Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
7763/16.0T8VNF-A.G1
Relator: PEDRO DAMIÃO E CUNHA
Descritores: INCIDENTE DE QUALIFICAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
INSOLVÊNCIA CULPOSA
INIBIÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/20/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (elaborado pelo Relator):

I. Uma vez qualificada a Insolvência como culposa, impõe-se retirar dessa qualificação todos os efeitos legais, e, em particular, os efeitos pessoais que poderão atingir o Administrador ou Gerente da Insolvente que tenha agido com culpa.

II. Um desses efeitos da qualificação da Insolvência como culposa é o de as pessoas afectadas por aquela qualificação deverem ser inibidas (als. b) e c) do nº 2 do art. 189º do CIRE).

III. Na determinação da medida concreta do período de inibição não pode deixar de relevar o grau de culpa do Administrador ou do Gerente da Insolvente e o contributo que essa sua conduta culposa teve para a situação de Insolvência (para a sua criação ou para o seu agravamento).

IV. Quando o legislador se refere a grau de culpa, deve-se entender que apenas se está a referir a culpa grave ou dolosa, pois que só estas é que podem determinar a qualificação da insolvência como culposa.

V. Uma vez que o CIRE nada refere quanto às noções de dolo ou culpa grave, deverá atender-se na densificação desses conceitos às regras gerais de direito sobre esta matéria.

VI. O período de inibição relativamente às pessoas afectadas pela qualificação da insolvência deve ser graduado em função da gravidade do seu comportamento e da sua relevância na verificação da situação de insolvência, tendo em conta as circunstâncias do caso concreto e a moldura abstracta da inibição prevista pelo legislador.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães.

I. RELATÓRIO.

Por sentença proferida nos autos a que estes vão apensos foi declarada a insolvência da sociedade X, Lda, e declarado aberto o respectivo incidente de qualificação de insolvência, com carácter pleno, tendo posteriormente a fls. 68 dos autos principais sido declarado o carácter limitado da qualificação.

No prazo legalmente previsto, nenhum interessado veio apresentar alegações nos termos do artigo 188º, nº 1 do CIRE.

A Sr.ª Administradora de insolvência emitiu e juntou aos autos o seu parecer, em obediência ao disposto no artigo 188º, nº 2, do CIRE, pronunciando-se pela qualificação da insolvência como culposa, afectando João e S. P..

Os autos foram então com vista ao Ministério Público, nos termos do artigo 188º, nº 3, do CIRE, que se pronunciou no sentido da qualificação da insolvência como culposa, nos termos do artigo 186º, nº 1 e nº 2, alíneas d), f), h) e nº 3, al a) e b) do CIRE, devendo ser afectada pela qualificação João e S. P., e, entre outros efeitos também solicitados, ser fixado o período em que ficarão inibidos para o exercício do comércio, entre 2 a 10 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa- artigo 189º, nº 2, al c) CIRE.
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Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 188º, nº 6 CIRE, tendo os afectados pela qualificação sido citados para se oporem, não tendo deduzido oposição.
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A insolvente foi igualmente notificada para se opor à qualificação, nada tendo dito.
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Foi elaborado despacho saneador e posteriormente realizada audiência de julgamento de acordo com os formalismos legais.
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Na sequência foi proferida a seguinte decisão:

“Decisão
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, decido:

a) Qualifico como culposa a insolvência de X, Lda., declarando afectado pela mesma, João.
b) Fixar em 3 (três) anos o período da inibição de João, para administrar patrimónios de terceiros, o exercício do comércio, ocupação de cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa;
(…)
Custas pela insolvente e afectado João, na proporção de metade- artigo 526º, nº1 CPC ex vi artigo 17º CIRE.
Registe e Notifique.
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Comunique a presente decisão à CRC – artigo 189.º, n.º 3 do CIRE.”.
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É justamente desta decisão que o Recorrente veio interpor o presente Recurso, concluindo as suas alegações da seguinte forma:

“Conclusões:

1. A existência dos arts. 301º a 304º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas não posterga a aplicação do artº 527º do Código de Processo Civil e, como tal, deverá ser condenada em custas o afectado pela qualificação da insolvência como culposa, não se vislumbrando qualquer decaimento processual ou substantivo que legitime a mesma condenação da massa insolvente;
2. Entendimento diferente demandará um ilegal prejuízo para os credores face à primazia dada ao pagamento das dívidas da massa insolvente, conforme dispõe o artº 51º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas;
3. Porque tal se mostra legalmente admissível, deverá proceder-se à reforma da decisão quanto a custas antes de o recurso subir nos termos dos arts. 616º, nº 1 e nº 3, e 617º, nº 1 e nº 2, do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi artº 17º, nº 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas;
4. Ponderando com assertividade a factualidade dada como provada, a João devem ser aplicadas as inibições para administrar patrimónios de terceiros (1) e para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa (2), durante o período de 05 (cinco) anos;
5. Foi violado o artº 527º, nº 2, do Código de Processo Civil (por errada interpretação);
6. Foi violado o artº 189º, nº 2, als. b) e c), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, por errada valoração da matéria de facto dada como provada e sua subsunção na dosimetria relativa às medidas inibitórias aí previstas.

Termos em que se conclui como supra, proferindo-se douto acórdão que, caso não exista reforma quanto a custas, revogue (parcialmente) a douta sentença averiguada e:

1. Fixe em 05 (cinco) anos o período em que João ficará inibido para administrar patrimónios de terceiros (1), para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa (2) [artº 189º, nº 2, als. b) e c), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas];
2. Condene apenas João (e não também a massa insolvente) nas custas do processo nos termos do artº 527º, nº 2, do Código de Processo Civil,..”.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Entretanto, na sequência do Recurso apresentado, foi reformada a decisão proferida apenas quanto a custas no seguinte sentido (ficando prejudicado o Recurso quanto a essa dita questão prévia):

“Pelo exposto, nos termos conjugados dos artigos 616.º, n.º 1 e 617º, n. s 1 e 2, todos do Código de Processo Civil, determina-se a reforma da sentença quanto a custas, condenando-se João nas custas do presente apenso de qualificação (cfr. art. 527º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil)”.
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Cumpridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.
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No seguimento desta orientação, o Recorrente coloca a seguinte única questão que importa apreciar:

1.- saber se o período de inibição fixado ao Requerido para administrar patrimónios de terceiros, o exercício do comércio, ocupação de cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa deve ser alterado para cinco anos;
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença proferida em 1ª instância julgou provados os seguintes factos:

“Factos provados (relevantes para a decisão a proferir)

