Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
303/18.8T8PTL.G1
Relator: ANA CRISTINA DUARTE
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
INTERRUPÇÃO DA PRESCRIÇÃO
SERVIÇO MILITAR
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/15/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Por meio da prescrição, uma vez decorrido o lapso de tempo fixado na lei para o efeito, e verificando-se as demais condições por esta exigidas, extinguem-se obrigações por não se ter exigido antes o seu cumprimento.
II- Traduzindo-se a prescrição num facto extintivo do direito do autor, a sua alegação e prova caberá ao réu.
III- Já a eventual suspensão ou interrupção da prescrição, deverá ser alegada e provada pelo autor.
IV- A prescrição não começa nem corre contra militares em serviço, durante o tempo de guerra ou mobilização, dentro ou fora do país, considerando a impossibilidade ou grave dificuldade de exercício do direito dos militares nessas circunstâncias.
V- A interrupção da prescrição proveniente do reconhecimento do direito, inutiliza todo o tempo decorrido anteriormente, mas começa a correr novo prazo a partir do acto interruptivo.
VI- Para que o abuso de direito exista, é necessário que o titular dele manifestamente exceda os limites que lhe cumpre observar, impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do próprio direito exercido.
VII- A seguradora que pagou pequenas despesas numa fase inicial do processo relativo a acidente de viação (sem que se tenham provado as datas dos pagamentos), não incorre em abuso de direito por vir invocar a prescrição do direito dos autores, quando estes deixaram passar mais de sete anos sobre a data do acidente para intentar a ação respetiva.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

T. J. e M. G. deduziram ação declarativa contra “X, Companhia de Seguros, SA” pedindo que a ré seja condenada a pagar ao autor T. J. uma indemnização global não inferior a € 22.943,00, sendo € 19.000,00 a título de danos não patrimoniais e € 3.943,00 a título de danos patrimoniais e à autora M. G. uma indemnização global não inferior a € 5.969,00, tudo acrescido de juros, à taxa legal contados desde a data da citação da ré até efectivo e integral pagamento. Para o efeito alegaram que a viatura que o autor conduzia, propriedade da autora, sua avó, foi embatida por trás, por outra viatura, cujo proprietário havia transferido a responsabilidade civil para a ré, quando efectuava manobra de mudança de direção para a esquerda. Que o condutor do veículo segurado foi o exclusivo responsável pelo acidente e que, do mesmo, resultaram os danos patrimoniais e não patrimoniais que identifica.
A ré contestou, excecionando a prescrição do direito dos autores e impugnando, por desconhecimento, toda a matéria alegada.
Os autores responderam, pugnando pela improcedência da exceção de prescrição, em virtude do prazo ser de cinco anos e considerando as suspensões e/ou interrupções que entretanto ocorreram em virtude do procedimento criminal e do facto de o autor ter prestado serviço militar no Exército Português, para além da ré ter reconhecido o direito dos autores.
Foi elaborado despacho saneador, definido o objeto do litígio e elencados os temas da prova.
Teve lugar a audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença que, julgando prescrito o direito indemnizatório dos autores, julgou improcedente a ação e absolveu a ré dos pedidos.

Os autores interpuseram recurso, tendo finalizado as suas alegações com as seguintes
Conclusões:

1:º - A discordância dos recorrentes incide, por um lado, sobre um determinado segmento da decisão da matéria de facto dada como não provada e sobre a decisão da matéria da prescrição.
2.º - Os recorrentes consideram inquestionável que estão demonstrados nos autos e devem manter-se todos os factos que foram dados como provados na sentença recorrida.
3.º - Pelas razões aduzidas acima no capítulo A – A DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO, no seu n.º 2, alíneas a), b), c) e d), devem excluir-se do elenco dos factos não provados aqueles que constam das suas alíneas e), g), j) e p).
4.º - Pelas mesmas razões, ao contrário do decidido e em sua substituição, deverá ser dada como provada a seguinte matéria factual:
a) Alínea e) dos factos não provados.

Deverá antes ser dado como provado o seguinte facto:
- À data do acidente o autor T. J. era um jovem saudável, sem qualquer defeito físico ou estético visível.
b) Alínea g) – perda de salários dos factos não provados. Deverão ser dados como provados os seguintes factos:
1 - As lesões físicas sofridas pelo Autor, em consequência do acidente objecto dos autos determinaram-lhe:
. o período de défice funcional temporário parcial em 133 dias
- o período de repercussão temporária da actividade profissional total em 35 dias
- o período de défice funcional temporário total em 5 dias
2 - Na sequência do sinistro, o Autor T. J. sofreu o prejuízo de 250,00 € de perda de salários.
c) Alínea j) dos factos não provados.

Deverá ser dado como provado o seguinte facto:
- O valor comercial do veículo automóvel da Autora, sinistrado, na altura do acidente era de 1.956,00.
d) Alínea p) dos factos não provados.

