Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2817/18.0T8VCT.G1
Relator: JOAQUIM BOAVIDA
Descritores: RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DE POSSE
POSSE VIOLENTA
REQUISITOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/06/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 – No procedimento cautelar de restituição provisória da posse admite-se que actos de força contra coisas possam configurar a violência referida nos artigos 377º e 378º do CPC, mas só se forem um instrumento de coacção sobre terceiros.

2 – Tendo por base o conceito de posse violenta, moldado no artigo 1261º, nº 1, do Código Civil, a “coacção” aí referida só se pode referir a pessoas, pois as coisas, em si mesmas, não são susceptíveis de coacção, ou seja, a lei exige que, quando se verifique essa violência sobre a coisa, se amedronte ou ameace o possuidor.

3 – Não reveste natureza violenta o acto do requerido que se limitou a colocar uma pedra à entrada da parcela de terreno que disputa com os requerentes.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I – RELATÓRIO

1.1. C. V. e mulher, Maria, intentaram procedimento cautelar de restituição provisória da posse contra o Conselho Directivo dos Baldios de X, pedindo que o Requerido seja “condenado” a:

a) Remover o pedrulho que bloqueia o acesso ao prédio rústico melhor identificado nos artigos 1º e 2º do requerimento inicial (r.i.);
b) Abster-se da prática de qualquer acto que ponha em causa a posse e a fruição inerente ao direito de propriedade dos Requerentes;
c) Restituir a posse do prédio melhor identificado no artigo 1º do r.i.;
d) Pagar uma sanção pecuniária compulsória, nos termos dos artigos 365º, nº 2, do CPC, de € 100,00 por cada dia que não cumpra com as condenações que, eventualmente, venham a ser proferidas pelo Tribunal;
e) Sem prescindir, e caso não se entenda ser este o procedimento cautelar adequado ao caso concreto, requer-se, nos termos dos artigos 376º, nº 3, e 379º do CPC, que os presentes autos sejam convolados em procedimento cautelar comum.
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1.2. Realizaram-se os actos de produção de prova, com inquirição das testemunhas arroladas pelos Requerentes e inspecção judicial ao local, sem prévia audição do Requerido, após o que foi proferida decisão a não decretar a providência cautelar de restituição provisória da posse, bem como as demais providências requeridas, e a não determinar a convolação para providência cautelar não especificada.
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1.3. Inconformados, os Requerentes interpuseram recurso de apelação e formularam, a terminar as suas alegações, as seguintes conclusões (que se transcrevem):

«1.º - Por douta decisão, os Requerentes/Recorrentes C. V. e Maria viram o Tribunal a quo a julgar “não decretar a presente providência cautelar de restituição provisória da posse e bem assim não convolar a presente providência numa providência cautelar não especificada”, condenando aqueles nas respectivas custas.
2.º - Salvo o devido respeito, que aliás é muito, não concordam os Requerentes/Recorrentes com a douta sentença proferida e daí o presente recurso.
Com efeito,
3.º - Por se terem visto privados, parcialmente, os Requerentes, de propriedade sua, que se encontrava na sua posse, instauraram o presente Procedimento Cautelar de Restituição Provisória da Posse, a fim de, tal como indiciado pela denominação do mecanismo socorrido, retomaram a posse do que lhes havia sido esbulhado.
4.º - Ora, consta do artigo 377.º do Código do Processo Civil que “No caso de esbulho violento, pode o possuidor pedir que seja restituído provisoriamente à sua posse, alegando os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência.”.
5.º - Ora, são condições da procedência do Procedimento Cautelar requerido que: a) tenha existido, no pretérito, posse do Requerente sobre uma coisa; b) que a posse da coisa tenha sido alvo de esbulho por outrem; e c) Que o dito esbulho tenha sido violento.
6.º - Face aos Procedimento Cautelares não Especificados, prescinde-se da existência de prejuízos de ordem patrimonial já concretizados ou da prova da existência de um verdadeiro periculum in mora – vide Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 23 de Novembro de 2017, proc. n.º 777/17.4T8FAF.G1., de 08 de Junho de 2017, proc. n.º 219/16.2T8PVL-A.G1. e de 23 de Novembro de 2017, proc. n.º 777/17.4T8FAF.G1.
7.º - Assim, no que tange à posse do Requerente, consta da douta Sentença recorrida, nos factos dados como provados (III. Fundamentação de Facto / III.1 Factos Provados), que os Requerentes eram possuidores do Prédio Rústico inscrito na respectiva matriz sob o artigo número (...), sito no lugar (...), da União de Freguesias de (...), com área de 6136m2, e constante na descrição da Conservatória Registo Predial com o número (...), da freguesia de (...), que foi adquirido em virtude de uma Compra e Venda, formalizada por Escritura Pública – vide factos dados como provados nos pontos 1. e 2. da douta Sentença Recorrida.
8.º - Mais ficou claro que as posses dos antepossuidores foram contíguas e ininterruptas, não só com a dos Requerentes como com as de quem adquiriram há mais de 50 anos – vide factos dados como provados no ponto 3., 4. e 5. da douta Sentença Recorrida.
9.º - Nos termos dos artigos 1254.º e 1256.º do Código Civil, os Requerentes possuem o dito Prédio Rústico há mais de 50 anos.
10.º - Assim, considera-se que o requisito da posse se encontra devidamente assente, não só pelo que foi percepcionado pelo Tribunal a quo (que disso dá conta nas suas motivações) como pelo que resulta dos depoimentos das testemunhas José, R. A., D. B. e J. M..
11.º - Razões pelas quais, inclusive, deverá o Tribunal a ad quem alterar a factualidade dada como provada, fazendo constar nela as alíneas na alíneas a), c), f), g) e h) dos factos dados como não provados.
12.º - No que tange ao esbulho violento, dir-se-á que refere a douta Sentença recorrida o seguinte: os Requerentes viram-se privados de parte do seu Prédio Rústico, já que o mesmo é irregular, em socalcos, tendo o Requerido, em data não apurada, mas em meados de Agosto, colocou um pedregulho na entrada de um dos socalcos e que confronta, a nascente, com o caminho público, bloqueando, desta feita, o acesso ao mesmo, que apenas é possível, agora, através de escalada para o mesmo – vide factos dados como provados nos pontos 6. a 12. e 14.
13.º - Ora, os referidos factos consubstanciam actos que traduzem o esbulho da posse dos Requerentes – vide Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 16 de Maio de 2013, proc. n.º 134/13.1TBEPS.G1., de 08 de Junho de 2017, proc. n.º 219/16.2T8PVL-A.G1 e de 23 de Novembro de 2017, proc. n.º 777/17.4T8FAF.G1.
14.º - Ora, assim sendo, face ao exposto, designadamente ao facto de para a procedência do Procedimento Cautelar de Restituição Provisória de Posse se bastar com a verificar de uma posse, pelo Requerente, que foi esbulhada (pelo Requerido), de forma violenta, que sub indice, resulta claro dos factos dados como provados, impunha-se uma outra decisão do Tribunal a quo.
15.º - Posto isto, deverá o Tribunal ad quem revogar a decisão proferida pelo Tribunal a quo e, por conseguinte, proferir uma que determine a procedência do Procedimento Cautelar de Restituição Provisória de Posse nos termos peticionados no Requerimento Inicial.
Termos em que, e nos mais de Direito, deve ser dado provimento ao presente recurso e, por conseguinte, ser a decisão proferida pelo Tribunal a quo e, por via disso, o Tribunal ad quem proferir uma que determine a procedência do Procedimento Cautelar de Restituição Provisória de Posse nos termos peticionados no Requerimento Inicial, fazendo-se a habitual e necessária justiça!».
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O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
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Foram colhidos os vistos legais.
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1.4. QUESTÕES A DECIDIR