1- A sociedade X, Lda., foi declarada insolvente a 27-12-2016.
2- A insolvente, pessoa colectiva NIPC (...), com sede na Rua (...) Braga, tinha por objecto os transportes públicos de aluguer em veículos automóveis ligeiros de passageiros; transportes em táxi; actividades de acabamentos no âmbito de construção civil, designadamente pintura, isolamentos e colocação de tectos falsos, estucagem, revestimento de pavimentos e de paredes; comércio, importação e exportação de materiais, máquinas e ferramentas para a construção civil, de tintas, vernizes e produtos similares, material de bricolagem; preparação dos locais de construção, designadamente demolições e terraplanagens; indústria de construção civil e empreitadas de obras públicas; promoção imobiliária; compra e venda de bens imóveis.
3- São sócios da devedora João e S. P., casados entre si, residentes na Rua (...) Póvoa de Lanhoso.
4- João exercia as funções de gerente da sociedade insolvente.
5- Era João quem acordava os negócios a encetar e os seus termos, decidindo quais as relações comerciais que mantinha com terceiros, com quem tratava, emitindo cheques e contactando com Bancos, sempre que necessário.
6- Mais sendo o responsável pela gestão, administração e representação de toda a actividade exercida, cabendo-lhe também a decisão de afectação dos seus recursos financeiros à satisfação das respectivas necessidades e sobre os pagamentos aos fornecedores e credores da sociedade insolvente, a contratação de funcionários, a assinatura de documentos, a emissão de cheques e a entrega dos documentos que serviam de base à elaboração da contabilidade.
7- Não obstante a obrigação de entrega da documentação que servia de base à elaboração da contabilidade, da qual sempre teve consciência, aquele não entregou a quem incumbiu de a organizar os suportes probatórios que titulassem quaisquer movimentos financeiros.
8- Tanto que a sociedade insolvente não entregou as declarações de IRC, modelo 22, nos anos de 2012 a 2014 e 2016, apenas tendo desenvolvido a sua actividade para aqueles efeitos até 31 de Dezembro de 2012.
9- De igual forma, a sociedade insolvente, que deixou de desenvolver o seu objecto social no início de 2013, não entregou a Informação Empresarial Simplificada (IES) nos anos de 2012 a 2016.
10- Não foi apreendida qualquer contabilidade.
11- O processo principal foi encerrado por insuficiência da massa insolvente.
12- O veículo automóvel de marca Mercedes Benz, matrícula JZ pertencente à insolvente foi vendido em processo executivo dias antes da declaração de insolvência da sociedade X, Lda.
13- Já desde o início de 2013, altura em que deixou de laborar e, como tal, de produzir riqueza, que a devedora não consegue cumprir com as suas obrigações e, assim, João e S. P., porque sempre actuaram no seu nome e interesse, deveriam ter-se apresentado à insolvência.
14- As dívidas daquela sociedade (e respectivos juros de mora), que entretanto se venceram (já nos anos de 2013 a 2016) e que foram reclamadas oportunamente pelo Ministério Público, em representação da Autoridade Tributária e Aduaneira, créditos constituídos em 2014 e 2016 relativos a IRC e IUC, respectivamente, ascendem a valor superior a 2 500,00 €, e pela Segurança Social, vencidos em 2013 a 2015, ascendem a valor superior a 18 000,00 €.
15- Foram reconhecidos créditos sobre a devedora no valor global de € 109 191,67.
16- A sociedade insolvente não deposita as contas legalmente devidas desde o exercício económico de 2011 inclusive.
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B)- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Já se referiu em cima a única questão que importa apreciar e decidir.

Trata-se de saber se, como pretende o Exmo. Magistrado do Ministério Público, o período de inibição fixado ao Requerido para administrar patrimónios de terceiros, o exercício do comércio, ocupação de cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa deve ser alterado para cinco anos
Antes de entrarmos na apreciação em concreto dessa questão, importa esclarecer, em termos gerais, de que forma a Insolvência pode ser qualificada como culposa.

Decorre do disposto no art. 186 n.º 1 do CIRE que “…a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.”.

Há, porém, certos comportamentos ilícitos dos administradores das pessoas colectivas que o legislador tipificou como insolvência culposa, prescindindo do juízo sobre a culpa, os quais vêm taxativamente (1) enumerados no nº 2.

Trata-se de comportamentos que afectam negativamente, e de forma muito significativa, o património do devedor, e eles próprios apontam, de modo inequívoco, para a intenção de obstaculizar ou dificultar gravemente o ressarcimento dos credores, presumindo-se, por isso, “juris et de jure” que a insolvência é culposa.

Como se refere no AC RG de 1.10.2013 (2), “ … o preenchimento de qualquer das situações ou factos-índice previstos no n.º 2 deste artigo, determina a qualificação da insolvência como culposa, pois que da ocorrência dos mesmos estipula a lei uma presunção inilidível, juris et de jure, de culpa. O que dimana do advérbio «sempre». Por isso que seja mais correcto afirmar-se em nosso entender, que nas situações a que se faz […] referência no art.º 186º, nº 2, do CIRE, mais do que uma presunção legal, se verifica o que BAPTISTA MACHADO, “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, Almedina, págs. 108 e 109, designa por “ ficções legais ”, pois que, o que o legislador extrai a partir do facto base, não é um outro facto, mas antes uma conclusão jurídica, numa remissão implícita para a situação definida no nº 1 do art.º 186º do CIRE”.

Daí que, tal como sucede nas presunções juris et de jure não exista a possibilidade de prova em contrário, mas, ainda que fique dispensada a alegação – e consequentemente a prova – de qualquer outro facto, ficcionando a lei, desde logo, a partir da situação dada, a verificação da situação de insolvência dolosa.

Nestes termos, verificada qualquer uma das situações tipificadas (taxativamente) no n.º 2 do art. 186º do CIRE, deva o julgador, sem mais exigências, qualificar a insolvência como culposa.