Deverá ser dado como provado o seguinte facto:
- A privação do veículo sinistrado acarretou à Autora um prejuízo de 2.500,00 €
5.º - Salvo o devido respeito e melhor opinião, afigura-se aos recorrentes que a M.ª Juíza faz uma interpretação e consequente aplicação demasiado restritiva da norma do artigo 319.º do Código Civil e ainda que não caracterizou nem qualificou devidamente a situação militar do autor T. J. e não determinou correctamente o seu enquadramento nessa norma.
6.º - O autor T. J. não invoca apenas a condição de militar, nem uma carreira comum, mas um período específico, temporário, limitado, de uma sua formação militar excepcional, que nem sequer teve sequência.
7.º - Um período em que esteve num serviço altamente selectivo, diferenciado e excepcional de treino de “Operações Especiais”, que é um corpo de tropas especiais e uma fase especial dessa mesma tropa, sujeito a um grau muito elevado de exigência, esforço, entrega, sacrifício, totalmente absorvente, competitivo e desgastante.
8.º - Esse serviço implicou ainda o afastamento e a permanência obrigatórios do autor T. J. deslocado do seu meio, da área da sua residência e de conforto.
9.º - Entende-se que a prerrogativa consagrada na disposição legal em questão deverá ser entendida como ditada pelas exigências de determinados regimes ou períodos do serviço militar, excepcionais, que são limitativos das actividades normais de um cidadão comum., como sucedeu manifestamente com o autor T. J..
10.º - Por isso, diferentemente da sentença recorrida, deverá decidir-se que o disposto no artigo 319.º do Código Civil é extensivo e aplicável às situações como a do Autor, em que prestou serviço militar excepcional, no Exército Português no período com a especialidade de “Operações Especiais” tendo sempre como Unidade de Colocação o Centro de Tropas de Operações Especiais, em Lamego.
11º - Consequentemente, deve atender-se às datas e ao período de tempo em que o autor T. J. prestou esse serviço e, em função das mesmas, concluir-se que não ocorreu o termo do prazo de prescrição, uma vez que a presente acção foi interposta e a Ré citada ainda no seu decurso, precisamente nos termos em que os Autores peticionam.
12.º - Por conseguinte, deve ser revogada a sentença recorrida na medida em que, nesta matéria decidiu de forma diferente e julgou improcedente a presente acção com base na verificação da prescrição do exercício do direito dos Autores.
13.º - Os Autores não demoraram, não se atrasaram, não se desleixaram a reclamar o seu direito a ser indemnizados e nunca deixaram de o fazer até este momento, com insistência, por vários meios, nomeadamente através da interpelação directa da Ré, através da instauração de um processo crime, através de negociações com a Ré e só porque estas se goraram é que se viram obrigados a instaurar a presente acção.
14.º - Resulta inequívoca e sobejamente da matéria dada como provada que a ré X aceitou a culpa do seu segurado na ocorrência do acidente, reconheceu o direito dos Autores serem indemnizados, aceitou a sua responsabilidade em indemniza-los, ofereceu valores nesse sentido e pagou algumas despesas menores.
15.º - Essa sua posição foi, e é, geradora de confiança, segurança e de legitimas expectativas dos Autores, estando convencidos da seriedade dessa posição e compromisso, em termos definitivos e irrevogáveis, porque a Ré pautava a sua actuação por uma ética de responsabilidade e de X.
16.º - E também convencidos que o Tribunal iria decidir e teria de decidir exigindo a concretização dessa ética da Seguradora e a consequente salvaguardando das suas legítimas expectativas.
17.º Porém, a ré X, de forma oportunista e contraditória veio aos autos refugiar-se na invocação da prescrição do direito dos autores, para negar o pagamento, violar o seu compromisso e trair a confiança que gerou.
18.º - Essa actuação da Ré constitui um exercício desleal e intolerável do direito de invocar a prescrição que invocaram, de modo que excede manifestamente os limites impostos pela boa fé e os bons costumes, consubstanciando indubitavelmente um comportamento de venire contra factum proprium.
19.º - O que significa, em suma, que a ré actua com abuso de direito e o assentimento e consequência que a sentença recorrida confere a essa actuação constitui uma violação do disposto no artigo 334.º do Código Civil.
20.º - No caso de abuso do direito o titular deve ser tratado como se não tivesse tal direito. - V.p.f. Vaz Serra em Abuso do Direito (em matéria de responsabilidade Civil), Boletim do Ministério da Justiça, n.º 85, pág. 253.
21.º - Consequentemente, não deve ser reconhecido e admitido à ré X a exercício do direito a essa invocação e, ao contrário do decidido julgar-se a acção procedente e provada.
22.º - Em consequência dessa procedência deverão ser fixados os valores indemnizatórios a pagar pela Ré, aos Autores, para ressarcimento dos danos patrimoniais e não patrimoniais, nos termos peticionados e tendo em consideração todos os factos dados como provados, quer aqueles que desse modo já estão qualificados na sentença recorrida, quer aqueles que os recorrentes reclamam ser também tidos como tais, nas presentes alegações e acima enunciados.
23.º - Salvo o devido respeito, a sentença recorrida, fez uma indevida apreciação da matéria de facto em relação aos factos acima descriminados e fez uma indevida interpretação e aplicação do disposto nos artigos 319.º e 334.º do Código Civil.

Nestes termos e nos melhores de direito e com o douto suprimento de V.ªs Ex-ªs. deve ser dado provimento ao presente recurso e, assim:
- revogar-se a sentença recorrida e substituir-se por outra decisão que julgue a presente acção procedente por provada, com todas as legais consequências, designadamente:
- a condenação da ré X a pagar aos Autores indemnização para ressarcimento dos danos patrimoniais e não patrimoniais que sofreram, e peticionaram, tendo em consideração todos os factos dados como provados, quer aqueles que desse modo já estão qualificados na sentença recorrida, quer aqueles que os recorrentes reclamam dever ser também tidos como tais, nas presentes alegações,
- a condenação da ré X no pagamento das custas e procuradoria dos autos.