Tendo presente que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. 635º, nºs 2 a 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, as questões a decidir são:

i) Mediante o reexame dos meios probatórios produzidos, verificar se existiu erro no julgamento da matéria de facto e, na afirmativa, se devem ser considerados como provados os pontos a), c), f), g) e h) da factualidade considerada não provada;
ii) Apurado o resultado da impugnação da matéria de facto, apreciar se estão reunidos os requisitos para decretar a restituição provisória da posse.
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II – FUNDAMENTOS

2.1. Fundamentos de facto

A decisão recorrida considerou provados os seguintes factos:

1. Encontra-se registada a favor dos Requerentes a aquisição do prédio rústico, do prédio rústico, de lavradio e monte, a confrontar de norte, nascente e poente com monte baldio, de sul com A. T., inscrito na respectiva matriz sob o artigo (...) – proveniente do antigo 513, da freguesia de (...) –, sito no lugar (...), da União de Freguesias de (...), com área de 6.136 m2, descrito na Conservatória Registo Predial com o número (...), da freguesia de (...).
2. Os Requerentes adquiriram o referido prédio através de escritura pública de compra e venda, realizada a nove de Maio de mil novecentos e noventa e seis, no extinto 2º Cartório Notarial, perante o Notário M. P., e que consta a folhas 5 a 6 verso do Livro de Notas número 1...-F, em que figurou como vendedor José e, como comprador, o Requerente C. V..
3. Há mais de 30, 40, 50 anos que, em exclusivo, os Requerentes, bem como os seus antepossuidores, têm ocupado este prédio rústico, que consubstancia um monte, colhendo os respectivos frutos, cortando as árvores e silvas, limpando e conservando, assim, o mesmo, de forma permanente e contínua até hoje.
4. Sempre o fizeram à vista de toda a gente, de forma pacífica, sem oposição de quem quer que seja, na convicção de que exerciam um direito próprio e de que não lesam, nem lesaram, quaisquer direitos de outrem.
5. Há mais de 20, 30, 40, 50 anos que os Requerentes possuem o referido prédio de forma pública, pacífica, contínua e de boa-fé.
6. O referido prédio rústico é um monte irregular, composto por vários socalcos, com entradas independentes e, em alguns casos, sem comunicação interna, sendo necessário aos requerentes recorrer aos caminhos públicos que circundam o dito terreno.
7. O Requerido é o Conselho Directivo dos Baldios de X, NIPC ..., com sede na Estrada (...), Viana do Castelo e, actualmente, encontra-se eleito como presidente o Sr. F. B..
8. Em dia que não se conseguiu apurar mas que se situa entre meados do mês de Julho e a primeira semana do mês de Agosto de 2018, o Requerido, através dos seus representantes e comissários, sobre as suas ordens, colocou um pedregulho na entrada de um dos socalcos e que confronta, a nascente, com o caminho público.
9. Bloqueando, desta feita, o acesso ao mesmo, que apenas é possível, agora, através de escalada para o mesmo.
10. Ao agir desta forma, o Requerido inutilizou um tractor dos Requerentes que ali se encontrava depositado.
11. Atendendo ao relevo do monte, mais concretamente do socalco agora cujo acesso se encontra vedado pelo referido pedregulho, é impossível ao Requerentes retirar o mencionado tractor e, assim, dele fazer uso.
12. Os Requerentes estão impossibilitados de entrarem no referido socalco de tractor ou outro veículo motorizado, transportando as alfaias agrícolas, serras, moto-serras e outros instrumentos de trabalho, que necessitassem para efectuar os trabalhos de limpeza, manutenção, conservação e colheita de frutos (lenha, tojo, madeira, etc.).
13. Toda esta situação surge do facto de o Requerido se arrogar proprietário de partes do terreno daqueles e com este fundamento ter apresentado queixas contra o ora Requerente, que deram origem aos Inquéritos nºs 103/16.0GDVCT e 14/18.4GDVCT, que correram termos no DIAP do Ministério Público de Viana do Castelo, Procuradoria da República da Comarca de Viana do Castelo, que mereceram despacho de arquivamento.
14. Com as actuações supra-referidas, o Requerido impede os Requerentes de acederem, a este socalco com máquinas agrícolas, alfaias e/ou outros similares, visto que não possuem qualquer outra abertura, porta ou portão que o permita.
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Factos não provados:

O Tribunal a quo considerou como indiciariamente não provados os factos seguintes:

a) Nos termos descritos em 10. o Requerido inutilizou uma alfaia agrícola dos Requerentes.
b) Nas circunstâncias descritas em 12. é impossível entrar a pé.
c) Os trabalhos descritos em 12. eram realizados pelos seus antepossuidores e, agora, pelos Requerentes, sempre à vista de toda a gente e quando lhes aprouvesse, sem oposição de quem quer que seja, na convicção de que exerciam um direito próprio e de que não lesam, nem lesaram, quaisquer direitos de outrem, o que acontecia há mais de 20, 30, 40 anos.
d) Há mais de 20, 30, 40, 50 anos que os Requerentes, e os seus antepossuidores, entram no referido socalco do mencionado prédio rústico, o que faziam de forma pública, pacífica, contínua e de boa-fé.
e) O Requerido invadiu o dito prédio rústico sem qualquer autorização para tanto, destruindo vedações, cortando árvores, aproveitando a madeira das mesmas, que posteriormente as vende.
f) Os Requerentes sempre tiverem acesso livre e incondicionado ao socalco supra referido.
g) A impossibilidade de agora o poder fazer, no presente, causa prejuízos graves e consideráveis aos Requerentes, que não podendo aceder ao seu terreno livremente.
h) Estando, assim, impedidos de colher os proveitos da silvicultura, designadamente lenha, mato, tojo, etc., bem como proceder à regular e obrigatória limpeza do seu monte.
i) Caso não seja procedente o presente procedimento cautelar, não restará outra alternativa aos Requerentes se não a contratação de terceiro para a realização de vários trabalhos agrícolas, já que os Requerentes não possuem outro qualquer Tractor e alfaia agrícola iguais e que se encontram presos no dito socalco.
j) Esta despesa afigura-se avultada para a situação económica dos Requerentes, que com ela não contavam, por sempre terem podido utilizar os seus instrumentos agrícolas livremente.
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2.2. Do objecto do recurso

2.2.1. Da impugnação da decisão da matéria de facto

2.2.1.1. Em sede de recurso, os Recorrentes impugnam a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal de 1ª instância.

Estão efectivamente atribuídos à Relação poderes de reapreciação da matéria de facto no âmbito de recurso interposto, que a transformam num tribunal de instância que também julga a matéria de facto, garantindo um duplo grau de jurisdição.
Para que a Relação possa conhecer da apelação da decisão de facto é necessário que se verifiquem os requisitos previstos no artigo 640º do CPC, que dispõe assim:

«1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3. O disposto nos nºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do nº 2 do artigo 636º».

No fundo, recai sobre o recorrente o ónus de demonstrar o concreto erro de julgamento ocorrido, apontando claramente os pontos da matéria de facto incorrectamente julgados, especificando os meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida e indicando a decisão que, no seu entender, deverá ser proferida sobre a factualidade impugnada.

Em todo o caso importa enfatizar que não se trata de uma repetição de julgamento, foi afastada a admissibilidade de recursos genéricos sobre a decisão da matéria de facto e o legislador optou «por restringir a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente» (1).

Delimitado pela negativa, segundo Abrantes Geraldes (2), o recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto será, total ou parcialmente, rejeitado no caso de se verificar «alguma das seguintes situações:

a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635º nº 4, e 641º, nº 2, al. b);
b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados (art. 640º, nº 1, al. a);
c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) Falta de indicação, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação».

Aplicando os aludidos critérios ao caso que agora nos ocupa, verifica-se que os Recorrentes indicam quais os concretos pontos de facto que consideram incorrectamente julgados, especificam os meios probatórios que imporiam decisão diversa e mencionam a decisão que, no seu entender, deveria ter sido proferida sobre as questões de facto controvertidas. No que se refere à prova gravada em que fazem assentar a sua discordância, procedem à indicação dos elementos que permitem minimamente a sua identificação e localização.

Por isso, podemos concluir que os Recorrentes cumpriram suficientemente o ónus estabelecido no citado artigo 640º do CPC e, por outro lado, tendo sido gravada a prova produzida na audiência de julgamento e dispondo dos elementos que serviram de base à decisão sobre os factos em causa, esta Relação pode proceder à reapreciação da matéria de facto impugnada.

Quanto ao âmbito da intervenção deste Tribunal, tal matéria encontra-se regulada no artigo 662º do CPC, sob a epígrafe “modificabilidade da decisão de facto”, que preceitua no seu nº 1 que «a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa».
Por isso, passa-se a reapreciar a matéria de facto impugnada.
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2.2.1.2. Com vista a ficarmos habilitados a formar uma convicção autónoma, própria e justificada, procedeu-se à audição integral da gravação das declarações de parte do Requerente C. V. e dos depoimentos das testemunhas.

A testemunha H. C. tem uma propriedade contígua à dos Requerentes; José é amigo (afirmou-o quando falou da leira que disse ter dado ao Requerente, para explicar a diferença entre a área que a testemunha vendeu ao Requerente e a área que agora consta do levantamento topográfico) e compadre dos Requerentes (estes são padrinhos de um filho da testemunha), e vendeu o prédio dos autos aos Requerentes; J. C. em finais de Julho, inícios de Agosto de 2018, colocou a pedra à entrada da parcela de terreno de que os Requerentes entendem ser proprietários e que pretendem que lhes seja restituída; R. A. é a ex-mulher de José, tem uma propriedade junto ao prédio dos Requerentes e é comadre dos Requerentes, por estes serem padrinhos de um seu filho (sendo certo que o pai da Requerente mulher, que também identificou como compadre quando foi confrontado com uma fotografia, era padrinho de outro dos seus filhos); D. B. é amigo do Requerente desde há quinze anos (começaram a relação de amizade devido às pescarias, segundo se percebe na gravação), é reformado da GNR e tem uma relação próxima com o Requerente, entreajudando-se na agricultura e silvicultura; J. M. é porta-miras e ajudou o seu marido a fazer o levantamento topográfico da propriedade dos Requerentes, cujo resultado consta dos autos.

