Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
440/17.6T8PTL-F.G1
Relator: ELISABETE ALVES
Descritores: INSOLVÊNCIA
PODERES DE ADMINISTRAÇÃO
DISPOSIÇÃO DE BENS
MASSA INSOLVENTE
REPÚDIO DA HERANÇA
INEFICÁCIA DO ACTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/13/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (da relatora):

1. A sentença de declaração da insolvência é fonte de inúmeros e importantes efeitos, designadamente, sobre o devedor, sendo o principal o da privação dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, por si ou pelos seus administradores, passando tais poderes a competir ao administrador da insolvência.
2. A violação das limitações estabelecidas dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, tem como consequência, a ineficácia desses actos em relação à massa insolvente.
3. O repúdio da herança é, indiscutivelmente, um acto de disposição patrimonial.
4. Tal acto de disposição pelo insolvente, do seu direito à herança e, portanto, a disposição sobre direito à sua quota hereditária integrante da massa insolvente, porque violador do disposto no n.1 do artigo 81º do CIRE, tem como consequência a sua ineficácia em relação àquela.
5. A acção proposta pelo administrador em representação da massa insolvente, tendo em vista a declaração de ineficácia do acto de repúdio, compreende-se no âmbito dos seus poderes, por força do disposto pelo n. 4 do artigo 81º do CIRE.
6. A ineficácia do acto de repúdio da herança por parte do insolvente, conduz, sem quaisquer outros requisitos (mormente, o do perigo para a satisfação dos credores), a que tal acto não produza, em relação à massa insolvente (ineficácia relativa), os efeitos jurídicos que tenderia a produzir.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I. Relatório

Massa Insolvente de M. S. instaurou a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra T. P. e M. S., pedindo que:

1. se declare a ineficácia do acto de repúdio id. nos autos e celebrado pelo 2.º Réu; e, em consequência,
2. se declare a reversão dos bens imóveis em causa para a esfera jurídica da herança aberta e indivisa de J. F., por força da reconstituição da situação que existiria se o acto não tivesse sido praticado e fixar-se judicialmente um prazo para a sua restituição;
3. ordenar-se a extinção de eventuais ónus e/ou registos de propriedade que incidam ou possam vir a incidir sobre os bens, com efeitos que retroajam à data da prática do acto declarado ineficaz.

Para tal e em súmula, alegou que: por sentença proferida em 18/08/2017, no âmbito do processo principal, foi declarada a insolvência do ora 2.º Réu; após a tomada de posse pela Administradora da Insolvência nomeada nos autos, e já em cumprimento das suas funções, procedeu esta à indagação junto das entidades competentes dos bens que compunham, à data da insolvência, assim como nos anos imediatamente anteriores, o activo do insolvente, tendo verificado que pai do insolvente havia falecido em 22/11/2017 e que não havia sido participado à AT o óbito do mesmo e, consequentemente, não havia sido apresentado o respectivo Modelo 1 no Serviço de Finanças; diligenciou a aqui Administradora da Insolvência pela obtenção de tal participação, e por forma a apreender para o activo da Massa insolvente a quota-parte dos bens que compunham a herança aberta e indivisa por morte de J. F. e que preenchiam o quinhão hereditário do aqui insolvente; apenas em dezembro de 2019 é que a aqui Administradora da Insolvência veio a ter conhecimento de que o insolvente já havia repudiado, em Dezembro de 2017, a sua parte na referida herança, composta por dois imóveis; em virtude do repúdio da herança, a mesma foi aceite pela ora 1.ª Ré, sobrinha do insolvente, neta do falecido, a qual passou a ser designada cabeça de casal daquela herança e única titular dos imóveis supra indicados; atenta a data da prática do acto de repúdio da herança verifica-se que o mesmo é ineficaz e de nenhum efeito perante a massa insolvente ora Autora, uma vez que este foi praticado já após a declaração de insolvência do repudiante, motivo pelo qual a Administradora da Insolvência procedeu à apreensão dos bens que compunham a referida herança aberta e indivisa para o activo da Massa insolvente.
Em contestação, veio o réu M. S., suscitar a ilegitimidade da massa insolvente para aceitar a herança e, em face disso, também a sua ilegitimidade para apresentar a presente ação; bem como a caducidade, na medida em que os credores do repudiante podem aceitar a herança em nome dele, devendo fazê-lo no prazo de seis meses, a contar do conhecimento do repúdio; e que que os bens da herança jamais integraram o conjunto de bens da massa insolvente e sujeitos à administração do Administrador da insolvência.
Mais impugna a factualidade arguida pela Autora, designadamente alegando que não resulta demonstrado que o referido ato de repúdio da herança colocasse em perigo a satisfação dos credores ou da massa insolvente, sendo que o mesmo sempre visou apenas respeitar a vontade do falecido, já que este sempre teve intenção de deixar seus bens à sua neta; e que os bens da herança jamais integraram o conjunto de bens da massa insolvente e sujeitos à administração do Administrador de Insolvência, pelo que o aqui R. jamais teve poderes de administração sobre os mesmos, concluindo que o repúdio da herança aberta por óbito de seu pai, é perfeitamente válido e eficaz.