A ré contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.

As questões a resolver prendem-se com a impugnação da decisão de facto e com a prescrição, aí se incluindo a sua eventual suspensão em virtude do exercício de funções militares por parte do autor e a análise do abuso de direito na invocação da prescrição por parte da ré que, eventualmente, teria reconhecido o direito dos autores, bem como com a fixação dos montantes indemnizatórios no caso de se concluir que o direito não está prescrito.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Na sentença foram considerados os seguintes factos:

Factos provados:

1) No dia 07.03.2011, pelas 16:45 horas, na Rua …, sita na freguesia e concelho de Ponte de Lima, ocorreu um sinistro rodoviário, no qual foram intervenientes o veículo ligeiro de passageiros, marca Peugeot, modelo 206, com a matrícula OR, à data propriedade da autora M. G. e conduzido pelo autor T. J. e o veículo ligeiro de passageiros marca Audi, modelo A4, com a matrícula TH, conduzido por D. G..
2) No local do sinistro, à data da ocorrência do mesmo, a via configurava uma recta com dois sentidos de marcha, com o traçado recto e com boa visibilidade.
3) O local onde ocorreu o sinistro era, à data da ocorrência do mesmo, ladeado de edifícios, casas de habitação, estabelecimentos comerciais e de serviços, situando-se no interior de uma localidade.
4) Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas, o autor T. J. conduzia o veículo com a matrícula TH no sentido Ponte de Lima/Viana do Castelo, seguindo pela metade direita da faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha.
5) Na retaguarda do referido veículo conduzido pelo autor T. J., com a matrícula OR, e no mesmo sentido de marcha Ponte de Lima/Viana do Castelo, seguia o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula TH, conduzido por D. G..
6) Ao chegar a um cruzamento, o autor T. J. pretendeu mudar de direcção para a sua esquerda, ligou o indicador luminoso de mudança de direcção respectivo, diminuiu a velocidade e aproximou-se com antecedência do eixo da via, por onde passou a circular.
7) Quando se preparava para concretizar a referida manobra, o veículo com a matrícula OR foi embatido na sua parte traseira pela parte frontal do veículo com a matrícula TH.
8) A velocidade máxima legal permitida no local onde ocorreu o embate era de 50 quilómetros/hora.
9) O condutor do veículo com a matrícula TH não conseguiu imobilizá-lo no espaço livre disponível à sua frente e embateu no veículo com a matrícula OR, conduzido pelo autor T. J..
10) Nas circunstâncias descritas, o condutor do veículo com a matrícula TH circulava de forma desatenta e descuidada.
11) Na sequência do descrito sinistro rodoviário e pelos factos que lhe deram origem, correu termos nos Serviços do Ministério Público de Ponte de Lima, o processo de inquérito n.º 59/11.5PAPTL, no qual foi constituído arguido o condutor do veículo com a matrícula TH, D. G..
12) No referido processo de inquérito foi proferido despacho de acusação contra o aí arguido D. G. em 26.01.2012, imputando-lhe a prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punido nos artigos 15.º, alínea b), 148.º, n.º 1 e na sanção acessória do artigo 69.º, n.º 1, alínea b), todos do Código Penal.
13) Foi ainda proferido, no mesmo processo, despacho de suspensão provisória do processo, em 21.06.2012, tendo os autos sido arquivados na sequência de despacho proferido a 19.10.2012, o qual foi, nessa mesma data, notificado ao ora autor e aí ofendido T. J..
14) À data do sinistro, a companhia de seguros ora ré havia assumido a responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros emergentes da circulação do veículo automóvel com a matrícula TH, através de contrato de seguro titulado pela apólice n.º …..93.
15) Na data do sinistro o autor T. J. tinha 21 anos de idade.
16) Na sequência do descrito embate, o autor T. J. sofreu traumatismo facial com esfacelo complexo da asa do nariz à direita, com perda de substância e atingimento cartilaginoso.
17) Tais lesões determinaram-lhe quinze dias para a consolidação médico-legal.
18) E delas resultou uma cicatriz com 1x0,5 centímetros, localizada na asa direita do nariz, visível e deformante.
19) Para melhorar as lesões que sofreu o autor T. J. teve de sujeitar-se a duas intervenções de cirurgia plástica e consequentes internamentos.
20) Todavia não acabaram com a marca que ainda subsiste no seu nariz.
21) Logo após o sinistro, o autor T. J. foi conduzido de ambulância ao Hospital de Ponte de Lima, seguiu depois para o Hospital de Viana do Castelo, onde foi suturado.
22) Depois foi intervencionado, tomou medicação e recebeu assistência em vários locais, designadamente, no Centro de Saúde de Ponte de Lima, na Clínica ... em Viana do Castelo e no Hospital Particular .....
23) Na sequência das descritas lesões, o autor T. J. vivenciou um sofrimento físico e psíquico fixável no grau 3, numa escala de sete graus de gravidade crescente.
24) Fruto da cicatriz resultante das lesões que sofreu, padece o autor T. J. de um dano estético fixável no grau 3, numa escala de sete graus de gravidade crescente.
25) Com o acidente o T. J. temeu pela sua integridade física, sofreu um enorme susto e trauma e com os ferimentos, a doença, os tratamentos, as deslocações e permanência nas clínicas e hospitais, com a paralisação laboral, com todas as diligências que se viu obrigado a fazer, relacionadas com o caso, sofreu dores, mal-estar, desgosto, preocupação, ansiedade, receio e limitações na sua vida.
26) A companhia de seguros ora ré pagou ao autor T. J. algumas despesas de farmácia, deslocações e taxas moderadoras.
27) À data do sinistro, o autor T. J. estava empregado, pertencendo ao quadro permanente, com a categoria de Operador de 2.ª, na empresa X – Lojas Alimentares, auferindo o vencimento mensal ilíquido de € 409,38.
28) O autor T. J. despendeu com os tratamentos que teve que realizar na sequência das descritas lesões, as seguintes despesas médicas:
1. € 1.075,84 – intervenção cirúrgica na Clínica Médica ... – Saúde e Bem Estar, Lda.;
2. € 347,90 – consulta de cirurgia plástica e reconstrutiva na Clínica Médica ... – Saúde e Bem Estar, Lda.;
3. € 75,00 – consulta de cirurgia plástica e reconstrutiva na Clínica Médica ... – Saúde e Bem Estar, Lda.;
4. € 75,00 – consulta de cirurgia plástica no Hospital Particular ....; 5. € 8,26 – medicamentos.
29) O veículo automóvel sinistrado de marca Peugeot, modelo 206, tinha 1124 cms3 de cilindrada, tinha os extras de tecto de abrir eléctrico, vidros eléctricos das portas da frente.
30) Era um carro destinado ao uso da família.
31) Ficou inutilizado após o acidente.
32) A companhia de seguros ora ré considerou a situação do veículo ligeiro de passageiros, marca Peugeot, modelo 206, com a matrícula OR como perda total, em 15.03.2011, nos termos constantes do documento junto aos autos a fls. 70 e 71, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
33) A autora M. G. suportou com o aluguer de um veículo de substituição, entre o período de 09.03.2011 e 21.03.2011, a quantia de € 369,00.
34) Na data do sinistro a autora M. G. era doméstica e o marido era reformado, sendo o respectivo agregado familiar ainda composto por um filho do casal, com incapacidade mental, uma nora (mãe do autor T. J.), desempregada e com dependência alcoólica, um neto (irmão do autor T. J.), cego, além do autor T. J..
35) A autora M. G. necessitava de veículo automóvel para acorrer a todas as necessidades próprias e do seu agregado familiar.
36) O autor T. J. prestou serviço militar no Exército Português, em regime de contrato, no período compreendido entre 11.07.2011 a 23.05.2017, com a especialidade de “Operações Especiais”, tendo sempre como Unidade de Colocação o Centro de Tropas de Operações Especiais, em Lamego.
37) A presente acção foi proposta a 16.03.2018.
38) A ré foi citada para a presente acção a 20.03.2018.
*

