Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3698/17.7T8VCT.G1
Relator: FERNANDA PROENÇA FERNANDES
Descritores: LIBERALIDADES TESTAMENTÁRIAS
CLÁUSULA MODAL
DIREITO DE RESOLUÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/19/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (da relatora):

I – A cláusula acessória típica por virtude da qual nas liberalidades testamentárias o autor da liberalidade impõe ao respectivo beneficiário a obrigação de adoptar um certo comportamento (dar ou não dar, fazer ou não fazer alguma coisa), no interesse do próprio disponente ou no interesse de terceiro ou do próprio beneficiário, consubstancia uma cláusula modal.

II - O incumprimento de tais obrigações de acordo com o disposto pelo artº 2248º nº 1 do Código Civil não opera automaticamente a resolução do testamento, conferindo tão só a qualquer interessado na resolução da disposição testamentária pelo não cumprimento culposo do encargo, o direito potestativo a pedir essa resolução, se nomeadamente, do teor do testamento for lícito concluir que a disposição não teria sido mantida sem o cumprimento do encargo.

III – Nos termos dispostos pelo artigo 2248º, nº 3, do Código Civil, o direito de resolução caduca passados cinco anos sobre a mora no cumprimento do encargo e, em qualquer caso, decorridos vinte anos sobre a abertura da sucessão.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório.

(…) propôs contra (…) e (..) nos Juízos Centrais Cíveis de ..., J4, Comarca de ..., a presente acção declarativa de condenação, peticionado:

a) que seja declarado nulo e ordenado o cancelamento dos registos de aquisição realizados pelos 2ªs réus, através da apresentação …, de …, junto da Conservatória do Registo Predial de ...;
b) que seja declarado nulo e de nenhum efeito o contrato de compra e venda celebrado por escritura pública entre os réus, no dia 28 de Março de 2017, no Cartório notarial da Dra. (…) sito em … e ordenado o cancelamento da subsequente inscrição no registo;
c) seja declarado que se verificou a condição resolutiva determinante da reversão da propriedade do prédio urbano composto de casa de habitação de rés-do chão, primeiro e segundo andar, com logradouro, sito no Lugar do …, freguesia da …, Concelho de … inscrito na matriz sob o artigo …, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º … e do prédio urbano composto de capela, garagens e logradouro, sito no Lugar do …, freguesia da …, Concelho de …, inscrito na matriz sob o artigo …, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º …;
d) que seja reconhecido o direito de propriedade do autor sobre os imóveis identificados em c);
e) sejam condenados os 2ºs réus a restituírem ao autor os imóveis identificados em c), livres de pessoas e bens.

Regularmente citados, os réus contestaram defendendo-se por excepção, invocando a caducidade do direito do autor e defendendo-se por impugnação motivada.
O autor pronunciou-se sobre a excepção de caducidade invocada pelos réus.
*
Subsequentemente, foi proferido despacho saneador – sentença, em audiência prévia, com o seguinte dispositivo:

“IV. Decisão
Em face do exposto, julgando a excepção de caducidade invocada pelos Réus procedente, por provada, julgo a acção proposta por (…) contra (…) improcedente, por não provada.
Custas pelo Autor.
Registe e notifique.”
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Inconformado com esta decisão, dela interpôs recurso o autor, o qual, a terminar as respectivas alegações, e após convite deste Tribunal no sentido de as sintetizar, formulou as seguintes conclusões:

“Conclusões:

1. O Tribunal a quo entendeu que, o ora recorrente peticionou nos presentes autos, entre outros pedidos, a resolução de um legado testamentário pelo não cumprimento do encargo e como já se encontram decorridos 20 anos sobre a abertura da sucessão, tendo a testadora falecido em 1984, o direito invocado pelo mesmo caducou.
2. Se analisarmos cuidadosamente e atentamente a petição inicial apresentada pelo Autor, designadamente o pedido da alínea c), verificamos claramente, que, não consta dos pedidos formulados pelo ora recorrente na presente ação, qualquer pedido de resolução de disposição testamentária e como tal inexiste qualquer caducidade do seu direito de propor a presente ação.
3. Conforme a própria 1ª Recorrida admite em 17º da sua contestação, a principal, mas não única, questão a que se reconduz o litígio no presente pleito, sabendo-se que a nomeação de legatário pode ser sujeito a condição resolutiva, é saber até que ponto foram cumpridas as condições/encargos impostos pela testadora.
4. Da leitura atenta do testamento junto aos autos com a petição inicial, verifica-se claramente que, a 1ª Recorrida foi nomeada legatária, de dois bens imóveis, sob condição resolutiva expressa e que, o incumprimento das condições/encargos impostas ao legatário, determinaria a reversão da propriedade dos bens imóveis para o Autor.
5. Por conseguinte, através da presente ação, o ora recorrente visa precisamente demonstrar que, as condições/encargos impostas ao legatário não foram cumpridas pelo mesmo e como tal pede que seja cumprida a vontade manifestada pela testadora no seu testamento, ordenando-se a reversão da propriedade dos bens imóveis para o mesmo.
6. Ou seja, nunca por nunca o ora recorrente peticionou nos presentes autos a resolução de qualquer disposição testamentária pelo não cumprimento de um encargo.
7. O artigo 2229º do Código Civil dispõe que, “o testador pode sujeitar a instituição de herdeiro ou a nomeação de legatário a condição suspensiva ou resolutiva (…).”
8. Tendo a testadora estipulado que, o testamento produzisse, desde logo, os seus efeitos e em caso de incumprimento das condições/encargos impostas ao legatário, tal implicaria a reversão da propriedade dos bens imóveis para o herdeiro universal, significa, numa interpretação razoável, que seria feita por qualquer declaratário normal colocado na posição do declaratário real - art. 236º, nº 1, do Código Civil - que foi estipulada uma condição resolutiva.
9. A presente ação tem por isso como principal pedido, a verificação de uma condição resolutiva determinante da reversão da propriedade de determinados bens imóveis a favor do recorrente, ou seja visa cumprir uma disposição testamentária manifestada pela testadora R. F..
10. Consequentemente, o recorrente tem direito de exigir que seja declarado a verificação da condição resolutiva determinante da reversão da propriedade dos prédios identificados na petição inicial, bem como que seja declarado como único dono e legítimo proprietário dos mesmos.
11. Alega ainda o Tribunal a quo que, o instituto da caducidade visa responder às inércias dos titulares dos direitos substantivos, salvaguardando, em face daquela, o interesse na certeza e segurança das relações jurídicas.
12. Ora, no caso em apreço, não existe qualquer inércia do ora recorrente porquanto, peticionou, no seu articulado inicial, subsidiariamente e para a hipótese de se entender que a 1ª Recorrida cumpriu, até à data da celebração da escritura pública de compra e venda, todas as condições/encargos impostas pela testadora, que, com a celebração da referida escritura pública, a 1ª Recorrida incumpriu, definitivamente, tais condições.
13. Ora, a escritura pública de compra e venda do imóvel em causa nos presentas autos apenas foi celebrada no dia 28 de Março de 2017 e por isso só nesta data o ora recorrente teve a certeza absoluta do incumprimento de todas as condições/encargos impostas pela testadora.
14. Não podemos ainda esquecer que, a testadora conferiu à 1ª Recorrida um legado pio, na medida em que tal legado se destinava a fins religiosos e que o legado pio não pode por isso ser desviado do fim pio ou altruísta a que o seu legítimo proprietário o destinou e muito menos poderá servir para estimular a especulação imobiliária e beneficiar economicamente quem tinha obrigação de ali apenas constituir “uma casa de retiro e meditação do Clero da Diocese”.
15. Por conseguinte, no dia 28 de Março de 2017, a 1ª Recorrida ao celebrar a escritura pública de compra e venda com os 2º recorridos, cessou, obviamente, qualquer atividade sua naqueles prédios e ao vender os mesmos a pessoa singular e não a uma entidade religiosa capaz de cumprir com o legado pio, os mesmos reverteram imediatamente para o Autor, por ser ter verificado a condição resolutiva, expressa no aludido testamento.
16. Como tal e conforme consta do pedido constante na alínea c) da petição inicial, deverá o Tribunal a quo declarar que se verificou a condição resolutiva determinante da reversão da propriedade para o ora recorrente do referido prédio urbano.
17. Inexistindo qualquer caducidade do direito do ora recorrente em propor a presente ação.
Termos em que, deverá ser dado provimento ao presente recurso e, como tal, revogada a decisão recorrida.
Fazendo-se, deste modo, Justiça”.
*
A ré Diocese de ... contra-alegou, terminando com as seguintes conclusões que se transcrevem:

“Conclusões

1ª. Salvo o devido respeito não assiste qualquer razão ao Recorrente, não merecendo qualquer censura a decisão que, julgando a excepção de caducidade invocada pela Recorrida procedente, por provada, julgou a acção proposta pelo Recorrente E. F. contra Diocese de ..., P. G. e I. D., improcedente, por não provada.
2ª. Como questão prévia, entende a Recorrida que mesmo que ao Recorrente assista qualquer razão, o prazo para interpor recurso é de 15 dias atento o disposto no n.º1, al. b) do art. 644º do Código de Processo Civil, pelo que tendo a decisão sito proferida a 21 de Junho de 2018, e o recurso sito apresentado a 06 de Setembro de 2018, está ultrapassado o prazo para apresentação de recurso, devendo assim não ser admitido.
3ª. Por outro lado, e sempre salvo o devido respeito, o recurso apresentado não segue o preceituado no artigo 639º do Código de Processo Civil e, como tal, deve ser indeferido, já que o Recorrente não formulou conclusões e, como tal, deve o recurso não ser admitido.
4ª. Mas mesmo que assim se não entenda, julga-se igualmente, e a serem julgadas improcedentes as razões supra invocadas, entende a Recorrida que a decisão proferida pelo Mmo. Juiz “A Quo” não merece censura. Na realidade, e como é referido na douta decisão, os pedidos formulados nas alíneas a) e b) de fls. 7 dos autos (ou seja: a) Ser declarado nulo e ordenado o cancelamento dos registos de aquisição realizados pelos 2ªs Réus, através da apresentação 2140, de 21.03.2017, junto da Conservatória do Registo Predial de ...; b) Ser declarada nulo e de nenhum efeito o contrato de compra e venda celebrado por escritura pública entre os Réus, no dia 28 de Março de 2017, no Cartório notarial da Dr.ª M. A., sito em Braga e ordenado o cancelamento da subsequente inscrição no registo) apenas poderão ser conhecidos depois de se conhecer a questão que é peticionada na alínea c) da mesma folha (ou seja: c) Ser declarado que se verificou a condição resolutiva determinante da reversão da propriedade do Prédio urbano composto de casa de habitação de rés-do-chão, primeiro e segundo andar, com logradouro, sito no Lugar do …, freguesia da .., Concelho de ..., inscrito na matriz sob o artigo 6, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 3219 e do Prédio urbano composto de capela, garagens e logradouro, sito no Lugar do ..., freguesia da ..., Concelho de ..., inscrito na matriz sob o artigo 1308, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 3220).
5ª. Dispõe o artigo 2248º, nº 3, do Código Civil, que “o direito de resolução caduca passados cinco anos sobre a mora no cumprimento do encargo e, em qualquer caso, decorridos vinte anos sobre a abertura da sucessão”.
6ª. Tendo a testadora falecido em 1984 (cfr. artigo 2031º do Código Civil), o direito invocado pelo Autor caducou em 2004.
Pelo que o douto despacho sentença não merece qualquer censura, devendo o recurso improceder.
Assim se fazendo Justiça”.
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Igualmente contra-alegaram os réus P. e I. D., terminando com as seguintes conclusões, que se transcrevem:

“Conclusões

1) O direito invocado pelo Recorrente na acção emerge do alegado incumprimento dos encargos do legado determinados pela testadora (em que o Recorrente vê erradamente a verificação de uma condição resolutiva), pelo que só como consequência da resolução do referido legado poderia produzir-se a invalidade arguida contra o negócio celebrado entre os Recorridos, apreciando-se designadamente se tal negócio traduz ou não um incumprimento da disposição testamentária em apreço.
2) Assim, a primeira questão a solucionar nos presentes autos teria de ser sempre aquela para que remete o pedido do Recorrente formulado na al. c) a final da sua petição, a respeito da qual os Recorridos invocaram a caducidade do direito à resolução do legado.
3) Ora, como se disse, as disposições constantes das alíneas c) e h) do testamento em apreço nos autos não configuram uma condição resolutiva, instituindo diversamente a sujeição do legado a encargos, e uma cláusula resolutiva para a eventualidade do incumprimento dos mesmos.
4) Atendendo à vontade expressa pela testadora, afigura-se evidente que a motivação da mesma subjacente à instituição do legado se encontra na imposição das obrigações relativas ao uso específico e à conservação do imóvel estabelecidas no testamento, o que corresponde à imposição de encargos ao legatário, pelo que a disposição da cláusula h) daquele título apenas pode ser tida como a determinação de um direito de resolução da disposição testamentária pelo não cumprimento dos encargos.
5) Pelo exposto, sendo aplicável do regime do citado art.º 2248º, ocorreu na verdade a referida causa extintiva, em face dos factos apurados, ou seja, remontando a abertura da sucessão a 1984, e contando-se desde então o prazo de 20 anos previsto no referido normativo

Nestes Termos, negando provimento ao recurso e mantendo a decisão da douta Sentença recorrida, farão VV/Exªs, J u s t i ç a !”.
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos, e com efeito meramente devolutivo.
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Após convite da aqui relatora, veio o recorrente sintetizar as suas conclusões de recurso.

Mais foi o recurso interposto considerado tempestivo, visto o disposto pelos arts. 638º nº 1 e 644º nº 1 al. a), ambos do Código de Processo Civil.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Questões a decidir.

Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, a única questão se coloca à apreciação deste Tribunal consiste em saber se se verifica a invocada excepção de caducidade.
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III. Fundamentação de facto.

Na decisão sob recurso foram dados como provados os seguintes factos:

a) No dia 30 de Dezembro de 1982, no Segundo Cartório Notarial de ..., perante a notária Dra. B. S., a referida R. F. outorgou um testamento, cujos termos melhor constam das cinco fls. que foram juntas aos presentes autos com a petição inicial como documento nº 1 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
b) R. F. faleceu no dia 1 de Fevereiro de 1984, conforme se retira do averbamento lavrado no documento supra referido;
c) De acordo com o dito testamento, a testadora “lega à Diocese de ..., em memória de seus falecidos pais e marido, a casa de senhorio em suas paredes nuas, a capela, recheio da mesma capela, pátio, jardim e pomar contíguos àquela casa de senhorio, tudo sito no lugar de ..., da freguesia de ..., do concelho de ...., com a condição de: aí ser constituída, dentro de dois anos a contar do seu falecimento, uma casa de retiro e de meditação do Clero da Diocese; de conservar as pedras onde se encontram gravados os versos da autoria do pai da testadora; e de manter limpo, adornado e conservado o jazigo da sua família no Cemitério da ...”;
d) A presente acção deu entrada neste Juízo Central Cível a 7 de Novembro de 2017.

Mais resulta da consulta dos autos, nomeadamente do testamento junto a fls. 9 e 10, que:

- a al. h) do testamento referido em a), tem a seguinte redacção:
“h) Que, do remanescente da sua herança constitui seu único e universal herdeiro seu sobrinho e afilhado E. F., ao qual impõe o encargo de assegurar e fazer cumprir as condições dos legados a eles sujeitos, ficando esses bens legados, se não forem cumpridas as respectivas condições, incluídos no remanescente da sua herança”.
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IV. Fundamentação de direito.

Delimitada que está, sob o n.º II, a questão essencial a decidir, é o momento de a apreciar.
A questão que se coloca, consiste em aferir se se verifica a invocada excepção de caducidade.
Começa o autor/apelante por se insurgir, por ter a decisão recorrida partido da apreciação a título principal do pedido por si formulado em terceiro lugar (alínea c), alterando a ordem pela qual escalonou os seus pedidos.

Contudo, sem razão.