Considerou-se em parte o resultado da inspecção judicial ao local, uma vez que a Mma. Juiz teve o cuidado de exarar o que directamente constatou, o que fez de forma exemplar.

Foram ainda analisados todos os documentos juntos aos autos, em especial as fotografias, uma vez que as mesmas constituem um elemento importante para o Tribunal da Relação apreender directamente a realidade e minorar a perda de imediação sempre inerente a uma reapreciação da prova.
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2.2.1.3. Por referência às suas conclusões, extrai-se que os Recorrentes consideram incorrectamente julgados os pontos a), c), f), g) e h) da matéria de facto não provada.

Portanto, pretendem que se considere como provado que:

- «a) Nos termos descritos em 10. o requerido inutilizou uma alfaia agrícola dos Requerentes»;
- c) Os trabalhos descritos em 12. eram realizados pelos seus antepossuidores e, agora, pelos Requerentes, sempre à vista de toda a gente e quando lhes aprouvesse, sem oposição de quem quer que seja, na convicção de que exerciam um direito próprio e de que não lesam, nem lesaram, quaisquer direitos de outrem, o que acontecia há mais de 20, 30, 40 anos»;
- «f) Os Requerentes sempre tiverem acesso livre e incondicionado ao socalco supra referido»;
- «g) A impossibilidade de agora o poder fazer, no presente, causa prejuízos graves e consideráveis aos Requerentes, que não podendo aceder ao seu terreno livremente»;
- «h) Estando, assim, impedidos de colher os proveitos da silvicultura, designadamente lenha, mato, tojo, etc., bem como proceder à regular e obrigatória limpeza do seu monte».

Há, assim, que verificar se a discussão probatória fundamentadora da decisão corresponde à prova realmente obtida ou, ao invés, se a mesma se apresenta de molde a alterar a factualidade impugnada, nos termos invocados pelos Recorrentes.
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2.2.1.4. O Tribunal a quo exprimiu a motivação da decisão sobre a matéria de facto nos seguintes termos:

«Para formar a convicção quanto à factualidade indiciariamente provada e não provada o tribunal atendeu, desde logo, ao teor dos documentos e fotografias juntos com o requerimento inicial, designadamente, a fls. 11 a 23 e 33 a 43 (originais).
Considerou-se, ainda, o auto de inspecção ao local, as declarações de parte do requerente e o depoimento das testemunhas inquiridas.
Primeiramente, quanto às declarações do requerente, devemos confessar, que ao invés de virem corroborar, e até reforçar, a matéria alegada, acabaram por gerar dúvidas de relevo na formação da convicção do tribunal.
É certo que o requerente asseverou ter adquirido, por negócio de compra e venda, o prédio rústico que está aqui em debate, o que, de resto, estava documentalmente comprovado.
Sucede que, em consequência da inspecção ao local, o tribunal acabou por perceber que o que verdadeiramente está em causa não é o prédio rústico descrito no ponto 1. dos factos indiciariamente provados, mas apenas uma parcela de terreno que o requerente defende ser parte integrante deste prédio – note-se que o prédio apresenta vários socalcos/balcões e o que está em causa é somente uma parcela de terreno que corresponde a um destes socalcos. Isto é, da produção da prova resultou claro que o litígio pendente entre requerente e requerido não abrange todo o prédio mas está limitado a esta parcela/balcão/socalco. E resultou também que salvo no que concerne a esta parcela os requerentes têm praticado os actos referenciados no ponto 2. no prédio identificado em 1.

Ora, quanto a esta parcela, o requerente declarou que só após o conselho dos baldios ter começado a reivindicá-la, o que ocorre desde há cerca de dois anos, é que decidiu solicitar a elaboração de um levantamento topográfico (datado de Julho de 2018 – cf. fls. 41), sendo certo que só a partir desta altura “teve certeza que é dele”; “só quando teve a certeza da área é que teve a certeza que era dele”.

Disse também que “os senhores dos baldios” cortaram pinheiros na dita parcela e que embora tivesse visto lá a lenha depositada não a recolheu por ter ficado com dúvidas se aquela parcela efectivamente ainda integrava o seu prédio. Acrescentou que só usava esta parcela para passagem e que limpava o mato “para alinhar”. Disse que quando comprou o prédio não sabia os seus limites e que nunca lá foi para esse efeito com o vendedor.
Não obstante, contraditoriamente, afirmou a instâncias que naquela parcela, afinal, desde da compra do prédio rústico, também cortou árvores para lenha, árvores de fruto e vinhas, que fez lá queimadas e limpezas do terreno.

Declarou que em consequência da colocação da pedra na única entrada para aquela parcela, em 16.07.2018, ficou impossibilitado de retirar o seu tractor e a madeira cortada, sendo que este veículo é o único de que dispõem para fazer os trabalhos agrícolas noutros prédios de que é dono e que desde então as lides estão paradas, para além do que se aproxima a altura das vindimas.

Pois bem, como se pode ver, as declarações do requerente caracterizaram-se por recuos e avanços: ora assumindo-se dono e possuidor desta parcela desde a data da aquisição do prédio rústico, ora revelando dúvidas quanto a este facto e quanto aos limites da sua propriedade; ora assumindo a prática de actos materiais de posse sobre a mesma, ora refutando-os!

Ademais não logrou o requerente avançar com uma justificação plausível para o facto de haver uma discrepância entre a área registada e a área que consta do, recente, levantamento topográfico – neste último, o prédio rústico tem mais 608,28m do que a área registada.

