Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
234/14.0TCGMR.G1
Relator: FERNANDO FERNANDES FREITAS
Descritores: TRANSMISSÃO SINGULAR DE DÍVIDA
SOCIEDADE COMERCIAL
CAPACIDADE DE GOZO
PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/10/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.º SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – A sentença enferma do vício de oposição entre os fundamentos e a decisão, referido na primeira parte da alínea c) do n.º 1 do art.º 615.º do C.P.C., se na fundamentação, o juiz seguir uma determinada linha de raciocínio, que aponta para uma determinada conclusão, mas acaba por decidir em sentido oposto ou, pelo menos, divergente.

II - Como decorre do disposto no artº. 640º., do C.P.C., a parte que pretenda impugnar a decisão sobre a matéria de facto deve, sob pena de rejeição do recurso, especificar: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

III - Ainda em honra ao princípio da cooperação, aqui enformado pelos deveres de lealdade e de boa fé processuais, incumbe à parte recorrente, também sob pena de imediata rejeição do recurso, indicar com exactidão as passagens da gravação em que funda o seu dissenso, no caso de os meios probatórios terem sido gravados, como lho impõe a alínea a) do nº. 2 daquele artº. 640º..

IV – A transmissão singular de dívidas pode ocorrer por contrato entre o antigo e o novo devedor ou por contrato entre o novo devedor e o credor, sendo o factor comum de ambas as modalidades a intervenção do credor, na primeira, através da ratificação, sem a qual o contrato não produz efeitos em relação a si, ou assumindo-se parte contratante, na segunda.

V – Não impondo o C.C. uma forma especial, o contrato de transmissão de singular de dívida é consensual, não estando a sua validade formal dependente da redução a escrito – cfr. art.o 219.º do C.C..

VI – O art.º 6.º do C.S.C., que consagra o princípio da especialidade do fim, reconhece a capacidade de gozo das sociedades comerciais relativamente a todos os direitos e obrigações necessários ou convenientes à prossecução do seu fim, excluindo do seu âmbito os direitos e obrigações vedados por lei ou que sejam inseparáveis da personalidade singular.

VII – A assunção de dívida não pressupõe de per si uma natureza gratuita, podendo antes visar a satisfação de interesses relevantes da sociedade comercial assuntora, cabendo a esta o ónus da alegação e prova da ausência de interesse próprio na assunção, ou de que o credor tinha conhecimento que o acto praticado pelos seus representantes extravasa do seu objecto.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

A) RELATÓRIO

I.- “X, Unipessoal, Ld.ª”, sociedade comercial com sede em Fafe, intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra o “Banco A, S.A.”, pedindo a condenação desta a:

a) restituir-lhe, por depósito na conta bancária identificada no artigo 3.º, a quantia de € 242.769,85 e a quantia de € 19.404,36;
b) ver declarado que não está obrigada a pagar as prestações que se forem vencendo, relativamente ao contrato de mútuo, enquanto não for creditada na conta referida na alínea anterior as quantias aí mencionadas;
c) indemnizá-la por danos materiais no valor de € 10.000;
d) indemnizá-la pelos danos patrimoniais, ainda não apurados, a liquidar em execução de sentença.
Alega, em síntese, que tem por objecto o comércio de automóveis, actividades auxiliares de intermediação financeira, manutenção e reparação de automóveis, tendo celebrado com a Ré, a 29 de Janeiro de 2014, contrato pelo qual esta lhe mutuou a quantia de € 285.000, a creditar em conta de depósito à ordem, que identifica, pelo prazo de quinze anos, à taxa anual nominal de 6,774%, com período de carência de capital e juros por seis meses; no dia seguinte a Ré creditou na conta a quantia mutuada, debitando € 6.034,20 relativos a imposto e despesas do contrato, mas a 4 de Fevereiro seguinte, sem ordem expressa ou autorização, transferiu a quantia de € 242.769,85 para a sociedade “Y – Comércio de Automóveis” e a 5 de Fevereiro voltou a transferir € 19.404,36, correspondentes praticamente a toda a quantia que havia sido mutuada e que ela, Autora, tinha destinado a investimentos em obras de remodelação, compra de máquinas e outros equipamentos destinados ao desenvolvimento da sua actividade.

A Ré contestou contrapondo que a concessão do empréstimo e as consequentes transferências para a Y foram efetuadas no interesse e por instrução da Autora, cujo único sócio é sogro da sócia maioritária daquela sociedade, a qual é sua cliente há vários anos sendo devedora do montante de € 432.430 em Setembro de 2012, e as transferências que efectuou são a sequência de um acordo celebrado entre a Autora e a sócia gerente da Y. Refere ainda que deu nota a esta da necessidade de assinatura da ordem de transferência pelo sogro e sócio-gerente da primeira, tendo a mesma afirmado que iria ser assinada. No entanto, a 7 de Fevereiro este último solicitou que os montantes fossem repostos.

A Autora exerceu o contraditório reiterando o que alegara na petição inicial; negou conhecimento da dívida da Y e ter delineado qualquer estratégia no sentido de solucionar os eventuais problemas desta.
Os autos prosseguiram os seus termos vindo a proceder-se ao julgamento que culminou com a prolação de douta sentença que, julgando a acção parcialmente procedente e provada declarou que a A. “X Unipessoal, Ld.ª” não está obrigada a pagar as prestações previstas no contrato identificado nos pontos 10) a 13) da fundamentação de facto, e condenou a Ré “Banco A no seu reconhecimento; absolveu esta Ré dos demais pedidos formulados pela autora.

Nem a Autora nem a Ré se conformaram com a supra transcrita decisão, pedindo ambas a sua revogação, e a sua substituição por outra que, relativamente à primeira, condene a Ré nos pedidos que contra ela formulou, e relativamente à segunda, que se considere válido o contrato de transmissão singular de dívida, ou, a manter-se o entendimento de que ele é nulo, a decisão leve em consideração as consequências legais da declaração de nulidade.
Ambas as Partes contra-alegaram pedindo a improcedência do recurso da contraparte.
Os recursos foram recebidos como de alegação, com efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre decidir.
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II.- A Apelante/Autora formulou as seguintes conclusões (as quais, posto não obedeçam à sinteticidade legalmente exigida, por singela comodidade se transcrevem):