A massa insolvente veio exercer o contraditório sobre as excepções invocadas, pugnando pela sua improcedência.

Em sede de despacho saneador e considerando que os autos habilitavam, já, o conhecimento do mérito nos termos do artigo 595.º, n.º 1, al. b) do Cód. Proc. Civil, foi proferida sentença que julgou a acção procedente, tendo-se consignado na sua parte decisória que:

«Em conformidade com o exposto, julga o Tribunal a presente acção totalmente procedente, termos em que decide declarar a ineficácia do acto de repúdio id. nos autos e celebrado pelo 2.º Réu e, em consequência:
i) declarar a reversão dos bens imóveis em causa para a esfera jurídica da herança aberta e indivisa de J. F., por força da reconstituição da situação que existiria se o acto não tivesse sido praticado, fixando-se o prazo de 30 [trinta] dias para a sua restituição;
ii) ordenar a extinção de eventuais ónus e/ou registos de propriedade que incidam ou possam vir a incidir sobre os bens, com efeitos que retroagem à data da prática do acto declarado ineficaz (26/12/2017).»
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Inconformado com esta decisão, veio dela interpor recurso o réu (insolvente) M. S. e formular as seguintes conclusões (que ora se transcrevem):

1- A aqui A. não se conforma com a decisão que julgou a presente acção totalmente procedente, e decidiu declarar a ineficácia do acto de repúdio id. nos autos e celebrado pelo 2º Réu e, em consequência declarou a reversão dos bens imóveis em causa para a esfera jurídica da herança aberta e indivisa de J. F., por força da reconstituição da situação que existiria se o acto não tivesse sido praticado, fixando-se o prazo de 30 [trinta] dias para a sua restituição e ordenou a extinção de eventuais ónus e/ou registos de propriedade que incidam ou possam vir a incidir sobre os bens, com efeitos que retroagem à data da prática do acto declarado ineficaz (26/12/2017).
2- Refere o Tribunal a quo que “o acto de repúdio da autoria do insolvente, ocorrido quando já o seu quinhão hereditário integrava a massa insolvente, é inteiramente ineficaz, sendo inoponível à insolvência, em particular, aos credores da insolvência, sendo irrelevante apurar em concreto se o referido ato de repúdio da herança colocou em perigo a satisfação dos credores ou da massa insolvente.”
3- Por outro lado, O Tribunal a quo considerou improcedente a invocada exceção de ilegitimidade, referindo que “o que a massa insolvente pretende com a presente ação não é aceitar em nome do devedor a herança, mas que seja declarada a ineficácia do ato de repúdio em causa, por (alegadamente) ter sido praticado por quem não tinha poderes para tal.”, concluindo o Tribunal a quo que “a legitimidade da massa insolvente para a instauração da referida ação lhe advém do disposto no art.º 81.º do CIRE”.
4- Com efeito, entende o aqui recorrente, que a massa insolvente não tem legitimidade para propor a acção, pelo que se impunha ao tribunal a quo considerar procedente a invocada excepção de ilegitimidade da A.