Começou o requerente por avançar que esta discrepância foi devido ao alinhamento do muro que delimita o seu prédio do pertencente à testemunha Juiz Desembargador H. P. – facto que este infirmou veemente. Depois, foi a testemunha José, e curiosamente não o requerente, que veio dizer que “deu” uma leira ao requerente, contígua ao prédio aqui em questão, pretendendo com isso justificar o aumento da área, mas acabou por afirmar a tal leira trata-se de um prédio autónomo e independente, com registo matricial próprio – deitando, assim, por terra a hipótese que o próprio levantou; é de notar que a ex-mulher desta testemunha, a testemunha R. A., evidenciou-se muito surpreendida com este “negócio”, que, segundo o seu ex-marido José, foi contemporâneo ao da compra e venda do prédio rústico aqui em debate, e do qual aquela se revelou perfeitamente sabedora.

A testemunha Juiz Desembargador H. P. referiu que tem um prédio que confronta com o prédio do requerente. Afirmou ter a certeza de que uma parte do prédio confinante é inequivocamente do requerente, pois sempre o viu plantar árvores e trabalhar esta parte. Mas sobre a parcela que está em litígio referiu que é uma parte adjacente a este prédio e quanto a ela o depoente desconhece se o requerente é o seu efectivo dono, até porque quem via cultivar esta parte era um senhor já idoso, cuja identidade desconhece, e que segundo sabe terá falecido sendo que, desde então, nunca mais lá viu ninguém.

Disse também que o requerente começou a fazer uso da entrada que vai para esta parcela antes do conflito com os baldios, talvez há cerca de cinco anos pois anteriormente sempre o viu entrar só para a parcela/socalco de cima, aquele que confina com a sua propriedade. Esclareceu ainda que a parcela reclamada pelo requerente terá certamente mais de 600 metros – o que curiosamente coincide com a correcção de área que resulta do levantamento topográfico efectuado pelo requerente em Julho de 2018 em relação à área registada.

No que concerne aos depoimentos das testemunhas José, R. A. e D. B. oferece-nos dizer que não se afiguraram isentos e credíveis. Foi patente que procuraram auxiliar o requerente, mas em nossa opinião sem êxito, pois, na realidade, nem José nem D. B. presenciaram a prática de quaisquer actos materiais do requerente naquela parcela.

Com efeito, a testemunha José referiu ter-se ausentado desta localidade há cerca de 20/21 anos, depois da venda do prédio ao requerente, e que até à data da inquirição no âmbito destes autos nunca regressou a este local, desconhecendo, por via disso, se o requerente tomou posse efectiva da parcela de terreno, isto se lhe dava qualquer uso. Também a testemunha D. B. embora referindo que todos os anos vinha a este prédio ajudar o requerente a recolher a lenha cortada, disse que quando chegava esta já estava cortada e amontoada para ser carregada – ou seja, não é seguro que a lenha fosse proveniente desta parcela de terreno e o tribunal tão-pouco viu nela, durante a inspecção ao local, vestígios inequívocos de cortes anuais pois não havia assim tantos troncos cortados no chão. Para além de que o requerente aflorou que os “senhores dos baldios” tinham levado a cabo um corte de pinheiros naquele local. A testemunha R. A. revelou um notório comprometimento em relação ao requerente e acabou por afirmar que só há 3,5/4 anos é que o requerente teria colocado os pilares e a rede à entrada desta parcela de terreno, ou seja numa data próxima à do início do conflito entre as partes sobre a propriedade.
A testemunha J. C. confirmou ter sido ele que colocou a pedra, em finais de Julho/início de Agosto, à entrada daquela parcela de terreno e que o fez porque para tanto foi contratado pelo requerido.

A testemunha Júlia esclareceu que auxiliou o seu marido que foi o topógrafo que levou a cabo o levantamento junto aos autos. Disse que foi o requerente que indicou os limites do prédio e que iniciaram os trabalhos em Dezembro de 2016, mas tiveram de os interromper porque o mato estava alto e impedia a máquina de tirar medidas tendo solicitado ao requerente que procedesse à limpeza. Só depois de o requerente ter procedido à limpeza é que retomaram os trabalhos e finalizaram o levantamento.

Importa ainda ressaltar que não ficou sumariamente demonstrado que a parcela de terreno aqui em discussão está incluída na área do prédio rústico comprado pelo requerente. E está patente, como atestam os inquéritos remetidos a estes autos a título devolutivo, que há um litígio entre o requerente e o requerido, desde há pelo menos dois anos a esta parte, sobre a propriedade desta parcela. Indiciam os autos que se houve prática de actos de posse pelo requerente estes serão relativamente recentes e praticamente contemporâneos ao início deste conflito – veja-se que a testemunha R. A. afirmou que a rede e pilares foram colocados há cerca de 3,5/4 anos; a testemunha juiz desembargador H. P. disse que o requerente só desde há cerca de cinco anos passou a utilizar esta entrada; e ainda que o primeiro inquérito teve início com uma queixa datada de 13.09.2016 na qual o presidente dos baldios denunciou um abate e remoção de árvores alegadamente levado a cabo pelo requerente. Esta factualidade parece indiciar que houve oposição do requerido logo que se iniciaram a prática dos descritos actos por parte do requerente.

Sem prejuízo do que ficou dito, a não comprovação dos factos indiciariamente dados como não provados resultou da ausência de prova sobre os mesmos».
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2.2.1.5. Revistos todos os meios de prova produzidos, esta Relação não detectou erros manifestos, contradições, incoerências ou implausibilidades na decisão da matéria de facto. Num plano mais aprofundado de análise e confronto dos meios probatórios, também não se constata a existência de erro de julgamento, pelo que inexiste fundamento para alterar a decisão do Tribunal a quo, por a mesma estar em consonância com a prova produzida nos autos.

Com efeito, primeiro, só a audição das declarações de parte do Requerente já indiciava que a versão dos factos contada no requerimento inicial não era inteiramente líquida. Era expectável, face ao que se expõe no requerimento inicial, que a situação fosse perfeitamente clara nas palavras do próprio Requerente e que este expusesse actos reveladores de posse sobre todo o terreno, em especial sobre a área em causa, que depois pudessem ser confirmados pela restante prova produzida. Não foi exactamente isso que aconteceu.