I. A douta sentença recorrida é nula, nos termos da alínea c) do artigo 615.º do Código de Processo Civil, dado que os seus fundamentos estão em oposição com a decisão.
II. Por outro lado, a douta sentença padece de erro de julgamento, já que o contrato de mútuo em causa não é nulo por fraude à lei, já que não está contra o disposto no artigo 6.º do Código das Sociedades Comerciais, tal como decidiu a douta sentença recorrida.
III. Foram dados como provados uma série de factos, sem suporte da prova produzida em julgamento e foram dados como não provados factos que deveriam ter sido considerados provados, atendendo ao depoimento prestado em julgamento pelas testemunhas que aí depuseram.
IV. Os factos dados como provados não permitem que se chegue à conclusão que o contrato de mútuo celebrado entre a A. e a R. seja nulo, por fraude à lei, ou seja, que seja contrário ao disposto no artigo 6.º do Código das Sociedades Comerciais.
V. Com efeito, a sociedade mutuária - X, Unipessoal Lda. - tem como seu único sócio e gerente, Fernando, casado, residente na Rua …, concelho de Santo Tirso.
VI. Como fiadores e principais pagadores da dívida contraída nesse mútuo foram apresentados Maria e Jorge.
VII. A Y. - Comércio de Automóveis Lda. e a X Unipessoal, Lda. são pessoas colectivas completamente distintas e autónomas.
VIII. A sociedade Y - Comércio de Automóveis Lda. havia sido formada em 2007 e a autora X, Unipessoal Lda., foi formada vários anos depois, em finais de 2012.
IX. O Jorge nunca foi sócio ou gerente de qualquer destas sociedades, limitando-se a ajudá-las nas oficinas no conserto e embelezamento de veículos automóveis para as duas sociedades, que os comercializavam.
X. Nunca praticou, em qualquer dessas sociedades, qualquer acto de gestão, tal como a Maria, sócia e gerente da sociedade Y - Comércio de Automóveis Lda. nunca interveio na gestão da A., X, Unipessoal, Lda., que pertence ao seu ex-sogro, Fernando.
XI. Do mesmo modo, a A. X, Unipessoal Lda., por intermédio de quem quer que seja, nomeadamente do seu único sócio e gerente, Fernando, alguma vez praticou acto de gestão da sociedade Y - Comércio de Automóveis Lda.
XII. O Fernando, com duas hipotecas, garantiu os pagamentos à R., tanto das dívidas da sociedade Y - Comércio de Automóveis Lda. como da X, Unipessoal Lda. e acordou na cessão da posição contratual da locação financeira da sociedade Y - Comércio de Automóveis Lda. para a X, Unipessoal Lda., contrato este assinado pela R., pela autora, pela Maria e pelo Jorge, tendo estes dois últimos assinado como garantia uma livrança em branco a favor da R.
XIII. Os depoimentos das testemunhas ouvidas em julgamento em nada podiam levar o tribunal a concluir pela nulidade do contrato de mútuo, por fraude à lei, nomeadamente, por ofensa do disposto no artigo 6.º do Código das Sociedades Comerciais.
XIV. O n.º 3 do artigo 6.º do Código das Sociedades Comercias considera contrária ao fim da sociedade a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras sociedades, salvo se existir justificado interesse próprio da sociedade garante ou se tratar de sociedade em relação de domínio ou grupo.
XV. O único sócio e gerente da sociedade X, Unipessoal Lda., deu, em segunda hipoteca ao R., um prédio, por altura da feitura do contrato de mútuo.
XVI. Mas, tal hipoteca foi dada individualmente pelo Fernando e não pela sociedade de que era único sócio e gerente, ou seja, a A.
XVII. Essa segunda hipoteca destinava-se a garantir o pagamento dos créditos concedidos ou a conceder (incluindo o mútuo entretanto constituído) à sociedade X, Unipessoal Lda., de que era o único sócio e gerente.
XVIII. Entender que um sócio, como o faz a douta sentença recorrida, não pode garantir o pagamento dos débitos da sua sociedade é absurdo, contrário à Constituição, ofendendo, nomeadamente, o direito constitucional de propriedade, com as limitações nela previstas - artigo 62.º da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidade esta que aqui expressamente se invoca a favor da recorrente.
XIX. O contrato de mútuo em causa não constitui nenhuma assumpção de dívida pela A. para extinguir o passivo da sociedade Y - Comércio de Automóveis Lda. perante a R.
XX. Nem A. nem a sociedade Y - Comércio de Automóveis Lda. fizeram por ocultar o seu verdadeiro propósito, que não era, senão, fazer um contrato de mútuo junto do R. a favor da A. X, Unipessoal, Lda, destinado a investimentos a efectuar por esta, como resulta do contrato de mútuo.
XXI. Tal ocultação não resulta dos documentos juntos aos autos nem da prova produzida em julgamento.
XXII. Dos documentos dos autos apenas resulta um contrato de mútuo celebrado entre A. e R., um contrato de acordo de cessão da posição contratual de locação, celebrado entre a A. e a sociedade Y - Comércio de Automóveis Lda., tendo nele intervindo, também, os já referidos Maria e o seu ex-marido Jorge, que aí intervieram pessoalmente como garantes desse acordo, subscrevendo, a favor do R., uma livrança em branco.
XXIII. Não se pode, por isso, concluir pela existência de fraude à lei no contrato de mútuo.
XXIV. O Jorge nunca foi sócio, como já se referiu, da sociedade Y - Comércio de Automóveis Lda. nem da X Unipessoal, Lda. Trabalhava nas suas oficinas e, por vezes, dirigia-se ao Banco.
XXV. O seu pai, Fernando, é homem capaz de dirigir a sociedade X Unipessoal, Lda., que criou, não precisando do seu filho para dirigir tal sociedade.
XXVI. Não se transcrevem os depoimentos prestados em julgamento pelas testemunhas, pois os mesmos vêm, praticamente, escritos na sentença recorrida.
XXVII. Desses depoimentos, também, como já se referiu, não se pode inferir da nulidade do contrato de mútuo por fraude à lei.
XXVIII. Algumas das testemunhas indicadas pelo R. tentaram dizer em julgamento que o negócio de mútuo, efectuado pela A., se destinava ao pagamento das dívidas que a sociedade Y - Comércio de Automóveis Lda. tinha com a R.
XXIX. Mas, ao fim de contas, cremos que não conseguiram tal desiderato, que era apenas da R. e nunca da A.
XXX. E, a verdade, é que o sócio único e gerente da X Unipessoal, Lda., nunca assinou a autorização ou de qualquer modo autorizou a transferência do dinheiro de contrato de mútuo desta sociedade para a conta da sociedade Y - Comércio de Automóveis Lda.
XXXI. O que as testemunhas da R. depuseram em julgamento não é mais que um alijar de responsabilidades suas perante o Banco para quem trabalhavam (a R.), alijamento esse que nem por isso impediu que lhe fossem instaurados processos disciplinares pela R.
XXXII. Aliás, o que a testemunha, Sandra veio depor é praticamente sobre a sociedade Y - Comércio de Automóveis Lda. e não sobre a A.
XXXIII. No seu depoimento tentou, esta testemunha, convencer o Tribunal que o dinheiro do mútuo, efectuado à X Unipessoal, Lda., se destinava a pagamentos de créditos que o R. detinha sobre a sociedade Y - Comércio de Automóveis Lda.
XXXIV. Daí a invenção de que o Jorge geria as duas sociedades, o que, como se referiu, não é verdade, tal como a própria R. reconhece.
XXXV. Mas mesmo que a Maria e seu ex-marido Jorge, alguma vez, por hipótese, disseram à R. que o dinheiro desse mútuo poderia servir para pagamentos das dívidas da sociedade Y - Comércio de Automóveis Lda., a A. nada tem a ver com isso.
XXXVI. Quem tratou da constituição da sociedade A., quem tratou do mútuo e o assinou com o R. foi o único sócio e gerente da A., Fernando.
XXXVII. Aliás, não se compreende, que, tendo este Fernando estado presente e assinado o contrato de mútuo, ninguém da R. lhe tenha dito que o dinheiro desse mútuo era para pagamento ao R. dos débitos da sociedade Y - Comércio de Automóveis Lda. para com esta.
XXXVIII. Não apresentou ao R. qualquer documento ou pedido ao Fernando para que este autorizasse a transferência do dinheiro do mútuo da conta da X Unipessoal, Lda. para a conta da sociedade Y - Comércio de Automóveis Lda., a ser verdade que esse dinheiro se destinava a pagamentos de dívidas da Y - Comércio de Automóveis Lda. para com o R.
XXXIX. E não era esse o momento adequado para ele (Fernando) assinar a autorização da transferência?
XL. Não foi o momento adequado porque o R. não teve coragem para tal e, só mais tarde, após ter efectuado essa transferência, é que veio a transformar o Jorge como mentor deste mútuo, como gerente da sociedade Y - Comércio de Automóveis Lda. e da X Unipessoal, Lda., como se o seu pai, único sócio gerente desta, fosse um incapaz (confrontar os depoimentos constantes da sentença prestados em julgamento pelas testemunhas Sandra, Paulo, T. C., Vítor, Luís e Nuno).
XLI. Todos estes depoimentos foram efectuados por pessoas funcionários da R. e comprometidos com aquilo que haviam praticado.
XLII. E isto porque encontraram algumas vezes nas oficinas das sociedades o referido Jorge, que, também, se deslocou ao Banco, até para assinar o acordo de cessão de posição contratual do contrato de locação financeira e para assinar, tal como a sua ex-esposa, uma livrança em branco ao R., que servia de garantia ao pagamento dos débitos assumidos e a assumir pela X Unipessoal, Lda.
XLIII. Contudo, nunca deixaram de conversar com o Fernando, único sócio e gerente da X Unipessoal, Lda., que, aliás, outorgou hipoteca de um prédio a favor do R. como garantia dos débitos assumidos e a assumir pela X Unipessoal, Lda. junto do R.
XLIV. Apesar desses encontros e negócios, não conseguiram convencer o Fernando a autorizar a transferência do dinheiro do mútuo celebrado pela X Unipessoal, Lda. para a sociedade Y - Comércio de Automóveis Lda.
XLV. Tal mútuo destinava-se a diversos investimentos a efectuar pela A., tal como consta da escritura de constituição do mesmo.
XLVI. Contudo, tais investimentos não vieram a ter toda concretização, devido à transferência bancária do dinheiro mutuado à A. para a conta da sociedade Y - Comércio de Automóveis Lda.
XLVII. Assim, o R. é responsável pelos prejuízos à A. com esta transferência.
XLVIII. Pelo que ficou escrito, deviam ter sido dados como não provados os factos constantes nos PONTOS 34°, 35° e 36° constantes da Fundamentação de Facto.
XLIX. Por outro lado, deviam ter sido dados como provados os factos alegados nos PONTOS 13°, 17°, 18°, 19° e 20° da Petição Inicial, isto é:

- Que a A. destinava o montante do financiamento a investimento em obras de remodelação, compra de máquinas e outros equipamentos destinados ao desenvolvimento da sua actividade;
- Que as transferências tivessem tornado inviáveis os investimentos que a A. pretendia fazer;
- Que esses investimentos constituíssem o único motivo do acordo identificado em 10 da Fundamentação de Facto;
- Que a A. tivesse perdido clientela e ficasse impossibilitada de angariação de nova clientela, sofrendo prejuízo superior a €10.000,00 euros;
- O alegado nos artigos 14°, 16°, 23° a 35° da Petição Inicial.
L. Quanto à violação por parte da douta sentença recorrida, em relação a alguns institutos jurídicos. Crê a recorrente que, "A identificação da questão a resolver - repita-se, da problematização da responsabilidade do Banco R. na execução sem ordens ou autorização expressa do gerente da A. de transferência bancária, e, da negligência da sua actuação".
LI. Foi outorgado um contrato de mútuo celebrado, considera a recorrente que o tribunal a quo operou uma errada qualificação dos factos ao direito, porquanto, aqueles montantes entraram na conta da R., saindo da conta da A., ou pelo menos, do activo desta.
LII. o que significa que saiu dinheiro da A. para a R., mas tal não significa que tal transferência de verbas tivesse sido entregue a título de empréstimo.
LIII. Para se tratar de um mútuo, a tradição da coisa (dinheiro) deve ser efetuada com intuito de aquele que entrega o dinheiro ao outro o fazer para servir como empréstimo.
LIV. Ou seja, para emprestar para que o outro use, como bem entenda e depois restitua outro do mesmo género, quantidade e qualidade.
LV. O mútuo típico revela-se, pelos apontados traços definidores, como um contrato mediante o qual uma das partes, o mutuante, com ou sem retribuição, renuncia temporariamente à disponibilidade de uma certa quantia de dinheiro ou ao equivalente a certa coisa fungível, pela cedência a outrem, o mutuário, podendo este retirar delas um aproveitamento.
LVI. O contrato de mútuo assume, relativamente à forma, as características de um contrato solene - cfr. art.º 1143.º do Cód. Civil- dado que para que seja eficaz e válido se torna necessário que as declarações de vontade expressas pelos contraentes sejam plasmadas em escritura pública, se a quantia mutuada for igual ou superior às quantias legalmente fixadas.
LVII. Tratando-se de uma formalidade exigida por lei resulta do preceituado no n.º 1 do artigo 364.º do Cód. Civil que "quando a lei exigir, como forma da declaração negocial, documento autêntico, autenticado ou particular, não pode este ser substituído por outro meio de prova ou por outro documento que não seja de forca probatória superior." Nos termos do n.º 2 do citado preceito o documento pode ser substituído por confissão expressa, se resultar claramente da lei que foi exigido apenas para prova da declaração.
LVIII. Do preceituado no n.° 2 pode-se inferir que quaisquer documentos - autênticos ou particulares - poderão constituir formalidades "ad probationem”, desde que, excepcionalmente, resulte, inequivocamente, da lei que a finalidade tida em vista ao ser formulada certa exigência de forma foi apenas a de obter prova segura acerca do acto.
LIX. Tratando-se de um contrato de mútuo real e oneroso a necessidade de redução das declarações em escritura pública ou documento particular autenticado torna este tipo de contrato um contrato solene, não podendo a prova ser efetuada senão por documento de valor idêntico, o que faz depender a validade do contrato de mútuo, a partir dos limites fixados na lei, de um requisito ad substantiam - cfr. art.º 364.°, ex vi do art.º 219.°, do Código Civil.
LX. Resultou provado que, sem autorização ou consentimento por parte do gerente da A., as quantias referidas no contrato mútuo haviam sido entregues - rectius transferidas - pela R., a título de empréstimo, à A. para investimentos e que esta se havia obrigado a restituí-las, em capital remunerado.
LXI. E sem autorização a R. debitou a conta da A. para pagar dívidas de uma empresa terceira, sem ligação de grupo ou participada desta.
LXII. A A. reclamou junto da R. e do Banco de Portugal, sendo dada resposta e razão.
LXIII. Resultando igualmente provado, que, não foi utilizada a forma estipulada, legalmente, para a formalização dos contratos de mútuo - cfr. art.º 1143.° do Código Civil - o produto do financiamento era para investimentos.
LXIV. Neste segmento, merece, portanto, censura, a decisão impugnada, quer na tipificação do contrato mútuo, mandato sem poderes e utilização abusiva pela R. da conta da A. sem autorização, que não se deverá manter.
LXV. Quanto à responsabilidade do Banco R. tinha o ónus de provar que a movimentação da conta ocorreu por motivo justificado, designadamente porque tinha autorização da A. para o fazer.
LXVI. O Banco R. não estava autorizado e alegadas "terceiras pessoas" não tinham poderes para agirem em nome da A., sem procuração.
LXVII. O Banco R. agiu com negligência, era-lhe exigível outra diligência, por quem sempre fez movimentações na conta da A.
LXVIII. Logo, se o Banco R. tivesse exigido a procuração à A. com poderes suficientes, teria executado as transferências, dentro das regras legais.
LXIX. De forma conclusiva o Banco R. violou os deveres de cuidado e diligência a que estava obrigado resultantes dos artigos 74.°, 75.°, n.º 2, 76.°, 118.º-A do RGICSF, da Portaria n.º 150/2004, Portaria n.º 292/2011, do RJSP, e dos artigos 2.°, al, a) e b) e art.º 4.°, do Aviso do Banco de Portugal n.º 11/2005.
LXX. Como ao caso se aplica o disposto no artigo 796.° do Cód. Civil, as transferências bancárias em nome da A., efetuada pela R. foram ilegais e sem autorização ou consentimento. Que consequência jurídica resulta desta falta de autorização?
LXXI. No âmbito da representação voluntária, o negócio que uma pessoa, sem poderes de representação, celebre em nome de outrem e ineficaz em relação a este, se não for por ele ratificado - art.º 268.°, n.º 1, do Cód. Civil.
LXXII. O preceito legal estabelece duas previsões e duas estatuições, a saber: - se uma pessoa celebra em nome de outra, sem poderes de representação, um negócio jurídico, o mesmo é ineficaz em relação à segunda; - se uma pessoa celebra em nome de outra, sem poderes de representação, um negócio jurídico e a segunda o ratifica, o mesmo é eficaz em relação a ela.
LXXIII. Em concreto: Porque, nenhum efeito deles resulta, não merece acolhimento o pedido formulado pela autora de condenação da ré a reintegrar na conta o montante do crédito concedido, visto a ineficácia ser total, estendendo-se quer aos direitos quer às obrigações resultantes do negócio ou das suas vicissitudes.
LXXIV. Tem direito a que, por via da ineficácia, e na relação bancária entre ambos, o tribunal declare (mais apropriado que condene a R. a reconhecer) que a A. tem direito ao valor do crédito concedido, e ilegalmente transferido para pagar dívidas de terceiros.
LXXV. Se o Banco R., em face da insuficiência dos poderes tidos pela A. que tem em seu poder e da configuração objectiva de situação de representação sem poderes, nos termos descritos, não cumpriu o ónus previsto, a consequência natural é sofrer o risco da ineficácia do contrato face ao representado (Ana Prata, em Responsabilidade pré-contratual, 2, "O Direito", pág. 43 e sgs.).
LXXVI. Esta é, aliás, a única solução compatível com o disposto no art.º 65.°, n.ºs. 1 a 3 - consentimento e retirada do consentimento - do "Regime Jurídico Relativo ao Acesso à Actividade das Instituições de Pagamento e à Prestação de Serviços de Pagamento", aprovado pelo D.L. n.º 317/2009, de 30-10, que tem o seguinte teor: "1 - Uma operação de pagamento ou um conjunto de operações de pagamento só se consideram autorizados se o ordenante consentir na sua execução. 2 - O consentimento deve ser dado previamente à execução da operação, salvo se for acordado entre o ordenante e o respectivo prestador do serviço de pagamento que o mesmo seja prestado em momento posterior. 3 - O consentimento referido nos números anteriores deve ser dado na forma acordada entre o ordenante e o respectivo prestador do serviço de pagamento, sendo que, em caso de inobservância da forma acordada, se considera que a operação de pagamento não foi autorizada".
LXXVII. Daí a responsabilidade do Banco R. relativamente ao acto de transferir sem autorização da A. do crédito concedido, a ineficácia do mesmo perante a A.
LXXVIII. O Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF), aprovado pelo D.L. n.º 298/1992, de 31-12, objecto de sucessivas alterações, previa ao tempo das transferências bancárias em questão, no artigo 73.°, que as instituições de crédito devem assegurar, em todas as actividades que exerçam, elevados níveis de competência técnica, garantindo que a sua organização empresarial funcione com os meios humanos e materiais adequados a assegurar condições apropriadas de qualidade e eficiência; no artigo 74.°, que os administradores e os empregados das instituições de crédito devem proceder, tanto nas relações com os clientes como nas relações com outras instituições, com diligência, neutralidade, lealdade e discrição e respeito consciencioso dos interesses que lhes estão confiados; e, por último, no artigo 76.°, n.º 2 que com vista a assegurar o cumprimento das regras de conduta previstas neste Regime Geral e em diplomas complementares, o Banco de Portugal pode, nomeadamente, emitir recomendações e determinações específicas, bem como aplicar coimas e respectivas sanções acessórias, no quadro geral dos procedimentos previstos no artigo 116.º
LXXIX. Do acervo invocado pela A. e recorrente para estribar a negligência do Banco R., unicamente importam os elevados níveis de competência técnica a que as instituições de crédito estão obrigadas e a diligência dos empregados dessas instituições na relação com os clientes.
LXXX. Relativamente a esses deveres - de elevada competência técnica e de diligência - parece-nos que a sua densificação ou concretização há-de ser feita em face do concreto acto bancário, conforme, artigos 73.° e 74.° do RGICSF.
LXXXI. Neste contexto, o artigo 76.°, n.º 1, do Regime Jurídico Relativo ao Acesso à Actividade das Instituições de Pagamento e à Prestação de Serviços de Pagamento, regula a recusa de ordens de pagamento nos seguintes termos: "1 - No caso de estarem reunidas todas as condições previstas no contrato quadro celebrado com o ordenante, o prestador de serviços de pagamento do ordenante não pode recusar a execução de uma ordem de pagamento autorizada, independentemente de ter sido emitida pelo ordenante, pelo beneficiário, ou através dele, salvo disposição legal em contrário".
LXXXII. A regra é, como se vê, a da execução da ordem de pagamento se estiverem reunidas as condições previstas no contrato quadro celebrado entre as partes, que a A. recorrente coloca especificamente em crise.
LXXXIII. Por fim, resta saber se o disposto no artigo 796.°, n.º 1, do Cód. Civil, é aplicável ao caso, posição sufragada pela recorrente e donde estriba a pretensão de o Banco R. ser condenado a reintegrar na sua conta os valores que dela foram transferidos.
LXXXIV. Independentemente do exposto e a A. não ter agido com culpa - sempre se segue o entendimento de que no contrato de depósito bancário, o disposto no art.º 796.º, n.º 1, do Cód. Civil - responsabilidade pelo risco decorrente do perecimento ou deterioração da coisa -, só se aplica em caso de pagamento feito a terceiro sem o consentimento do depositante - cfr. Acórdão do STJ de 15.11.2012, proc. n.º 246/10.3YRLSB.L1.S1 – 7ª Secção, in http://www.stj.pt/ficheiros Ijurisp-tematica/direitobancario.pdf, e artigos 769.° e 770.°, n.º1 al, a), ambos do Cód. Civil.
LXXXV. Não tendo a ordem de transferência bancária emanado do depositante a A., não deu esta, o seu consentimento ao Banco R. para a executar a transferência, justificando, também neste caso, fazer repousar sobre o Banco R., o risco complementar dos vícios na formação da vontade dos próprios depositantes e que, se não equiparam ao risco de fraude diretamente exercida por terceiros sobre a conta e os depósitos que o R. tem à sua guarda.
LXXXVI. Cabendo, pelo exposto, a exegese do artigo 796.° do Cód. Civil, anunciada e solicitada pela A. e aqui recorrente, por em concreto não se excluir a sua aplicação.
LXXXVII. O Banco R., por responsabilidade que lhe é imputável, representou com a sua negligência actuação uma diminuição efectiva do património da A.
LXXXVIII. Pelo exposto e com as alegações acima aduzidas, além da aplicação ao caso da norma do artigo 796.° do Cód. Civil, também ao caso se aplica o disposto no artigo 799.° do Cód. Civil, como sobre a culpa do Banco R., que, por tudo terá de restituir à A. das quantias na falta de causa jurídica justificativa e com juros moratórias peticionados.
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III.- A Apelante/Ré formulou as seguintes conclusões:

1- Estabelece o art. 6º do CSC que, a capacidade da sociedade compreende os direitos e obrigações necessários ou convenientes à prossecução do seu fim, exceptuados os que lhe sejam vedados por lei, ou sejam inseparáveis da personalidade singular, mais estatuindo não serem contrárias ao fim societário as liberalidades que possam ser consideradas usuais, bem como a prestação de garantias a outras entidades, contanto exista justificado interesse próprio da sociedade garante, ou se se tratar de sociedades em relação de domínio ou de grupo;
2- Perante o que a lei societária assim determina, poder-se-á afirmar que a capacidade de gozo exprime a aptidão para ser titular de um círculo, com mais ou menos restrições, de relações jurídicas, enquanto que a vinculação externa se refere à válida constituição de obrigações jurídicas para com terceiros;
3- Perante um tal enunciado conclui-se que apenas pode haver vinculação no âmbito da capacidade de gozo, ou seja,
4- A capacidade de gozo é a medida da possibilidade de vinculação da sociedade, pelo que se impõe que o acto vinculativo nela se inclua, pese embora não se impor que este se contenha dentro dos poderes do órgão que o praticou;
5- Porém, de per se, a capacidade de gozo sofre limitações, na medida em que só integra os direitos e obrigações necessários ou convenientes à prossecução dos seus fins e que se mostrem inseparáveis da personalidade singular;
6- E, é precisamente em conformidade com tais limites ou restrições que o nº 3 do citado art. 6º determina que se considera contrária ao fim da sociedade a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades, salvo se existir interesse próprio a sociedade garante, ou se se tratar de sociedades em relação de grupo;
7- O quadro legal que delimita a capacidade de gozo das sociedades comerciais é assim este: todos os direitos e obrigações exigidos pela prossecução do seu fim, sem restrições que não as constantes da lei expressa. Pelo que,
8- A apreciação da questão que ora nos ocupa leva a concluir que, o que aqui está em causa é a capacidade jurídica ou a capacidade de gozo da pessoa colectiva, e já não a problemática que se prende com a sua capacidade de exercício ou capacidade de agir, até porque esta se contém naquele;
9- Se analisada nesta vertente, i. e. numa perspectiva que parte da capacidade para a análise dos actos e não destes para a definição da abrangência da capacidade pela sua mera adição ou justaposição, cedo se evidencia que as meras liberalidades ou negócios aparentemente gratuitos não colidem necessariamente com a capacidade de gozo da sociedade;
10- Nem esta se pode considerar limitada ao fim ou objecto social, até porque a sua actuação ultra vires diz respeito aos meios ou condições de exercício de que a pessoa se pode servir para o desempenho da sua actividade e não propriamente a esse fim ou objecto;
11- Sintetizando, as sociedades têm capacidade de gozo ampla para a prossecução dos seus fins, que não pode ser restringida senão por lei expressa- art. 6º nº 1 do CSC.-, capacidade essa que inclui a prática de actos tais como a prestação de garantias e as liberalidades (uma vez que inexiste lei expressa que as exclua) antes estando previstas nos nºs 2 e 3 daquele art.6º;
12- No entanto, para que tais actos se considerem como legitimados importa a verificação de situações ou circunstâncias de excepção, das quais se destaca aqui o justificado interesse próprio;
13- Ora, a propósito da conceptualização daquilo que se possa considerar como justificado interesse próprio, a mais esclarecida jurisprudência impõe a verificação de determinados requisitos, a saber: a objectividade, a proporcionalidade e a tempestividade;
14- Requisitos esses que assim importará determinar se, in casu, efectivamente se verificaram;
15- Tomando por referência o segmento da “Fundamentação de Facto” que se encontra vertido na douta sentença a quo, e cuidando em especial do que ressalta dos seus pontos 1º, 4º, 5º, 6º, 7º, 8º, 29º, 30º, 19º, 31º, 32º e 33º, verifica-se como assente que a ratio que presidiu à constituição da A. se encontra no interesse/necessidade manifestado pelos efectivos titulares do capital social de ambas as sociedades na transmissão dos activos e passivos da sociedade Y para a esfera da A.;
16- Deste modo, a A. foi constituída - e como tal existe - com um único objectivo: o de receber o “negócio” da referida Y.
17- O que os representantes e interlocutores daquelas sociedades (familiares, ademais) gizaram e concretizaram foi, apenas e tão só, a transmissão do negócio (da universalidade de facto que este representa) daquela Y para a A.;
18- E, se assim se entender, como efectivamente se terá de entender, o negócio em crise não representou qualquer injustificada liberalidade da A., mas antes como um negócio cujo justificado interesse se evidencia;
19- Apresenta-se desta forma apodíctico o interesse justificado subjacente ao negócio sob escrutínio, até porque preenchidos os propalados requisitos da objectividade, proporcionalidade e tempestividade;
20- Objectividade que emerge do facto de a A. beneficiar do negócio ora em crise, pois que de outra forma não se justificaria a transmissão negocial ocorrida, nem aproveitaria a renegociação das condições de financiamento;
21- Proporcionalidade que se expressa no confronto de valores em jogo e do inconveniente a que pretendiam obstar, qual fosse o da iminente cessação da actividade de comércio exercida;
22- Tempestividade que decorre da urgência da solução encontrada e que nos autos se encontra implicitamente confessada;
23- Conclui-se, pois, que o contrato de mútuo sub judice não foi celebrado em fraude à lei; não violou o consignado no art. 6º do CSC, nem qualquer norma expressa;
24- Nem tão pouco dele resultou qualquer prejuízo para as demais credores da Y dado a recorrente ser já beneficiária da hipoteca que garantia as responsabilidades daquela.
25- Ao que acresce que, ao suscitar a questão do negócio em fraude à lei (questão que não obstante não alegada pela A., sempre poderá considerar-se de conhecimento oficioso), a verdade é que a douta sentença recorrida olvida não estarem indiciados factos que permitam extrair a conclusão de que as partes quiseram realizar negócio em fraude à lei; nem ficou revelada a intenção dos contraentes do contrato de mútuo de alcançarem esse propósito, pelo que, também sob este prisma, não deverá ser reconhecida a indicada fraude;
26- Mesmo a admitir-se que o mútuo em causa é nulo por fraude à lei, o que apenas por cautela e dever de patrocínio se concede, sempre a douta sentença a quo merecerá reparo, destarte por considerar que a A. não está obrigada a pagar as prestações alusivas à amortização do capital, acrescidas de juros remuneratórios e eventualmente moratórios. Como se demonstra:
27- A sentença sob recurso considera nulo, por fraude à lei o contrato de mútuo celebrado entre A e Ré, pelo que, em consequência, reconhece o efeito ex tunc que decorre dessa nulidade;
28- Ora, embora reconheça essa evidente retroactividade, o certo é que logo a nega ao considerar que a A. não está obrigada a pagar as prestações alusivas à amortização do capital;
29- Vale isto dizer que, não obstante expressamente vislumbrar e reconhecer um efeito ex tunc, a sentença recorrida leva à prática as consequências que decorreriam de um efeito ex nunc;
30- Sendo até que, ao fazê-lo, legitima um indevido enriquecimento sem causa daquele que até considera ser o gerente de facto de ambas as sociedades (Jorge) e, em consequência o indevido empobrecimento da recorrente, que se veria assim privada de reaver o que efectivamente havia mutuado. Pois bem,
31- Ao considerar a nulidade decorrente de negócio em fraude à lei, a Mma Juíza deveria concomitantemente determinar a restituição das prestações efectuadas, i.e., da quantia mutuada e não permitir que a A., sem mais, as fizesse suas;
32- Na esteira dos ensinamentos de Pires de Lima e Antunes Varela (in CC Anot. Vol), a própria declaração de nulidade ou de anulação arrasta consigo a destruição retroactiva das atribuições patrimoniais, retroactividade que obriga à restituição das prestações efectuadas, como se o negócio não tivesse sido realizado;
33- Os efeitos da nulidade operam retroactivamente, “o que está em perfeita coerência com a ideia de que a invalidade resulta de um vício intrínseco do negócio e, portanto, contemporâneo da sua formação (…) Em consonância com a retroactividade, haverá lugar à repristinação das coisas no estado anterior ao negócio, restituindo-se tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente (artigo 289º, nº1). Tal restituição deve ter lugar, mesmo que não se verifiquem os requisitos do enriquecimento sem causa (…) “, Mota Pinto (in Teoria Geral do Direito Civil);
34- O mesmo é dizer que, uma vez declarado nulo o negócio, a produção dos seus efeitos é excluída desde o início, ex tunc , a partir do momento da formação do negócio, e não ex nunc, a contar da data da declaração da nulidade;
35- Com a declaração de nulidade do contrato desaparecem retroactivamente as atribuições patrimoniais nele acordada, todos os efeitos que produziria um contrato válido, incluindo as convenções quanto a prazos;
36- Pelo que deverá a A. restituir à ora recorrente a quantia de 285.000,00 euros, correspondente ao capital emprestado, acrescida dos juros, à taxa legal, contados desde a data da citação da presente acção (data a partir da qual os contraentes não podem deixar de saber que com a retenção do capital mutuado o mutuário está a lesar o direito do mutuante e entra em mora), até efectivo pagamento.
37- A douta sentença recorrida violou assim o disposto nos art 6º do Código das Sociedades Comerciais, 280º e 289º do Código Civil.
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IV.- Como resulta do disposto nos art.os 608.º, n.º 2, ex vi do art.º 663.º, n.º 2; 635.º, n.º 4; 639.º, n.os 1 a 3; 641.º, n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, (C.P.C.), sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.

Como se extrai das conclusões acima transcritas, cumpre:

- apreciar a arguição da nulidade da sentença;
- reapreciar, se estiverem reunidos todos os pressupostos, a decisão da matéria de facto, nos segmentos impugnados;
- reapreciar a questão da validade formal e substancial do celebrado contrato de mútuo bancário, designadamente se tiver subjacente um contrato de transmissão singular de dívida (na modalidade de assunção de dívida).
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B) FUNDAMENTAÇÃO

V.- A APELANTE/AUTORA Apelante argui a nulidade da sentença, argumentando que os fundamentos estão em contradição com a decisão.
As nulidades da decisão são vícios intrínsecos à própria sentença, quer quanto à sua estrutura, quer quanto aos seus limites, quer quanto à sua inteligibilidade, não tendo, por isso, a ver com erros de julgamento, seja em matéria de facto, seja em matéria de direito.
Os fundamentos de nulidade da sentença vêm taxativamente enunciados no n.º 1 do art.º 615.º do C.P.C..
A Apelante argui um vício que respeita à inteligibilidade – oposição entre os fundamentos e a decisão – 1.ª parte da alínea c) daquele preceito legal.

Como vem sendo entendimento pacífico, a sentença enfermará do apontado vício se, na fundamentação, o juiz seguir uma determinada linha de raciocínio, que aponta para uma determinada conclusão, mas acaba por decidir em sentido oposto ou, pelo menos, divergente.

Ora desta falta de coerência não padece a sentença, estando a decisão em clara concordância com os raciocínios e conclusões expostos na fundamentação, de facto e de direito: a improcedência do pedido de “restituição” da quantia mutuada (primeiro pedido) assim como a procedência do pedido de declaração judicial da não obrigação do pagamento das prestações previstas no contrato de mútuo celebrado (segundo pedido), têm o seu fundamento na consideração de este contrato ser nulo por fraude à lei, por visar contornar a nulidade do negócio que lhe está subjacente, de assunção de dívida, o qual se considerou violador da proibição decorrente do art.º 6.º do Código das Sociedades Comerciais. A absolvição dos pedidos indemnizatórios decorre da falta de prova dos factos que constituíam a sua causa de pedir.
Termos em que se julga improceder a arguição da invocada nulidade.
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VI.- O Tribunal a quo proferiu a seguinte decisão de facto:

i) julgou provado que:

1. A Autora tem por objecto o comércio de automóveis, actividades auxiliares de intermediação financeira, manutenção e reparação de automóveis [alínea A) do despacho em referência e documento de fls. 114 e 115].
2. O capital de € 50.000 da Autora é detido por Fernando, casado no regime de comunhão de adquiridos com M. A. [alínea B) do despacho em referência e documento de fls. 114 e 115].
3. A Autora obriga-se com a assinatura de um gerente, o sócio Fernando [alínea C) do despacho em referência e documento de fls. 114 e 115].
4. A sociedade Y – Comércio de Automóveis, Ld.ª tem por objecto o comércio de automóveis, actividades auxiliares de intermediação financeira, manutenção e reparação de automóveis [alínea D) do despacho em referência e documento de fls. 42 a 44].
5. O capital da sociedade identificada em 4) corresponde a € 300.000, dividido em três quotas, sendo duas de € 130.000 pertencentes a Maria e uma de € 40.000 pertencente a Ana [alínea E) do despacho em referência e documento de fls. 42 a 44].
6. A sociedade identificada em 4) obriga-se com a assinatura de um gerente, a sócia Maria [alínea F) do despacho em referência e documento de fls. 42 a 44].
7. Maria, sócia gerente da sociedade identificada em 4) casou a 30 de Julho de 1994 com Jorge [alínea G) do despacho em referência e documento de fls. 111 a 113].
8. Jorge é filho de Fernando, sócio gerente da Autora, e de M. A. [alínea H) do despacho em referência e documento de fls. 111 a 113].
9. Por sentença proferida a 25 de Outubro de 2001, transitada em julgado a 12 de Novembro de 2001, foi decretada a separação judicial de pessoas e bens entre os cônjuges identificados em 7) [alínea I) do despacho em referência e documento de fls. 111 a 113]. 10. Por escrito datado de 29 de Janeiro de 2014 denominado contrato de mútuo nº 30136.000065-9, assinado pelo procurador da Ré, como primeira outorgante, pelo sócio gerente da Autora, Fernando, como segundo outorgante, por Maria e Jorge, como terceiros outorgantes, foi declarado que a segunda outorgante se confessava devedora à primeira outorgante da quantia de € 285.000 que a título de mútuo dela recebia, a creditar na conta nº 301-10-001253-5 constituída no balcão da Ré em Lordelo em nome da parte devedora, destinando-se a investimentos diversos, obrigando-se a fazer prova dessa aplicação caso lhe fosse solicitado, pelo prazo de quinze anos a contar da referida data, a vencer juros à taxa anual nominal de 6,774% [alínea J) do despacho em referência e documento de fls. 16 a 22].
11. Na cláusula 4ª do acordo referido em 10) ficou previsto que entre os outorgantes era acordado um período de carência de capital e juros de seis meses, a contar da referida data, sendo que os juros vencidos e não pagos pela parte devedora durante o período de carência concedido, iriam acrescer ao capital inicial [alínea K) do despacho em referência e documento de fls. 16 a 22].
12. Da cláusula 9ª. 1 do acordo referido em 10) consta “O Banco A fica desde já autorizada pela parte devedora a pagar-se por conta do crédito concedido de quaisquer dívidas que para com ela tenham a parte devedora.” [alínea L) do despacho em referência e documento de fls. 16 a 22].
13. Da cláusula 11ª do acordo referido em 10) consta que os terceiros outorgantes se confessavam e constituíam fiadores e principais pagadores das dívidas contraídas pela parte devedora no âmbito do mesmo, renunciando expressamente ao benefício de excussão prévia [alínea M) do despacho em referência e documento de fls. 16 a 22].
14. Por escrito datado de 29 de Janeiro de 2014, assinado pelo procurador da Ré, designada por locadora, pela gerente da sociedade Y – Comércio de Automóveis, Ldª, designada por cedente, pelo sócio gerente da Autora, Fernando, designada por cessionário, por Maria e Jorge, designados por quartos outorgantes, foi declarado que a locadora e o cedente celebraram em 16 de Outubro de 2009, o contrato de locação financeira imobiliária nº 301.44.000030-7 tendo por objecto o prédio urbano em regime de propriedade horizontal, edifício de um piso e logradouro, sito na Zona Industrial …, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº … e inscrito na matriz predial urbana da União das Freguesias de…, … e … sob o artigo … e que o cedente transmitia ao cessionário a sua posição contratual no contrato que este declarou expressamente conhecer e aceitar, assumindo, em consequência, todos os direitos e obrigações daquela e consentindo a locadora expressamente e sem reservas [alínea N) do despacho em referência e documento de fls. 56 a 61].
15. Na cláusula 2ª do acordo referido em 14) foi declarado que com a assinatura do mesmo, o cessionário tomava posse do imóvel locado, para os efeitos do contrato de locação financeira cedido, que o mesmo tinha as características adequadas à utilização para o fim a que se destinava, aceitando-o sem quaisquer reservas e obrigando-se a usá-lo para o fim previsto [alínea O) do despacho em referência e documento de fls. 56 a 61].
16. Da cláusula 5ª do escrito referido em 14) consta que entre a locadora, o cessionário e os quartos outorgantes era acordado alterar o ponto 4 da cláusula 4ª e 9ª das condições particulares do contrato de locação financeira cedido prevendo:
4.1 - 170 rendas:
4.2 - suspensão da cobrança das rendas por um período de seis meses a contar de 15 de Janeiro de 2014;
9 – livrança subscrita pelo cessionário com aval dos quartos outorgantes [alínea P) do despacho em referência e documento de fls. 56 a 61].
17. Consta da cláusula 6ª - 3 do escrito referido em 14) que todos os pagamentos a que o cessionário ficasse obrigado nos termos desse acordo ou do contrato de locação financeira cedido seriam efectuados através da conta de depósitos à ordem nº 301.10.001175-0 constituída no Balcão do Banco A de Marco de Canavezes, em nome do cessionário [alínea Q) do despacho em referência e documento de fls. 56 a 61].
18. Consta da cláusula 6ª - 4 do escrito referido em 14) que o Banco A ficava igualmente autorizada pelo cessionário a proceder à compensação, total ou parcial, da quantia em dívida emergente desse acordo ou do contrato cedido, em valores existentes em quaisquer contas que o cessionário fosse titular ou contitular em conta de depósito solidária [alínea R) do despacho em referência e documento de fls. 56 a 61].
19. Por escritura pública celebrada a 27 de Dezembro de 2013 no Cartório Notarial da Dr.ª Susana, sito na Praceta …, Fernando e M. A. declararam serem donos e legítimos possuidores do prédio rústico situado no lugar de …, freguesia de …, concelho de Santo Tirso, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº …, inscrito na matriz sob o artigo 1970 da União das Freguesias … anterior artigo … da freguesia de …, sobre o qual declararam pretender constituir segunda hipoteca a favor da Ré para garantia do integral pagamento das quantias de que a mesma venha a ser credora da sociedade Autora, X, Unipessoal, Ld.ª até ao limite global máximo de capital de € 285.000, todas e quaisquer responsabilidades assumidas ou a assumir pela sociedade, concretamente:

a) o pagamento de toda e qualquer letra, livrança, cheque ou extracto de factura de que a Ré seja portadora e em que a Autora isoladamente, em conjunto ou solidariamente com terceiros, se haja obrigado por aceite, subscrição, saque, aval ou endosso e ainda que por actos diferentes;
b) o pagamento de toda e qualquer quantia que a Ré tenha emprestado ou venha a emprestar através de mútuo, abertura de crédito, saldos devedores ou descobertos em contas de depósitos de que a Autora isoladamente, em conjunto ou solidariamente com terceiros seja devedora ou fiadora e ainda de qualquer crédito concedido pela Ré proveniente de contratos de locação financeira mobiliária ou imobiliária, de renting, de factoring, de desconto ou de aceite em títulos de crédito do qual seja sacadora a Autora, por forma isolada, solidária ou conjunta;
c) reembolso de quaisquer quantias que a Ré tenha despendido ou venha a despender por quaisquer garantias bancárias já prestadas ou a prestar, de que seja ordenadora a Autora;
d) o pagamento de juros à taxa nominal de 19,965% que incidam sobre qualquer montante em dívida à Ré e provenientes de qualquer das operações referidas nas alíneas precedentes;
e) o pagamento da cláusula penal indemnizatória que incide sobre o capital em dívida à taxa de 3% ao ano, em caso de incumprimento definitivo do contrato [alínea S) do despacho em referência e documento de fls. 97 a 102].
20. A hipoteca identificada em 19) encontra-se registada pela Ap. 2240 de 27 de Dezembro de 2013 [alínea T) do despacho em referência e documento de fls. 47 a 49].
21. O prédio identificado em 19) foi registado a favor de Fernando, casado na comunhão de adquiridos com M. A., pela inscrição Ap. 75 de 24 de Janeiro de 2013, por compra a Maria [alínea U) do despacho em referência e documento de fls. 47 a 49].
22. Pela Ap. 29 de 21 de Novembro de 2007 encontra-se registada a favor da Ré hipoteca voluntária sobre o prédio identificado em 19) para garantia do capital de € 260.000 e o montante máximo assegurado de € 398.450 para garantia de todas e quaisquer responsabilidades assumidas ou a assumir por Maria e por “Y – Comércio de Automóveis, Ld.ª”, juro anual de 13,75%, acrescido de 4% em caso de mora a título de cláusula penal [alínea V) do despacho em referência e documento de fls. 47 a 49]. 9
23. Em 30 de Janeiro de 2014 a Ré creditou na conta identificada em 10) a quantia de € 285.000 debitando no mesmo dia € 6.034,20 relativamente a imposto e despesas do contrato [alínea W) do despacho em referência].
24. Em 4 e 5 de Fevereiro de 2014, a Ré transferiu da conta identificada em 10), respectivamente, as quantias de € 242.769,85 e € 19.404,36 para a conta da sociedade identificada em 4) [alínea X) do despacho em referência].
25. As operações referidas em 24) foram realizadas sem ordem expressa ou autorização de Fernando [resposta aos artigos 9º e 10º da petição inicial].
26. A sociedade identificada em 4) era cliente da Ré pelo menos desde 2007 [resposta ao artigo 11º da contestação].
27. Em Setembro de 2012 a sociedade identificada em 4) tinha financiamentos em conta corrente no montante de € 179.334, um contrato de leasing com prestações em atraso no montante de € 2.631, saldo de € 3.175 a descoberto na conta à ordem, € 155 em dívida do cartão de crédito [resposta aos artigos 12º e 13º da contestação].
28. Em Setembro de 2012 Maria, na qualidade referida em 6) e Jorge , contactaram a Ré no sentido de encontrar uma solução para as dificuldades que a sociedade identificada em 4) atravessava expondo, designadamente, o risco de ser pedida a insolvência da sociedade e a existência de penhoras de contas bancárias por dívidas fiscais [resposta aos artigos 14º e 15º da contestação].
29. Nessa ocasião, em reunião com o diretor regional de Guimarães da Ré, Jorge, Maria, acompanhados de Advogado, falaram da constituição da Autora que assumiria a actividade da sociedade identificada em 4), o contrato de leasing do imóvel identificado em 14) e os financiamentos propondo a negociação de condições por forma a obter alargamento dos prazos [resposta ao artigo 16º da contestação].
30. Com vista à concretização do projecto anunciado em 29), a gerente identificada em 6) transferiu para Fernando o imóvel identificado em 19) [resposta ao artigo 17º da contestação].
31. Na sequência dos contactos aludidos em 28) e 29), em Setembro de 2013, Jorge solicitou à Ré uma nova reunião propondo que a Autora iniciasse relacionamento comercial com aquela e que lhe fosse concedido crédito no montante necessário à liquidação das responsabilidades da sociedade identificada em 4) [resposta ao artigo 18º da contestação].
32. Jorge solicitou à Ré, também, que aceitasse a transferência do leasing do imóvel identificado em 14) para a Autora [resposta ao artigo 19º da contestação].
33. Perante as informações referidas em 28) e 29), a Ré anuiu à proposta e solicitação referidas em 31) e 32) propondo que fosse constituída hipoteca sobre o imóvel identificado em 19) até ao montante do financiamento a conceder, um penhor de títulos no valor de € 3.000 e fiança a prestar por Fernando, Maria e Jorge [resposta ao artigo 20º da contestação].
34. Em 5 de Fevereiro de 2014 Sandra, funcionária do balcão da Ré em Lordelo, contactou Maria solicitando a assinatura do formulário de autorização das transferências por Fernando [resposta ao artigo 27º da contestação].
35. Maria afirmou que iria diligenciar pela recolha da assinatura em falta [resposta ao artigo 28º da contestação].
36. Numa deslocação de Maria ao balcão em 6 de Fevereiro, a funcionária referida em 34) insistiu pela entrega da autorização, tendo aquela reiterado que o documento iria ser assinado por Fernando, o que não fora feito devido a avaria do computador e consequente impossibilidade de impressão do formulário enviado pela Ré via email [resposta ao artigo 29º da contestação].
37. Apesar dos contactos e solicitações referidos em 28), 29), 31) e 32), no dia 7 de Fevereiro de 2014, Jorge, fazendo-se acompanhar pelo gerente da Autora, dirigiu-se ao balcão da Ré em Lordelo exigindo que os montantes transferidos para a conta da sociedade identificada em 4) fossem repostos na conta da demandante [resposta aos artigos 31º, 32º da contestação].