De facto, provada qualquer uma das situações enunciadas nas alíneas do citado n.º 2, estabelece-se de forma automática o juízo normativo de culpa do administrador, sem necessidade de demonstração do nexo causal entre a omissão dos deveres constantes das diversas alíneas e a situação de insolvência ou o seu agravamento (3).

Aqui chegados, pode-se assim concluir que, de qualquer modo, sejam presunções juris et de jure ou factos-índice, a verdade é que o legislador, estando preenchida alguma das situações previstas no nº 2 do citado preceito legal, prescinde de uma autónoma apreciação judicial acerca da existência de conduta culposa e da sua adequação para a insolvência ou para o seu agravamento.

Destarte, a simples ocorrência de alguma das situações elencadas nas diversas alíneas do nº 2 do sobredito art. 186º conduz inexoravelmente à atribuição de carácter culposo à insolvência, ou seja, à qualificação de insolvência como culposa (4).

Esta previsão legislativa emerge da circunstância de a indagação do carácter doloso ou gravemente negligente da conduta do devedor, ou dos seus administradores, e da relação de causalidade entre essa conduta e o facto da insolvência ou do seu agravamento, de que depende a qualificação da insolvência como culposa, se revelar muitas vezes extraordinariamente difícil.

Assim, e em ordem a possibilitar essa qualificação, o legislador consagrou um conjunto tipificado (e taxativo) de factos graves e de situações que exigem uma ponderação casuística, temporalmente balizadas pelo período correspondente aos três anos anteriores à entrada em juízo do processo de insolvência.

Neste âmbito temporal, e perante a prova dos aludidos factos índice, previstos no nº 2 do citado art. 186º, a lei não presume apenas a existência de culpa, mas também a existência da causalidade entre a actuação e a criação ou o agravamento do estado de insolvência, para os fins previstos no nº 1 do art. 186º do CIRE.
Ora, perante este enquadramento legal, não existem dúvidas que se mostravam verificados os requisitos de preenchimento da al. h), do nº 2, do art. 186º do CIRE.

Assim, o entendeu o Tribunal Recorrido, acrescentando ainda que também estaria preenchida a alínea b), do nº 3, do art. 186º do CIRE (enquadramento jurídico não questionado pelo Recorrente):

“Do incumprimento da obrigação de manter contabilidade organizada ou prática de irregularidade com prejuízo relevante (artigo 186º, nº 2, alínea h))

Dispõe o artigo 186º, nº2, alínea h) CIRE que se considera sempre culposa a insolvência do devedor que não seja pessoa singular quando os seus administradores de direito ou de facto tiverem incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor.

No caso em apreço, resultou provado que o gerente da insolvente, João, não entregou desde 2012 ao contabilista da sociedade quaisquer documentos contabilísticos, o que impediu a elaboração das contas da sociedade.

Ao assim proceder, não entregando ao contabilista tal documentação, o gerente da insolvente impediu a organização da contabilidade e praticou uma irregularidade que impede a compreensão da cabal situação patrimonial e financeira da devedora insolvente.

Preencheu, assim, o pressuposto do artigo 186º, nº2, alínea h) do CIRE, incorrendo na qualificação da insolvência como culposa.

(…)
Da obrigação de elaborar contas anuais (artigo 186º, nº 3, alínea b) do CIRE)

Relativamente ao argumento de que o gerente não depositou as contas, o que impediu o controlo efectivo sobre a actividade desenvolvida, resultou provado que, efectivamente, as contas da sociedade no período em questão não foram depositadas, o que, nos termos do disposto no artigo 186º, nº3, alínea b) CIRE faz presumir a existência de culpa grave, pois tal omissão presume a lei que tem a intenção de impedir o controlo da actividade da insolvente e a sua efectiva situação patrimonial.

E existe nexo de causalidade entre a não apresentação das contas e a criação ou agravamento da situação de insolvência da sociedade, pelo que por esta factualidade podemos mover um juízo de censura de modo a considerar culposa a insolvência.

