Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1845/18.0T8BRG.G1
Relator: FRANCISCO SOUSA PEREIRA
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
RECURSO SUBORDINADO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
DESCARACTERIZAÇÃO DE ACIDENTE
CULPA DO SINISTRADO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/27/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
I – Numa acção emergente de acidente de trabalho em que são deduzidos pedidos distintos contra a seguradora e contra a empregadora, julgado improcedente o pedido deduzido contra a empregadora e interposto recurso pela seguradora, não pode o autor interpor recurso subordinado contra o empregador, porque não se verifica o pressuposto de “ambas as partes ficarem vencidas”.
II – Não cumpre os ónus que lhe incumbem para efeitos da impugnação da matéria de facto o recorrente que se limita a indicar o início e o fim do depoimento da testemunha em que funda a impugnação(procedendo de modo semelhante no que tange à transcrição do depoimento, integral), nem se, quanto a outra matéria de facto que o recorrente pretende ver aditada e/ou alterada, não indica quais os meios de prova que justificam ou fundamentam a inclusão/alteração da matéria que nesses termos se pretende.
III – Não se tendo provado a génese do acidente, desconhecendo-se também a sua dinâmica, não é possível subsumi-lo à previsão do art. 14.º n.ºs 1, al.s a) ou b), da Lei 98/2009, de 04.9.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Guimarães

Apelante: L... – Companhia de Seguros, S.A.
                 AA (recurso subordinado)
Apelados: AA
                  L... – Companhia de Seguros, S.A.
                  S..., S.A.

I – RELATÓRIO

Tiveram os presentes autos, emergentes de acidente de trabalho e com processo especial, início com o requerimento por via do qual AA, com os sinais dos autos, participou ter sido vítima de sinistro da indicada natureza, ocorrido aos 07.12.2017, quando desempenhava funções por conta de S..., S.A., com o NIPC ... e nos autos também melhor identificada, que, por seu turno, transferira a responsabilidade infortunística por acidentes de trabalho de que pudesse ser vítima para L... – Companhia de Seguros, S.A., com o NIPC ... e igualmente nos autos melhor identificada.

Decorrida a fase conciliatória do processo, e realizada que foi tentativa de conciliação, não logrou obter-se o acordo das partes, por terem manifestado todas elas discordância relativamente às conclusões alcançadas no exame pericial realizado pelo GML, tendo, ainda, a entidade seguradora recusado assumir qualquer responsabilidade pela reparação das consequências do evento ocorrido, com fundamento na circunstância de este ter resultado de violação pelo sinistrado, com culpa grave, de regras de segurança estabelecidas pela entidade empregadora, sendo que esta, por seu turno, recusou, também, assumir qualquer responsabilidade, por entender não ter ocorrido, da sua parte, qualquer violação de regras de segurança.

Através da petição inicial que apresentou em juízo, aquele AA desencadeou a fase contenciosa do processo contra as entidades seguradora e empregadora acima identificadas, pedindo a condenação destas a pagar-lhe:
I.
A ré seguradora
i. € 12.503,44, a título de indemnização pelo período em que esteve temporariamente incapacitado para o trabalho;
ii. Pensão anual e vitalícia, no valor € 6.761,12;
iii. Subsídio por situação de elevada incapacidade, no montante de € 5.752,03;
iv. O quantitativo mensal de € 479,33, a título de prestação suplementar para assistência por terceira pessoa;
v. A importância de € 5.751,96, a título de subsídio para readaptação da habitação, ou o valor que, a esse título, vier a apurar-se em liquidação de sentença;
vi. A quantia de € 20,00, a título de reembolso de despesas de deslocação obrigatória;
vii. Juros de mora, à taxa supletiva legal, sobre as quantias mencionadas em i. a vi.;
II.
A ré entidade empregadora, com fundamento na previsão do nº 4 do art. 18.º da L. n.º 98/2009, de 04.09
i. A diferença entre o valor que a ré seguradora, nos termos relativamente a ela peticionados nos sobreditos pontos i. a v., vier a pagar e o montante devido por agravamento;
ii. A quantia de € 35.000,00, a título de indemnização por danos de natureza não patrimonial;
iii. Juros de mora, à taxa supletiva legal, sobre as importâncias referidas em i. e ii., contados, quanto à primeira, desde as respectivas datas de vencimento e, quanto à segunda, desde a data de citação.

