgsi.pt].
Por isso que, considerando o assistente, nos casos de arquivamento, que a investigação foi insuficientemente realizada, circunstância com que não tem, como é evidente, que conformar-se, deva o mesmo, ao invés de requerer a abertura da instrução, suscitar a intervenção hierárquica, no quadro normativo previsto pelo artº 278º do Cód. de Proc. Penal. É, pois, por essa via que deverá ser sindicada a actividade investigatória do Ministério Público, nas situações em que esta seja tomada pelo assistente como insuficiente [neste sentido, Ac. da Relação do Porto de 30.04.2014, já acima citado]. E só quando essa insuficiência tiver por fundamento a omissão de actos legalmente obrigatórios – entre os quais, porém, não se contam os actos de investigação entendidos ou não prosseguir -, originando, por conseguinte, a nulidade prevista pela al. d) do nº 2 do artº 120º do Cód. de Proc. Penal, e que depende de arguição, podem os meios de reacção alargar-se à fase de instrução – cfr. al. c) do nº 3 do citado artº 120º. Mas, neste caso, a instrução, não se destinando a suprir materialmente a insuficiência dos actos de inquérito – o que, como vimos, não constitui o seu escopo –, terá por objecto o reconhecimento da nulidade e o desencadeamento das consequências legalmente previstas.
Já se a discordância se prender com a errada valoração dos indícios colhidos na investigação, então a sindicância da actividade do Ministério Público deve ser realizada, com inteira propriedade, através do desencadeamento da fase instrutória. Se, porventura, os problemas detectados forem, simultaneamente, a insuficiência do inquérito e a discordância quanto à valoração dos indícios, a reacção processual mais ajustada é a reclamação hierárquica. Optando-se, porém, por requerer a abertura da instrução, certo é que, devido aos limites a que esta fase está sujeita, fica quem desencadeou tal meio de reacção na condição de ver, apenas, apreciada a questão relativa à valoração dos indícios, não se extraindo todos os dividendos possibilitados pela reclamação hierárquica [Ac. da RP de 30.04.2014, já citado].
Serve o que vem de dizer-se para significar, derradeiramente, ao assistente que, considerando o mesmo insuficiente a investigação levada a efeito pelo Ministério Público, deveria ter suscitado o mecanismo da reclamação hierárquica, ao invés de ter requerido a abertura de instrução, que, aliás, jamais poderia prosseguir relativamente aos denominados “novos crimes” que não sequer foram objecto de investigação pelo órgão competente do Estado.
* * *

Apreciando…
De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso.
Em questão está:
- a rejeição do requerimento de abertura de instrução do assistente que visa a continuação das investigações nos autos após despacho de arquivamento do inquérito;
- a oportunidade da arguição de nulidade por insuficiência de inquérito.
*

Nos termos do nº 3 do art. 287º do Cód. Proc. Penal, o requerimento para abertura da instrução apenas pode ser rejeitado por extemporaneidade, incompetência do juiz ou inadmissibilidade legal da instrução.

