Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2226/13.8TJVNF.G1
Relator: FERNANDA PROENÇA FERNANDES
Descritores: GARANTIA DAS OBRIGAÇÕES
INTERPRETAÇÃO
AVAL
FIANÇA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/15/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (da relatora):

I. Quando nada foi alegado pelas partes acerca do sentido subjacente às declarações negociais emitidas, o sentido da vontade negocial tem de ser aferido em função da regra geral que consagra uma doutrina objectivista da interpretação, ao fazer prevalecer o sentido que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante.

II. Constando num documento particular (e não em qualquer título cambiário) que “para garantia do bom e integral cumprimento deste acordo, oferecem os outorgantes as seguintes garantias: [o] terceiros e quarto outorgantes dão pelo presente o seu respectivo aval à 2ª outorgante, renunciando desde já ao benefício da excussão prévia”, o termo aval foi indevidamente empregue.

III. Considerando que os ali terceiros e quarto outorgantes declararam expressamente pretender garantir o bom e integral pagamento do acordo, declarando mesmo prescindir do benefício da excussão prévia, podemos concluir, que o que os ali garantes constituíram foi uma fiança, garantindo com o seu património a satisfação do direito de crédito desta sobre o devedor.

IV. Se assim não se interpretasse tal declaração, nenhum sentido faria a afirmação de que prescindem do benefício da excussão prévia, já que, se avalistas fossem, não haveria que prescindir desse benefício, pois este não existiria.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório.

“X- Cooperativa Agrícola e dos Produtores de Leite, Crl” intentou a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo ordinário contra M. P. (1º réu), D. F. (2º réu), A. D. (3º réu) - entretanto falecido e substituído na causa pelos herdeiros habilitados (os já referidos M. P., D. F. e ainda Maria – 3ª ré) -, António (4º réu), e mulher L. S. (4ª ré), João (5º réu) e mulher, Z. R. (5ª ré) e “Y – Investimentos Imobiliários, S.A., Sociedade Anónima” (6ª ré), pedindo:

a) a condenação dos 1.º, 2.º e 3.º réus, solidariamente, a pagarem à autora o valor de € 1.172.691,30, sendo € 290.791,40 referentes a juros vencidos e calculados à data da petição, quantia esta a que devem ainda acrescer juros de mora vincendos, à taxa legal prevista para as obrigações de natureza comercial, desde a citação até à data do efectivo e integral pagamento.
b) a declaração de nulidade do contrato-promessa celebrado entre os 3.º réus e o 4.º réu marido, porque simulado.
c) a declaração da nulidade da petição inicial que subjaz ao processo 1105/08.5TJVNF, do 1.º juízo cível, porque simulada nos termos expostos;
d) a declaração da nulidade de todo o ulterior processado do processo n.º 1105/08.5TJVNF, do 1.º juízo cível;
e) a declaração de nulidade do negócio jurídico de dação em cumprimento celebrado entre os 3.º réus e o 5.º réu marido;
f) a declaração de nulidade do negócio jurídico da venda à ré Y pelos 4.ºs. e 5.ºs. réus, porque simulados, e ainda porque, tendo na sua génese os negócios jurídicos simulados entre os 3.ºs réus e os 4.º réu marido e 5.º réu marido, sendo estes nulos, acarretam automaticamente a nulidade dos actos subsequentes que dele dependam, como é o caso desse negócio jurídico.

A autora sustentou tais pedidos na subscrição, pelos 1º a 3º réus, do documento de confissão de dívida datado de 5 de Março de 2009, prestado pela insolvente (sociedade “Irmãos P.”, gerida pelo falecido 1º réu, M. P., e pelo 2º réu, D. F.) e pela qual aqueles declararam prestar “aval (…) renunciando ao benefício da excussão prévia”; no não pagamento das prestações nos termos acordados; na venda de metade indivisa dos imóveis dos autos pelos 3ºs réus aos 4º réus e a outra metade indivisa aos 5ºs réus, que procederam depois à venda à 6ª ré.

Mais alegou a ausência de verdadeira vontade de comprar e vender e antes a vontade concertada e consciente de todas as partes intervenientes, conhecedoras das dívidas dos réus, porem a salvo os únicos bens imóveis de que os primeiros dispunham, de possível execução da dívida.

Os 3ºs réus, A. D. e Maria, contestaram, invocando o caso julgado entre este processo e o decidido no processo 379/09.9TJVNF e impugnando os demais factos (vd. fls. 591 a 606).

Os 4ºs réus, António e L. S., invocaram também a excepção de caso julgado, por força do decidido no processo 379/09.9TJVNF, e impugnaram os demais factos articulados na petição (fls. 581 a 586).
Os 5ºs réus, João e Z. R., impugnaram todos os factos alegados na petição (fls. 566 a 573).
A ré Y impugnou o crédito, sustentando ainda que o aval prestado não constitui meio válido de obrigar porquanto apenas tem lugar nas relações cartulares, o que não é o caso da relação invocada nestes autos (fls. 519 a 526).
Respondeu a autora, pugnando pela improcedência das invocadas excepções (fls. 744 a 753).

Considerando parcialmente inepta a petição inicial, foram os 3ºs e 4ºs réus (A. D. e mulher e António e L. S.) absolvidos da instância, quanto aos pedidos deduzidos nas als. c) e d) da petição inicial.
Conhecendo do caso julgado, foi decidida a absolvição da instância dos 3º e 4º réus (A. D. e cônjuge, João e cônjuge) quanto ao pedido constante da alínea b) da petição (declaração da nulidade do contrato-promessa celebrado entre os 3ºs réus e 4ºs réus, porque simulado) e, bem ainda, parcialmente, quanto ao pedido formulado na alínea f) da petição, na parte relativa à nulidade do negócio celebrado entre os 3ºs e 5º réus.
Mais foi considerando que a excepção de caso julgado quanto à nulidade do contrato promessa tem como consequência que o pedido formulado sob a alínea f) da petição faleça desde já, uma vez que este tinha como pressuposto a verificação da simulação do contrato promessa.

Assim, foram os 3ºs e 5º réus absolvidos do pedido.

Determinou-se assim o prosseguimento dos autos para decisão dos pedidos formulados nas alíneas a) e) e f) parcialmente, apenas quanto aos 1º, 2º, 3º, 5º e 6º réus, já que os 4ºs réus foram totalmente absolvidos dos pedidos, ou seja:

a) Serem os aqui 1.º, 2.º e 3.º réus, solidariamente, condenados a pagar à autora o valor de € 1.172.691,30, quantia esta a que devem ainda acrescer juros de mora sobre o capital à taxa legal prescrita para as obrigações de natureza comercial desde a citação até à data do efectivo e integral pagamento.
e) Ser declarada a nulidade do negócio jurídico de dação em cumprimento celebrado entre os 3.ºs réus e o 5.º réu marido porque simulado;
f) Ser declarada a nulidade do negócio jurídico da venda à ré Y pelos 5.ºs réus, porque simulados, e ainda porque, tendo na sua génese os negócios jurídicos simulados entre os 3.º réus e 5.º réu marido, sendo estes nulos, acarretam automaticamente a nulidade dos actos subsequentes que dele dependam, como é o caso desse negócio jurídico.

A autora recorreu do despacho saneador e foi proferido acórdão pelo Tribunal da Relação no sentido de confirmar a decisão, ainda que com fundamentos diversos – vd. fls. 139 ss.
A autora recorreu novamente e, admitida parcialmente a revista, mantiveram-se as decisões anteriores, com excepção do que fora decidido quanto à absolvição dos 3º e 5º réus de parte do pedido atinente à alínea f).
Foi fixado o objecto do litígio (existência de crédito da autora sobre os 1º, 2º e 3º réus; acordo simulatório entre os 2º réus e os 5º réus relativamente ao contrato e escritura de dação em pagamento; conhecimento, por parte de todos os réus, da existência da dívida e diminuição da garantia patrimonial) e seleccionada a matéria de facto (já assente e a provar).
Na pendência da acção faleceu o réu M. P., tendo sido habilitados, como seus herdeiros, J. P. e G. P., menores de idade, representados por A. S., sua mãe, para com eles prosseguirem os termos da demanda.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:

“Dispositivo:

Pelo exposto, vai a presente acção declarada parcialmente procedente e, em consequência, os réus D. F. e Maria - por si e na qualidade de herdeiros de A. D. – e os habilitados J. P. e G. P., representados por A. S. - estes, exclusivamente, na qualidade de herdeiros de M. P. e, por conseguinte, pelas forças da herança -, condenados a pagar a quantia de € 1.000.000,00 (um milhão de euros) à “X - Cooperativa Agrícola e dos Produtores de Leite, Crl”, quantia esta acrescida de juros à taxa de 3%, contados desde a citação até integral pagamento.
No mais, vai a acção julgada improcedente, com a consequente absolvição dos 1º, 2º e 3ºs réus de todos os demais pedidos e com a absolvição dos 5ºs e 6º réus absolvidos de todos os pedidos contra si formulados.
Custas pela autora e pelos 1º, 2º e 3ºs réus na proporção do decaimento, sem prejuízo dos apoios judiciários concedidos – art. 527º do CPC.
Notifique e registe.”
*
Inconformada com esta decisão, a ré Maria, dela interpôs recurso e formulou, a terminar as respectivas alegações, as seguintes conclusões (que se transcrevem):

“CONCLUSÔES:

1. O Tribunal a quo errou na interpretação que fez do art. 236º do C.C., bem como do regime jurídico do aval e da fiança, previsto na LULL e 627º e ss. do C.C.
2. De facto, o Tribunal considerou que o termo aval foi indevidamente empregue no acordo a que alude o facto 1) dos provados (clausula quinta) e que o que os ali garantes – entre os quais a recorrente - constituíram foi uma fiança e que, como tão, são também responsáveis pelo pagamento do valor em dívida lá consignado.
3. Fundamentou tal decisão no citado art. 236º do C.C.
4. Desde logo, o aval e a fiança não se confundem e o seu regime é absolutamente distinto.
5. Além do mais, não foi sequer alegada pela A. qualquer discrepância entre a vontade real e a declarada pela recorrente e demais réus no dito acordo, nem produzida qualquer prova nesse sentido.
6. Só nessa hipótese poderia o Tribunal socorrer-se do disposto no art. 236º do C.C. para motivar e alcançar a decisão recorrida. Não é o caso.
7. A tudo isto acresce que a vontade de prestar fiança tem de ser expressamente declarada.
8. O que está em causa é um aval deficientemente prestado, por isso nulo e desprovido de qualquer efeito.
9. Consequentemente, a interpretação do acordo não pode colidir ou ir além do que resulta do seu próprio texto.
10. Haverá, assim, a concluir que nenhuma garantia pessoal foi dada naquele acordo de pagamento pelos 1º, 2º e 3ºs RR., pelo que, por inerência da posição de avalistas, estes nada devem à A. recorrida.