5- O artigo 2067° do Código Civil confere aos credores do herdeiro repudiante a possibilidade de, em nome deste, aceitarem a herança, por sub-rogação e por seu turno, determina o artigo 1041° do Código de Processo Civil que tal aceitação, por parte dos credores do repudiante, se faz na acção em que, pelos meios próprios, os aceitantes deduzam o pedido dos seus créditos contra o repudiante e contra aqueles para quem os bens passaram por virtude do repúdio.
6- Torna-se, assim, claro que a pretensão da massa insolvente aceitar a herança carece, em absoluto, de fundamento legal, uma vez que tal pretensão, a ser atendida, consubstanciaria uma autêntica derrogação do regime legal expressamente previsto para tais situações – sendo, por isso, manifestamente inadmissível.
7- - Deveria o Tribunal a quo ter considerado a massa insolvente parte ilegítima nos presentes autos, pelo que ao decidir em contrário, o Tribunal a quo violou o artigo 1041° do Código de Processo Civil
8- - Além disso, a sede própria para a apreciação do mérito da pretensão da massa insolvente é, pois, a acção a que alude o artigo 1041° do Código de Processo Civil (aí cabendo apreciar, designadamente, a própria legitimidade, processual e substantiva, do administrador da insolvência para formular tal pedido, uma vez que tal preceito estipula que a aceitação da herança, por parte dos credores do repudiante, se faz na acção em que, pelos meios próprios, os aceitantes deduzam o pedido dos seus créditos contra o repudiante e contra aqueles para quem os bens passaram por virtude do repúdio.
9- – O direito de que se arroga a massa insolvente ao instaurar a presente ação já caducou, uma vez repudiada a herança pelo sucessível, tudo funciona como se este fosse desde o início não chamado, ou seja, não há relativamente a ele vocação sucessória.
10- - Pelo que ao decidir em contrário o tribunal a quo, violou o artigo 2062.º do Código Civil os efeitos do repúdio da herança retrotraem-se ao momento da abertura da sucessão, considerando-se como não chamado o sucessível que a repudia, salvo para efeitos de representação.
11- - Com efeito, os bens da herança jamais integraram o conjunto de bens da massa insolvente e sujeitos à administração do Administrador de Insolvência, já que o aqui R. jamais teve poderes de administração sobre os mesmos, sendo o repúdio da herança aberta por óbito de seu pai, perfeitamente válido e eficaz.
12- Tal ato de repúdio não pode ser declarado ineficaz para a massa insolvente, nos termos do previsto no artigo 81 , n.º 1 e 6 do CIRE, uma vez que segundo refere foi praticado após a declaração de insolvência do aqui R., uma vez que não resulta demonstrado que o referido ato de repúdio da herança colocasse em perigo a satisfação dos credores ou da massa insolvente, já que apenas respeitar a vontade do falecido, já que este sempre teve intenção de deixar seus bens à sua neta.
13- - Pelo exposto, o Tribunal a quo violou por erro de interpretação, os artigos 81º, do CIRE, o artigo 1041 do CPC e o artigo 2062 do CC, em consequência de todo o exposto, deverá pois ser concedido provimento ao recurso e, em consequência, revogada a decisão recorrida, só assim se fazendo a necessária e desejada JUSTIÇA!.»

Foram apresentadas contra-alegações pela Massa Insolvente de «M. S.», pugnando pela improcedência do recurso.

O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.

Foram colhidos os vistos legais.