ii) julgou não provados os seguintes factos:

- alegados nos artigos 13º, 17º a 20º da petição inicial;
- que a Autora destinava o montante do financiamento a investimentos em obras de remodelação, compra de máquinas e outros equipamentos destinados ao desenvolvimento da sua actividade;
- que as transferências tivessem tornado inviáveis os investimentos que a Autora pretendia fazer;
- que esses investimentos constituíssem o único motivo do acordo identificado em 10);
- que a Autora tivesse perdido clientela e ficasse impossibilitada de angariação de nova clientela, sofrendo prejuízo superior a € 10.000;
- alegados no artigo 30º da contestação;
- alegados nos artigos 13º, 23º, 24º do articulado de exercício do contraditório.

iii) Deixou ainda o Tribunal a quo expressamente referido que:

A alegação contida nos artigos 14º, 16º, 23º a 35º da petição inicial, 21º, 22º, 34º, 36º, da contestação, 6º a 12º do articulado de exercício do contraditório constitui matéria conclusiva ou de Direito.
As alegações contidas nos artigos 1º a 7º, 37º a 42º da contestação, 1º a 5º, 14º a 22º do articulado de exercício do contraditório destinam-se ao cumprimento do ónus de impugnação especificada.
A restante matéria de facto alegada apenas foi julgada provada na exata medida do conteúdo da fundamentação de facto no seu conjunto.
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VII.- Nas conclusões XLVIII e XLIX a Apelante/Autora pretende impugnar a decisão da matéria de facto, afirmando que “deviam ter sido dados como não provados” os factos constantes dos pontos de facto n.os 34º; 35.º e 36.º, e que “deviam ter sido dados como provados” os factos alegados nos artigos 13º; 17º; 18º; 19º; e 20.º da P.I., e “o alegado nos artigos 14º, 16º, 23º a 35º” do mesmo articulado.

Quanto a este último grupo a impugnação deve ser liminarmente rejeitada porquanto, como o Tribunal a quo fez consignar, e está inteiramente correcto, os dois primeiros artigos são de teor meramente conclusivo e os restantes consubstanciam alegação de direito.

Como decorre do disposto no artº. 640º., do C.P.C., a parte que pretenda impugnar a decisão sobre a matéria de facto deve, sob pena de rejeição do recurso, especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Ainda em honra ao princípio da cooperação, aqui enformado pelos deveres de lealdade e de boa fé processuais, incumbe à parte recorrente, também sob pena de imediata rejeição do recurso, indicar com exactidão as passagens da gravação em que funda o seu dissenso, no caso de os meios probatórios terem sido gravados, como lho impõe a alínea a) do nº. 2 daquele artº. 640º..
Ora, consideradas todas as (inúmeras) conclusões formuladas pela Apelante relativas à decisão da matéria de facto, constata-se que deu cumprimento cabal aos ónus impostos pelas alíneas a) e c) do referido n.º 1, mas já não aos ónus que impõem as alíneas b) do n.º 1, e a) do n.º 2, a que acima se faz referência.

O recurso deve, pois, ser rejeitado.
Sem embargo não deixa de se aduzir que a impugnação não procederia pois fundamenta-se, apenas, em divergente valoração dos depoimentos testemunhais, que a Apelante intenta descredibilizar afirmando que eles foram produzidos “por pessoas funcionários da R. e comprometidos com aquilo que haviam praticado”.

A força probatória dos depoimentos das testemunhas é apreciada livremente pelo tribunal, nos termos do disposto no art.º 396.º do Código Civil (C.C.), o que significa que, como refere ALBERTO DOS REIS, “o tribunal julga segundo a sua consciência ou segundo a convicção que formou”, não estando sujeito a regras legais preestabelecidas, “a quadros, critérios ou ditames impostos por lei, mas através da influência que no seu espírito exerceram as provas produzidas, avaliadas segundo o seu juízo e a sua experiência” (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. IV, págs. 358-359), sendo certo que a credibilidade de uma testemunha depende, essencialmente, da sua razão de ciência e da espontaneidade das respostas, resultando, embora, óbvio que não é valorada positivamente uma resposta pronta se a prontidão tiver sido induzida, v.g. através de uma nota introdutória a apontar para o sentido da resposta mais conveniente, ou pela colocação da testemunha perante duas situações, uma inverosímil e outra “aceitável”, induzindo-a a escolher uma delas.

Com a pormenorizada motivação, que se estende de fls. 226 a 233v.º, o Tribunal a quo permite que se acompanhe todo o iter decisorio, e, assim, o grau de convencimento que lhe mereceu cada uma das testemunhas inquiridas – para além das diversas observações que vai intercalando na súmula dos depoimentos, cfr. o que, relativamente às mencionadas pela Apelante deixou referido a fls. 227v.º/228: “No que diz respeito aos depoimentos, os mesmos revelaram-se relevantes e a sua conjugação permitiu reconstituir os termos das negociações, identificar os protagonistas e os pressupostos subjacentes à concessão do financiamento em discussão nos autos, sendo que a credibilidade das testemunhas funcionárias do Réu assentou no confronto do conteúdo dos documentos…”. Logrando convencer de que falaram a verdade, não pode o Tribunal deixar de ter em devida conta as narrações dos factos produzidas por aquelas testemunhas.

No que concerne aos factos julgados não provados, igualmente se concorda com o Tribunal a quo, que os “orçamentos” que foram juntos aos autos, atento o seu teor, não são suficientes para sustentar a convicção de respeitarem a investimentos efectivamente programados pela Apelante, sendo certo que os seus autores não foram arrolados como testemunhas e o depoimento de Jorge, tendo aludido “genericamente a investimentos em equipamentos”, atento o seu interesse directo na causa, também não constitui um complemento suficientemente consistente para lhes conferir o grau de certeza que seria necessário.
Por fim, mesmo apelando às regras da experiência comum, não era, de modo algum, seguro que a execução dos investimentos trouxesse consigo mais clientela, donde, sem outros elementos, sempre se não poderia ter por demonstrado que, por não terem sido efectuados, a Apelante “perdeu clientela” e ficou “impossibilitada da angariação de nova clientela”.
Mantém-se, pois, nos seus precisos termos, a decisão da matéria de facto.
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VIII.- Da facticidade apurada resulta inequívoco que a Apelante/Autora e a Apelante/Ré celebraram um contrato de mútuo bancário, que está sujeito ao regime estabelecido pelos art.os 362.º e 363.º do Código Comercial, pelo Dec.-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro (Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras - RGICSF), quanto aos prazos, aos juros, e à mora do devedor, pelo Dec.-Lei n.º 58/2013, de 8 de Maio (o mais recente, já em vigor à data da celebração do contrato) e, subsidiariamente, ex vi do art.º 3.º do Cód. Comercial, pelos art.os 1142.º a 1151.º do Código Civil (C.C.).

No que tange aos requisitos de forma, está ainda em vigor o Dec.-Lei n.º 32.765, de 29/04/1943 que, no seu artigo único, estabelece a suficiência de “escrito particular”, ainda que “a outra parte contratante não seja comerciante”, e independentemente do seu valor.

Defende LUIS MIGUEL PESTANA DE VASCONCELOS que, ao invés do que sucede com o mútuo civil, o mútuo bancário, quanto à sua constituição, é “um mútuo consensual socialmente típico no comércio bancário”. O que as partes pretendem é que “tendo sido alcançado o acordo, o banco fique desde logo vinculado à entrega da quantia, obrigação que ele cumpre por crédito em conta” (in “Direito Bancário”, Almedina, 2018, pág. 183, e nota-de-rodapé 606).
Normalmente, o mútuo bancário é um mútuo com escopo, vinculando o mutuário a dar um determinado destino às quantias emprestadas, com o que, de acordo com ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, o Banco fica melhor garantido “com uma utilização produtiva ou racional das importâncias mutuadas” (in “Manual de Direito Bancário”, 4.ª ed., 2010, págs. 636-637).

Na situação sub judicio, ficou a constar do clausulado contratual que a quantia mutuada (€ 285.000) se destinava a “investimentos diversos”, ficando a Apelante/Autora obrigada a “fazer prova dessa aplicação” caso a Apelante/Ré “o solicite” (cfr. cláusula 1.ª), constituindo causa de resolução do contrato a “utilização” da referida quantia “para fins diversos dos que fundamentaram a sua concessão” (cfr. alínea b) do n.º 1 da clásula 15.ª).
A regra é a de que a concessão de créditos bancários seja acompanhada de garantias “adequadas a cobrir de forma eficaz os riscos”, como refere LUIS MIGUEL PESTANA DE VASCONCELOS, que defende constituir um acto de má gestão, “atendendo ao critério do art.º 75.º do RGICSF” a concessão de “mútuos avultados” sem garantias (ob. cit., pág. 185).
No contrato de mútuo em mérito ficaram como fiadores e principais pagadores, renunciando ao benefício da excussão prévia, Maria e Jorge.
O contrato de mútuo que as Apelantes/Autora e Ré celebraram é formalmente válido, já que consta de escrito assinado pelos contratantes.
Cumpre curar agora da questão da sua validade substancial.
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IX.- Como ficou provado, no cumprimento do contrato que celebraram, a Apelante/Ré creditou na conta da Apelante/Autora a quantia mutuada - € 285.000.

No entanto, tendo sido feita a operação de crédito em 30/01/2014 (uma quinta-feira), no dia 04/02/2014 (uma terça-feira), a mesma Apelante/Ré transferiu da conta daquela para a conta bancária da sociedade comercial “Y – Comércio de Automóveis, Ld.ª” a importância de € 242.769,85, e no dia imediato (quarta-feira, dia 5), transferiu mais € 19.404,36.
É contra estes movimentos que se insurge a Apelante/Autora, pretendendo que a quantia mutuada volte para a sua conta bancária, ficando aí à sua disposição, pois que o seu sócio único, Fernando, não tinha autorizado a Apelante/Ré a movimentar a referida conta bancária, nos termos em que o fez.