Com efeito, parece-nos resultar claro que o direito invocado pelo autor/recorrente emerge do alegado incumprimento dos encargos ou condições (veremos adiante) do legado determinados pela testadora, pelo que só como consequência da resolução do referido legado poderia produzir-se a invalidade arguida contra o negócio celebrado entre os réus/recorridos.
Assim, a primeira questão a solucionar teria de ser efectivamente aquela para que remete o pedido do autor/recorrente formulado na al. c) da petição, a respeito da qual os réus/recorridos invocaram a caducidade do direito à resolução do legado.
Antes contudo de verificar se ocorreu a invocada caducidade, necessário se torna verificar se as disposições constantes das alíneas c) e h) do testamento em causa nos autos configuram uma condição resolutiva, como entende o recorrente.
No testamento deixado pela falecida R. F. ficou a constar na al. c) que: “lega à Diocese de ..., em memória de seus falecidos pais e marido, a casa de senhorio em suas paredes nuas, a capela, recheio da mesma capela, pátio, jardim e pomar contíguos àquela casa de senhorio, tudo sito no lugar de ..., da freguesia de ..., do concelho de ...., com a condição de: aí ser constituída, dentro de dois anos a contar do seu falecimento, uma casa de retiro e de meditação do Clero da Diocese; de conservar as pedras onde se encontram gravados os versos da autoria do pai da testadora; e de manter limpo, adornado e conservado o jazigo da sua família no Cemitério da ...”; e na al. h) “Que, do remanescente da sua herança constitui seu único e universal herdeiro seu sobrinho e afilhado E. F., ao qual impõe o encargo de assegurar e fazer cumprir as condições dos legados a eles sujeitos, ficando esses bens legados, se não forem cumpridas as respectivas condições, incluídos no remanescente da sua herança”.
Entende o apelante que se trata de uma “condição resolutiva”, e os apelados que se trata de “encargos ou modos”.

Vejamos.

De acordo com o disposto pelo artº 2182º nº1 do Código Civil, o testamento é um negócio unilateral singular, sendo ainda um acto pessoal.
Resulta também dos arts. 2204º e segs., 2179º nº1 b) e 2311º, todos do Código Civil, que o testamento é um negócio sujeito a uma forma solene e revogável.
Sabe-se também que o mesmo é um negócio não receptício e gratuito.
Para se concluir se no caso dos autos estamos na presença de uma cláusula condicional resolutiva, ou antes de uma cláusula modal, terá de se fazer uma interpretação do testamento, ou mais concretamente da última vontade do testador aí expressa.
Pese embora, na interpretação da declaração receptícia nos negócios entre vivos, releve o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do declaratário real, possa deduzir do comportamento do declarante (artº 236º do Código Civil), já na interpretação da declaração do testador observar-se-á o que parecer mais conforme com a vontade do seu autor.
De facto, a interpretação da declaração em que consiste o testamento, deve realizar-se à luz de um critério subjectivista, diverso do critério objectivista, que é adoptado pela lei na interpretação da declaração receptícia nos negócios entre vivos.
Nesta medida, deve ser atendido o disposto pelo artº 2187º nºs 1 e 2 do Código Civil, de acordo com o qual na interpretação das disposições testamentárias deverá ser observado o que parecer mais ajustado com a vontade do testador, conforme o contexto do testamento, e embora seja admitida prova complementar, ela não surtirá qualquer efeito sem que tenha um mínimo de correspondência com o contexto do testamento, ainda que se possa considerar imperfeitamente expressa a vontade do testador.
Assim, importa apurar a intenção da testadora, a sua vontade real, atendendo ao teor do documento.
E, logo a partir do elemento literal resulta que a “de cujus” quis impor à legatária aqui ré/recorrida Diocese de ..., três encargos, quais sejam: de aí ser constituída, dentro de dois anos a contar do seu falecimento, uma casa de retiro e de meditação do Clero da Diocese; de conservar as pedras onde se encontram gravados os versos da autoria do pai da testadora; e de manter limpo, adornado e conservado o jazigo da sua família no Cemitério da ....
Ou seja, não nos parece estarmos perante uma cláusula condicional resolutiva, pela qual a testadora quis condicionar os efeitos jurídicos do negócio, a um facto futuro e incerto.

Com efeito, estabelece o art. 270º do Código Civil:

«As partes podem subordinar a um acontecimento futuro e incerto a produção dos efeitos do negócio jurídico ou a sua resolução: no primeiro caso, diz-se suspensiva a condição; no segundo, resolutiva».