Factos não provados:

a) No local do sinistro o piso era em betão, estava seco e em bom estado de conservação.
b) Antes do embate, o condutor do veículo automóvel com a matrícula TH fez uma travagem brusca e forte.
c) O veículo com a matrícula TH circulava a uma velocidade não inferior a 70 quilómetros/hora.
d) Na ocasião do sinistro, o veículo com a matrícula TH circulava com o conhecimento, autorização e sob a direcção efectiva do seu proprietário, J. C..
e) À data do acidente o autor T. J. era um jovem robusto, bem constituído, saudável, sem qualquer defeito físico ou estético visível.
f) O autor T. J. sofreu um coeficiente de desvalorização de 0,05.
g) Na sequência do sinistro, o autor T. J. sofreu os seguintes prejuízos:
1. € 250,00 – pela perda de salários;
2. € 302,00 – com 14 deslocações de Ponte de Lima a Viana do Castelo (60 kms cada), ao Hospital de …, à Clínica ..., ao Hospital Particular;
3. € 144,00 - com 2 deslocações de Ponte de Lima ao Porto, para consultas;
4. € 590,00 – com 4 deslocações de Lamego (onde o autor T. J. prestava serviço militar) a Viana do Castelo (410 kms cada) para exames e consultas.
h) O veículo automóvel sinistrado de marca Peugeot, modelo 206, era a gasolina, tinha os extras de jantes de liga leve, faróis de nevoeiro, fecho central das quatro portas e antes do acidente tinha sido objecto de uma revisão geral que custou € 2.494,74.
i) Era um carro guardado em garagem, bem tratado e em muito bom estado de conservação.
j) O seu valor comercial na altura do acidente era de € 3.500,00.
k) Os salvados foram vendidos por € 400,00.
l) O produto da venda dos salvados não foi suficiente para a compra de outro veículo minimamente capaz e garantido e a requerente não tinha condições económicas para o efeito.
m) O marido da autora M. G. recebia uma pensão mensal no valor de € 730,00.
n) O valor dos abonos e subsídios recebidos por essas pessoas com limitações ascendia a cerca de € 600,00.
o) A autora M. G. só conseguiu reunir condições para o obter ao final de seis meses.
p) A privação de veículo sinistrado acarretou-lhe um prejuízo não inferior a € 2.500,00.
q) A companhia de seguros ora ré manteve comunicações com os autores tendo em vista a regularização do sinistro até meados do ano de 2013.