II. Objecto do recurso

As conclusões das alegações do recurso delimitam o seu objecto, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, ou relativas à qualificação jurídica dos factos, conforme decorre das disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, ex vi art.º 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 639.º, n.os 1 a 3, 641.º, n.º 2, alínea b) e 5º, n.º 3, todos do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho.

São as seguintes as questões a apreciar:

- da legitimidade da massa insolvente para intentar acção de declaração de ineficácia de acto de repúdio da herança, por parte do insolvente;
- da verificação da excepção de caducidade, pelo decurso do prazo de seis meses, a contar do conhecimento do repúdio;
- requisitos para a ineficácia do acto de repúdio.
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III. Fundamentação de facto.

Na decisão da 1ª instância, consignou-se:
«Os factos provados, com interesse para a decisão da causa, tendo por base a documentação junta aos autos, são os seguintes:---
3.1. Por sentença proferida em 18/08/2017, no âmbito do processo de que os presentes autos são dependência, foi declarada a insolvência de M. S., ora 2.º Réu.---
3.2. Por escritura pública, outorgada aos 26/12/2017, no Cartório Notarial de S. R., em Ponte de Lima, o insolvente M. S. repudiou a herança aberta e indivisa a que tinha direito por morte do seu pai J. F., natural da freguesia de ..., falecido a -/11/2017, no estado de casado com A. T. e sob o regime da comunhão geral de bens.---
3.3. Tal herança é composta pelos seguintes imóveis:---
- Prédio urbano, descrito na matriz sob o artigo .., sito na freguesia de ... e ..., concelho de Ponte de Lima, descrito na Conservatória do Registo Predial de Ponte de Lima sob o n.º ...;---
- Prédio rústico, descrito na matriz sob o art. …, sito na freguesia de ... e ..., concelho de Ponte de Lima, descrito na Conservatória do Registo Predial de Ponte de Lima sob o n.º ...;---
- Prédio rústico, descrito na matriz sob o art. …, sito na freguesia de ... e ..., concelho de Ponte de Lima, descrito na Conservatória do Registo Predial de Ponte de Lima sob o n.º ….
3.4. Em virtude do repúdio da herança, a mesma foi aceite por T. P., aqui 2.ª R. e sobrinha do insolvente, neta do falecido, a qual passou a ser designada cabeça de casal da herança aberta por óbito de J. F. e única titular dos imóveis supra indicados.---
B) Da matéria de facto não provada

Inexistem factos não provados, com interesse para a decisão da causa.---»
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Acresce, com relevância para a decisão e face à consulta electrónica dos autos de insolvência, o seguinte facto:
- a sentença de declaração de insolvência de M. S., proferida em 18.08.2017, transitou em julgado em 21.11.2017, conforme certidão de 11.12.2018, ref.ª electrónica 43313006 (autos de insolvência).
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IV. Fundamentação de direito:

São três as questões de discordância apresentadas pelo apelante relativamente à decisão proferida.
Começaremos pela questão da legitimidade da massa insolvente.
Está em causa uma acção declarativa que corre por apenso aos autos de insolvência de M. S., intentada pela massa insolvente representada pelo administrador da insolvência, na qual é peticionada, a título principal, a declaração de ineficácia do acto de repúdio id. nos autos e celebrado pelo 2.º Réu (o insolvente), após a declaração de insolvência.
A apelante sustenta que a massa insolvente não detém legitimidade para instaurar a presente acção, já que carece de legitimidade para aceitar a herança a qual apenas é conferida, por força do disposto no artigo 2067º do Código Civil, aos credores do herdeiro repudiante, através da acção prevista no artigo 1041º do CPC.
Na sentença recorrida consignou-se a este propósito: «Defendeu o Réu M. S. que a massa insolvente não tem legitimidade para aceitar a herança e, em face disso, também não tem legitimidade para apresentar a presente ação.
Sucede que, o que a massa insolvente pretende com a presente ação não é aceitar em nome do devedor a herança, mas que seja declarada a ineficácia do acto de repúdio em causa, por (alegadamente) ter sido praticado por quem não tinha poderes para tal.---
Entendemos, assim, que a legitimidade da massa insolvente para a instauração da referida ação lhe advém do disposto no art.º 81.º do CIRE, pelo que improcede a invocada excepção.»
Tal asserção está em nosso entender absolutamente correcta, já que embora em ambas as situações estejamos perante um meio de tutela dos credores do repudiante, o apelante incorre em erro ao misturar acções distintas com requisitos e efeitos diferenciados, momentos temporais e intervenientes diversos.