E, como escreveu Mota Pinto in Teoria Geral, Capítulo III, 189. 2ª Ed. pág. 578 e 579 “[e]nquanto a cláusula modal se traduz na imposição, ao beneficiário da liberalidade, do dever de adoptar uma certa conduta, a condição pode ter como evento condicionante um facto de qualquer das partes (credor ou devedor condicional) um facto natural ou de terceiro ou um evento de carácter misto”…“[t]ambém aqui se verifica a distinção traduzida em a cláusula modal obrigar o beneficiário da liberalidade e a condição resolutiva não impor qualquer obrigação (a adopção da conduta prefigurada como evento resolutivo produz a destruição retroactiva dos efeitos do negócio produzidos «pendente conditione», mas o credor condicional não é obrigado a adoptar a conduta oposta). (…) Quer dizer, a condição resolutiva resolve automaticamente, mas não obriga, e o modo obriga, mas dá apenas o direito de pedir a resolução”.
E, nas situações em que a distinção não seja absolutamente clara, defende o mesmo autor (obra citada, pág. 579) que “[e]m nome do princípio da conservação dos negócios jurídicos é sustentada pela doutrina a solução, segundo a qual, em caso de dúvida, a estipulação deve ser qualificada antes como modo do que como condição.”
Segundo a doutrina e a jurisprudência maioritárias a cláusula acessória típica por virtude da qual nas doações e nas liberalidades testamentárias o autor da liberalidade impõe ao respectivo beneficiário a obrigação de adoptar um certo comportamento (dar ou não dar, fazer ou não fazer alguma coisa), no interesse do próprio disponente ou no interesse de terceiro ou do próprio beneficiário, consubstancia uma cláusula modal.
A cláusula tem o nome de “modo” porque importa uma limitação, um (modus) à liberalidade (torna-a mais moderada) (cfr. Prof. Manuel de Andrade, in “Teoria Geral da Relação Jurídica”, vol. II, pág. 393”).
Ora, resulta do artº 2244º do Código Civil que “tanto a instituição de herdeiro como a nomeação de legatário podem ser sujeitas a encargos”.
E como escreve Mota Pinto, ob.cit. pág. 557 e segs, o encargo ou modo produz efeitos de imediato e obriga desde logo e, se não cumprido, possibilita o testador ou quem lhe suceder poder exigir o seu cumprimento ou fazer cessar os efeitos do negócio para o futuro, se o testador assim o tiver determinado ou for lícito concluir que tal disposição não seria mantida sem o cumprimento do encargo (cfr. artºs 2247º e 2248º nº1, ambos do Código Civil).
No caso dos autos, temos que a testadora impôs, por via da cláusula c)que inseriu no seu testamento, três obrigações à ré/recorrida Diocese de ..., beneficiária do legado.
Tal cláusula qualifica-se assim, como modal e não condicional.
Nesta medida, e de acordo com o disposto pelo artº 2248º nº 1 do Código Civil, o incumprimento de tais obrigações (ou de apenas uma delas, pois que são cumulativas) impostas pela testadora, não opera automaticamente a resolução do testamento, conferindo tão só a qualquer interessado na resolução da disposição testamentária pelo não cumprimento culposo do encargo o direito potestativo a pedir essa resolução, se o testador tiver expressamente previsto no testamento que aquele incumprimento conferiria aos interessados o direito a peticionar a resolução da mesma ou, na ausência de tal estipulação, se do teor do testamento for lícito concluir que a disposição não teria sido mantida sem o cumprimento do encargo.
No caso dos autos, considerando o teor da al. h) do testamento, temos que resulta do teor do testamento que a disposição não teria sido mantida sem o cumprimento dos encargos, razão pela qual, podia o autor/recorrente pedir a resolução do testamento, nos termos dispostos pelo art. 2248º nº 1 do Código Civil.
E, como bem referem os réus/recorridos nas suas contra-alegações, “com a abordagem da vontade expressa pela testadora, afigura-se evidente que a motivação da mesma subjacente à instituição do legado se encontra na imposição das obrigações relativas ao uso específico e à conservação do imóvel estabelecidas no testamento, o que corresponde à imposição de encargos ao legatário, pelo que a disposição da cláusula h) daquele título apenas pode ser tida como a determinação de um direito de resolução da disposição testamentária pelo não cumprimento dos encargos”.
Contudo, resulta do artigo 2248º, nº 3, do Código Civil, que “o direito de resolução caduca passados cinco anos sobre a mora no cumprimento do encargo e, em qualquer caso, decorridos vinte anos sobre a abertura da sucessão”.