Os apelantes põem em causa a decisão da matéria de facto, designadamente, quanto às alíneas e), g), j) e p) dos factos não provados.
Relativamente a estas alíneas, a fundamentação da decisão apenas se refere expressamente à alínea j), para referir que a declaração junta aos autos a fls. 69 (emitida por um stand de venda de automóveis) não mereceu credibilidade.
Os apelantes entendem que, pelo menos, deveria ter sido considerado o documento emitido pela ré (fls. 70 e 71 dos autos) que foi validado na decisão recorrida para dar como provados os factos dos números 31 e 32, e onde se aceita que o veículo automóvel sinistrado tinha o valor de € 1.956,00.
O teor do documento de fls. 70 e 71 foi dado como integralmente reproduzido no facto provado n.º 32
Ora, analisado tal documento, verifica-se que aí vem dito que “sem que tal envolva qualquer compromisso ou reconhecimento de responsabilidade, foi já possível obter o valor do veículo de € 1.956,00”, esclarecendo-se que “o valor do veículo, vulgarmente conhecido por valor venal, resultou da consulta ao mercado da especialidade e da consulta às tabelas de desvalorização em uso nesta Companhia”.

Assim, os apelantes têm razão, devendo ser eliminada a alínea j) dos factos não provados e acrescentado aos factos provados o número 31-A, com a seguinte redação:
“O valor comercial do veículo da autora, na altura do acidente, era de € 1.956,00”

Relativamente aos demais factos postos em causa pelos apelantes, a decisão de facto é omissa, limitando-se a dizer que “a factualidade descrita resultou não demonstrada em face da total ausência de produção de prova que se revelasse suscetível de a demonstrar com o mínimo de objectividade e segurança”.

Relativamente à alínea e) dos factos não provados, entendemos que existem nos autos elementos de prova suficientes para dar como provado que, à data do acidente, o autor era um jovem saudável, sem qualquer defeito físico ou estético visível, designadamente, os relatórios de perícia médico-legal e o facto de, quatro meses após o acidente, ter sido incorporado no Exército Português, prestando serviço militar, em regime de contrato, com a especialidade de “Operações Especiais”, tendo sempre como Unidade de Colocação o Centro de Tropas de Operações Especiais, em Lamego.

Assim, decide-se eliminar a alínea e) dos factos não provados, acrescentando-se aos factos provados o número 15-A, com o seguinte teor:
“À data do acidente, o autor T. J. era um jovem saudável, sem qualquer defeito físico ou estético visível”.

Quanto à alínea g) dos factos não provados, na parte relativa à perda de salários, também consideramos que o apelante tem razão.
Com efeito, resulta da primeira perícia médico-legal efetuada (a segunda perícia, em que se analisaram as consequências das cirurgias de correção plástica, é irrelevante, para o caso, uma vez que decorreram em 31/03/2012 e 11/01/2013, numa altura em que o autor já prestava serviço militar no Exército Português, não se tendo averiguado nos autos, qual o montante auferido nessa qualidade) que, apesar de ter tido alta hospitalar no mesmo dia do acidente, lhe foi fixado um período de repercussão temporária na atividade profissional total de 15 dias, o que, considerando o salário mensal que auferia à data - € 409,38 – dará um prejuízo superior aos peticionados € 250,00 de perda de salário.

Assim, decide-se eliminar o ponto 1 da alínea g) dos factos não provados, acrescentando-se aos factos provados o número 27-A, com o seguinte teor:
“Na sequência do sinistro, o autor T. J. sofreu o prejuízo de € 250,00 de perda de salários”

Quanto à alínea p) dos factos não provados, não se vê necessidade de qualquer alteração, uma vez que a redação pretendida – que a privação do veículo sinistrado acarretou à autora um prejuízo no valor de € 2.500,00 – é conclusiva, devendo a conclusão do eventual prejuízo retirar-se da análise dos factos provados respetivos, designadamente, dos números 30, 31, 34 e 35.
Procede, assim, parcialmente, nos termos expostos, a impugnação da decisão de facto.

A questão seguinte prende-se com a prescrição.
Por meio da prescrição, uma vez decorrido o lapso de tempo fixado na lei para o efeito, e verificando-se as demais condições por esta exigidas, extinguem-se obrigações por não se ter exigido antes o seu cumprimento.
Logo, são seus requisitos: a existência de um direito, o seu não exercício por parte do respectivo titular, e o decurso do tempo
Este instituto fundamenta-se na negligência do titular de um direito em exercitá-lo durante o período de tempo indicado na lei, e que a leva a presumir que ele tenha querido renunciar ao direito; ou que, pelo menos, o torna indigno da sua protecção.
“Por outro lado, e ao mesmo tempo que actua como estímulo e pressão educativa sobre os titulares dos direitos (no sentido de não descurarem o seu exercício, quando não querem abdicar deles), o instituto de prescrição salvaguarda ainda interesses de ordem pública, nomeadamente de certeza e segurança jurídicas. Com efeito, o titular do direito que, negligentemente, não o exerceu, permitiu a constituição, e o prolongamento por muito tempo, de situações de facto, sobre as quais se criaram expectativas e se organizaram planos de vida; e contribuiu, outrossim, para que a prova do alegado devedor que, porventura, já tenha cumprido, se tornasse muito mais difícil, senão mesmo impossível.
Logo, pela prescrição atende-se não só à probabilidade séria, baseada na experiência, de que uma pretensão formulada com base num facto alegadamente constitutivo, ocorrido há um lapso de tempo relevante, nunca se tenha verdadeiramente verificado (ou se tenha, entretanto, extinguido), como se atende ainda, quando assim não seja, à negligência do respectivo titular (que só poderá imputar a si próprio o prejuízo resultante da natureza intrinsecamente injusta deste instituto)” – cfr. Acórdão da Relação de Guimarães de 10/10/2019, processo n.º 1414/18.5T8CHV.G1, in www.dgsi.pt.
Constituindo a prescrição uma excepção peremptória, por se traduzir num facto extintivo do direito do autor (artigo 576.º, n.º 1 e n.º 3 do CPC), a sua alegação (dado não ser de conhecimento oficioso - art. 303.º do CC) e prova caberá ao réu (conforme art. 342.º, n.º 2 do CC).
Contudo, já a eventual suspensão ou interrupção da prescrição, deverá ser alegada e provada pelo autor (neste sentido, Acórdão da RL, de 18.06.2019, José Capacete, Processo n.º 16681/18.6T8LSB.L1-7, in www.dgsi.pt).