Fundamentou as correspondentes pretensões, alegando, em síntese, que, na data acima mencionada, quando exercia funções para a segunda ré, sofreu um acidente, que consistiu em arrastamento para a zona de acção da prensa que, na circunstância, estava a operar e de que veio a resultar fosse colhido nos seus membros inferiores pelas respectivas lâminas de corte, e que, conforme factualidade que aduz, o acidente ocorrido adveio de violação pela segunda ré de regras de saúde e segurança no trabalho, sendo que a mesma havia transferido a sua responsabilidade, por acidentes de trabalho de que ele, autor, pudesse ser vítima, para a primeira ré;
Que, por efeito do acidente que sofreu, de que veio a resultar incapacidade permanente para todo e qualquer trabalho, viu comprometidas as suas perspectivas de vida futura e ambições; que, para além disso, esteve temporariamente incapacitado para o trabalho durante, pelo menos, 540 dias; que, por efeito das consequências que para si advieram do sinistro que o vitimou, carece do apoio de terceira pessoa, durante, pelo menos, 4 a 6 horas diárias, em particular para realização da sua higiene pessoal.

Citado que foi, nos termos e para os efeitos previstos pelo art. 3.º do Dec. L. n.º 59/89, de 22.02, apresentou-se o Centro Distrital de ... do ISS, IP, a reclamar das entidades seguradora e empregadora o reembolso da importância global de € 10.475,92, que, a título de subsídio de doença, pagou ao autor, no período compreendido entre 07.12.2017 e 27.03.2020, com fundamento na incapacidade deste para o trabalho, decorrente do acidente que o vitimou, mais tendo reclamado o reembolso dos montantes que, com o indicado fundamento, viesse, a partir de 27.03.2020, a satisfazer ao autor.
Por requerimento de 17.01.2022, o Centro Distrital de ... do ISS, IP, apresentou-se a ampliar, no montante de € 4.805,28, o pedido de reembolso que formulou nos autos.

A ré seguradora apresentou-se a contestar as pretensões do autor, alegando, para o efeito e em síntese, que, na circunstância do acidente que o vitimou, o autor estava a operar uma máquina de compactação de resíduos e que, conforme factualidade que descreve, o sinistro ficou a dever-se a culpa exclusiva do autor, que violou as regras de segurança instituídas pela segunda ré, que lhe foram comunicadas e que bem entendeu, ao aceder, sem causa justificativa e por vontade própria, ao interior da máquina, com a mesma em funcionamento, bem sabendo dos riscos associados ao seu comportamento, que prosseguiu de forma intencional e consciente.
Concluiu, pugnando pela exclusão da sua responsabilidade.

A segunda ré apresentou-se também a contestar as pretensões do autor, para o que alegou, em síntese, que a máquina de compactação/enfardamento de resíduos que o autor, no momento do sinistro que o vitimou, estava a operar, não padecia de qualquer anomalia, estava completa nos seus elementos e reunia todas as condições de segurança.

A ré seguradora apresentou-se, ainda, a contestar o pedido de reembolso formulado pelo Centro Distrital de ... do ISS, IP, para o que deu por reproduzido o teor da contestação oferecida relativamente às pretensões do autor, mais sustentando que, não vindo o sinistro a ser descaracterizado, haverá que descontar, no montante a liquidar a título de indemnização por incapacidade temporária, o valor pago pelo reclamante ao autor.

No prosseguimento dos autos, foi realizada a audiência final e, após, proferida sentença com o seguinte dispositivo (na parte que ora releva):
“Pelo exposto, julga-se a presente acção parcialmente procedente, termos em que se decide: 