Percebe-se que existe um litígio entre os Requerentes e o Conselho Directivo dos Baldios de X, sendo que ambas as partes reclamam a propriedade de uma parcela de terreno, que o Tribunal a quo qualifica como um socalco. Não está em causa todo o terreno dos Requerentes, mas apenas uma pequena parte do mesmo. Essa parcela é visível nas fotografias e corresponde à zona onde o motocultivador (ao contrário do afirmado no requerimento inicial, não é um “tractor”, bastando olhar para as fotografias) e o seu atrelado ficaram imobilizados.

Justiça lhe seja feita, sendo evidente o seu interesse na causa e as repercussões que isso tem na interpretação que dá à situação, o Requerente descreveu vários factos que lhe são objectivamente desfavoráveis. Face ao que disse, muito dificilmente poderia ser dado como provado que tem exercido a posse da parcela em disputa desde que em 09.05.1996 comprou o prédio a José.

Basta recordar que começou por afirmar que até agora estava a ocupar três mil e tal metros quadrados e que entretanto soube que afinal tem mais de seis mil metros quadrados. E isso resultou do facto de há cerca de dois anos (durante o ano de 2016) ter encomendado um estudo topográfico e topógrafo ter concluído (já em Junho de 2018, que é a data aposta no documento junto a fls. 41) que aquela parcela é dos Requerentes. Ou seja, temos uma situação invertida: em vez de ser o Requerente a dizer ao topógrafo o que é seu, é o topógrafo que diz ao Requerente que aquela parcela é sua. E prosseguiu afirmando que agora, depois do estudo topográfico, não tem dúvidas sobre onde começa e acaba a sua propriedade. Até aí não tinha a certeza.

Depois, o Requerente afirmou que antes pouco havia para fazer na parcela, uma vez que não havia lá eucaliptos, só pinheiros e alguns carvalhos. Não cortou árvores porque não havia nada para cortar.
Aliás, confessou que quando comprou o terreno, que foi uma questão de oportunidade, não sabia os limites do seu terreno.
Sabe-se que desde há, pelo menos, dois anos o conflito entre os Requerentes e os “Baldios” (Conselho Directivo dos Baldios de X) passou a ser evidente, começando uns e outros a praticar actos relativamente à parcela, desde corte de mato e algum desbaste por parte do Requerente, como o corte de pinheiros pelos Baldios.
Com toda a frontalidade, importa deixar bem claro que face ao declarado pelo Requerente nunca seria caso para decretar uma providência cautelar de restituição da posse, uma vez que nem sequer a posse é evidente por quem quer que seja. Não só a situação requer a actuação do contraditório, como, sobretudo, uma mais larga e aprofundada indagação, que não é apropriada a um procedimento cautelar.

Segundo, se a situação já estava neste estado periclitante após as declarações do Requerente, com a audição da testemunha H. C. ainda mais se adensaram as dúvidas sobre a realidade dos pontos a), c), f), g) e h) da matéria de facto não provada.

Esta testemunha tem, desde há pelo menos vinte anos, um terreno com uma casa implantada que confronta com o prédio dos Requerentes. Conhece tanto os Requerentes como as pessoas ligadas ao Conselho Directivo dos Baldios de X.
Ora, não deixa de ser elucidativo que um vizinho relativamente ao terreno dos Requerentes afirme que não sabe quem é o proprietário e possuidor da parcela em disputa. Se um vizinho exprime tal dúvida, por maioria de razão é legítimo ao Tribunal a quo manifestá-la e decidir a matéria de facto em consonância com a mesma.
Esta testemunha disse ter a certeza que uma parte do prédio confinante com o seu é propriedade dos Requerentes, por sempre ter visto o Requerente a plantar árvores e a trabalhar nessa parte. Todavia, quanto à parcela objecto de dissídio, que qualificou como uma parte adjacente ao prédio dos Requerentes, afirmou desconhecer se o Requerente é o seu efectivo dono. E fundamentou a sua dúvida: até há pouco tempo não via o Requerente a tratar dessa parcela; quem cultivava essa parte era um “velhote”, cuja identidade desconhece, e que segundo lhe disseram terá falecido e desde então nunca mais lá viu ninguém. No seu entender, o dono tanto pode ser o Requerente, os “Baldios” ou os herdeiros do apontado velhote.

Terceiro, no que respeita às demais testemunhas entendemos que a apreciação crítica do Tribunal a quo é inteiramente pertinente e está em conformidade com o que se pôde ouvir nas gravações, pouco havendo a acrescentar.

O depoimento de J. C. é inteiramente inócuo, pois aquilo que disse já estava adquirido nos autos: foi colocada uma pedra à entrada da parcela de terreno e isso já se observava nas fotografias; também não havia dúvidas de que tinha sido o Requerido a mandar colocar a pedra. Personalizou-se apenas o acto, pois confirmou que foi ele que, contratado pelo Requerido, colocou a pedra, mas mesmo assim não conseguiu dizer a data exacta, apenas que foi em finais de Julho ou no início de Agosto de 2018.

Também o depoimento da testemunha J. M. pouco adianta no esclarecimento dos factos objecto da apelação de facto. O marido da testemunha fez o levantamento topográfico do prédio e esta ajudou-o nesse trabalho, se bem se percebe, como porta-miras. De útil resulta apenas que foi o Requerente a indicar os limites do prédio e que iniciaram os trabalhos em Dezembro de 2016, mas logo os interromperam. A razão da interrupção é relevante (e não é propriamente favorável à tese dos Requerentes), uma vez que decorreu do facto de o terreno ter muita vegetação (a testemunha não utilizou a expressão “mato”, mas sim “vegetação” e por diversas vezes) e de isso impedir a máquina de tirar medidas correctas. Solicitaram ao Requerente que procedesse à limpeza e só depois retomaram o trabalho. Em Dezembro de 2016, quando foram iniciados os trabalhos de topografia, já o Requerente tinha colocado os pilares e a rede que são visíveis nas fotografias.