Estabelece o nº 2 do art. 287º do Cód. Proc. Penal que “o requerimento de abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do nº 3 do art. 283º”.
Ou seja, o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente tem que conter “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sentença que lhe deve ser aplicada” (alínea b) do nº 3); e “a indicação das disposições legais aplicáveis” (alínea c) do nº 3).
Significa isto que perante um despacho de abstenção, do Ministério Público, de deduzir acusação (como é o caso), o requerimento para abertura de instrução tem que configurar substancialmente uma acusação (uma “acusação alternativa”) constituída pelos factos concretos que o assistente pretende imputar ao arguido.
Com efeito, é essa acusação, que terá que constar do requerimento para abertura de instrução, que fixa o objecto do processo, limitando e condicionando os poderes de cognição do tribunal. São os factos descritos no requerimento de instrução que delimitam a actividade instrutória do Juiz, sendo nula a decisão instrutória que pronuncie o arguido por aqueles que constituam “alteração substancial” dos definidos no referido requerimento (cfr. o disposto nos arts. 303º e 309º, nº 1 do Cód. Proc. Penal).
E esta “acusação alternativa” terá necessariamente que dirigir-se contra pessoa determinada.
Ora ainda que se considerasse – o que não se concede – que o requerimento de abertura de instrução imputa suficientes elementos objectivos e subjectivos de crimes, o certo é que não os imputa a pessoas determinadas. Efectivamente, o inquérito teve início contra incertos e até ao arquivamento não se apurou a identidade de quem cometeu os factos constantes da denúncia.
Aliás, era esse um dos fins visados com o requerimento de abertura de instrução: a recolha de novas provas que possibilitassem a determinação dos responsáveis pela manutenção de determinados blogues e páginas de Facebook e fazer com que cessassem tal actividade.
Mas essa função investigatória não é a função da instrução e do Juiz de Instrução. Na instrução o Juiz avalia indícios, em ordem a pronunciar ou não pronunciar. Não recolhe prova. Quando a requerimento, ou oficiosamente, determina a produção de meios de prova, tem em vista apenas a dissipação de dúvidas que lhe permitam uma decisão de pronúncia ou não pronúncia (cfr. o disposto no art. 291º do Cód. Proc. Penal). Não lhe cabe, nunca, uma função de investigação, essa determinada por lei apenas ao Ministério Público (cfr. o disposto nos arts. 48º ss, por oposição ao disposto no art. 17º, todos do Cód. Proc. Penal).
Secundamos o Acórdão desta Relação de Guimarães de 1.02.2010 (processo 336/06.2GBAVV, pesquisável em www.dgsi.pt) onde se afirma:
«Toda a argumentação dos recorrentes pressupõe que a instrução é um simples prolongamento do inquéri­to, em que a «investigação» passa a ser feita por um juiz. É um equívoco, relativamente vulgar nas práticas judiciárias, mas que não tem suporte na lei. Talvez decorra da tradição criada com a figura do «juiz de instru­ção» no Código de 1929, o qual, pelo menos nos crimes de maior gravidade, tinha efectivas funções de inves­tigação desde a notícia do crime. Porém, o actual Código de Processo Penal, em vigor há mais de vinte anos, alterou esse paradigma, passando a configurar o juiz de instrução como um guardião dos direitos, liberdades e garantias no decurso das fases preliminares do processo. "Na verdade, a instrução não é uma segunda fase investigatória, desta feita levada a cabo pelo juiz, e mais nada. (...) Surge como um controlo que é solicitado ao juiz, e só por quem se sinta agastado pela decisão proferida uma vez encerrado o inquérito (José Souto Moura, Inquérito e Instrução, Jornadas de Direito de Processo Penal do CEJ, ed. 1988, pág. 125).
Vejamos:
O art. 262.º n.º 1 do CPP diz que "o inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência do crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher provas, em ordem à decisão sobre a acusação".
Diferentemente a "instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento" – art. 286.º n.° 1 do CPP.