A ré excecionou a prescrição do direito dos autores, em virtude de à data da citação – 20/03/2018 – haverem já decorrido mais de cinco anos desde a data da ocorrência dos factos (07/03/2011).
Não há dúvida que, no caso dos autos, consubstanciando os factos subjacentes ao direito indemnizatório dos autores, a prática de crime de ofensa à integridade física por negligência, com acusação proferida contra o condutor do veículo seguro na ré, é aplicável o prazo de prescrição de cinco anos, nos termos do disposto nos artigos 498.º, n.ºs 1 e 3 do Código Civil e 148.º, n.º 1 e 118.º, n.º 1 c), ambos do Código Penal.

Na sentença recorrida considerou-se que o prazo de prescrição não se suspendeu durante o período em que o autor T. J. prestou serviço militar, o que havia sido invocado por este em resposta à exceção aduzida pela ré.
Vejamos.
Conforme resulta dos factos provados “O autor T. J. prestou serviço militar no Exército Português, em regime de contrato, no período compreendido entre 11.07.2011 a 23.05.2017, com a especialidade de “Operações Especiais”, tendo sempre como Unidade de Colocação o Centro de Tropas de Operações Especiais, em Lamego”.
Nos termos do disposto no artigo 319.º do Código Civil “A prescrição não começa nem corre contra militares em serviço, durante o tempo de guerra ou mobilização, dentro ou fora do país, ou contra as pessoas que estejam, por motivo de serviço, adstritas às forças militares”.
Este artigo tem como pressuposto a impossibilidade ou grave dificuldade de exercício do direito dos militares que, encontrando-se a prestar serviço militar em casos de guerra ou mobilização, se vêm impedidos ou com dificuldades acrescidas em defender judicialmente os seus direitos, motivo pelo qual, nessas situações, a prescrição não começa nem corre.
A suspensão justifica-se “como um paliativo face aos efeitos extintivos da prescrição do direito, com fundamento em valores legais, sociais ou morais superiores ao mero interesse inter-partes ou então, em cedência a outros institutos legais positivados no CC, como o casamento, a boa-fé, a família, a confiança em determinadas relações, determinadas situações que dificultem objetiva ou subjectivamente, o accionamento oportuno do seu direito” – R.C.Silva in C.C. Anotado, Almedina, p388, nt. 3 ao art.318 (citado em tese de mestrado de Pedro Miguel Cândido de Vasconcelos “As causas da suspensão da prescrição em Direito Civil” – Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Direito, Escola do Porto, 2018https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/26452/1/tese%20mestrado%20pdf-A.pdf.
Conclui este autor pelo contra balanceamento entre a sanção da inércia do credor – algo que o legislador muito deseja evitando acções judiciais e entupindo os tribunais – e a necessária proteção, por interesse público, de circunstâncias, ainda que temporárias, que impossibilitem ou tornem inexigível o exercício atempado dos direitos.
Nesta tese defende-se que, para além do tempo de guerra, deve considerar-se o tempo de mobilização militar em caso de compromissos de Estado fora do território nacional e comissões de serviço de serviço militar – aqui incluindo a G.N.R., força militar sobre a tutela do ministério da defesa, ou policiais – vd., a polícia marítima no Mediterrâneo para controlo de migração ilegal de refugiados.
Aí se conclui que o motivo que subjaz nesta norma é sossegar os militares e as pessoas ligadas ao serviço militar e assegurar que durante o tempo de guerra ou mobilização não vão perder o seu direito. “Estando em “luta acesa” num teatro de guerra a milhares de km de Portugal seria muito difícil ter a mente limpa para acionar judicialmente o devedor. Pondere-se o caso do militar ter sido capturado pelo inimigo e seria virtualmente impossível agir em tribunal contra quem lhe deve um crédito. Daí que a existência desta cláusula tem toda a pertinência na defesa do interesse do militar bem como no interesse público”.
Do que fica dito resulta que o autor não poderia beneficiar desta suspensão da prescrição. Se é certo que prestou serviço militar no Exército Português e num serviço “altamente selectivo, diferenciado e excecional”, como alega, a verdade é que, durante esses anos, esteve sempre colocado no Centro de Tropas de Operações Especiais em Lamego e nunca em qualquer situação de guerra, mobilização ou comissão de serviço militar no exterior, que lhe tivessem dificultado ou impossibilitado o exercício dos seus direitos.
Daí que consideramos não lhe ser aplicável o disposto no artigo 319.º do Código Civil, assim improcedendo, nesta parte, a apelação.