A testemunha José, então já divorciado da testemunha R. A. (v. escritura pública de compra e venda), vendeu em 09.05.1996 o prédio ao Requerente. Desde então não voltou ao prédio agora dos Requerentes. Portanto, nada esclareceu sobre se o Requerente tomou ou não posse da parcela em discussão. É verdade que afirmou ter dito ao Requerente por onde eram os limites do terreno aquando da venda, mas basta ouvir as declarações do Requerente para surgir a incongruência: o próprio Requerente, depois da venda, não ficou muito elucidado sobre os limites da propriedade, pois até há pouco tempo tinha dúvidas no que concerne à parcela em causa. Mesmo sobre o acontecido antes da venda ao Requerente, a testemunha não conseguiu ser inteiramente esclarecedora, pese embora algumas afirmações peremptórias. O terreno em causa, que chegou a ser “lavradio”, já era na altura da venda ao Requerente um terreno inculto e, ao que parece, já há alguns anos. A testemunha utilizou a terminologia “bolsa”, mas terá querido dizer bouça, ou seja, terreno inculto e que nalgumas regiões também está associado a uma ideia de uma certa elevação (um monte inculto, onde a vegetação cresce espontaneamente). Determinar actos de posse relativamente a uma bouça é uma tarefa difícil. Segundo a testemunha declarou, o terreno foi em tempos “duas meias indivisas”, pertencentes a dois cunhados, que eram primos. Comprou as duas metades, primeiro a de António (que uma senhora tinha entretanto comprado e foi esta que lha vendeu a si) e depois a de M. L., o que terá ocorrido em 1978.

O facto de se terem cindido os actos de produção de prova em dois momentos temporais (06.09.2018 e 14.09.2018) terá contribuído para a necessidade de José, R. A. e D. B. terem procurado auxiliar o Requerente nos seus depoimentos, pessoa de quem parecem próximos, tal como o Tribunal a quo afirmou e tem correspondência nas gravações, onde é visível o referido esforço (v., por exemplo, as referências na gravação feitas pela Mma. Juiz ao facto de a testemunha R. A. olhar para o Requerente quando respondia a perguntas que lhe estavam a ser feitas). Sendo certo que existe uma relação de ajuda mútua entre o Requerente e D. B. em assuntos agrícolas, verifica-se que o Tribunal a quo põe em causa parte do declarado pela testemunha, no que respeita ao socalco em causa (e aos alegados actos de posse que alega o Requerente ter praticado quanto ao mesmo, em especial quanto ao corte de lenha no socalco), com base num facto que presenciou durante a inspecção ao local e que esta Relação não consegue naturalmente valorar cabalmente (inexistência de vestígios inequívocos de cortes anuais de madeira), uma vez que não o presenciou (mas tal indício não pode ser descurado, uma vez que a Sra. Juiz o presenciou). Aliás, o notado pelo Tribunal recorrido está de harmonia com o facto de a testemunha R. A. ter afirmado que só há uns anos (com certeza menos de cinco anos, uma vez que começou a ter umas cabras há cinco anos e nessa altura ainda não existiam nem rede nem pilares) é que o Requerente colocou os pilares e a rede à entrada da parcela. Também no mesmo sentido aponta o depoimento da testemunha H. C.: o Requerente começou a praticar alguns actos na parcela e imediatamente o Requerido reage e surge o conflito. Nos últimos anos ambos praticaram actos relativamente à parcela.
Em suma, não se descortina qualquer erro de julgamento do Tribunal recorrido, pelo que a apelação da decisão de facto improcede.
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2.2.2. Do Recurso de Direito

Os Requerentes sustentam no recurso que os factos provados permitem afirmar que têm a posse da parcela, que ocorreu um esbulho e que o mesmo foi violento. Entendem estar reunidos os requisitos que permitem o decretamento de uma providência cautelar de restituição provisória da posse.

A este propósito, em consonância com o estabelecido no artigo 1279º do Código Civil, dispõe o artigo 377º do Código de Processo Civil:

«No caso de esbulho violento, pode o possuidor pedir que seja restituído provisoriamente à sua posse, alegando os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência».

Portanto, a procedência da providência cautelar de restituição provisória de posse depende da alegação e prova dos três requisitos indicados nos artigos 377º e 378º do Código de Processo Civil:

- a posse (o tribunal tem de concluir que o requerente é, pelo menos, aparentemente, titular da posse, ou seja, que actua por forma correspondente ao exercício de determinado direito real);
- o esbulho (é preciso mais do que uma turbação da posse; é necessário que o requerente seja privado da posse que tenha sobre a coisa, ficando impedido de a continuar);
- a violência (pode ser física ou moral, isto é, o esbulho pode resultar do emprego de força física ou de intimidação contra o possuidor; a possibilidade concedida ao possuidor de ser restituído à posse imediatamente, antes de julgada procedente a acção, radica na violência cometida pelo esbulhador).

A questão mais delicada nesta espécie de providência de cautelar está em determinar o alcance do conceito de violência usado nos aludidos preceitos legais.

Na verdade, esbulhar alguém de uma certa coisa, em certo sentido já constitui uma violência, uma vez que se trata de privar alguém do que é seu. Porém, não é esta a “violência” a que se referem os artigos 1279º do Código Civil e 377º do CPC, pois aí exige-se mais do que o esbulho, ou seja, o privar da coisa: além do esbulho a lei exige que este seja violento.

Sobre a noção de violência exigível para caracterizar o esbulho sempre a jurisprudência e a doutrina se dividiram.

Para uma dessas correntes a coacção tanto pode ser física como moral e tanto pode ser exercida sobre as pessoas como sobre as coisas. No fundo, partem do pressuposto de que a violência sobre coisas é sempre violência sobre as pessoas dos respectivos proprietários ou fruidores, ainda que estes estejam ausentes.
Para outra corrente jurisprudencial o esbulho a considerar na providência cautelar de restituição provisória de posse, é apenas aquele que resulte de violências ou ameaças contra as pessoas que defendem a posse.