Concretizemos:
Dispõe o art. 2.067º do C. Civil que:
“1. Os credores do repudiante podem aceitar a herança em nome dele, nos termos dos artºs. 606º e seguintes.
2. A aceitação deve efectuar-se no prazo de seis meses a contar do conhecimento do repúdio.
3. Pagos os credores do repudiante, o remanescente da herança não aproveita a este, mas aos herdeiros imediatos”.

Por sua vez, estabelece o 1041º do C. P. Civil, que:
“1. A aceitação da herança por parte dos credores do repudiante faz-se na acção em que, pelos meios próprios, os aceitantes deduzam o pedido dos seus créditos contra o repudiante e contra aqueles para quem os bens passaram por virtude do repúdio.
2. Obtida sentença favorável, os credores podem executá-la contra a herança”.

Das referidas disposições legais, resulta que é permitido aos credores pessoais do sucessível, no necessário pressuposto que este repudiou a herança, que aceitem a herança em nome daquele, como um meio de tutela do direito comum de garantia dos seus créditos.
Para tal efeito, impõe-se a instauração de uma ação na qual o credor deduz o pedido de pagamento dos seus créditos contra o repudiante e contra aqueles que receberam os bens por efeito do repúdio, visando a obtenção de uma sentença favorável ao credor, que permita executar a decisão – um título executivo - contra a herança, pagando-se à custa dos bens que a integram. Tem como requisito constitutivo, que o seu exercício seja essencial à satisfação ou garantia do direito de crédito, e, portanto, que o devedor não tenha no seu património bens suficientes para satisfazer o direito do credor.
Como bem sublinham Espinosa G. Silva, Direito das Sucessões, 1978, 319 e segs., e Oliveira Ascensão, ob. ant. cit., pág. 403, não há aqui uma autónoma impugnação pauliana, nem uma verdadeira aceitação da herança pelos credores, mas uma sub-rogação (cfr. arts. 606 º e segs. do CCiv) pelos credores do repudiante num renascido, embora transitório, direito de aceitação da herança em nome do repudiante e na estrita medida da satisfação dos créditos daqueles (1).
Tal aceitação não é absoluta, pois há efeitos próprios do repúdio que se mantêm, já que pagos os credores aceitantes, que “primem o gatilho da sub-rogação”
(2), o remanescente da herança não aproveita ao repudiante, mas aos herdeiros imediatos (n.3 do art. 2067º do CC).
Ou seja, através da acção sub-rogatória a que vimos de fazer referência, não há a revogabilidade do acto de repúdio, este mantém-se válido e eficaz para o repudiante, que nada receberá do remanescente, que eventualmente exista, após pagamento aos credores “aceitantes”.
Situação completamente diferenciada é aquela que se coloca na presente acção, já que emerge da declaração de insolvência do repudiante.