A outra questão que os apelantes colocam prende-se, de igual modo, com a prescrição do seu direito, decretada pelo tribunal de 1.ª instância.
Entendeu-se na sentença recorrida que, apesar de os autores terem logrado provar que a ré pagou algumas despesas de farmácia, deslocações e taxas moderadoras, o que exprime um reconhecimento por parte da ré do direito indemnizatório do autor T. J. (artigo 325.º, n.º 1 do Código Civil), não conseguiram os autores demonstrar (e a eles cabia esse ónus) em que concretas datas ocorreram tais pagamentos. Ora, tendo a interrupção do prazo de prescrição por efeito a inutilização de todo o tempo decorrido anteriormente e começando a correr novo prazo de prescrição a partir do acto interruptivo (artigo 326.º, n.º 1 do Código Civil) “para que pudesse revelar-se eficaz e relevante a invocação pelos autores da interrupção do prazo de prescrição, impunha-se que os mesmos demonstrassem em que concreta data ocorreram os aludidos pagamentos efetuados pela ré ao autor ou, mais concretamente, que demonstrassem que à data da citação da ré, não havia ainda decorrido o prazo de cinco anos desde a data em que a ré fez os referidos pagamentos ao autor”.

Vêm, agora, os apelantes invocar o abuso de direito.
Entendem que a posição da ré, ao aceitar a culpa do seu segurado e ao reconhecer o direito dos autores serem indemnizados, oferecendo valores nesse sentido e pagando algumas despesas menores, “foi geradora de confiança, segurança e legítimas expectativas dos autores, convencidos da seriedade dessa posição e compromisso em termos definitivos e irrevogáveis”, pelo que, ao vir agora refugiar-se na invocação da prescrição do direito dos autores, para negar o pagamento, está a violar o seu compromisso e a trair a confiança que gerou, sendo a sua atuação ilegítima e excedendo os limites impostos pela boa-fé e os bons costumes, atuando com abuso de direito.
Na sua contra-alegação, a ré vem dizer que se trata de uma questão nova, nunca suscitada em 1.ª instância, pelo que não pode ser conhecida por este tribunal de recurso.
Trata-se, com efeito, de uma questão nova e é sabido que “a demanda do tribunal superior está circunscrita às questões já submetidas ao tribunal de categoria inferior”. Contudo, o tribunal pode e deve apreciar questões de conhecimento oficioso, que tenham sido, ou não, suscitadas, entre elas, o abuso de direito – cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, pág. 25.

Analisemos, então, a questão da prescrição, em face do reconhecimento do direito dos autores por parte da ré, sob o prisma do abuso de direito.
Nos termos do disposto no artigo 325.º do Código Civil, a prescrição é interrompida pelo reconhecimento do direito, efetuado perante o respetivo titular por aquele contra quem o direito pode ser exercido. Releva, também, nos termos do n.º 2 deste artigo, o reconhecimento tácito, quando resulte de factos que inequivocamente o exprimam.
Como acentuava Vaz Serra (Prescrição Extintiva e Caducidade, BMJ, 106, 220, citado no Ac. RC de 30/11/2010, Processo 637/09.2T2AVR.C1, consultável em www.dgsi.pt), “se o prescribente reconhece o direito do titular, é razoável que perca o benefício do prazo prescricional já decorrido: tal reconhecimento pode interpretar-se como renúncia da sua parte a prevalecer-se desse prazo, visto supor a vontade de cumprir, além de que o titular pode confiar na opinião manifestada pela outra parte, não tendo, por isso que a demandar”.