À violência refere-se o artigo 1261º, nº 2, do Código Civil, nos seguintes termos:

«Considera-se violenta a posse quando, para obtê-la, o possuidor usou de coacção física, ou de coacção moral nos termos do artigo 255º».

Nos termos do nº 1 do artigo 255º do Código Civil, «Diz-se feita sob coacção moral a declaração negocial determinada pelo receio de um mal de que o declarante foi ilicitamente ameaçado com o fim de obter dele a declaração». E o nº 2 acrescenta: «A ameaça tanto pode respeitar à pessoa como à honra ou fazenda do declarante ou de terceiro».
Pensamos que o conceito legal de violência emerge dos dois preceitos legais com mediana clareza.

Com efeito, se é certo que a violência tanto pode ser exercida sobre as pessoas como sobre as coisas (o artigo 255º é claro ao dizer que a ameaça tanto pode respeitar à pessoa como à honra ou fazenda do declarante), também não deixa de ser menos acertado que a violência sobre as coisas tem de reunir os requisitos referidos nos dois últimos preceitos legais citados.
Na verdade, há sempre que relacionar a coisa objecto de violência com o possuidor que vem pedir a restituição da posse.
Quer dizer: exigindo a lei a “coacção”, esta só se pode referir a pessoas, pois as coisas, em si mesmas, não são susceptíveis de coacção, ou seja, a lei exige que quando se verifique essa violência sobre a coisa, se amedronte ou ameace o possuidor.
Admite-se, pois, que actos de força contra coisas possam configurar a violência referida nos artigos 377º e 378º do CPC, mas só se forem um instrumento de coacção sobre terceiros.
Só este conceito de violência pode justificar verdadeiramente que esta providência cautelar possa ser decretada sem citação nem audiência do esbulhador, o que constitui uma excepção ao princípio basilar do contraditório.
Não pode ser qualquer violência a justificar este enorme benefício que é concedido ao possuidor.

Mais: para obter a restituição, o requerente não precisa de alegar e provar que corre um risco, que a demora da decisão definitiva na acção possessória o expõe à ameaça de dano jurídico, basta que alegue e prove a posse, o esbulho e a violência.
O benefício da providência é concedido, não em atenção a um perigo de dano iminente, mas como compensação da violência de que o possuidor foi vítima.

No caso dos autos, conforme resulta da matéria factual apurada, os representantes do Requerido não actuaram com violência, no sentido atrás apontado.

Com efeito, o Requerido limitou-se a mandar um terceiro colocar uma pedra à entrada da parcela em disputa. Não ameaçou (de forma directa ou indirecta) nem coagiu ninguém. O referido terceiro foi ouvido no processo como testemunha e ficou aí bem patente que mantém boa relação com ambas as partes, sendo que se limitou a colocar a pedra como uma prestação de serviço a um cliente.

Em suma: não existiu violência sobre pessoas, ou sequer a violência sobre as coisas de modo a reflectir-se directamente sobre pessoas. Não estamos perante um esbulho violento.
Por isso, não pode ser decretada a providência cautelar de restituição provisória da posse, por não estar demonstrado o requisito do uso da violência.

Depois, os Requerentes nem sequer demonstraram indiciariamente a posse da parcela em causa. A situação é duvidosa e requer a actuação do contraditório e até uma mais larga e profunda indagação, que não é apropriada a um procedimento cautelar.
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Actualmente permite-se defender a posse mediante utilização do procedimento cautelar comum nos casos em que o esbulho se não haja revestido de violência e mesmo quando ocorra mera turbação da posse, conforme decorre do artigo 379º do CPC.

Para isso, é necessário que se verifiquem os requisitos previstos nos artigos 362º, nº 1, e 368º, nº 1, do CPC.

Ora, sendo certo que nem sequer se pode dar por adquirido que os Requerentes são titulares do direito de que se arrogam, verifica-se que dos factos dados como provados não resulta que a actuação do Requerido cause lesão grave e dificilmente reparável ao direito dos Requerentes.

Como bem evidencia a decisão recorrida, «a parcela não tem árvores de fruto, vinhas ou quaisquer culturas que necessitem ser salvaguardadas para além de que também não há nela animais que reclamem cuidados». O mesmo se diga relativamente ao motocultivador, uma vez que nenhum facto se demonstrou relativamente às repercussões da sua falta.

Não está em causa uma lesão do direito dos Requerentes com os contornos exigidos pelo referido artigo 362º, nº 1, do CPC.
Pelo exposto, também não existe fundamento para convolar o procedimento cautelar para providência cautelar não especificada nos termos previstos nos artigos 376º, nº 3, e 379º do CPC.
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2.3. Sumário

1 – No procedimento cautelar de restituição provisória da posse admite-se que actos de força contra coisas possam configurar a violência referida nos artigos 377º e 378º do CPC, mas só se forem um instrumento de coacção sobre terceiros.
2 – Tendo por base o conceito de posse violenta, moldado no artigo 1261º, nº 1, do Código Civil, a “coacção” aí referida só se pode referir a pessoas, pois as coisas, em si mesmas, não são susceptíveis de coacção, ou seja, a lei exige que, quando se verifique essa violência sobre a coisa, se amedronte ou ameace o possuidor.
3 – Não reveste natureza violenta o acto do requerido que se limitou a colocar uma pedra à entrada da parcela de terreno que disputa com os requerentes.
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III – DECISÃO

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas pelos Recorrentes.
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Guimarães, 06.12.2018
(Acórdão assinado digitalmente)

­ Joaquim Boavida (relator)
Paulo Reis (1º adjunto)
Joaquim Espinheira Baltar (2º adjunto)


1. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, Almedina, 2018, pág. 163. No mesmo sentido Francisco Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, vol. II, Almedina, 2015, pág. 463.
2. Obra cit., págs. 168 e 169.