Termos em que, V. Exas., Venerandos Desembargadores, acolhendo as conclusões que antecedem e revogando a decisão recorrida e substituindo-a por outra que absolva a ré da totalidade do pedido, farão inteira e sã Justiça.”

Contra-alegou a autora X – Cooperativa Agrícola e dos Produtores de Leite de V.N.F. – C.R.L., terminado com as seguintes conclusões:

“EM CONCLUSÃO:

1. A douta sentença sob recurso na parte em que julgou parcialmente procedente e, em consequência, condenou os RR. D. F. e Maria - por si e na qualidade de herdeiros de A. D. – e os habilitados J. P. e G. P., representados por A. S. - estes, exclusivamente, na qualidade de herdeiros de M. P. e, por conseguinte, pelas forças da herança -, a pagar a quantia de 1.000,000,00 € à A., quantia esta acrescida de juros à taxa de 3%, contados desde a citação até integral pagamento, julgou a questão sub judice com perfeita observância dos factos e da lei aplicável, não merecendo, pois, qualquer censura.
2. No fundo, o problema deste processo é o de saber o sentido e alcance do acordo de pagamento celebrado ente a A. e os 1.º, 2.º e 3.º RR. e das manifestações de vontade negocial pelas partes que esteve na génese do acordo de pagamento,
3. Isto é, urge resolver a interpretação dos princípios determinantes das vontades negociais manifestadas pelos contratantes, e para tal é primordial socorrer-se o interprete do disposto no artigo 236.º e 233.º, ambos do C.C.;
4. Preceitua o artigo 236.º do Código Civil, que “ A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante”;
5. À luz do disposto no artigo 233.º do C.C. o julgador deu e bem preponderância ao acordado entre as partes, isto é, da manifestação de vontade contratual, expressa no sentido de os ali terceiros e quarto outorgantes (os aqui 1.º, 2.º e 3.º RR.) declararam expressamente pretender garantir o bom e integral pagamento do acordo, declarando mesmo prescindir do benefício da excussão prévia.
6. Ao contrário do que pretende fazer crer a recorrente, resulta da sentença recorrida e da prova produzida em audiência de discussão e julgamento que, do teor das declarações ínsitas no acordo de pagamento, das declarações de vontade expressamente manifestadas pelos 1º, 2º e 3ºs RR., aqueles pretenderam garantir o bom e integral pagamento do acordo, respondendo pessoalmente perante a A. Pelo cumprimento da dívida contraída pela Sociedade Agrícola Irmãos P.;
7. A globalidade da prova produzida apontou no sentido pretendido na declaração constante do acordo assinado pela recorrente, demais RR. e A., resultando demonstrado à saciedade a existência de uma vontade real comum ou coincidente das partes e que correspondeu ao sentido efectivamente pretendido pelos declarantes e o eventual cconhecimento efectivo pelo declaratário;
8. A interpretação feita pela MM Juiz a quo do acordo de pagamento extrai consequências jurídicas que têm total correspondência com a prova produzida em audiência de julgamento, nomeadamente, com os concretos pontos de passagem gravados dos depoimentos da testemunhas referidos supra,
9. De acordo com o teor literal e corpo do acordo de pagamento resulta suficientemente demonstrado que das declarações de vontade manifestadas pelos 1º, 2º e 3ºs RR., estes declararam expressamente pretender garantir pessoalmente o bom e integral pagamento do acordo;
10. Como bem fundamentou a decisão recorrida, o que os ali garantes constituíram foi uma fiança, ou seja, um vínculo jurídico através do qual os referidos outorgantes se obrigavam pessoalmente perante o credor (ora autora), garantindo com o seu património a satisfação do direito de crédito desta sobre o devedor – nº1 do art. 627º do CC.
11. A douta sentença fez correcta aplicação e interpretação da lei, mormente, o estatuído no artigo 236.ºº, do Código Civil;
12. Como bem fundamentou a douta sentença, se assim não se interpretasse, não faria qualquer sentido a afirmação de que prescindem do benefício da excussão prévia, já que, se avalistas fossem, não haveria que prescindir desse benefício, pois este não existiria (vd. arts. 47º da LULL e 638º do CC).
13. Face a estes circunstancialismos o MM julgador socorreu-se do disposto nos artigos 233.º e 236.º, ambos do Código Civil, o que o fez, aplicando bem esses preceitos legais ao caso vertente;
14. Face a tudo o que antecede, deve manter-se a douta sentença na parte em que julgou parcialmente procedente e, em consequência, condenou os RR. D. F. e Maria - por si e na qualidade de herdeiros de A. D. – e os habilitados J. P. e G. P., representados por A. S. - estes, exclusivamente, na qualidade de herdeiros de M. P. e, por conseguinte, pelas forças da herança -, a pagar a quantia de 1.000,000,00 € à A., quantia esta acrescida de juros à taxa de 3%, contados desde a citação até integral pagamento, improcedendo a apelação do douto recurso, uma vez que a douta sentença não merece qualquer reparo por ter realizado correcta aplicação e interpretação da lei;

Assim e em conclusão, devem improceder todas as conclusões da Apelante, pelo que a douta sentença na parte em que julgou parcialmente procedente e, em consequência, condenou os RR. D. F. e Maria - por si e na qualidade de herdeiros de A. D. – e os habilitados J. P. e G. P., representados por A. S. - estes, exclusivamente, na qualidade de herdeiros de M. P. e, por conseguinte, pelas forças da herança -, a pagar a quantia de 1.000,000,00 € à A., quantia esta acrescida de juros à taxa de 3%, contados desde a citação até integral pagamento deve ser confirmada assim se fazendo
J U S T I Ç A!”
*
Igualmente inconformada com a sentença, a autora X – Cooperativa Agrícola e dos Produtores de Leite, C.R.L., dela interpôs recurso e formulou, a terminar as respectivas alegações, as seguintes conclusões (que se transcrevem):

“CONCLUSÕES:

1) Entende a recorrente que o Tribunal a quo decidiu mal, incorrendo em erro na apreciação da matéria de facto, quando julgou não provados os factos vertidos nas alíneas a) a f) da matéria dada como não provada da douta sentença;
2) Resulta uma convicção segura de que os actos praticados pelos 3.ºs RR., 5.ºs RR. e 6.ª R. se trataram de actos fictícios com a única intenção de enganar a A., transmitindo formalmente os bens que constituíam, à data, o único património dos 3.ºs RR., de forma a impedir que aqueles pudessem arrogar-se titulares de qualquer direito sobre os mesmos;
3) A convicção da recorrente assenta da conjugação de determinados factores, realidades concretas que perduram no tempo, independentemente da feitura dos negócios jurídicos da suposta transmissão de bens em apreço, nomeadamente, pela circunstância de que apesar das sucessivas transmissões dos bens em apreço, os 3ºs RR. (atualmente a R. Maria, em face do falecimento do R. A. D.) e o 2.º R. D. F., continuaram a residir e a explorar os imóveis, sem qualquer alteração, como se nenhuma transmissão tivesse ocorrido;
4) Os elementos probatórios carreados para os autos impõem decisão diversa nos termos do disposto na alínea b), n.º 1, do art. 640.º, do CPC;
5) A prova de que os 3ºs RR. (atualmente a R. Maria, em face do falecimento do R. A. D., este por sua vez que sempre morou na mesma residência e acabou por lá falecer) e o 2.º R. D. F., continuaram e continuam a viver na casa e a explorar os terrenos alegadamente adquiridos pelos 5.ºs RR. e, posteriormente, pela 6.ª R., retirando dos mesmos os frutos de que é susceptível, em virtude da exploração agrícola a que se dedica o R. D. F., resultou incontroversa, dos depoimentos de partes dos próprios RR. Maria e D. F., e igualmente da prova testemunhal produzida em audiência de julgamento;
6) As declarações das testemunhas produzidas em sede de audiência de discussão e julgamento terão de ser valoradas em função das regras da experiência comum e nunca em função de eventual arbítrio do julgador;
7) E do mesmo modo ao descredibilizar todas as testemunhas da A. também violou o disposto no artigo 607.º do CPC;
8) É certo que o julgador é livre na apreciação da prova, porém, esta liberdade tem de ser conjugada pelas regras da experiência comum;
9) A prova da simulação é uma prova de padrão indiciária, assente em meros indícios (objectivos e subjectivos), em conjugação com as regras da lógica e da experiência comum, concretizados em factos e demonstrações de vontade que se reflectem no decurso do tempo.
10) O acordo simulatário propriamente dito é de prova impossível porque os simuladores não se põem a simular à frente dos outros, mas sim às escondidas, de forma sub-reptícia.
11) Não é compaginável com as regras da lógica e da experiência comum que uma empresa, uma sociedade comercial com escopo lucrativo, adquire uns bens imóveis e de acordo com o seu objecto social em vez de os revender, ou quiçá, arrendar, a troco de pagamento de renda, para atingir lucro, consinta na pessoa do legal representante que estranhos (nem sequer as pessoas que venderam à empresa os ditos imóveis, isto é, os 5.ºs RR.), residem, explorem, e fruem e usufruem dos imóveis, a seu belo prazer, a título gratuito,
12) Os 3.ºs RR, em Outubro de 2008, ficam sem parte substancial do património, num primeiro momento, em virtude da acção judicial, não contestada, contra eles proposta pelo 4.º R. António, primo e pessoa especialmente relacionada com os 3.ºs RR., mais, ainda no mesmo mês de Outubro de 2008, os 3.ºs RR., dão em dação de pagamento ao 5.º R. João, o restante património que possuiam, ficam sem nada, mas curiosamente, nunca desalojam o “pé” dos prédios, o R. A. D. faleceu na casa onde sempre residiu, a R. Maria e o R. D. F., volvidos 10 anos depois, ainda lá vivem, e curiosamente no dia-a-dia, manuseiam a exploração, quando precisam fazer a sanidade animal o R. D. F., pasme-se ou não, liga para a A. para esse efeito;
13) Foi requerido e deferido pelo Tribunal esclarecimentos de prova que as partes fizeram de conta que não ouviram e que como tal devem ser sancionadas com inversão do ónus de prova por decorrência 417, nº 2 do CPC e do 344 do CC.
14) Apesar de ter sido oportunamente ordenado e com trânsito julgado no despacho saneador que diz notifique como requerido a folhas 786 d), só a R. Maria veio esclarecer que estava lá por favor basicamente, os outros nada disseram, nada esclarceram porque não tinha nada para esclarecer porque esta história é “gato escondido com rabo de fora”.
15) É num contexto de maquinação entre os RR., com vista a afastar os bens imóveis em apreço da titularidade dos 3.ºs RR. , que vem celebrada a dação em cumprimento celebrado entre os 3.º RR. e o 5.º R. marido, e o negócio de compra e venda celebrado entre os os 5.º RR. e a 6.ª R.
16) Da conjugação do depoimento de parte prestado pelos RR. Maria e D. F., dos depoimentos da testemunhas M. M. e C. S., com base nos pontos concretos de passagem gravados e melhor referidos supra, aliado às regras da lógica e da experiência comum, no entendimento da recorrente é forçoso concluir que a resposta às alíneas referidas supra teriam de ser necessariamente positivas.
17) Deve ser dado como provado que nenhum contrato de dação em cumprimento foi efectivamente celebrado entre os 3.º RR. e o 5.º R. marido ocorrendo de forma deliberada, consciente, de má-fé, simulação do negócio jurídico em causa;
18) Que Houve divergência intencional entre a vontade real e a vontade declarada pelos aqui 3.º RR. e o 5.º R. marido no dito negócio jurídico, porque o 5.º R. marido não adquiriu propriedade alguma dos imóveis em causa, nem pagou qualquer preço aos 3.º RR.;
19) Deve ser dado igualmente como provado que nenhum contrato de compra e venda celebrado entre os os 5.º RR. e a 6.ª R foi efectivamente celebrado, ocorrendo de forma deliberada, consciente, de má-fé, simulação do negócio jurídico em causa;
20) E, que Houve divergência intencional entre a vontade real e a vontade declarada na prestada pelos aqui os 5.º RR. e a 6.ª R , no dito negócio jurídico, porque na verdade, não quiseram assim, aqueles RR. transmitir e adquirir qualquer propriedade dos imóveis em causa, a R. Y não adquiriu a propriedade alguma dos imóveis em causa, nem pagou qualquer preço aos 5.º RR.;
21) Resulta, ainda, provado de forma indiciária que os 5.ºs RR. e 6.ª R. eram conhecedores da existência da dívida dos 3.º RR. à A. e que com os negócios jurídicos supra, todos os RR. Atuaram concertadamente para exaurir as garantias do crédito da A.
22) Ora, alterando-se o julgamento dado à matéria de facto nos termos que se expuseram igualmente se terá de alterar o julgamento dado à matéria de direito nos termos que se passarão a expor infra:
23) No fundo, o problema deste processo é o do enquadramento factual e da motivação subjacente à conduta dos 3.º RR., 5.º RR. e 6.ª R., nos negócios jurídicos efectuados alegadamente entre si, e saber, pois, se, e, em que termos, tais negócios constituem acordos simulatórios;
24) Sendo muito difícil a prova da simulação entre os simuladores, ela radica muitas vezes, em indícios e ilações baseados em factos que à luz da experiência comum podem revelar a existência dos requisitos previsto para a simulação.
25) Nesse sentido, já o Prof. Beleza dos Santos dizia que “aqueles que efectuam contratos simulados ocultam os seus propósitos e intenções, não manifestando publicamente a sua vontade de simular, antes se esforçando em tornar verosímil o que há de aparente e fictício no acto que praticam”
26) Para a douta sentença ora sob recurso, não havendo depoimento confessório por parte dos RR. simuladores, equivale automaticamente a fazer “cair por terra” qualquer prova de simulação, e essa prova terá necessariamente de ser feita através de indícios e circunstâncias fácticas que aliado à luz da experiência comum possam revelar e presumem a existência de simulação.
27) Por essa razão, defende o Prof. Beleza dos Santos, que “há quase sempre que recorrer para a demonstrar a um conjunto de factos conhecidos, tais como as condições pessoais ou patrimoniais dos outorgantes, as relações em que eles se encontram entre si, os factos que precedem a realização do acto jurídico, as circunstâncias em que foi celebrado, o seu próprio conteúdo e finalmente os factos posteriores à celebração, mas com eles relacionados”.
28) Para que exista simulação é necessário que cumulativamente se verifiquem os seguintes requisitos: a) intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração; b) acordo entre declarante e declaratário-acordo simulatório; c) intuito de enganar terceiros.
29) Nos acordos de pagamento efectuados, a A. aceitou o aval dos aqui 1.º R., 2.º R. e 3.º RR. no pressuposto e conhecimento de que estes eram proprietários de um vasto e valorizado património imobiliário, (Cfr. Docs.º n.ºs 10 a 18 juntos à p.i.).
30) A A. tinha profundo conhecimento que os aqui 1.º R., 2.º R. e 3.º RR. detinham um vasto património imobiliário e não só, que caso fosse necessário accioná-los em futura acção judicial de cobrança coerciva executiva, que aquele acervo patrimonial atento o elevado montante do débito de que aqueles RR. tinham para com a A. servia como garantia patrimonial de satisfação integral do seu crédito.
31) No negócio de dação em cumprimento celebrado entre os 3.º RR. e o 5.º R. marido, não existiu, ocorrendo de forma deliberada, consciente, de má-fé, simulação do negócio jurídico em causa, porque na verdade, não quiseram assim, aqueles RR. transmitir e adquirir qualquer propriedade dos imóveis em causa, o 5.º R. marido não adquiriu a propriedade alguma dos imóveis em causa, nem pagou qualquer preço aos 3.º RR., pelo que esse negócio jurídico foi simulado e por isso anulável nos termos gerais de direito, constatando-se igualmente a existência de divergência total entre a vontade real e a vontade declarada na declaração prestada pelos aqui 3.º RR. e o 5.º R. marido., no negócio jurídico dação em cumprimento celebrado.
32) No negócio de compra e venda celebrado entre os 5.ºs RR. e a 6.ª R., os 5.º RR. (estes no que respeita à ½ da quota adquirida aos 3.º RR. nos prédios acima mencionados), em conluio com a 6.ª R., de má fé, e de plena consciência, “cuidaram” de “vender” a esta última sociedade anónima, em 06/12/2010, todos os imóveis em causa que haviam “adquirido” no âmbito dos negócios jurídicos simulados com os 3.º RR. (Cfr. Docs.º n.ºs 10 a 18 juntos à p.i.).
33) No negócio de dação em cumprimento celebrado entre os 3.º RR. marido e o 5.º R. marido, neste negócio de compra e venda celebrado entre os 5.º RR. e a 6.ª R., não existiu, ocorrendo de forma deliberada, consciente, de má-fé, simulação do negócio jurídico em causa, porque na verdade, não quiseram assim, aqueles RR. transmitir e adquirir qualquer propriedade dos imóveis em causa, a R. Y não adquiriu a propriedade alguma dos imóveis em causa, nem pagou qualquer preço aos 5.º RR., pelo que esse negócio jurídico foi simulado e por isso anulável nos termos gerais de direito, constatando-se igualmente a existência de divergência total entre a vontade real e a vontade declarada na declaração prestada pelos aqui 5.º RR. e a 6.ª R., no negócio celebrado.
34) Encontrando-se, assim, esses negócios jurídicos simulados (dação em cumprimento de 14/10/2008 e a compra e venda de 06/12/2010) celebrados entre os 3.º RR., os 5.º RR. E a 6.ª R. feridos do vício de nulidade, e cuja declaração como é passível de ser invocada a todo o tempo, desde já aqui se requer para os devidos e legais efeitos.
35) A não se entender existir a referida nulidade por acordo simulatório presente nesse negócios jurídico celebrados entre os 5.º RR. e a 6.ª R., sempre se dirá que esse negócio, estaria na sua génese ferido do mesmo vício de nulidade que padece o negócio jurídico de dação simulado entre os 3.º RR. e 5.º R. marido, sendo este nulo, acarreta automaticamente a nulidade dos actos subsequentes que dele dependam, como é o caso da dação em cumprimento;
36) Os negócios foram celebrados com intenção de enganar, incutindo a ideia errada de que se tratava de negócios verdadeiros e, desse modo, os 3ºs RR. não eram titulares de património (que servisse de garantia patrimonial).
37) Existe por isso divergência intencional entre as vontades e as declarações negociais emitidas por todos os outorgantes dos títulos em apreço e acordo simulatório de todos na medida em que sabiam e queriam efectivamente contribuir para criar tal convicção errónea.
38) Mais se verifica que todos intervieram com a intenção de enganar terceiros fazendo crer à Autora que se tratava de negócios verdadeiros e prejudicando as suas pretensões, exaurindo as garantias patrimoniais do crédito da A.
39) Estamos perante situações de simulação absoluta que, nos termos previstos pelos artigos 240º, n.º 2 e 289º, n.º 1 do Código Civil, geram a nulidade, e a consequente destruição retroactiva dos efeitos dos negócios impugnados.
40) Esses actos e negócios não correspondem à real vontade dos outorgantes, tendo sido simulados com o objectivo de subtrair os bens em causa do património dos devedores e tornar impossível a satisfação do crédito da A.
41) Não foi pago qualquer preço pelas aludidas transmissões, sendo que todos os intervenientes nesses actos tinham conhecimento do crédito da A.
42) São, por isso, nulos por simulação e, ainda que assim não seja, sempre serão ineficazes relativamente à A. nos termos previstos no art. 610º e segs. do CC.
43) A sentença recorrida na parte em que absolveu os 3.º RR, 5.ºs RR. e 6.ª R. dos pedidos formulados contra si pela A., enferma ainda de erro na aplicação do direito, nomeadamente, ao violar a lei substantiva que consistiu na aplicação ao caso concreto dos artigos 240.°, n.º 2, 289.º, n.º 1, 342.°, 349.°, 351.°, e 610.º, todos do Código Civil.
44) Face a tudo o que antecede deve revogar-se a sentença ora recorrida e ser substituída por outra que declare a nulidade dos negócios jurídicos celebrados entre os 3.º RR., os 5.º RR. e a 6.ª R., isto é, a venda à R. Y e a dação em cumprimento ao R. João, porque tendo na sua génese os negócios jurídicos simulados entre os 3.º RR. e os 5.º R. marido, sendo estes nulos, acarretam automaticamente a nulidade dos actos subsequentes que dele dependam, como é o caso desses negócios jurídicos, declaração de nulidade essa, invocável a todo o tempo e que de igual modo se requer para os devidos e legais efeitos;