I. Absolver a ré S..., S.A., das pretensões contra si formuladas pelo autor AA e pelo Centro Distrital de ... do ISS, IP
II. Condenar a ré L... –Companhia de Seguros, S.A.
A). A pagar ao autor AA 
i). Pensão anual e vitalícia no valor de € 5.645,54 [cinco mil, seiscentos e quarenta e cinco euros e cinquenta e quatro cêntimos], devida desde 31.05.2019, e actualizada para os seguintes valores: 
- A partir de 01.01.2020 - € 5.685,06 [cinco mil, seiscentos e oitenta e cinco euros e seis cêntimos]; 
- A partir de 01.01.2022 - € 5.741,91 [cinco mil, setecentos e quarenta e um euros e noventa e um cêntimos], incidindo sobre os respectivos montantes juros de mora, à taxa supletiva legal, desde 31.05.2019; 
ii). Subsídio de elevada incapacidade, no valor de € 5.294,47 [cinco mil, duzentos e noventa e quatro euros e quarenta e sete cêntimos], acrescido de juros de mora, à taxa supletiva legal, desde 31.05.2019; 
iii). Prestação suplementar para assistência de terceira pessoa no valor de € 54,47 [cinquenta e quatro euros e quarenta e sete cêntimos], devida desde 31.05.2019, e actualizada para os seguintes valores: 
- A partir de 01.01.2020 - € 54,85 [cinquenta e quatro euros e oitenta e cinco cêntimos]; 
- A partir de 01.01.2022 - € 55,40 [cinquenta e cinco euros e quarenta cêntimos], incidindo sobre os respectivos montantes juros de mora, à taxa supletiva legal, desde 31.05.2019; 
iv). Subsídio para readaptação de habitação, em montante a liquidar em momento ulterior, até ao limite máximo de € 5.561,42 [cinco mil, quinhentos e sessenta e um euros e quarenta e dois cêntimos]; 
v). A importância de € 20,00 [vinte euros], a título de reembolso de despesas de deslocação obrigatória, acrescida de juros de mora, à taxa supletiva legal, desde 27.01.2020. 
B). A reembolsar o Centro Distrital da ... do ISS, IP, da quantia de € 8.939,03 [oito mil, novecentos e trinta e nove euros e três cêntimos], por esta entidade paga ao autor, a título de subsídio de doença. 
III. Absolver a ré L... –Companhia de Seguros, S.A., do mais peticionado.”

Inconformados com esta decisão, dela vieram a ré seguradora e o autor interpor os presentes recursos de apelação para este Tribunal da Relação de Guimarães, apresentando alegações que terminaram com a formulação das seguintes conclusões (transcrição):

Recurso da ré seguradora:
“I. A Recorrente interpôs o presente recurso, visando, desde logo, a reapreciação da prova gravada, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 80.º do Código de Processo do Trabalho, por entender que a matéria de facto dada como provada pela Meritíssima Juiz de 1.ª instância, foi erradamente dada como provada, atenta a prova produzida, impondo-se, por essa razão, a sua reanálise e alteração, nos termos do presente recurso.
II. Não pode a Recorrente aceitar as conclusões vertidas na sentença proferida, designadamente, a matéria de facto dada como provada p) e a matéria de facto dada como não provada no ponto 10, bem como deveria ser aditada matéria de facto à matéria de facto dada como provada,
III. Uma vez que a prova testemunhal produzida, conjugada com a prova documental junta aos autos, deveria ter permitido o Tribunal a concluir de forma diversa.
IV. a XXI. (…).
XXII. Nos termos do artigo 14.º, n.º 1, da Lei n.º 98/2009, a empregadora não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que for dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier do seu acto ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei ou provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado-
XXIII. No que concerne à negligência grosseira, é manifesto que o legislador quis acentuar a falta do dever de objectivo de cuidado, traduzida num comportamento temerário, em alto e relevante grau.
XXIV. A negligência grosseira corresponde a uma negligência particularmente grave, qualificada, atento, designadamente, o elevado grau de inobservância do dever objectivo de cuidado e de previsibilidade da verificação do dano ou do perigo.
XXV. É manifesto, que a negligência grosseira deve ser apreciada em concreto, em face das condições da própria vítima e não em função de um padrão geral, abstracto, de conduta.
XXVI. Da prova produzida, e com a alteração da matéria de facto pugnada no presente articulado, resultou provado que o Autor acedeu ao interior da zona de compactação através da zona laleral da máquina, trepando pelos fardos de resíduos e pela zona de saída dos fardos.
XXVII. O Autor não deveria, em qualquer circunstância ter acedido à zona de compactação da prensa, nem abandonar o seu posto de trabalho com a máquina em funcionamento.
XXVIII. O Autor era experiente nas funções e a trabalhar na aludida máquina, pelo que não era, de modo algum, difícil para o Autor prever as consequências de tal acesso…
XXIX. Ainda que se conceda que o Autor tenha acedido através do tapete, o que não se concede, sempre se dirá que, o Autor bem sabia que não podia abandonar o seu posto sem que alguém o substituísse ou parasse o funcionamento da máquina.
XXX. Bem como não deveria aceder à zona dos tapetes, deixando a prensa em funcionamento e sem que alguém pudesse parar o funcionamento da máquina em caso de queda acidental…
XXXI. Neste sentido, deveria o acidente em causa nos presentes autos, nos termos do artigo 14.º da Lei n.º 98/2009, deve ser descaracterizado,
XXXII. Razão pela qual, fica excluída a responsabilidade do empregador na reparação dos danos decorrentes do evento lesivo e, consequentemente, a responsabilidade da ora Recorrente.
XXXIII. Atento o exposto no presente articulado, deve a sentença recorrida ser revogada, e substituída por outra que julgue o pedido improcedente, e assim, absolva a Recorrente do pedido dos pedidos formulados nos presentes autos.”