Contrapõe esta última que as transferências a que procedeu se integram no acordo global que foi celebrado, no qual intervieram a sócia-gerente da “Y”, Maria, e o marido desta, Jorge , que sempre se lhe apresentou como gerente de facto da Apelante/Autora e da “Y”, acordo esse que integrava a assunção das dívidas desta pela Apelante/Autora.

1.- Da facticidade provada convém fazer ressaltar o historial das relações bancárias que a “Y – Comércio de Automóveis, Ld.ª” mantinha com a Apelante Ré, nos termos descritos sob os n.os 26, 27 e 28.
Haverá ainda de evidenciar a motivação que esteve subjacente à constituição da Apelante/Autora, descrita no n.º 29 da matéria de facto – esta assumiu a actividade comercial daquela “Y”, pretendendo-se que assumisse a sua posição no mercado (como que um “começar de novo”, atentas as graves dificuldades financeiras que esta vinha a acusar).

Visando a concretização destes plano e resolução:

a) em 24/01/2013, a referida Maria declarou vender ao também referido Fernando, sócio único da Apelante/Autora, um prédio rústico sobre o qual estava constituída uma hipoteca a favor da Apelante/Ré, para garantia do capital de € 260.000, e juros respectivos, até ao montante máximo de € 398.450;
b) Em Setembro de 2013 o referido Jorge solicitou à Apelante/Ré uma nova reunião propondo que a Apelante/Autora iniciasse relacionamento comercial com ela e lhe fosse concedido crédito no montante necessário à liquidação das responsabilidades da “Y”;
c) Em 27/12/2013 o supra referido Fernando constituiu uma hipoteca a favor da Apelante/Ré, sobre o prédio referido em a), que comprara a Maria, para garantia de “todas e quaisquer responsabilidades assumidas ou assumir” pela Apelante/Autora, “X, Unipessoal, Ld.ª”;
d) Em 29/01/2014 a Apelante/Ré, na qualidade de locadora, a “Y”, na qualidade de cedente, e a Apelante/Autora, na qualidade de cessionária, celebraram um contrato de cessão da posição contratual que a primeira tinha no contrato de locação financeira imobiliária, cujo objecto é o prédio urbano em regime de propriedade horizontal, edifício de um piso e logradouro, tomando a cessionária, de imediato, a posse deste prédio.

De acordo com o que ficou contratualmente estabelecido, foi entregue à Apelante/Ré uma livrança em branco subscrita pela Apelante/Autora e avalizada pelos acima referidos Maria e Jorge.
e) No dia imediato – 30/01/2014 -, a Apelante/Ré creditou na conta da Apelante/Autora a quantia de € 285.000, debitando no mesmo dia € 6.034,20, a título de imposto e despesas do contrato (de mútuo bancário).

2.- Resulta inequívoco desta facticidade e de toda a demais apurada, que a Apelante/Autora foi constituída com o propósito de tomar no mercado a posição da “Y” e foi com o acordo da Apelante/Ré que tal propósito se concretizou.
A intervenção activa daquele Jorge, seja nas negociações e na celebração dos acordos, assumindo as obrigações que deles decorrem, quer para a “Y”, quer para a Apelante/Autora, em representação destas, são inequivocamente demonstrativos da sua posição de gerente de facto de uma e da outra.

Ora, sendo a Apelante/Ré uma instituição bancária, cuja essencia da actividade económica é a de obter lucros com os empréstimos dos capitais que lhe são entregues pelos depositantes e investidores, pelo comum do que acontece, muito dificilmente se conceberia que tivesse anuído a dotar a Apelante/Autora dos capitais líquidos e dos meios essenciais de que esta necessitava para iniciar uma actividade económica que, a bem da verdade, mais não é que a prossecução daquela actividade que vinha sendo desenvolvida pela sua Devedora - a Y -, que aquela veio substituir, sem acautelar devidamente os créditos contraídos junto de si por esta (1).
E daí que, face às regras da experiência comum, não pode deixar de se surpreender alguma falta de razoabilidade na pretensão defendida pela Apelante.
As sociedades comerciais, tendo embora, personalidade jurídica, não se conseguem dissociar das pessoas físicas que se apresentam a representá-las, porque são estas que negoceiam, que estabelecem e aceitam as condições dos actos e acções concernentes ao desenvolvimento da sua actividade, que criam e projectam no mercado a imagem da empresa.

Ora, na situação sub judicio não pode deixar de se considerar como “figura” central o acima referido Jorge que, muito embora, não seja o gerente formal da Apelante/Autora e da referida “Y”, se assume e actua como seu representante, assim sucedendo em todo o processo negocial com a Apelante/Ré (ele próprio é fiador no contrato de mútuo e deu o seu aval a uma livrança em branco no contrato de cessão da posição contratual na locação financeira imobiliária acima referido.

A sua relação familiar muito próxima quer com o sócio único da Apelante/Autora, Fernando, que é seu pai, quer com a sócia maioritária e gerente de direito da “Y – Comércio de Automóveis, Ld.ª”, Maria, que é sua cônjuge (a separação judicial de pessoas e bens não significa ruptura da comunhão de vida diária) permitem-lhe o controlo, de facto, de ambas as sociedades, tanto mais que é ele quem dirige a actividade económica desenvolvida pela segunda, actividade, que, como se referiu, a primeira prossegue e substituiu no mercado.

Ora, como ficou provado, aquele Jorge propôs à Apelante/Ré que concedesse um crédito à Apelante/Autora, no montante necessário à liquidação das responsabilidades que a “Y” tinha contraído perante aquela, e solicitou que aceitasse a transferência, para a Apelante/Autora, do leasing do imóvel identificado em 14.

A Apelante/Ré aceitou aquela proposta e anuiu à solicitação, propondo que fosse constituída uma hipoteca sobre o imóvel identificado em 19. (que a sócia maioritária e gerente da “Y”, Maria, havia vendido ao sócio único da Apelante/Autora, e sobre o qual já tinha sido constituída uma hipoteca a favor da Apelante/Ré para garantia dos empréstimos e outros encargos contraídos por esta empresa junto da Apelante/Ré) um penhor de títulos no valor de € 3.000 e fiança a prestar por Fernando (sócio único da Apelante/Autora), e pelos referidos Maria e Jorge (cfr. n.º 33 da facticidade provada.

Todas as propostas foram aceites e as solicitações satisfeitas, cumprindo cada uma das partes a prestação contratual a que se obrigara.

Não há, pois, razões para duvidar que a importância que foi creditada na conta bancária da Apelante/Autora corresponde ao montante que a Apelante/Ré considerou necessário “à liquidação das responsabilidades” da “Y”.
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X.- 1.- O art.º 595.º do Código Civil (C.C.) admite a transmissão singular de dívidas, à qual corresponde o instituto da assunção de dívida que, como refere MÁRIO JÚLIO DE ALMEIDA COSTA, “consiste no acto pelo qual um terceiro (assuntor) se vincula perante o credor a efectuar a prestação devida por outrem”, tendo como subjacente “a transferência da dívida do antigo para o novo devedor, mantendo-se a relação obrigacional (in “Direito das Obrigações”, 12.ª ed. revista e actualizada, págs. 828 e sgs).

A assunção de dívida pode revestir uma de duas modalidades: pelo contrato entre o antigo e o novo devedor, ratificado pelo credor (alínea a) do n.º 1 daquele art.º 595.º), que LUIS MANUEL TELES DE MENEZES LEITÃO designa por assunção interna, ou por contrato entre o novo devedor e o credor, com ou sem o consentimento do antigo devedor (alínea b)), que o mesmo Autor designa por assunção externa, a qual prescinde do consentimento do antigo devedor (cfr. “Direito das Obrigações”, vol. II, 2017 - 11ª ed., págs. 51 e sgs.).

O factor comum de ambas as modalidades é a intervenção do titular activo da obrigação, na primeira, através da ratificação, sem a qual o contrato não produz efeitos em relação ao credor, ou assumindo-se parte contratante, na segunda.

Nos casos em que a assunção da dívida não opera a pura substituição do antigo pelo novo devedor (assunção liberatória), ficando este colocado ao lado daquele, designadamente, por não haver declaração expressa do credor a exonerar o antigo devedor (cfr. n.º 2 do referido art.º 595.º), fala-se então de assunção cumulativa da dívida ou co-assunção de dívida.

Não impondo o referido Código Civil uma forma especial, o contrato de transmissão singular de dívida é consensual, não estando a sua validade formal dependente da redução a escrito – cfr. art.o 219.º do C.C..

Assim, na situação sub judicio não era necessária, à validade formal do contrato de assunção de dívida provadamente celebrado, a sua redução a escrito.

A Apelante/Autora põe em causa a validade substancial deste contrato, com a alegação de o não ter celebrado por o seu sócio único nele não ter tido intervenção e, alegando ainda que ele é ineficaz em relação a si por o não ter ratificado.

Sendo a Apelante/Autora uma sociedade unipessoal por quotas, ela é representada por um ou mais gerentes, em princípio, designados no contrato de sociedade – cfr. art.º 252.º, ex vi do art.º 270.º-G, ambos do Código das Sociedades Comerciais (C.S.C.).

Foi nomeado gerente da Apelante/Autora o seu sócio único, Fernando, como ficou a constar do artigo 5º do negócio jurídico unilateral pelo qual foi constituída.

Como ficou provado, quem, apresentando-se em nome da Apelante/Autora, propôs à Apelante/Ré a assunção das dívidas da “Y” foi Jorge, que vinha encabeçando todas as negociações que até aí se haviam entabulado entre a primeira e a segunda, actuando como gerente de facto.

Ora, nos termos do disposto no art.º 258.º do C.C., o negócio jurídico realizado pelo representante em nome do representado, produz os seus efeitos na esfera jurídica deste último.

Se a pessoa que celebra o negócio em nome de outrem não tiver poderes de representação, o negócio é ineficaz em relação a este se não for pelo mesmo ratificado, nos termos que vêm dispostos no art.º 268.º, do C.C..

A ratificação está sujeita à forma exigida para a procuração a qual, por sua vez, deve revestir a forma exigida para o negócio que o procurador deva realizar – cfr. art.os 268.º, n.º 2 e 262.º, n.º 2, ambos do C.C..

Como já acima se referiu, o contrato de assunção de dívida é consensual e, por isso, a sua ratificação não tem de revestir a forma escrita.

Ora, a declaração negocial pode ser expressa ou tácita, sendo expressa quando é feita por palavras, por escrito, ou por qualquer outro meio directo de manifestação da vontade, e dizendo-se tácita quando se deduz de factos que, com toda a aprobabilidade a revelam.