No caso dos autos, está provado que a ré pagou ao autor T. J. algumas despesas de farmácia, deslocações e taxas moderadoras, apenas não se sabendo em que datas ocorreram tais pagamentos e não tendo o autor logrado provar que “a companhia de seguros manteve comunicações com os autores tendo em vista a regularização do sinistro até meados do ano de 2013”, matéria que havia sido por si alegada.
Tanto basta para que, nos termos do disposto no artigo 325.º, n.ºs 1 e 2 do Código Civil, se possa concluir pela interrupção da prescrição em face do reconhecimento do direito efetuado perante o respetivo titular por aquele contra quem o direito pode ser exercido (a seguradora não efetuaria pagamentos se não tivesse reconhecido o direito).
Acontece que, nos termos do disposto no artigo 326.º, n.º 1 do Código Civil, a interrupção inutiliza todo o tempo decorrido anteriormente, mas começa a correr novo prazo a partir do acto interruptivo.
Cabia ao autor, que alegou tais factos, fazer prova do momento em que tais pagamentos/negociações terão ocorrido, a fim de ser possível concluir que, desde esse momento, não teria ainda corrido novo prazo de prescrição.
Como já vimos, é razoável que quem reconhece o direito, perca o benefício do prazo prescricional já decorrido. Tal reconhecimento pode interpretar-se como renúncia da sua parte a prevalecer-se desse prazo. Contudo, começando a correr novo prazo a partir do acto interruptivo, teríamos que saber quando é que esse acto ocorreu, para concluir que ainda não teriam decorrido os cinco anos para a prescrição. A alegação e prova de tal facto, como bem se diz na sentença recorrida, é ónus dos autores que, no caso, ou não foi alegado ou, tendo sido alegado (apenas na parte relativa às negociações terem decorrido até meados de 2013), não foi provado.
A questão que se coloca é a de averiguar se, tendo a ré efetuado pequenos pagamentos ao autor, poderia este confiar ou ter uma expetativa legítima que, apesar de ter deixado correr o prazo da prescrição, a ré sempre estaria disposta a pagar outros montantes em função da aceitação da culpa do seu segurado e não viria invocar a prescrição do direito.
Vejamos.
Segundo o artigo 334º do C. Civil, «é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito».
Porque o Código Civil vigente consagrou a concepção objectivista do abuso de direito, não se exige, por parte do titular do direito, a consciência de que, ao exercer o direito, está a exceder os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito, bastando que, objectivamente, esses limites tenham sido excedidos de forma manifesta e grave – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12/10/2010, in www.dgsi.pt.
O abuso de direito tem sido analisado nas modalidades de “suppressio”, de “venire contra factum proprium” e de “desequilíbrio entre o seu exercício e os efeitos dele derivados” e encontramo-las desenvolvidamente expostas, com referências doutrinárias e jurisprudenciais, pelo Prof. António Meneses Cordeiro, em Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo IV, 2005, Livraria Almedina, pág. 239 a 346.
O abuso de direito na modalidade de “venire contra factum proprium” (que é a modalidade que aqui nos interessa) consiste, na lição do citado Professor, no exercício duma posição jurídica em contradição com uma conduta antes assumida ou proclamada pelo agente ostensivamente violador da boa-fé ou da tutela da confiança da contraparte, ficando sempre ressalvada a possibilidade de o venire assentar numa circunstância justificativa e, designadamente, no surgimento ou na consciência de elementos que determinem o agente a mudar de atitude.
«O abuso de direito, consubstanciado num «venire contra factum proprium», consiste em alguém, comportando-se de maneira a criar na outra parte a legítima convicção de que certo direito não seria exercido, vem depois a exercê-lo.» - Acórdão da Relação do Porto de 29/09/97 in CJ, ano XXII, tomo IV, pág. 200.
Para que possa funcionar o comando contido no artigo 334º, do Código Civil, tem de haver um excesso manifesto, o que significa que a existência do abuso de direito tem de ser facilmente apreensível sem que seja preciso o recurso a extensas congeminações. A lei não se contentou com qualquer excesso; o excesso cometido tem que ser manifesto para poder desencadear a aplicabilidade do artigo 334º, por isso, os tribunais só podem fiscalizar a "moralidade dos actos praticados no exercício de direitos ou a sua conformidade com as razões sociais ou económicas que os legitimam, se houver manifesto abuso" – Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, página 298 e 299. “Manuel de Andrade refere-se aos direitos exercidos em termos “clamorosamente ofensivos da justiça” – autores e obra citada.
E para que o abuso de direito exista, não basta que o exercício do direito pelo seu titular, cause prejuízo a alguém - a atribuição de um direito traduz deliberadamente a supremacia de certos interesses sobre outros interesses com aqueles confluentes -, sendo necessário, sim, que o titular dele manifestamente exceda os limites que lhe cumpre observar, impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do próprio direito exercido.

Ora, do singelo facto provado de que a ré pagou pequenas despesas ao autor não pode concluir-se que a ré, ultrapassado o prazo da prescrição sem que o autor tivesse tomado qualquer iniciativa para ser indemnizado dos prejuízos que sofreu em consequência do acidente de viação da responsabilidade do seu segurado, não viria, posteriormente, a invocar essa mesma prescrição, até porque dos autos não resulta, nem foi alegado, nenhum facto que nos permita concluir os motivos pelos quais os autores deixaram decorrer esse prazo. De igual modo, nada sabemos quanto à conduta da ré no período temporal que mediou entre aqueles pequenos pagamentos e a interposição da ação, que nos permitisse concluir pela violação da confiança que os autores teriam numa actuação contrária.
O comportamento da ré não foi de molde a criar nos autores a convicção de que nunca iria invocar a prescrição no caso de os autores deixarem passar o respetivo prazo sem interpor a necessária ação judicial (veja-se que nem sequer provaram a existência de conversações/comunicações entre as partes que se tivessem gorado). Menos ainda, se encontra neste comportamento uma intolerável contradição com o seu comportamento anterior, não se vislumbrando neste qualquer renúncia ao seu direito de invocar a prescrição.
Não há, pois, na invocação da prescrição, traição da confiança dos autores em conduta anterior da ré, não consistindo aquela uma clamorosa ofensa do sentimento jurídico da sociedade, atentas as conceções ético-jurídicas dominantes, nem manifesta violação do princípio da boa fé.
Não incorreu, assim, a ré em abuso de direito ao invocar a exceção da prescrição, improcedendo, nesta parte, a apelação.

III. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se julgar parcialmente procedente a apelação, com a consequente alteração da decisão de facto, nos termos supra enunciados, mas confirmando-se a sentença recorrida, quanto ao mais.
Custas por apelantes e apelada, na proporção de ¼ para esta e ¾ para aqueles.
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Guimarães, 15 de abril de 2021

Ana Cristina Duarte
Alexandra Rolim Mendes
Maria Purificação Carvalho