Face a tudo que antecede e atendendo aos motivos acima mencionados, deve revogar-se a sentença ora recorrida e ser substituída por outra que:

a) declare a nulidade do negócio jurídico dação em cumprimento celebrado entre os 3.º RR. e o 5.º R. marido porque simulado nos termos expostos;
b) declare a nulidade do negócio jurídico da venda à R. Y pelos 5.º RR. porque simulados e ainda porque tendo na sua génese os negócios jurídicos simulados entre os 3.º RR. e 5.º R. marido, sendo estes nulos, acarretam automaticamente a nulidade dos actos subsequentes que dele dependam, como é o caso desse negócio jurídico;
c) declare, em decorrência de tudo o que antecede, que os negócios nulos não produzem quaisquer efeitos jurídicos retornando os prédios à titularidade dos 3.os RR. seus efectivos proprietários;
d) Em todos os casos dos pedidos anteriores, ser declarada a nulidade dos registos realizados nas Conservatórias do Registo Predial em razão destes negócios simulados, ordenando o cancelamento dos mesmos quanto aos prédios descritos na Conservatória do Registo Predial sob os números (...);
Decidindo nesta conformidade será feita:
J U S T I Ç A !”.

Contra-alegou a ré Maria, pugnando pela improcedência das alegações de recurso da autora e pela manutenção da decisão recorrida.
Igualmente contra-alegou a ré Y – Investimentos Imobiliários, S.A., pugnando pela improcedência do recurso interposto pela autora, e pela manutenção da douta sentença recorrida.
*
Os recursos foram admitidos, por despacho de 14/09/2018, como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
*
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II. Questões a decidir.

Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal consistem em saber:

1 – Da impugnação da matéria de facto;
2 – Se deve a sentença apelada ser revogada/alterada, em razão da alteração da decisão relativa à matéria de facto proferida pelo tribunal a quo – no seguimento da impugnação da autora/apelante - decidindo-se pela procedência dos restantes pedidos da acção;
3 – Da interpretação feita na sentença do art. 236º do Código Civil., bem como do regime jurídico do aval e da fiança, previsto na LULL e 627º e ss. do Código Civil.
*
III. Fundamentação de facto.

Os factos que foram dados como provados na sentença sob recurso são os seguintes:

1) Por escrito particular denominado “acordo de pagamento”, datado de 5 de Março de 2009, onde figurava como primeira outorgante a ora autora X, como segunda outorgante a “Sociedade Agrícola Irmãos P., Ld.ª”, como terceiros outorgantes M. P. e D. F. e como quartos outorgantes A. D. e Maria, por todos subscrito, foi consignado, entre o demais, o seguinte: “Primeira – Acordam a 1ª e 2ª outorgantes, após vistoriadas as contas correntes recíprocas, em fixar o valor da dívida da segunda para com a primeira, que vem sendo objecto das acções judiciais 4038/08.1 (…), 4039/08.0 (…), bem como (…) 379/09.9 TJVNF (…) em um milhão de euros, à data de 31.12.2008, sobre o qual incidirão juros de mora, calculados à taxa de 3%. Segunda – (…). Terceira – Aquelas prestações serão pagas da seguinte forma: a) No primeiro ano (…) € 5.500,00; b) Nos meses dos nove anos seguintes (…) € 9.917,53; c) No acto do recebimento do RPU (…) a 2ª outorgante entregará à 1ª a quantia de 12.000,00 €”; Quarta – Acordam ainda que o não pagamento de qualquer uma das acima mencionadas prestações importa o vencimento imediato da totalidade da dívida; Quinta – Para garantia do bom e integral cumprimento deste acordo, oferecem os outorgantes as seguintes garantias: A) Os terceiros e quarto outorgantes dão pelo presente o seu respectivo aval à 2ª outorgante, renunciando desde já ao benefício da excussão prévia. B) Pelo presente contrato, e paralelamente a este, para garantia da obrigação de pagamento assumida, a segunda outorgante constitui a favor da primeira um penhor (…) que incide sobre as instalações da vacaria (…) bem como sobre os bens móveis melhor identificados [nas] verbas um a sete do auto de arresto (…) [de fls. 61 e 62] (…), bem como a quota leiteira (…) e ainda todos os móveis objecto do contrato de cessão de exploração outorgado em 27/05/2008, entre a segunda outorgante e a MR exploração agro-pecuária S.A. [fls. 60] (…). Os bens objecto deste penhor irão permanecer na posse da segunda outorgante e da referida MR S.A., podendo as mesmas fazer uso deles no exercício das suas actividades de produção de leite (…). Sexta (…). Sétima - A 2ª outorgante obriga-se a obter de António e mulher L. S. (…) autorização para constituição do presente penhor, em reconhecimento de que as instalações da dita vacaria constituem benfeitorias que não pertencem ao prédio deles, denominado “(...)” (…). Oitava – Com a outorga do presente acordo de pagamento, declaram todos os outorgantes que irão colocar fim às diversas acções judiciais e procedimentos cautelares intentadas entre si (…) através da desistência de cada pedido. Nova – Nesta data, a primeira outorgante devolve e obriga-se a devolver, à segunda e aos terceiros outorgantes, todos os contratos e letras ou cheques que titulam obrigações desta para com aquela (…). Décima – Visto que, compreendidos naquele valor de um milhão de euros, estão em circulação três letras de câmbio, respectivamente do valor de 40.000,00 €, no Banco A, 58.500,00€ no Banco B e 88.000,00€ no Banco C (…) acordam estas em que a 1ª outorgante endereçará todas as prestações iniciais deste contrato, até ao montante necessário para pagamento daquelas, conforme acordos já celebrados, cabendo à 2ª outorgante pagar apenas os juros respectivos até à taxa de 5%, ficando o diferencial a cargo da 1ª outorgante. Décima-primeira – Nas mesmas condições (…) os terceiros outorgantes obrigam-se a constituir e entregar no prazo de 5 dias, à primeira outorgante, penhor sobre a totalidade das acções que constituem o capital social da sociedade MR (…) e a depositá-las junto da 1ª outorgante, logo que emitidas. Décima Segunda – Em consequência, os outorgantes declaram anulados e sem qualquer efeito quaisquer documentos assinados ou emitidos em data anterior a este contrato que por alguma forma os vinculem» - cfr. fls. 54 a 59 [alínea A dos factos assentes].
2) Por escritura pública outorgada em 8 de Outubro de 2008, A. D. e Maria declararam ser “devedores ao segundo outorgante [o 5.º réu marido, João] da quantia de noventa mil euros, desde 26 de Março de 1999, quantia essa que está em execução através do processo nº 2289/08.8 TJVNF, a correr termos pelo Segundo Juízo do Tribunal Judicial de Vila Nova de Famalicão” e que “não tendo meios financeiros para solver a dívida, dão em pagamento da mesma, metade indivisa dos prédios a seguir descritos (…)”, prédios esses que se mostram descritos na Conservatória do Registo Predial sob os n.ºs (...), “todos já nomeados à penhora no processo referenciado, sendo que sobre todos os imóveis descritos na Conservatória do Registo Predial impende uma acção registada pela apresentação quarenta e nove, de um de Abril de dois mil e oito, que visa a transmissão da propriedade de metade indivisa dos referidos imóveis a pedido dos autores, a qual teve ganho de causa e que aguarda apenas o trânsito em julgado para ser efectuada a transmissão na Conservatória do Registo Predial” (cfr. doc. de fls. 684 a 690).
3) No TJVNF em 28.07.2008 foi instaurada a execução que correu termos sob o nº 2289/08.8 TJVNF, para pagamento da quantia € 89.783,63 euros, figurando como exequente o 5º réu e como executados os 3ºs réus (cfr. doc. de fls. 699 ss.).
4) Na execução referida em 3) foram penhorados os bens objecto do negócio referido em 2).
5) Esta penhora foi registada definitivamente em 25.06.2009.
6) Por escrito particular intitulado “contrato promessa de compra e venda”, datado de 10 de Fevereiro de 1999, A. D. e Maria declararam prometer vender a António, que declarou prometer comprar, pelo preço de 37.000.000$00, a metade indivisa dos prédios referidos descritos sob os números (...) (Campo (...)), (...) ((...)), (...) (Campo do (...)), (...) (Bouça de (...)), (...), (...), (...) ((...)), (...), (...).
7) No âmbito do processo que correu termos no 1º Juízo cível do então Tribunal Judicial da Comarca de Vila Nova de Famalicão foi proferida sentença de substituição da declaração negocial de A. D. e mulher, ali réus, relativamente ao acordo de vontades referido em 6).
8) Por escritura pública outorgada em 3 de Dezembro de 2010, António e cônjuge, L. S. e João e cônjuge, Z. R., declararam vender à sociedade “Y – Investimentos Imobiliários, S.A.”, nesse acto representada por F. F., que declarou comprar:

a. pelo preço de € 114.750,00, o prédio urbano descrito na CRP sob o número ... e o prédio misto descrito na CRP sob o número ... ;
b. pelo preço de € 195.250,00, o prédio rústico descrito na CRP sob o número ..., o prédio rústico descrito na CRP sob o número ..., o prédio rústico descrito na CRP sob o número ..., o prédio rústico descrito na CRP sob o número ..., o prédio rústico descrito na CRP sob o número ..., o prédio rústico descrito na CRP sob o número ... e o prédio rústico descrito na CRP sob o número ....
9) A venda referida em 8) foi efectuada com reserva de propriedade dos imóveis, até efectivo e integral pagamento do preço, que deveria ser pago no prazo de 120 dias.
10) Na data referida em 8) não se conheciam bens pertencentes aos 3ºs ou aos 2ºs réus.
*
Foram dados como não provados os seguintes factos:

a) que nem os 3ºs réus nem os 5ºs réus tenham querido transmitir e adquirir o direito de propriedade relativamente aos prédios referidos em 2).
b) que, com o negócio referido em 2), os 3ºs réus e 5ºs réus tenham actuado com a única intenção de retirar do património dos 3ºs réus aquela propriedade;
c) Que os 5ºs e 6º réus fossem conhecedores da existência da dívida dos 3ºs réus à autora;
d) que nem os 5ºs réus tenham querido vender, nem a 6ª ré tenha querido comprar os bens descritos na escritura de referida em 8).
e) que nem os 3º réus tenham recebido, nem os 5ºs tenham pago qualquer preço pelos prédios referidos em 8);
f) que todos os réus tenham actuado concertadamente para exaurir as garantias do crédito da autora.
g) que no documento referido em 1) não tivessem sido levadas em conta alguns valores, designadamente bancárias, efectuadas até esse momento.
h) que haja havido lugar a pagamentos por conta do valor referido em 1).
i) que haja despesas bancárias suportadas pela autora na sequência de letras emitidas por algum dos réus após o acordo referido em 1).
*
IV. Do objecto do recurso.