Face à factualidade dada como provada conclui-se que ao comportamento do gerente pode e deve ser movido um juízo de censura…”.
*
Aqui chegados, e tendo em conta a exposição que antecede, importa entrar directamente na questão que é colocada no presente Recurso que concerne ao juízo valorativo efectuado pelo Tribunal Recorrido, quanto à medida da afectação do gerente da Sociedade declarada Insolvente, constante da condenação proferida na al. b) da decisão de Primeira Instância.

Neste âmbito, importa, assim, ponderar a conduta do Gerente da Insolvente e a medida da sua afectação por força da qualificação da Insolvência como culposa.

Nos termos do disposto no nº 2 do art. 189º do CIRE, na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve:

a) Identificar as pessoas, nomeadamente administradores, de direito ou de facto, …, afectadas pela qualificação, fixando, sendo o caso, o seu grau de culpa.
b) Decretar a inibição das pessoas afectadas para administrarem patrimónios de terceiros, por um período de 2 a 10 anos.
c) Declarar essas pessoas inibidas para o exercício do comércio durante um período de 2 a 10 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa”
d) Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelas pessoas afectadas pela qualificação e a sua condenação na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos;
e) Condenar as pessoas afectadas a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças dos respectivos patrimónios, sendo solidária tal responsabilidade entre todos os afectados.”
A razão de ser da existência destes efeitos pessoais (5) do decretamento da insolvência (em especial das als. b) e c)) contende com a ideia de que o legislador tem “…aqui uma atitude de desconfiança quanto à actuação, na área económica, em relação a quem, pelo seu comportamento, com dolo ou culpa grave, de algum modo contribuiu para a insolvência. É, aliás, este mesmo sentimento que justifica a extensão da inibição à administração de quaisquer patrimónios de terceiros com o alcance que emerge da nova redacção a al. b)” (6).

Assim, a razão de ser subjacente à imposição desta inibição contende com a credibilidade do comércio e dos cargos de gestão cujo acesso é vedado ao atingido pela qualificação culposa da Insolvência.
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No caso concreto, o Recorrente põe em causa a aplicação que o Tribunal Recorrido efectuou daquelas alíneas b) e c).

Na verdade, o Tribunal Recorrido fixou:

“… em 3 (três) anos o período da inibição de João, para administrar patrimónios de terceiros, o exercício do comércio, ocupação de cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa…”.
O Recorrente põe em causa essa parte da decisão, levantando a questão de saber se tal período de inibição não deve ser agravado para cinco anos.

Para tanto invoca que:

a) o afectado pela qualificação, gerente da sociedade insolvente, não forneceu a contabilidade da devedora ao administrador da insolvência e, assim, não proporcionou a quem de direito a análise da mesma documentação;
b) tal comportamento impediu a percepção que deveria transmitir sobre a situação patrimonial e financeira da devedora, escondendo/disfarçando a respectiva realidade e impedindo, para além do mais, a avaliação integral da anterior existência de stocks/equipamentos, tornando-se inviável aquilatar o efectivo alcance da dissipação de património, e em que termos, designadamente a seu favor ou de terceiros com os quais mantivesse relações especiais;
c) desconhecem-se quais os activos fixos tangíveis/intangíveis da devedora, as suas existências/inventários, os saldos de caixa e as contas devedores de terceiros, para além do mais;
d) o processo foi encerrado por insuficiência da massa insolvente;
e) os credores reclamantes não viram os seus créditos (no valor global de 109 191,67 €) satisfeitos, nem sequer tendo existido o prévio pagamento das dívidas da massa insolvente que, assim, foram integralmente suportadas pelo erário público”.
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Vejamos se o Recorrente tem razão, tentando apurar os critérios legais a partir dos quais deve tal medida concreta da inibição deve ser fixada.

Numa primeira abordagem, importa ter em atenção que, na ponderação que aqui se tem de efectuar, não se pode deixar de atender a que o legislador na al. a) do nº 2 do art. 189º do CIRE estabeleceu logo que: “ … na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve: al. a) identificar as pessoas… afectadas pela qualificação, fixando, sendo o caso, o respectivo grau de culpa…”.

Ora, tem-se entendido que este critério de graduação da culpa tem precisamente relevância para fixar os períodos de inibição para a administração de património de terceiros (al. b) do citado preceito legal), ou para o exercício do comércio (al. c)) (7).