A instrução é como que um «apelo» feito pelo arguido ou pelo assistente da decisão do MP acusar arquivar o inquérito. Ou, nos casos dos crimes particulares, da decisão do assistente acusar. Discordando da solução do MP, o arguido ou o assistente submetem a questão ao juiz, para que este decida se o processo segue para julgamento ou é arquivado. É nisto que consiste a essência da "comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito".
É certo que o CPP prevê a possibilidade do juiz efectuar diligências prévias ao debate instrutório e de os sujeitos processuais as requererem. Mas essas diligências não visam substituir a "investigação" do inquérito. Destinam-se a dissipar e esclarecer eventuais dúvidas existentes no espírito do juiz (e não na perspectiva sub­jectiva das partes) sobre a decisão que vai tomar. Só este enfoque permite justificar a possibilidade do juiz indeferir, por despacho irrecorrível, os actos requeridos que considerar não interessarem à instrução (art. 291.º n.º 2 do CPP).
Porque o sistema é coerente, a instrução deve de ser realizada nos curtíssimos prazos fixados no art. 306.º n.º 1 do CPP, que se contam a partir do "recebimento do requerimento" (n.º 3) e não do despacho que a declara aberta. Entre o recebimento do requerimento e a abertura da instrução pode decorrer um período significativo. Pense-se nos casos do arguido ter de ser notificado para se pronunciar sobre a constituição de assistente, ou de haver lugar ao pagamento de multa, ou decisão sobre a sua dispensa (art. 145.º do CPC). Estes prazos são incompatíveis com a existência na instrução de uma investigação que substitua ou prolongue a que foi efec­tuada pelo MP.
Tudo isto indica que as diligências a efectuar em instrução devem ser pontuais, incidindo sobre aspectos específicos que o juiz, no seu prudente arbítrio, entende merecerem esclarecimento. O essencial está no debate instrutório e na decisão que se lhe segue, onde o juiz decide se "mantém" ou "altera" a decisão do MP de acu­sar ou arquivar o inquérito. Para demonstrar que é assim, não será despropositado referir aqui um texto de Rui Pereira (Em vésperas de mais uma reforma penal: modificar o quê? – ttp://www.oa.pt/ Publicações/Boletim/detalhe-artigo.aspx?idc-30777&idsc-1617&idr-2931&ida-1614.), talvez o principal responsável pela última revisão do CPP, em que este penalista se pronuncia no sentido de que "a instrução deveria ser tendencialmente reduzida ao debate instrutório, para salvaguardar a estrutura acusatória...". É solução que não foi adoptada (inviabilizaria que o juiz dissipasse as suas próprias dúvidas), mas o facto de ter sido ponderada demonstra que a figura do juiz de instrução no actual Código de Processo Penal está bem longe do juiz com o mesmo nome do Código de 1929.
Este enfoque sobre a natureza e finalidades da instrução não "condena" o ofendido à inevitabilidade de ver o seu caso injustificadamente findo, quando o magistrado do MP por incompetência, incúria ou outra razão decide arquivar um processo sem ter feito uma investigação adequada. O denunciante pode sempre pro­vocar a intervenção hierárquica prevista no art. 278.º do CPP, para que "as investigações prossigam". Deverá seguir esse caminho, em vez de requerer a instrução, quando a sua discordância não for apenas (ou essencialmente) quanto à decisão de não acusar, mas quando entender que a investigação foi deficiente, por ter omitido diligências de prova essenciais. Dessa forma não retirará a «investigação» do domínio do órgão do Estado competente, o Ministério Público.»
De facto, analisado o teor do requerimento de abertura de instrução interposto pelo recorrente, verifica-se claramente que o mecanismo processual adequado para fazer valer as suas pretensões não era o pedido de instrução, mas antes o requerimento de intervenção hierárquica previsto no art. 278º do Cód. Proc. Penal, onde é pedida uma apreciação do despacho proferido, cabendo ao superior hierárquico determinar a continuação das investigações ou dar indicação para acusar. Diz o recorrente que requerer a intervenção hierárquica não obteria qualquer resultado prático… Talvez, mas também não se sabe se assim seria.
Termos em que teremos de concluir que a instrução é, de facto, inadmissível.
A descoberta da verdade material, num Estado de Direito como o nosso, tem que ser obtida de acordo com as regras estabelecidas.
Surgindo novos meios de prova que invalidem os fundamentos invocados pelo Ministério Público no despacho de arquivamento, o assistente poderá sempre solicitar a reabertura do inquérito nos termos do art. 279º do Cód. Proc. Penal.

Mas alega ainda o recorrente a existência da nulidade prevista no art. 120º, nº 2, alínea d), do Cód. Proc. Penal, arguindo a insuficiência do inquérito por não terem sido realizadas todas as diligências de prova que entende deveriam ter sido feitas.
Acontece que a ora invocada nulidade não foi deduzida no requerimento de abertura de instrução sobre que recaiu o despacho recorrido. Assim, o despacho recorrido não se pronunciou (obviamente) a tal respeito, o que nos impede também agora, a nós, de nos pronunciarmos sobre a questão.
Todavia, sempre se dirá que a nulidade prevista na alínea d) do nº 2 do art. 120º do Cód. Proc. Penal prevê a nulidade por insuficiência de inquérito ou instrução, por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios e a omissão posterior (ao inquérito e instrução, se a houve) de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade. No caso a nulidade só poderia existir por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios, o que não é o caso.
Também, por esta via, falece o recurso.
***

Decisão

Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso e confirmam a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em cinco (5) UCs, .

Guimarães, 18.12.2017
(processado e revisto pela relatora)


(Alda Tomé Casimiro)
(Fernando Pina)

1- https://www.pgdporto.pt/proc-web/faq.jsf?ctxId=85&subCtxId=88&faqId=985&show=&offset=