Concretizemos, explicitando os factos com pertinência à decisão:
- por sentença proferida em 18/08/2017, no âmbito do processo de que os presentes autos são dependência, foi declarada a insolvência de M. S., ora 2.º Réu.
Tal sentença transitou em julgado em 21.11.2017.
Por escritura pública, outorgada aos 26/12/2017, no Cartório Notarial de S. R., em Ponte de Lima, o insolvente M. S. repudiou a herança aberta e indivisa a que tinha direito por morte do seu pai J. F., natural da freguesia de ..., falecido a -/11/2017, no estado de casado com A. T. e sob o regime da comunhão geral de bens.
Da herança fazem parte os bens imóveis descritos no ponto 3.3. supra.
Em virtude do repúdio da herança, a mesma foi aceite por T. P., aqui 2.ª R. e sobrinha do insolvente, neta do falecido, a qual passou a ser designada cabeça de casal da herança aberta por óbito de J. F. e única titular dos imóveis supra indicados.
Vejamos:
Como resulta do disposto no artigo 1º do D.L. 53/2004 de 18 de Março -CIRE -(Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas),o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores.
Tal finalidade do processo de insolvência, justifica as medidas legais decorrentes do regime previsto no artigo 81.º, do CIRE [sob a epígrafe “Transferência dos poderes de administração e disposição”.], privando o insolvente de poder administrar e de dispor dos bens que integram a massa insolvente, poderes que passam a competir ao administrador da insolvência (n.º1 do artigo 81.º do CIRE).
A sentença de declaração da insolvência é fonte de inúmeros e importantes efeitos, que são agrupados do seguinte modo: ‘efeitos sobre o devedor e outras pessoas’; ‘efeitos processuais’; “efeitos sobre os créditos’, e ‘efeitos sobre os negócios em curso’.
O principal efeito sobre o devedor, é o da privação dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, por si ou pelos seus administradores, passando tais poderes a competir ao administrador da insolvência.
Como se salienta no preâmbulo do CIRE, «A finalidade precípua do processo de insolvência – o pagamento, na maior medida possível, dos credores da insolvência - poderia ser facilmente frustrada através da prática pelo devedor, anteriormente ao processo ou no decurso deste, de actos de dissipação da garantia comum dos credores: o património do devedor ou, uma vez declarada a insolvência, a massa insolvente. Importa, portanto, apreender para a massa insolvente não só aqueles bens que se mantenham ainda na titularidade do insolvente, como aqueles que nela se manteriam caso não houvessem sido por ele praticados ou omitidos aqueles actos, que se mostram prejudiciais para a massa.»
Efectivamente, diz-nos o artigo 81º do CIRE, para o que ora releva, que: « 1 - Sem prejuízo do disposto no título X, a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência.
2 - Ao devedor fica interdita a cessão de rendimentos ou a alienação de bens futuros susceptíveis de penhora, qualquer que seja a sua natureza, mesmo tratando-se de rendimentos que obtenha ou de bens que adquira posteriormente ao encerramento do processo….
4 - O administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência…
6- São ineficazes os actos realizados pelo insolvente em violação do disposto nos números anteriores…»
Como salientam Luís Carvalho Fernandes e João Labareda (3), o efeito primordial da declaração de insolvência, quanto ao devedor, é de natureza patrimonial e reflete-se nos seus poderes de atuação nesse domínio da sua esfera jurídica.
Na verdade, por força do n.° 1 da norma em anotação, quanto aos bens compreendidos na massa insolvente, tal como a define o art. 46. °, o devedor fica privado dos poderes de administração e de disposição. Os poderes de que o devedor fica privado são atribuídos ao administrador da insolvência.
A violação das limitações estabelecidas dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, tem como consequência, a ineficácia desses actos em relação à massa insolvente.
Ora, a massa insolvente, nos termos do artigo 46º do CIRE, compreende todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo.