Assim, “… é certo que o texto legal omite a referência à relevância dessa graduação para as diversas consequências sobre as pessoas afectadas, Mas não é precisa grande inteligência para compreender que, na fixação do período de inibição para o exercício do comércio ou para a administração de património de terceiros, por exemplo, relevará o grau de culpa…” (8), para fixar o período respectivo de inibição (que pode ser fixado entre 2 e 10 anos).

Na verdade, julga-se que, na determinação da medida concreta do período de inibição aqui em aplicação, não pode deixar de relevar o grau de culpa do gerente da Insolvente e o contributo que essa sua conduta culposa teve para a situação de Insolvência (para a sua criação ou para o seu agravamento).
Quando o legislador se refere a grau de culpa, deve-se entender que apenas se está a referir a culpa grave ou dolosa, pois que só estas é que podem determinar a qualificação da insolvência como culposa (cfr. o que já ficou referido e o disposto no art. 186º, nº 1 do CIRE) (9).
Uma vez que o CIRE nada refere quanto às noções de dolo ou culpa grave, deverá atender-se na densificação desses conceitos às regras gerais de direito sobre esta matéria (10).

Foi esse, aliás, o raciocínio exposto pelo Tribunal Recorrido, quando, na tentativa de concretização destes critérios, desenvolveu a seguinte fundamentação:

“Ora, atenta a gravidade do comportamento da Insolvente e do requerido, e as respectivas consequências para os seus credores, face ao valor do produto obtido com a liquidação, insuficiente sequer para pagar as custas do processo, deverá ser também agravada a penalização a sofrer por tal responsável. Na realidade, consideramos a culpa do requerido de gravidade mediana, na medida em que com a não entrega dos documentos contabilísticos que permitiam ao contabilista preparar a contabilidade e apresentar as contas da sociedade, o afectado pela qualificação João impediu a análise da real situação da sociedade, contribuindo para o seu declínio.
Atendendo à gravidade mediana dos factos que resultaram provados, designadamente a culpabilidade do requerido gerente, entendo ser de fixar em três anos o período da inibição deste para administrar patrimónios de terceiros, o exercício do comércio, ocupação de cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa, nos termos do artigo 189º, nº2, alínea b) CIRE”.
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Entende, no entanto, o Recorrente que, pelas razões já enunciadas, devem ser aplicadas as inibições para administrar patrimónios de terceiros e para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa, durante o período de cinco anos.

Ora, julga-se que efectivamente tem razão, pois que os factos apurados apontam, como o próprio Tribunal Recorrido admite, para um grau de culpa de gravidade mediana (e não para um grau de culpa próximo do seu limite mínimo que acabou por ser a medida concreta de inibição decretada na decisão recorrida).

Com efeito, conforme já se referiu, nestas situações a dosimetria da medida de inibição que aqui se pretende concretizar deverá ser fixada em função do grau de culpa do gerente da Insolvente e o contributo que essa sua conduta culposa teve para a situação de Insolvência (para a sua criação ou para o seu agravamento).

No caso concreto, os elementos fácticos que devem ser ponderados são precisamente aqueles que o Tribunal Recorrido mencionou na sua decisão (que, no fundo, são os mesmos que o Recorrente também invoca).

Ou seja, a culpa medianamente grave do Gerente da Insolvente, aferida em função da sua conduta omissiva quanto à contabilidade e à apresentação de contas anuais, e as consequências que essa conduta culposa (grave) teve para os credores da Insolvente, desde logo derivadas da constatação da ausência de património, que não é susceptível sequer de responder pelas custas processuais.

Não há dúvidas, aliás, que tal conduta culposa omissiva contribuiu, de uma forma decisiva, para a falta de conhecimento, por parte dos terceiros (nomeadamente, dos credores), da verdadeira situação patrimonial da Sociedade.

Nessa medida, e também por causa desse desconhecimento, os credores reclamantes não viram os seus créditos (no valor global de 109 191,67 €) satisfeitos.
De resto, na ausência de pronúncia por parte do Requerido, não se vislumbra na matéria de facto provada qualquer elemento factual que permita atenuar este juízo de censura, pois que dela não decorre qualquer esforço da parte daquele para tentar recuperar a Sociedade requerida, no sentido de a mesma ainda cumprir as suas obrigações.