1. Da impugnação da matéria de facto.

1.1. Em sede de recurso, a autora/apelante impugna a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo tribunal de 1.ª instância.

Dispõe o artigo 640º do CPC, que:

1- Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2- No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) (…);
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.».

No caso dos autos, verifica-se que a recorrente indica quais os factos que pretende que sejam decididos de modo diverso, bem como a redação que deve ser dada, como ainda os meios probatórios que na sua óptica o impõe(m), pelo que podemos concluir que cumpriu suficientemente o ónus estabelecido no citado artigo 640.º.

Assim, este presente Tribunal pode proceder à reapreciação da matéria de facto impugnada, uma vez que dispõe dos elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os factos em causa.
*
1.2. Preceitua o artigo 662.º, n.º 1 do CPC, que tem por epígrafe “Modificabilidade da decisão de facto”, que «a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa».

Os recursos da matéria de facto podem envolver objetivos diversificados:

- Alteração da decisão da matéria de facto, considerando provados factos que o tribunal a quo considerou não provados, e vice-versa, a partir da reapreciação dos meios de prova ou quando os elementos constantes do processo impuserem decisão diversa (no caso de ter sido apresentado documento autêntico, com força probatória plena, para prova de determinado facto ou confissão relevante) ou em resultado da apreciação de documento novo superveniente (art. 662º, n.º 1 do CPC);
- Ampliação da matéria de facto, por ter sido omitida dos temas da prova matéria de facto alegada pelas partes que se revele essencial para a resolução do litígio (art. 662º, n.º 2, al. c) do CPC);
- Apreciação de patologias que a decisão da matéria de facto enferma, que, não correspondendo verdadeiramente a erros de apreciação ou de julgamento, se traduzam em segmentos total ou parcialmente deficientes, obscuros ou contraditórios (art. 662º, n.º 2, al. c) do CPC).

Quanto a este último objectivo dos recursos da matéria de facto, diz-nos Abrantes Geraldes in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4ª ed., pp. 291/29 que a decisão da matéria de facto pode apresentar patologias que não correspondem verdadeiramente a erros de apreciação ou de julgamento, podendo – e devendo – algumas delas ser solucionadas de imediato pela Relação, ao passo que outras poderão determinar a anulação total ou parcial do julgamento.

Como concretização de tais patologias enuncia o citado autor que as decisões sob recurso “podem revelar-se total ou parcialmente deficientes”, “resultante da falta de pronúncia sobre factos essenciais ou complementares”, “de modo que conjugadamente se mostre impedido o estabelecimento de uma plataforma sólida para a integração jurídica do caso”.

Verificado esse vício, para além de o mesmo ser sujeito a apreciação oficiosa da Relação, poderá esta supri-lo a partir dos elementos que constam do processo ou da gravação.

Pode, assim, “revelar-se uma situação que exija a ampliação da matéria de facto, por ter sido omitida dos temas da prova matéria de facto alegada pelas partes que se revele essencial para a resolução do litígio, na medida em que assegurem enquadramento jurídico diverso do suposto pelo tribunal a quo”, faculdade esta que nem sequer está dependente da iniciativa do recorrente, bastando que a Relação se confronte com uma omissão objetiva de factos relevantes”; nesse caso, ao invés de anular a decisão da 1ª instância, se estiverem acessíveis todos os elementos probatórios relevantes, “a Relação deve proceder à sua apreciação e introduzir na decisão da matéria de facto as modificações que forem consideradas oportunas”.

“Incumbe à Relação, enquanto tribunal de segunda instância, reapreciar, não só se a convicção do tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova e os outros elementos constantes dos autos revelam, mas também avaliar e valorar (de acordo com o princípio da livre convicção) toda a prova produzida nos autos em termos de formar a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos da matéria de facto objecto de impugnação, modificando a decisão de facto se, relativamente aos mesmos, tiver formado uma convicção segura da existência de erro de julgamento na matéria de facto”- cfr. Ac. Relação de Guimarães de 07.04.2016, disponível em www.dgsi.pt.

Contudo, sem prejuízo de uma valoração autónoma dos meios de prova, essa operação não pode nunca esquecer os princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação das provas.

Como nos diz Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 245. “…ao nível da reapreciação dos meios de prova produzidos em 1ª instância e formação da sua própria e autónoma convicção, a alteração da decisão de facto deve ser efectuada com segurança e rodeada da imprescindível prudência e cautela, centrando-se nas desconformidades encontradas entre a prova produzida em audiência, após a efectiva audição dos respectivos depoimentos, e os fundamentos indicados pelo julgador da 1ª instância e nos quais baseou as suas respostas, e que habilitem a Relação, em conjunto com outros elementos probatórios disponíveis, a concluir em sentido diverso, quanto aos concretos pontos de facto impugnados especificadamente pelo recorrente; Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida - que há-de ser reanalisada pela Relação mediante a audição dos respectivos registos fonográficos -, deverá prevalecer a decisão proferida em 1ª instância, em observância dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso, nessa parte.”

Ou seja, na reapreciação da prova pela 2ª instância, não se procura obter uma nova e diferente convicção, mas antes verificar se a convicção do Tribunal a quo tem suporte razoável, à luz das regras da experiência comum e da lógica, atendendo aos elementos de prova que constam dos autos, e aferir, assim, se houve erro de julgamento na apreciação da prova e na decisão da matéria de facto, sendo necessário, de todo o modo, que os elementos de prova se revelem inequívocos no sentido pretendido pelo recorrente, impondo, pois, decisão diversa da proferida pelo tribunal recorrido – art. 640º, n.º 1 al. b), parte final, do CPC.

Assim, competirá ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações do recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.
*
1.3. Resulta das conclusões da recorrente que esta pretende que se considerem como provados os factos que na sentença foram considerados como não provados nas als. a) a f).

Para tal invoca que, resultou inequívoca dos depoimentos de parte dos réus Maria e D. F., bem como dos depoimentos das testemunhas M. M. e C. S., a prova de que os 3ºs réus (actualmente a ré Maria, em face do falecimento do réu A. D., este por sua vez que sempre morou na mesma residência e acabou por lá falecer) e o 2º réu D. F., continuaram e continuam a viver na casa e a explorar os terrenos alegadamente adquiridos pelos 5ºs réus e, posteriormente, pela 6ª ré, retirando dos mesmos os frutos de que é susceptível, em virtude da exploração agrícola a que se dedica o réu D. F..

Mais invoca que tais declarações terão de ser valoradas em função das regras de experiência comum e nunca em função de eventual livre arbítrio do julgador, sendo que da conjugação dos depoimentos de parte prestados pelos referidos réus, com os depoimentos das testemunhas acima indicadas, aliados às regras da lógica e da experiência comum, é forçoso concluir que a resposta a estas alíneas teria de ser necessariamente positiva.

Os elementos probatórios disponíveis nos autos, nomeadamente os depoimentos de parte dos réus em causa e os depoimentos das testemunhas indicadas pela recorrente, ainda que conjugados com as regras de experiência comum, não permitem concluir no sentido pretendido pela apelante.

Com efeito, o cerne da questão da decisão da matéria de facto nas acções de simulação e de impugnação paulina passa por saber qual o grau de certeza exigível para julgar provados os factos que integram estes institutos, designadamente o acordo simulatório e a intenção de prejudicar os credores, que, em regra, não são atingíveis por prova directa. Com efeito, a prova de factos do foro interno, como os referidos acordo simulatório e intenção de prejudicar terceiros, constitui uma das mais difíceis tarefas a cargo da parte sobre quem recai tal ónus probatório.

No caso dos autos, não foi produzida prova directa dos acordos simulatórios ou da intenção de enganar terceiros, pois que tal não resulta quer da prova testemunhal produzida, quer dos depoimentos de parte, como se constata da síntese dos depoimentos de parte e dos depoimentos das testemunhas efectuada na motivação, e confirmada na audição das mesmas.

Contudo, como refere a apelante, resulta de tais depoimentos que 3ºs réus (actualmente a ré Maria, em face do falecimento do réu A. D., este por sua vez que sempre morou na mesma residência e acabou por lá falecer) e o 2º réu D. F., continuaram e continuam a viver na casa e a explorar os terrenos adquiridos pelos 5ºs réus e, posteriormente, pela 6ª ré, retirando dos mesmos os frutos de que é susceptível, em virtude da exploração agrícola a que se dedica o réu D. F..

Mas será tal suficiente para, de acordo com as regras de experiência comum e do normal acontecer, dar como provados os factos que assim não foram considerados nas als. a) a f)?
Não nos parece, de todo.

Com efeito, vista a extensa e aprofundada fundamentação de facto constante da sentença sob recurso, nomeadamente quanto à prova documental constante dos autos, dúvidas não restam de que tal factualidade não poderia ser dada como provada.

De facto, como se diz na decisão sob recurso, a prova documental junta aos autos, conjugada entre si, abala a tese da autora de que inexistiam créditos titulados pelos 4º e 5º réus, pois que de tal prova documental resultam factos que não se articulam com a ideia de que os mesmos possam ter sido ficcionados para que, posteriormente, a dação em pagamento e a execução específica pudessem operar.