Resulta indubitável da factualidade apurada nos autos, que o insolvente, e ora 2º réu, praticou o acto de repúdio da herança aberta por óbito do seu pai, em data posterior à declaração de insolvência com trânsito em julgado.
Resulta também incontornável, o facto de que o seu quinhão hereditário na referida herança ilíquida e indivisa (composta pelos imóveis acima identificados), aberta por óbito de seu pai, ocorrido após o trânsito em julgado da declaração de insolvência, passou a integrar a massa insolvente. Ainda que o óbito fosse anterior, declarada a insolvência, o quinhão hereditário, passaria, do mesmo modo, a fazer parte integrante da massa insolvente (conforme artigo 46º do CIRE)
O repúdio é indiscutivelmente um acto de disposição patrimonial, gratuito, já que sem compensação.
Assim, tal acto de disposição pelo insolvente, do seu direito à herança e, portanto, a disposição sobre direito à sua quota hereditária integrante da massa insolvente, porque violador do disposto no n.1 do artigo 81º do CIRE, tem como consequência a sua ineficácia em relação àquela.
Subscrevemos as considerações vertidas na sentença a este propósito, embora com a rectificação, que nada altera em substância, de que o óbito do pai do insolvente, ocorreu já após o trânsito em julgado da declaração de insolvência.
Aí se refere: «…a sucessão abre-se no momento da morte do seu autor (artigo 2031º do Código Civil), momento esse em que são chamados à titularidade das relações jurídicas do falecido os seus sucessores (artigo 2032º, n.º 1 do Código Civil). Neste contexto, atenta a data do óbito do autor da herança, o insolvente foi chamado à sucessão em momento anterior à sua insolvência por decisão judicial transitada em julgado. Desta feita, a partir da declaração de insolvência, o quinhão hereditário do insolvente passou a integrar a massa insolvente, independentemente do momento da sua apreensão no âmbito do processo de insolvência, sendo que, desde então, o insolvente perdeu qualquer poder de disposição sobre tal bem.---
Em consequência, o acto de repúdio da autoria do insolvente, ocorrido quando já o seu quinhão hereditário integrava a massa insolvente, é inteiramente ineficaz, sendo inoponível à insolvência, em particular, aos credores da insolvência, sendo irrelevante apurar em concreto se o referido ato de repúdio da herança colocou em perigo a satisfação dos credores ou da massa insolvente.---»
Ressalta de todo o exposto, que a acção proposta pelo administrador em representação da massa insolvente, tendo em vista a declaração de ineficácia do acto de repúdio, compreende-se no âmbito dos seus poderes, por força do disposto pelo n. 4 do artigo 81º do CIRE.
E essa acção para declaração de ineficácia do acto, mais não é que uma consequência legal prevista no CIRE, para actos de natureza patrimonial, praticados pelo insolvente em contravenção ao disposto neste diploma, como seja, o acto de repúdio da herança, aqui em causa.
Aliás, caso tal acto fosse praticado em data anterior à declaração de insolvência (dois anos anteriores), face à prejudicialidade, inerente à sua categoria de liberalidade, também tal acto se mostraria resolúvel, sem dependência de quaisquer outros requisitos, como se evidencia do disposto pelo artigo 121º al. b) do CIRE.
Como claramente se extrai do que fica exposto, qualquer uma das situações referidas, seja a resolução ( que aqui não está em causa já que o acto de repúdio, é posterior à declaração de insolvência), seja a ineficácia do acto de repúdio, em nada se confundem com a acção sub-rogatória para aceitação da herança por parte dos credores, quer quanto aos pressupostos (a faculdade de aceitação por parte dos credores assenta no válido e eficaz repúdio por parte do sucessível anteriormente chamado, o que não sucede quanto à declaração de ineficácia em relação à massa insolvente), aos seus sujeitos (credores, na acção de aceitação/ massa insolvente representada pelo seu administrador, nesta acção), à sua finalidade (obtenção de um título executivo na acção sub-rogatória/ não produção dos efeitos jurídicos que o acto tenderia a produzir e apreensão do quinhão hereditário para a massa insolvente, na situação de ineficácia), seu âmbito (a ineficácia é consequência da prática do acto de disposição em contravenção, no âmbito da insolvência) ou pressupostos (a acção sub-rogatória pelo credor tem como requisito a sua essencialidade à satisfação ou garantia do direito do credor -artigo 606º, nº 2 do C.C.- e tem que ser exercida no prazo de seis meses a contar do conhecimento do repúdio – artigo 2067º n.2 do CC-, o que não sucede na ineficácia do acto em relação à massa insolvente para a qual basta a prática do acto em contravenção ao disposto no artigo 81º n.1 do CIRE).