Dispõe o artigo 298.º do CC, com a epígrafe Prescrição, caducidade e não uso do direito:

“1. Estão sujeitos a prescrição, pelo seu não exercício durante o lapso de tempo estabelecido na lei, os direitos que não sejam indisponíveis ou que a lei não declare isentos de prescrição.
2. Quando, por força da lei ou por vontade das partes, um direito deva ser exercido dentro de certo prazo, são aplicáveis as regras da caducidade, a menos que a lei se refira expressamente à prescrição.
3. Os direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, enfiteuse, superfície e servidão não prescrevem, mas podem extinguir-se pelo não uso nos casos especialmente previstos na lei, sendo aplicáveis nesses casos, na falta de disposição em contrário, as regras da caducidade”.
O art. 298° distingue entre prescrição (n.º 1), caducidade (n.º 2) e não uso (n.º 3).
Quer a prescrição, quer a caducidade, assentam no não exercício do direito durante determinado período (cfr. Mota Pinto, ob. cit. , 3ª ed., pg. 373).
A ténue distinção entre as figuras da prescrição e da caducidade foi traçada por Vaz Serra na RLJ 105-27: na caducidade, a lei quer, por considerações meramente objectivas, que o direito seja exercido dentro de certo prazo, prescindindo da negligência do titular e, por isso, de eventuais causas suspensivas e interruptivas (art. 328º e 331º) que excluam tal negligência, enquanto que, na prescrição, o que a lei se propõe é, além de proteger a segurança jurídica, sancionar a negligência do titular, pelo que o prazo prescricional pode suspender-se e interromper-se nos termos próprios da prescrição.
Na caducidade está em causa um verdadeiro prazo peremptório de exercício de direito. Na prescrição, em rigor, não se fixam prazos de exercício do direito, mas apenas prazos a partir dos quais o devedor se pode opor ao exercício do direito (art. 304º, n.º 1, CC), por não mais ser razoável, embora seja possível, exercê-los - Carvalho Fernandes, na Col. STJ 2000-II-156.
O fundamento do instituto da caducidade é, assim, a necessidade da certeza jurídica, isto é, a exigência de que certos direitos sejam exercidos durante certo prazo, a fim de que a situação jurídica fique definida e inalterável. É de interesse público que tais situações fiquem definidas duma vez para sempre, com o decurso do respectivo prazo.
De acordo com o disposto pelo artigo 298º nº 2 do Código Civil, a caducidade pode ser legal ou convencional e respeitar a matéria disponível ou não, sendo que neste caso é de conhecimento oficioso (art.º 333º do Código Civil).
A caducidade do direito de accionar é assim uma excepção de direito material conduzindo o decurso do prazo à extinção daquele direito, operando de forma directa e automática.

Como pode ler-se no Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 30/04/2003, disponível in www.dgsi.pt, “a caducidade, como forma extintiva de direitos, face ao disposto no art.º 298º, n.º 2, do Cód. Civil, consiste na extinção de um direito pelo decurso de determinado prazo fixado na lei ou até resultante de vontade das partes para o seu exercício sem que tal direito seja exercido dentro desse prazo, desde que a lei não determine a aplicação, no caso, das regras da prescrição. Quer isto dizer que a caducidade é reportada, por lei, aos próprios direitos invocados e não aos factos que a parte articule no local próprio como fonte dos mesmos direitos.”.

No caso dos autos, vista a cláusula modal inserta no testamento, a morte da testadora em 1984, e o disposto pelo artigo 2248º, nº 3 do Código Civil, temos de concluir, como se fez na decisão recorrida, que o direito invocado pelo autor caducou em 2004.

Improcede pois o recurso.
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Perante o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas do recurso, pelo autor/recorrente.
Guimarães, 19 de Junho de 2019
Assinado electronicamente por:

Fernanda Proença Fernandes
Heitor Gonçalves
Amílcar Andrade (não assina por não se encontrar presente, tendo dado voto de conformidade)

(O presente acórdão não segue na sua redacção as regras do novo acordo ortográfico, com excepção das “citações” efectuadas que o sigam)