Com efeito, e desde logo, resulta dos documentos juntos aos autos a fls. 698 ss. (requerimento executivo apresentado no dia 28.07.2008 por João contra A. D. e Maria, com vista à cobrança coerciva do valor de € 89.703,63, titulado por um cheque), que o cheque junto a fls. 703, foi emitido à ordem do exequente pelo executado marido no dia 26 de Setembro de 1999.

Por outro lado, resulta do doc. de fls. 195 e ss., que o escrito particular intitulado “contrato promessa de compra e venda”, no qual A. D. e Maria declararam prometer vender a António, que declarou prometer comprar, pelo preço de 37.000.000$00, a metade indivisa dos prédios referidos descritos sob os números (...) (Campo (...)), (...) ((...)), (...) (Campo do (...)), (...) (Bouça de (...)), (...), (...), (...) ((...)), (...), (...), e onde foi previsto o recurso à execução específica, que veio a concretizar-se após a acção cuja certidão da p.i. se mostra junta a fls. 295 e ss., é datado de 10 de Fevereiro de 1999.

Finalmente, resulta do doc. de fls. 49 que a admissão da “Sociedade Agrícola Irmãos P., Ld.ª” (que é a devedora originária) como cooperante - sócia nº 3844 - da autora, ocorreu em 15.09.2003.

Basta atentar nestes documentos, e nas suas datas, para verificar que quer o cheque que constituiu título executivo, quer o contrato promessa, por via do qual António veio a tornar-se proprietário de metade dos referidos bens, são muitos anteriores à data em que a sociedade Irmãos P. se constituiu cooperante da autora, e por consequência à data em que aquela se tornou devedora desta.

Isto é, em 1999, não havia qualquer dívida à ora autora.

Ora, tais factos desde logo fragilizam a tese da autora, de acordo com a qual os negócios efectuados visaram afectar as garantias do seu crédito.

Por outro lado, como se diz na decisão recorrida, também o facto de o título executivo ser tão anterior aos factos ora em litígio constitui um bom indicativo de que o mesmo titulará um crédito real, fragilizando a tese carreada pela ora autora para os autos.

Acresce que, também a alegação da autora de que os 3ºs réus - que declararam “avalizar” a dívida no escrito referido no artigo 1) dos factos provados – tinham, à data do acordo, património que depois dissiparam, não tem correspondência nos documentos, como resulta simples análise das certidões prediais juntas a fls. 137 a 194 relativas aos prédios (...) (Campo (...)), (...) ((...)), (...) (Campo do (...)), (...) (Bouça de (...)), (...), (...), (...) ((...)), (...), (...), pois que das mesmas ressalta que no dia da celebração do acordo referido em 1) dos factos provados (05.03.2009), já se mostravam registados: a acção declarativa por força da qual António pretendia a prolação de sentença no sentido de lhe ser transmitida metade da propriedade de cada um destes prédios; o arresto; a dação em cumprimento que beneficiava João e o arresto que a ora autora chegou a ver decretado, mas do qual desistiu, aquando da subscrição do acordo referido na cláusula 8ª do documento particular referido no artigo 1º dos factos provados.
Assim, como se afirma na decisão recorrida, não colhe a alegação de que, aquando daquele acordo, a autora tivesse a convicção de que os 1º, 2º e 3ºs réus tivessem um vasto património.

Sublinhe-se ainda, como na decisão sob recurso que “…o escrito particular subscrito pela ora autora denominado “acordo de pagamento”, datado de 05.03.2009, na cláusula 7ª consignava já que a “2ª outorgante (Sociedade Irmãos P.) obriga-se a obter de António e mulher L. S. (…) autorização para constituição do precedente penhor, em reconhecimento de que as instalações da dita vacaria constituem benfeitorias que não pertencem ao prédio deles, denominado “(...)” (actual descrição nº ...), o que demonstra que a mesma sabia que esse prédio já não pertencia aos réus A. D. e Maria e que os bens ali designados de benfeitorias também não tinham uma titularidade perfeitamente clara.

Ora, …, o “(...)” era um dos prédios que António e L. S. prometeram comprar a A. D. e Maria em 10.02.1999, e cuja propriedade lhes foi transmitida por sentença judicial (de 01.10.2008) no processo n.º 1105/08.5TJVNF.

De resto, a acção de execução específica fora intentada e distribuída em 01.04.2008 e os factos foram julgados confessados por despacho de 21.05.2008, tendo em 06.06.2008 sido efectuado o registo da acção e em 01.10.2008 proferida a sentença que julgou reconhecidos os direitos pretendidos efectivar pelos ora contestantes, sobre a propriedade dos bens lá melhor identificados e cuja transmissão agora se pretende atacar por simulação.
Donde, aquando do acordo de 05.03.2009, a autora não podia ignorar que aqueles prédios e direitos pertenciam a terceiros”.

Acresce a tudo isto que, quando a autora declarou, no acordo de pagamento referido no artigo 1º dos factos provados, que desistiria de todas as acções e procedimentos cautelares (sendo que nessa altura tinha bens arrestados), não procurou assegurar qualquer outra garantia real, com excepção do penhor que ficou pendente da obtenção de autorização.

Ora, à luz das regras da normalidade e experiência comum isso terá sucedido porque a autora teria conhecimento de que não havia património que lhe permitisse obter essa garantia.

Por outro lado, resulta do doc. de fls. 60, (relação dos bens objecto do contrato de exploração outorgado entre a Sociedade Irmãos P. e a sociedade MR, S.A., para o qual remete o documento de acordo de pagamento referido no artigo 1º dos factos provados) que a sociedade MR já existia à data, operando com equipamento cedido pela Irmãos P..

E resulta dos docs. de fls. 683 ss. e 705 ss. que por escritura pública outorgada em 8 de Outubro de 2008, intitulada “Dação em Cumprimento”, A. D. e cônjuge, Maria, declararam ser devedores a João, casado com Z. R., da quantia de € 90.000,00 desde o dia 26 de Março de 1999, encontrando-se essa quantia a ser executada no processo executivo nº 2289/08.8 TJVNF, sendo que, por não terem meios financeiros para pagar a dívida, deram em pagamento a mesma metade indivisa dos prédios descritos na CRP sob os números ..., ..., ..., ..., ... e ..., que já estavam nomeados à penhora no referido processo executivo. E em face da referida dação em cumprimento, entretanto registada, veio o exequente desistir da acção executiva, no dia 1 de Fevereiro de 2010 (cfr. doc. de fls. 729 e ss.)

Mais se diga que, do teor de fls. 511 ss. (certidão o registo comercial da ré “Y – Investimentos Imobiliários, S.A.”) resulta que o negócio em 8) dos factos provados se enquadra no seu objecto social.

E da conjugação dos docs. de fls. 530 e ss. (escritura pública outorgada em 3 de Dezembro de 2010, de compra dos prédios pela ré Y), com os docs. de fls. 539 (transferência do montante de € 212.376,04 a favor de António, vendedor nesse contrato, por débito na conta da sociedade Y, compradora) e de fls. 540 (transferência do montante de € 97.626,04 a favor de António, por débito na conta da sociedade Y), resulta que ambas as transferências (ambas com data de 17.08.2011, ou seja, data posterior à que resultaria do cumprimento dos 120 dias acordados) são muito anteriores à data da propositura desta acção e, assim, credivelmente reportadas, como se diz na sentença recorrida, ao pagamento do preço da venda dos prédios, sendo que a soma dos dois valores transferidos redunda no preço acordado pela venda dos prédios.

Por outro lado, verifica-se do doc. de fls.. 549 e ss. que foi constituída hipoteca em 17.08.2011 (data em que ocorrem as transferências tituladas pelos documentos de fls. 539 e 540) a favor do Banco D, S.A. para garantia de um crédito titulado pelo referido Banco sobre a Y, mutuária da quantia de € 310.000,00 (total do valor de que careceu para a aquisição dos prédios). Tal hipoteca incide sobre vários prédios, e não apenas sobre aqueles relativamente aos quais a ora autora pugna por uma actuação fraudulenta. O mútuo foi constituído no mesmo dia, sendo que o pagamento do preço pela aquisição ocorre também nesse mesmo dia, nada havendo, nesta relação, de suspeito. Bem pelo contrário, como se diz na sentença recorrida “a circunstância de o mútuo com hipoteca ter sido celebrado no dia em que a Y efectuou a transferência bancária do preço, que é do montante do mútuo, sugere que o mútuo foi constituído, precisamente, para obtenção dos valores necessários à compra, sendo que a circunstância de ter sido constituída hipoteca também sobre prédios que nada têm a ver com os negócios que a autora entende estarem inquinados releva também no sentido de se considerar que nada de irregular intercede nestes negócios”.

Por fim, temos o doc. de fls. 681, que é uma declaração de autorização emitida pela sociedade Y, representada por M. C., em 26.11.2012, para a ocupação da casa de habitação existente junto à vacaria, por período indeterminado, com obrigação de proverem à conservação da casa.

Ora, da conjugação de tal documento, com o depoimento de parte do réu D. F., no sentido de que, por ser o seu pai amigo de M. C., representante legal da Y e subscritor do escrito de fls. 681, lhe foi autorizada a ocupação da casa de habitação existente junto à vacaria, por período indeterminado, com obrigação de prover à conservação da casa, e com os depoimentos das testemunhas C. S., e M. M., no sentido de que o réu D. F. ainda hoje trabalhar na vacaria, manobrando máquinas, resulta, como se diz na decisão recorrida que, para além da relação de amizade que ligava o referido M. C. ao pai do réu D. F., há ainda este actual relacionamento laboral, que confere alguma verosimilhança àquela situação de vantagem (até porque, após a morte do pai, o referido D. F. foi viver para aquela casa com a mãe).

Destarte, porque em sede de julgamento da impugnação da decisão de facto, há-de o Tribunal da Relação evitar introduzir alterações quando não seja possível concluir, com a necessária segurança, pela existência de um erro de apreciação da prova relativamente aos concretos pontos de facto impugnados, e porque os considerandos invocados pela apelante não têm o valor suficiente para conduzir e forçar este Tribunal a introduzir alterações na decisão de facto, inevitável é manter a decisão proferida pelo tribunal a quo e relativa à matéria de facto.

Com efeito, a fundamentação exarada na sentença recorrida é clara e muito consistente, tendo valorado a prova de forma objectiva, ponderada e crítica.