Importa concluir, assim, que a conduta do Requerido deve ser considerada grave, pois que os mais elementares deveres lhe impunham que se comportasse de forma diferente quanto à gestão do património e actividade da insolvente (apresentando, desde logo, as contas anuais- que, como é evidente, constitui um daqueles deveres mais elementares a que fazemos referência).

Nessa medida, o Requerido com essa sua conduta agravou a situação dos credores e contribuiu para a insolvência da Sociedade Requerida, o que permite a formulação de um juízo de censura compatível com a afirmação de uma culpa grave mediana, quadro fáctico que não se coaduna com uma medida concreta de inibição que seja fixada próxima do limite mínimo da moldura abstracta de inibição prevista pelo legislador.

Nesta conformidade, ponderando a gravidade mediana do grau de culpa (grave) do gerente da Insolvente, afigura-se-nos mais adequado e proporcional à conduta daquele, o período de 5 anos proposto pelo Recorrente, já que se trata da medida de inibição que se situa num grau mediano (ligeiramente abaixo da dosimetria média, que seria 6 anos), tendo em conta a moldura abstracta prevista pelo Legislador para estes casos (2 a 10 anos).

Foi, aliás, essa também a dosimetria fixada em outros casos decididos por este Tribunal da Relação, como bem indica o Recorrente (11).

Aqui chegados, importa, pois, concluir pela Procedência do Recurso interposto pelo Recorrente.

III- DECISÃO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar:

-o Recurso interposto pela Recorrente totalmente procedente e, em consequência, decide-se alterar a decisão proferida no seguinte sentido:

-“b) Fixar em 5 (cinco) anos o período da inibição de João, para administrar patrimónios de terceiros, o exercício do comércio, ocupação de cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa (art. 189º, nº 2, als. b) e c) do CIRE);”;
No mais, manter integralmente a sentença recorrida.
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Sem custas (artigo 527.º nº 1 do CPC);
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Guimarães, 20 de Setembro de 2018

Pedro Alexandre Damião e Cunha
Maria João Marques Pinto de Matos
José Alberto Moreira Dias