Refere o Ac. do S.T.J. de 24/05/2007 que “a declaração tácita é constituída por um comportamento do qual se deduza com toda a probabilidade a expressão ou a comunicação de algo, embora esse comportamento não tenha sido finalisticamente dirigido à expressão ou à comunicação daquele conteúdo”, e prossegue, “tal comportamento declarativo pode estar contido ou ser integrado por comunicações escritas, verbais ou por quaisquer actos significativos de uma manifestação de vontade, incorporem ou não uma outra declaração expressa.” (ut Proc.º 07A988, in www.dgsi.pt).

Na situação sub judicio, a considerar-se que o supramencionado Jorge não tinha poderes para representar a Apelante/Autora (o que não é, de todo, líquido nem a facticidade provada o indicia) os factos apurados e a relação familiar próxima com o sócio único desta, Fernando, fazem seguramente presumir que deu conhecimento a este, e, na pessoa dele àquela Apelante, da obrigação que, em nome dela, assumira, resultando a aceitação (tácita) da mesma Apelante da prática de todos os actos e celebração de todos os contratos exigidos pela Apelante/Ré para aceitar a assunção da dívida.

2.- Assim se concluindo, vejamos se o referido contrato é nulo por falta de capacidade jurídica da Assuntora.
De acordo com o nº. 2 do artº. 12º. da Constituição, as pessoas colectivas gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres compatíveis com a sua natureza.

No que se refere à capacidade de gozo das sociedades comerciais, o art.º 6.º do C.S.C., que consagra o princípio da especialidade do fim, reconhece-a relativamente a todos os direitos e obrigações necessários ou convenientes à prossecução do seu fim, excluindo do seu âmbito os direitos e obrigações vedados por lei ou que sejam inseparáveis da personalidade singular.

Visando as sociedades comerciais a obtenção de lucros (cfr., para as sociedades civis, o art.º 980.º do C.C.), em princípio, todos os actos que constituírem uma liberalidade pura (v. g. doações) poderão estar feridos de nulidade, por a sociedade não ter capacidade jurídica para os praticar, excluindo-se, por força do nº. 2 daquele art.º 6.º, as liberalidades que possam ser consideradas usuais segundo as circunstâncias da época e as condições da própria sociedade, as quais não são consideradas como contrárias ao seu fim - dão-se como exemplos as prendas de Natal, os brindes de uma campanha publicitária (os quais, destinando-se a dar conhecimento do produto, potenciam a sua venda junto do consumidor), e o mecenato, que, mais não seja, contribui para a melhoria da imagem da empresa e, nessa medida, cria sensibilidades no público para a privilegiar na aquisição dos seus produtos pelo menos em situações de igualdade com uma concorrente.

Sem embargo, e como vem sendo reconhecido, aquele princípio da especialidade tem sido desconsiderado porque, como escreve MENEZES CORDEIRO, desde que os seus fins sejam lícitos, “as sociedades constituem-se livremente, de acordo com o figurino que os particulares interessados lhes queiram imprimir”, pelo que a falta de capacidade para a prática de qualquer acto pode ser ultrapassada pela via do seu pacto social e das decisões dos seus órgãos (in “Código das Sociedades Comerciais Anotado”, 2ª. ed., págs. 91-96). O mesmo Autor defende não haver razão para excluir as doações do âmbito da capacidade das pessoas colectivas, salvo se houver uma norma a proibi-las (in “Direito das Sociedades”, vol. I – Parte Geral, Almedina, 3.ª ed. Ampliada e actualiz.ª pág. 382).

Como referem ALEXANDRE MOTA PINTO et AL., a liberalidade “implica, em regra, a ideia de generosidade ou espontaneidade, oposta à de necessidade ou de dever, mas é compatível com um fim ou motivo interesseiro”, para concluírem que “uma liberalidade não usual (por exemplo, por causa do seu valor) pode ainda ser necessária ou conveniente à prossecução do fim da sociedade. E, se assim for, ainda será válida” (in “Código das Sociedades Comerciais em Comentário”, Almedina, vol. I, págs. 113-114).

Acresce que o referido artº. 6º., do C.S.C. transpõe para a ordem jurídica interna a 1ª. Directiva nº. 68/151/CEE, do Conselho, de 09/03/1968, que visa coordenar as garantias para a protecção dos interesses dos sócios das sociedades e de terceiros, a qual dispõe, no artigo 9º., que a sociedade se vincula perante terceiros pelos actos realizados pelos seus órgãos, mesmo se tais actos forem alheios ao seu objecto social, salvo se “eles excederem os poderes que a lei atribui ou permite atribuir a esses órgãos”.

Podendo os Estados-Membros legislar no sentido de a sociedade não ficar vinculada quando aqueles actos ultrapassem os limites do objecto social, terão de impor a esta o ónus da prova de que o terceiro sabia, ou não o podia ignorar, tendo em conta as circunstâncias, que o acto ultrapassava esse objecto, não constituindo prova bastante a simples publicação dos estatutos.

E dispõe ainda o n.º 2 daquele artigo 9.º que são sempre inoponíveis a terceiros as limitações aos poderes dos órgãos da sociedade que resultem dos estatutos ou de uma resolução dos órgãos competentes, mesmo que tenham sido objecto de publicação.
Resulta, pois, daquele dispositivo comunitário que é à sociedade que cabe o ónus da prova do conhecimento do terceiro de que o acto praticado extravasa do seu objecto.
A nossa jurisprudência assim vem decidindo – cfr., v.g., o Ac. do S.T.J. de 21/09/2000, que julgou não poder ser considerado nulo o acto ou negócio jurídico praticado pelos sócios-gerentes, com o fundamento de que, considerado o princípio da especialidade, a sociedade não tem capacidade de gozo para o realizar, e invocando a sociedade que não tinha qualquer interesse naquele acto “cabe-lhe o ónus da prova dessa falta de interesse” (in C.J., Acs. do S.T.J., ano VIII, tomo III, págs. 36-40).

Relativamente ao n.º 3 do art.º 6.º do C.S.C., que considera contrária ao fim da sociedade a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades, mas salvaguarda as hipóteses da existência de “justificado interesse próprio da sociedade garante” e a de “se tratar de sociedade em relação de domínio ou de grupo”, refere o Ac. do S.T.J. de 26/09/2013 “nem sempre a assunção cumulativa de dívidas se traduz numa garantia de pagamento de dívidas de terceiro” e “tal como a cessão de créditos e a sub-rogação por efeito do pagamento de terceiro, também a transmissão singular das dívidas pode corresponder à satisfação jurídica de necessidades práticas, ainda que menos frequentes do que as determinantes da transmissão do lado activo da relação creditória” pelo que “tudo está em saber se existe ou não justificado interesse próprio dessa sociedade garante” (in C.J., Acs. do S.T.J., ano XXI, tomo III, págs. 75-79).

Em sentido idêntico já se havia pronunciado o Ac. do S.T.J. de 22/04/1997, ao deixar referido que “a assunção de dívida não pressupõe de per si uma natureza gratuita, dado que os seus requisitos e efeitos hão-de ser definidos em função da sua causa, ou seja, do negócio gratuito ou oneroso em que a assunção se integra” (in C.J., Acs. do S.T.J., ano V, tomo II, págs. 60-64. No mesmo sentido, o Ac. da Rel. do Porto de 13/12/2011, in C.J., ano XXXVI, Tomo V, págs. 210-213).

Isto considerado, e tendo ainda em conta o enquadramento em que se inseriu o contrato de assunção de dívida, leva-nos a dissentir do Tribunal a quo, por, com o respeito devido, entendermos que o mesmo não consubstancia um acto gratuito e foi celebrado no interesse da Apelante/Autora que o seu fim último foi dotá-la dos meios físicos para exercer (iniciar o exercício) (d)a actividade comercial que tem por objecto.

Com efeito, os factos a que acima já se fez referência demonstram inequivocamente que, não fora a assunção da dívida da “Y” pela Apelante/Autora, a Apelante/Ré não consentiria na cessão da posição contratual no contrato de leasing imobiliário, imóvel onde ela exerce actividade.
De qualquer modo era à Apelante/Autora, sociedade garante, que competia alegar e provar a inexistência de interesse próprio ou que a assunção da dívida é contrária ao seu fim social, o que, decididamente, não logrou cumprir.

3.- Reconhecida, assim, a validade, formal e substancial, do contrato de mútuo, assim como a validade e eficácia do contrato de assunção da dívida, cumpre atentar na cláusula 9.ª, n.º 1 daquele contrato, pela qual a Apelante/Autora autoriza a Apelante/Ré a “pagar-se por conta do crédito concedido de quaisquer dívidas…” e no n.º 2 autoriza-a ainda a “debitar, sempre que a citada conta de depósitos à ordem se encontre devidamente provisionada, todas as despesas e encargos emergentes do presente contrato…”.

Deste modo, a assinatura do formulário de autorização das transferências, a que aludem os n.os 34 a 37 são simples formalidades que provavam a concretização, para aquelas concretas operações, da(s) autorização(ões) genérica(s) que foram concedidas pelo referido contrato.
Posto que os contratos devem ser pontualmente cumpridos – cfr. n.º 1 do art.º 406.º do C.C. – a Apelante/Autora está obrigada a reembolsar a Apelante/Ré da quantia mutuada, nos termos clausulados no contrato de mútuo.

Impõe-se, assim, revogar a decisão impugnada, no segmento em que declara que a primeira não está obrigada a pagar à segunda as prestações previstas no aludido contrato de mútuo, destarte se concedendo provimento ao recurso da Apelante/Ré, recusando-o ao recurso da Apelante/Autora.
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C) DECISÃO

Considerando tudo quanto vem de ser exposto, acordam os Juízes desta Relação em:

- julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto pela apelante/autora “X Unipessoal, Ld.ª”;
- julgar procedente o recurso de apelação interposto pela apelante/ré “Banco A”, consequentemente revogando a decisão, no segmento (alínea a)) em que declara não estar aquela obrigada a pagar a esta as prestações previstas no contrato de mútuo bancário que celebraram;
- no mais confirmar e manter a aludida decisão, designadamente nos seus segmentos absolutórios.
Custas da acção e de ambas as apelações pela Apelante/Autora.
Guimarães, 10/07/2018
(escrito em computador e revisto)

(Fernando Fernandes Freitas)
(Alexandra Rolim Mendes)
(Maria Purificação Carvalho)


1- O que é perceptível pelo homem comum, no que se inclui a pessoa do sócio único da Apelante/Autora, apesar de nunca ter tido “financiamentos”, e ter trabalhado sempre “por conta de outrem na construção”, e nunca ter tido “participação em qualquer sociedade”, como o Tribunal a quo transcreveu do depoimento do referido seu filho Licínio Jorge Abreu Martins.