A fundamentação da decisão de facto mostra-se criteriosa e tem pleno suporte na gravação da prova e nos demais elementos constantes dos autos, nomeadamente na prova documental acima referida, não existindo qualquer elemento que confirme, em termos objectivos e seguros, que não foi feita uma correcta análise do seu valor probatório, bem pelo contrário.
Não assiste assim razão à autora/recorrente na impugnação dos factos não provados.
Nesta conformidade, indefere-se a impugnação dos referidos pontos fácticos.
*
1.4. Considerando que nenhuma alteração foi feita na decisão relativa à matéria de facto, é a seguinte a factualidade (provada) a atender para efeito da decisão a proferir:

1) Por escrito particular denominado “acordo de pagamento”, datado de 5 de Março de 2009, onde figurava como primeira outorgante a ora autora X, como segunda outorgante a “Sociedade Agrícola Irmãos P., Ld.ª”, como terceiros outorgantes M. P. e D. F. e como quartos outorgantes A. D. e Maria, por todos subscrito, foi consignado, entre o demais, o seguinte: “Primeira – Acordam a 1ª e 2ª outorgantes, após vistoriadas as contas correntes recíprocas, em fixar o valor da dívida da segunda para com a primeira, que vem sendo objecto das acções judiciais 4038/08.1 (…), 4039/08.0 (…), bem como (…) 379/09.9 TJVNF (…) em um milhão de euros, à data de 31.12.2008, sobre o qual incidirão juros de mora, calculados à taxa de 3%. Segunda – (…). Terceira – Aquelas prestações serão pagas da seguinte forma: a) No primeiro ano (…) € 5.500,00; b) Nos meses dos nove anos seguintes (…) € 9.917,53; c) No acto do recebimento do RPU (…) a 2ª outorgante entregará à 1ª a quantia de 12.000,00 €”; Quarta – Acordam ainda que o não pagamento de qualquer uma das acima mencionadas prestações importa o vencimento imediato da totalidade da dívida; Quinta – Para garantia do bom e integral cumprimento deste acordo, oferecem os outorgantes as seguintes garantias: A) Os terceiros e quarto outorgantes dão pelo presente o seu respectivo aval à 2ª outorgante, renunciando desde já ao benefício da excussão prévia. B) Pelo presente contrato, e paralelamente a este, para garantia da obrigação de pagamento assumida, a segunda outorgante constitui a favor da primeira um penhor (…) que incide sobre as instalações da vacaria (…) bem como sobre os bens móveis melhor identificados [nas] verbas um a sete do auto de arresto (…) [de fls. 61 e 62] (…), bem como a quota leiteira (…) e ainda todos os móveis objecto do contrato de cessão de exploração outorgado em 27/05/2008, entre a segunda outorgante e a MR exploração agro-pecuária S.A. [fls. 60] (…). Os bens objecto deste penhor irão permanecer na posse da segunda outorgante e da referida MR S.A., podendo as mesmas fazer uso deles no exercício das suas actividades de produção de leite (…). Sexta (…). Sétima - A 2ª outorgante obriga-se a obter de António e mulher L. S. (…) autorização para constituição do presente penhor, em reconhecimento de que as instalações da dita vacaria constituem benfeitorias que não pertencem ao prédio deles, denominado “(...)” (…). Oitava – Com a outorga do presente acordo de pagamento, declaram todos os outorgantes que irão colocar fim às diversas acções judiciais e procedimentos cautelares intentadas entre si (…) através da desistência de cada pedido. Nova – Nesta data, a primeira outorgante devolve e obriga-se a devolver, à segunda e aos terceiros outorgantes, todos os contratos e letras ou cheques que titulam obrigações desta para com aquela (…). Décima – Visto que, compreendidos naquele valor de um milhão de euros, estão em circulação três letras de câmbio, respectivamente do valor de 40.000,00 €, no Banco A, 58.500,00€ no Banco B e 88.000,00€ na Banco C (…) acordam estas em que a 1ª outorgante endereçará todas as prestações iniciais deste contrato, até ao montante necessário para pagamento daquelas, conforme acordos já celebrados, cabendo à 2ª outorgante pagar apenas os juros respectivos até à taxa de 5%, ficando o diferencial a cargo da 1ª outorgante. Décima-primeira – Nas mesmas condições (…) os terceiros outorgantes obrigam-se a constituir e entregar no prazo de 5 dias, à primeira outorgante, penhor sobre a totalidade das acções que constituem o capital social da sociedade MR (…) e a depositá-las junto da 1ª outorgante, logo que emitidas. Décima Segunda – Em consequência, os outorgantes declaram anulados e sem qualquer efeito quaisquer documentos assinados ou emitidos em data anterior a este contrato que por alguma forma os vinculem» - cfr. fls. 54 a 59 [alínea A dos factos assentes].
2) Por escritura pública outorgada em 8 de Outubro de 2008, A. D. e Maria declararam ser “devedores ao segundo outorgante [o 5.º réu marido, João] da quantia de noventa mil euros, desde 26 de Março de 1999, quantia essa que está em execução através do processo nº 2289/08.8 TJVNF, a correr termos pelo Segundo Juízo do Tribunal Judicial de Vila Nova de Famalicão” e que “não tendo meios financeiros para solver a dívida, dão em pagamento da mesma, metade indivisa dos prédios a seguir descritos (…)”, prédios esses que se mostram descritos na Conservatória do Registo Predial sob os n.ºs (...), “todos já nomeados à penhora no processo referenciado, sendo que sobre todos os imóveis descritos na Conservatória do Registo Predial impende uma acção registada pela apresentação quarenta e nove, de um de Abril de dois mil e oito, que visa a transmissão da propriedade de metade indivisa dos referidos imóveis a pedido dos autores, a qual teve ganho de causa e que aguarda apenas o trânsito em julgado para ser efectuada a transmissão na Conservatória do Registo Predial” (cfr. doc. de fls. 684 a 690).
3) No TJVNF em 28.07.2008 foi instaurada a execução que correu termos sob o nº 2289/08.8 TJVNF, para pagamento da quantia € 89.783,63 euros, figurando como exequente o 5º réu e como executados os 3ºs réus (cfr. doc. de fls. 699 ss.).
4) Na execução referida em 3) foram penhorados os bens objecto do negócio referido em 2).
5) Esta penhora foi registada definitivamente em 25.06.2009.
6) Por escrito particular intitulado “contrato promessa de compra e venda”, datado de 10 de Fevereiro de 1999, A. D. e Maria declararam prometer vender a António, que declarou prometer comprar, pelo preço de 37.000.000$00, a metade indivisa dos prédios referidos descritos sob os números (...) (Campo (...)), (...) ((...)), (...) (Campo do (...)), (...) (Bouça de (...)), (...), (...), (...) ((...)), (...), (...).
7) No âmbito do processo que correu termos no 1º Juízo cível do então Tribunal Judicial da Comarca de Vila Nova de Famalicão foi proferida sentença de substituição da declaração negocial de A. D. e mulher, ali réus, relativamente ao acordo de vontades referido em 6).
8) Por escritura pública outorgada em 3 de Dezembro de 2010, António e cônjuge, L. S. e João e cônjuge, Z. R., declararam vender à sociedade “Y – Investimentos Imobiliários, S.A.”, nesse acto representada por F. F., que declarou comprar:

a. pelo preço de € 114.750,00, o prédio urbano descrito na CRP sob o número ... e o prédio misto descrito na CRP sob o número ... ;
b. pelo preço de € 195.250,00, o prédio rústico descrito na CRP sob o número ..., o prédio rústico descrito na CRP sob o número ..., o prédio rústico descrito na CRP sob o número ..., o prédio rústico descrito na CRP sob o número ..., o prédio rústico descrito na CRP sob o número ..., o prédio rústico descrito na CRP sob o número ... e o prédio rústico descrito na CRP sob o número ....
9) A venda referida em 8) foi efectuada com reserva de propriedade dos imóveis, até efectivo e integral pagamento do preço, que deveria ser pago no prazo de 120 dias.
10) Na data referida em 8) não se conheciam bens pertencentes aos 3ºs ou aos 2ºs réus.
*
V. Reapreciação de direito.

Cabe agora verificar se deve a sentença apelada ser revogada/alterada, em razão da alteração da decisão relativa à matéria de facto proferida pelo tribunal a quo – no seguimento da impugnação da autora/apelante - decidindo-se pela total procedência da acção.

Como das conclusões do recurso da autora/apelante, é manifesto que a pretendida alteração da decisão de direito dependia no seu todo da modificação/alteração da decisão sobre a matéria de facto proferida pelo tribunal a quo, pois que não suscitou a autora/apelante quaisquer outras questões relacionadas com uma eventual e pretensa interpretação e aplicação erradas das regras de direito pertinentes à matéria de facto tal como a mesma foi fixada pelo tribunal a quo.

Contudo, como já se viu, considerou este tribunal da Relação não existirem quaisquer motivos para se introduzirem modificações nas respostas que foram dadas pela primeira instância aos concretos pontos de facto impugnados pela autora/apelante.

Assim, considerando o disposto pelo artº 608º nº2 aplicável ex vi do nº2, do artº 663º, ambos do Código de Processo Civil, e não se nos impondo tecer quaisquer considerações quanto à bondade e acerto da decisão da primeira instância no âmbito da subsunção jurídica dos factos, pois que com a mesma se concorda, na íntegra, a apelação da autora inevitavelmente improcede.

Nestes termos, também neste segmento, improcede o recurso da autora.
*
Passando ao recurso da ré Maria, temos que a questão a resolver refere-se à interpretação feita na sentença do art. 236º do C.C., bem como do regime jurídico do aval e da fiança, previsto na LULL e 627º e ss. do C.C..

Quanto a esta questão diz-se na decisão recorrida: “Resta saber se as declarações efectuadas por M. P. e D. F., bem como pelos pais destes, A. D. e Maria (ora 1º, 2º e 3ºs réus), os comprometem ou não com a indicada dívida.

Isto porque, estando a dívida titulada por este documento particular e não por qualquer título cambiário, o certo é que os mesmos consignaram que “para garantia do bom e integral cumprimento deste acordo, oferecem os outorgantes as seguintes garantias: [o] terceiros e quarto outorgantes dão pelo presente o seu respectivo aval à 2ª outorgante, renunciando desde já ao benefício da excussão prévia”.