1. Ana Prata/ Jorge Morais de Carvalho/ Rui Simões, in “CIRE anotado”, pág. 511 dão-nos notícia que se trata de “ questão em que não há unanimidade na doutrina”, entendendo, no entanto, que a enumeração é taxativa. No mesmo sentido, Carvalho Fernandes, J. Labareda, in “ Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, pág. 610. Na jurisprudência, v., por ex., o ac. da RE de 30.10.2008 (relator: João Marques), in Dgsi.pt.
2. (relator: Maria Purificação Carvalho), in dgsi.pt,
3. Cfr., neste sentido, Acórdão do Tribunal Constitucional de 26.11. 2008, DR, 2ª Série, n.º 9, de 14.01.2009.
4. Vide, neste sentido, por todos, Carvalho Fernandes, J. Labareda, in “ Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, vol. II, págs. 14, nota 5, e 15, nota 8; Menezes Leitão, “ Direito da Insolvência ”, pág. 283-285, A. Soveral Martins, “ Um Curso de Direito da Insolvência ”, pág. 374-378 e Maria do Rosário Epifânio, “ Manual de Direito da Insolvência ”, pág. 129-131 e, ao nível da jurisprudência, por todos, AC STJ de 6.10.2011 (relator: Serra Baptista), AC RG de 5.06.2014 (relator: Estelita de Mendonça), AC RG de 30.04.2015 (relator Maria Luísa Ramos), todos in dgsi.pt.
5. Como se refere no ac. da RC de 5.2.2013 (relator: Maria José Guerra), in dgsi.pt: “As consequências da declaração de insolvência caracterizam-se pela patrimonialidade. Porém, no caso de qualificação da insolvência como culposa, aos efeitos patrimoniais da declaração de insolvência podem somar-se efeitos pessoais, quer relativamente à pessoa do devedor – se for uma pessoa física ou singular – quer no tocante aos administradores do devedor, quando este não tenha aquela qualidade – neste sentido Jorge Duarte Pinheiro, in “Efeitos Pessoais da Declaração de Insolvência”, Estudos em Memória do Professor Doutor José Dias Marques, Almedina, Coimbra, 2007, págs. 207 e ss., efeitos esses, que atingem logo direitos fundamentais e mesmo direitos fundamentais que têm por objecto bens e direitos de personalidade”.
6. Carvalho Fernandes e João Labareda, in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, p. 734. Maria Rosário Epifânio, in “Manual de direito da Insolvência”, pág. 135 defende, no entanto, que a inibição para administrar património de terceiro “… apresenta uma dupla faceta preventiva e sancionatória: por um lado, destina-se a proteger terceiros que poderiam ver os seus patrimónios prejudicados pela actuação de pessoa que não oferece a confiança necessária; por outro lado, tem um carácter repressivo, pois não se aplica às hipóteses de culpa leve…”.No mesmo sentido, Carina Magalhães, in “Incidente de qualificação da Insolvência. Uma visão geral” (Estudos de direito da Insolvência), pág. 127. Sobre a natureza deste instituto da inibição, v., por ex., o ac. da RP de 15.6.2015 (relator: Manuel Fernandes), in dgsi.pt, onde se menciona diversa Doutrina que defende que a inibição não configura “uma incapacidade em sentido técnico”, antes se trata de uma “incompatibilidade” ou “restrição à capacidade” pela qualificação de insolvência como culposa.
7. V., por ex., os Acs. do Tribunal da Relação de Coimbra de 5.02.2013 (Relator: Maria José Guerra), in Dgsi.pt onde se defende que “na ponderação do período de inibição a fixar nos termos de tal normativo legal deve levar-se em conta a gravidade da conduta da pessoa afectada com a qualificação culposa da insolvência” e de 2.6.2015 (relator: Inês Moura) que esclarece que: “A inibição mínima de 2 anos para o exercício do comércio deve ter lugar quando o grau de culpa é menor e a máximo de 10 anos para um grau de culpa máximo. Numa situação de culpa grave não é adequado situar a inibição para o exercício do comércio no mínimo legal”. Também Maria do Rosário Epifânio, in “Manual de Direito da Insolvência”, pág. 131 defende que “… a declaração de inibição para o exercício do comércio não tem critérios previstos na lei, tendo a doutrina entendido que o juiz deverá ter em conta a gravidade do comportamento e o seu contributo para a situação de insolvência”.
8. Ana Prata/ Jorge Morais de Carvalho/ Rui Simões, in “CIRE anotado”, pág. 528.
9. Quanto aos pressupostos da responsabilidade civil, neste âmbito, esclarece Maria Rosário Epifânio, in “ Manual do Direito da Insolvência”, págs. 140 que: “ Facto voluntário (é o facto que serviu de fundamento à qualificação da insolvência como culposa); a culpa (art. 186º, nº 1 faz depender a qualificação da insolvência como culposa expressamente de dolo ou culpa grave; a culpa presume-se nos nº 2 e 3); dano (não satisfação dos créditos da insolvência); nexo de causalidade entre o facto e o dano (criação ou agravamento da situação de insolvência em consequência da actuação- art. 186º, nº1, presumido no nº 2); ilicitude (os factos que agravam ou criam a situação de insolvência são ilícitos porque violam disposições legais destinadas a proteger interesses alheios, nos termos do art. 483º, nº1 do CC)”.
10. V., neste sentido, Carvalho Fernandes e João Labareda, in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, vol. II, pág. 14.
11. V. os acs. da RG de 8.11.2017 (relator: Maria dos Anjos Nogueira)- em que com factos similares, a medida de inibição aplicada ascendeu a 4 anos e 6 meses, totalizando os créditos não pagos 58 663,52 €); de 26.10.2017 (relator: Alexandra Rolim Mendes) – em que com factos similares, a medida de inibição aplicada ascendeu a 5 anos, totalizando os créditos não pagos 25 113,92 €); e de 18.12.2017 (relator: Maria Amália Santos) – em que com factos similares, a medida de inibição aplicada ascendeu a 5 anos, totalizando os créditos não pagos 451. 309,20 €) - arestos todos disponíveis in Dgsi.pt.