Aqui chegados, claramente se evidencia a improcedência da arguição do apelante quanto à ilegitimidade da massa insolvente, ao confundir a presente acção para declaração de ineficácia do acto no âmbito do processo de insolvência, com aquela outra de sub-rogação dos credores para aceitação da herança, prevista nos artigos 2067º do CC e 1041º do CPC, já que, como vimos, não está em causa qualquer aceitação da herança por parte da massa insolvente, nem os requisitos acima elencados para a sua dedução.
Louvando-nos em tudo o que vem de se expor, carece de igual modo, sustentação, a arguida caducidade da acção pelo decurso do prazo de seis meses, previsto no artigo 2067º n.2 do Código Civil para a propositura da acção de aceitação da herança por parte dos credores.
Reiteramos, o que está em causa na presente acção é a ineficácia do acto de repúdio da herança praticado pelo insolvente, quando não tinha legitimidade para o fazer, já que, após a declaração de insolvência, deixou de ter a administração e o poder de disposição dos bens e direitos de natureza patrimonial, quer dos que já tinha, quer dos que adquiriu após tal declaração, os quais passaram a estar na disposição do administrador de insolvência (4).
Sustenta ainda o apelante, que por força do disposto pelo artigo 2062º do Código Civil, considerando que os efeitos do repúdio retrotraem-se ao momento da abertura da sucessão (considerando-se como não chamado o sucessível que a repudia), os bens da herança jamais integraram o conjunto de bens da massa insolvente, sujeitos à sua administração. Esquece, no entanto, que, como se salienta na decisão recorrida, «as pretensões da massa insolvente são precisamente a ineficácia do ato de repúdio, pelo que, sendo o ato julgado ineficaz, a consequência jurídica dessa ineficácia é o retroagir ao momento imediatamente anterior à data da celebração do repúdio e o devedor passar a ter na sua esfera o referido quinhão hereditário e a ter a possibilidade de conferir ao mesmo o destino que lhe aprouvesse (caso não tivesse sido declarado insolvente)».
Com efeito, a ineficácia do acto de repúdio da herança por parte do insolvente, conduz, sem quaisquer outros requisitos (mormente, o do perigo para a satisfação dos credores), a que tal acto não produza, em relação à massa insolvente (ineficácia relativa), os efeitos jurídicos que tenderia a produzir, o que significa que para efeitos da insolvência, tudo se passa como se tal acto não tivesse ocorrido. O quinhão hereditário do insolvente integrou aquele património autónomo (artigo 46º do CIRE), e como tal pode ser apreendido para a massa insolvente.
A apelação é, assim, totalmente improcedente, devendo a decisão recorrida manter-se nos seus precisos termos.
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V. – DECISÃO

Perante o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso, mantendo, em consequência, a decisão recorrida.
Custas a cargo do apelante.
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Guimarães, 13 de Julho de 2021

Elisabete Coelho de Moura Alves (Relatora)
Fernanda Proença Fernandes
Alexandra Viana Lopes
(assinado digitalmente)



1. Citados in Rabindranath Capelo de Sousa , LIÇÕES DE DIREITO DAS SUCESSÕES, II VOLUME, pags. 34 e segs.
2. Na expressão de Pires de Lima e Antunes Varela in Código Civil, Anotado, vol VI, págs 115.
3. In Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª ed., págs. 410 e segs.
4. Vide a propósito o acórdão desta Relação de Guimarães, processo 258/14.8TJPRT-J.G2, de 9.04.2019, in www.dgsi.pt