«A declaração de aval corresponde a um negócio jurídico unilateral através do qual o avalista assume a obrigação de garantir o pagamento de uma letra (art. 30ºI LU). Trata-se, portanto, de um negócio que respeita unicamente ao lado passivo da relação jurídica cambiária» (CAROLINA CUNHA, in: Manual de Letras e Livranças, Almedina, Coimbra, 2016, p. 36). Como refere a mesma autora (ob. cit. p. 39), «[a] doutrina divide-se quanto à caracterização do aval, polarizando-se o debate entre a qualificação do aval como garantia subjectiva, destinada a caucionar o pagamento da letra “por parte de um dos seus subscritores”, e a construção do aval como garantia objectiva, destinada a caucionar o pagamento da letra tout court (o avalista não garante que o avalizado pagará, mas que o título será pago). Não nos parece que o aval possa ser caracterizado como uma garantia subjectiva, destinada a “cobrir” ou “caucionar” a responsabilidade do avalizado (…)».

Como afirma a mesma autora (ibidem), faltam ao aval, desde logo, as características da acessoriedade e da subsidiariedade, de acordo com a qual o garante tem a faculdade de recusar o cumprimento enquanto o credor não tiver excutido todos os bens do devedor com vista à satisfação do crédito.
Olhando ao documento dos autos, torna-se desde logo evidente que não estamos perante um título cambiário, pelo que o aval não poderia ter aqui qualquer cabimento.
De resto, os ali terceiros e quarto outorgantes declararam expressamente pretender garantir o bom e integral pagamento do acordo, declarando mesmo prescindir do benefício da excussão prévia.
Percebe-se assim que o termo aval foi indevidamente empregado, e o que os ali garantes constituíram foi uma fiança, ou seja, um vínculo jurídico através do qual os referidos outorgantes se obrigavam pessoalmente perante o credor (ora autora), garantindo com o seu património a satisfação do direito de crédito desta sobre o devedor – nº1 do art. 627º do CC.
Essa é a interpretação que há-de fazer-se, nos termos do art. 236º do CC.
Se assim não se interpretasse, não faria qualquer sentido a afirmação de que prescindem do benefício da excussão prévia, já que, se avalistas fossem, não haveria que prescindir desse benefício, pois este não existiria (vd. arts. 47º da LULL e 638º do CC).
Esta garantia (fiança) tem a vantagem de juntar a garantia especial do património de terceiros à garantia geral do património do devedor, mas como não se trata de uma garantia real, dotada de sequela, a sua força varia com as vicissitudes desse património.”

Invoca a recorrente Maria, nas suas conclusões de recurso que o Tribunal a quo errou na interpretação que fez do art. 236º do Código Civil, bem como do regime jurídico do aval e da fiança, previsto na LULL e 627º e ss. do Código Civil.

Vejamos.

Os art. 236º a 238º do Código Civil estabelecem os princípios gerais a que deve obedecer a interpretação da declaração negocial.

Dispõe o art. 236º:

«1. A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.
2. Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida».
O declaratário normal é o declaratário medianamente inteligente, instruído e diligente.

Por sua vez o art. 238º estatui:

«1. Nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso.
2. Esse sentido pode, todavia, valer, se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade.».

Temos assim que a busca do significado daquilo que as partes terão querido, ao emitirem uma declaração negocial, deve nortear-se pela regra geral enunciada no dito nº 1 do art. 236º do Código Civil, valendo, decisivamente, o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do declaratário real, teria deduzido do comportamento do declarante, só assim não sendo se este último, em termos de razoabilidade, não puder contar com a atribuição de tal sentido à sua declaração.
E também assim não será – como decorre do nº 2 do mesmo preceito – se o declaratário conhecer o sentido que o declarante pretendeu exprimir através da declaração, caso em que o negócio valerá “de acordo com a vontade comum das partes (…), quer a declaração seja ambígua, quer o seu sentido (objectivo) seja inequivocamente contrário ao sentido que as partes lhe atribuíram.” (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 4ª edição, vol. I, pág. 224).

Naturalmente, esta última regra excepcional só poderá ter aplicação no caso de se conhecer, a par da declaração negocial em análise, aquela que teria sido a vontade real das partes.

Quando, como acontece no caso dos autos, nada foi sequer alegado pelas partes acerca do sentido subjacente às declarações negociais emitidas (nomeadamente quanto àquela declaração em concreto), nunca poderá resultar demonstrada, por tal via, essa vontade real, pelo que o sentido da vontade negocial tem de ser aferido em função da acima enunciada regra geral que consagra uma doutrina objectivista da interpretação, ao fazer prevalecer o sentido que “seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante.”(Ibidem, pág. 223).

Na verdade, para além do conteúdo objectivo das declarações negociais vertidas no documento referido em 1) dos factos dados como provados, o tribunal não dispõe de quaisquer outros elementos que, respeitando ao sentido do que através delas se pretendeu exprimir, possam vir a concorrer para a aferição da vontade real.
Assim, a vontade negocial das partes há-de ser encontrada e o documento escrito por elas outorgado tem de ser qualificado com os elementos de facto já assentes e que são as declarações negociais através dele emitidas.

Ora, o documento referido no art. 1º dos factos provados é um documento particular e não qualquer título cambiário. Contudo, e apesar disso, o certo é que os ora 1ºs, 2ºs e 3ºs réus consignaram que “para garantia do bom e integral cumprimento deste acordo, oferecem os outorgantes as seguintes garantias: [o] terceiros e quarto outorgantes dão pelo presente o seu respectivo aval à 2ª outorgante, renunciando desde já ao benefício da excussão prévia”.

Como bem se afirma na sentença recorrida, olhando o documento dos autos, torna-se desde logo evidente que não estamos perante um título cambiário, pelo que o aval não poderia ter aqui qualquer cabimento.

O aval, como é consabido, é uma garantia cambiária, substancialmente autónoma e formalmente dependente (2º §, do artigo 32º e 3º §, do artigo 77º, ambos da Lei Uniforme Relativa às Letras e Livranças) e que tem por fonte um negócio unilateral (para uma caracterização mais desenvolvida do aval na doutrina veja-se, por todos, Direito das Garantias, 2013 - 2ª edição, Almedina, L. Miguel Pestana de Vasconcelos, páginas 118 a 121).

Assim sendo, desde logo se verifica que o termo aval foi indevidamente empregue.

E se assim foi, o que pretenderam os ali terceiros e quarto outorgantes, com a declaração em causa?
Ora, considerando que os ali terceiros e quarto outorgantes declararam expressamente pretender garantir o bom e integral pagamento do acordo, declarando mesmo prescindir do benefício da excussão prévia, e fazendo prevalecer o sentido que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante, podemos concluir, como na sentença, que o que os ali garantes constituíram foi uma fiança.

Como se sabe, a fiança concretiza-se no facto de um terceiro assegurar com o seu património o cumprimento de obrigação alheia, ficando pessoalmente obrigado perante o respectivo credor, como resulta do disposto pelo art.º 627.º n.º1 do Código Civil.
Tal responsabilização abrange, em princípio, todo o património do fiador, embora possa limitar-se a alguns dos bens que o integram, desde que tal redução seja convencionada nos termos do art.º 602.º do Código Civil.

Decorre do disposto no art.º 634.º do mesmo diploma legal, que “a fiança tem o conteúdo da obrigação principal e cobre as consequências legais e contratuais da mora ou culpa do devedor”.
São apontadas pela Doutrina como características fundamentais deste instituto, a acessoriedade e a subsidiariedade.

De acordo com Mário Júlio de Almeida Costa, in “Direito das Obrigações”, pág. 893, a acessoriedade, expressamente prevista no n.º 2 do art.º 627.º do Código Civil, tem as seguintes consequências essenciais:

i) a fiança está submetida à forma exigida para a dívida principal, (art.º 628.º n.º 1 do Código Civil);
ii) a fiança não pode exceder a dívida principal, podendo, no entanto, ficar aquém desta;
iii) caso exceda a dívida principal, a fiança não será nula, mas apenas redutível de acordo com a dívida afiançada, (art.º 631.º n.ºs 1 e 2 do Código Civil);
iv) a nulidade ou anulabilidade da dívida principal provoca a invalidade da fiança;
v) se estabelecida para garantia de obrigações condicionais, constitui-se na dependência da mesma condição à qual se submete a obrigação que garante (art.º 628.º n.º 2 do Código Civil);
vi) extinta a dívida principal, fica extinta a fiança( art.º 651.º do Código Civil);
vii) o carácter civil ou comercial da fiança depende da natureza da obrigação principal.

Quanto à subsidiariedade, concretiza-se no chamado benefício de excussão, traduzido no direito que assiste ao fiador, de recusar o cumprimento, enquanto não estiverem excutidos todos os bens do devedor principal, (art.º 638.º do Código Civil), sendo tal benefício renunciável, nos termos do n.º 1 do art.º 640.º do Código Civil.

Ora, considerando o teor da declaração feita pelos terceiro e quarto outorgantes no documento em causa, bem como as características da fiança acabadas de referir, não restam quaisquer dúvidas para este Tribunal de que o que os ali garantes constituíram foi de facto uma fiança.

Se assim não se interpretasse tal declaração, como se afirma na decisão recorrida, nenhum sentido faria a afirmação de que prescindem do benefício da excussão prévia, já que, se avalistas fossem, não haveria que prescindir desse benefício, pois este não existiria (vd. arts. 47º da LULL e 638º do CC).

Esta declaração é bastante, por si só, para concluir que qualquer pessoa, medianamente instruída e diligente, colocada na posição da aqui autora, deduziria, apesar de antes, no mesmo instrumento contratual, ter falado em “aval”, que era vontade dos declarantes constituírem, uma fiança, prescindindo do benefício da excussão prévia.

Assim sendo, nenhuma das críticas apontadas pela ré/apelante à sentença recorrida merece acolhimento, razão pela qual, também o recurso interposto pela ré Maria improcede.
*
*
VI. Decisão.

Perante o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedentes as apelações, quer da autora, quer da ré Maria, confirmando, em consequência, a douta decisão recorrida.
Custas dos recursos pelas respectivas recorrentes.
*
Guimarães, 15 de Novembro de 2018

Fernanda Proença Fernandes
Heitor Gonçalves
Amílcar Andrade
Amílcar Andrade

(O presente acórdão não segue na sua redacção as regras do novo acordo ortográfico, com excepção das “citações” efectuadas que o sigam)