Recurso (subordinado) do autor:
“1ª Vem o presente recurso subordinado da parte da decisão que julgou improcedente o pedido de agravamento de responsabilidade do acidente aqui em causa.
2ª O ora recorrente impugna, relativamente a decisão sobre matéria de facto, os factos provados em g) e h) na parte em que se apurou que a máquina não apresentava qualquer anomalia.
3ª a 7ª (…)
8ª Independentemente do exposto, face ao que se apurou, designadamente, no item q) dos factos provados e item 10 dos factos não provados, contrariamente ao vertido na sentença recorrida, afigura-se manifesta a violação das condições de segurança no trabalho.
9ª Com efeito, a falta de dispositivos automáticos ou mesmo manuais nas zonas mais críticas e perigosas da máquina que permitissem a paragem da mesma em caso de queda ou acesso acidental a essa zonas, constitui uma manifesta falta de segurança no trabalho.
10ª Consequentemente a decisão recorrida violou o disposto no artgº 18 nº 1 da Lei 98/2009 ao não aplicar esta norma legal ao caso.”

O autor/recorrido apresentou contra-alegações ao recurso da ré seguradora, concluindo:
“(…)”

Admitidos os recursos na espécie própria e com o adequado regime de subida, foram os autos remetidos a este Tribunal da Relação e pela Exma Senhora Procuradora-Geral Adjunta foi emitido parecer no sentido da improcedência dos recursos.

Tal parecer mereceu resposta da apelante Seguradora, reiterando, em suma, a posição já assumida nas suas alegações.

Dado cumprimento ao disposto na primeira parte do n.º 2 do artigo 657.º do Código de Processo Civil foi o processo submetido à conferência para julgamento.

II OBJECTO DO RECURSO

QUESTÃO PRÉVIA, da admissibilidade do recurso subordinado:

Analisadas as conclusões extraídas pela recorrente Seguradora da motivação do recurso, verifica-se que no recurso principal são suscitadas duas questões:
- impugnação da matéria de facto (que contende com a questão da descaracterização do acidente como de trabalho);
- se o tribunal recorrido incorreu em erro na interpretação e aplicação do direito aos factos ao julgar improcedente a excepção peremptória de descaracterização do acidente, violando o disposto no art. 14.º da Lei 98/2009, de 04.9.
No recurso subordinado, como decorre das conclusões extraídas das respectivas alegações, as questões colocadas são:
- impugnação da matéria de facto (que contende com a questão do agravamento da responsabilidade);
- se ocorreu errada aplicação do regime jurídico dos acidentes de trabalho aos factos provados, em violação do disposto no art. 18.º, n.º 1, da Lei 98/2009, de 04.9, devendo concluir-se que existe responsabilidade agravada do empregador.

Entendemos, porém, que o recurso subordinado não é admissível.

O CPT não regula de forma exaustiva o regime doa recursos no processo laboral, havendo necessidade de recorrer subsidiariamente ao regime previsto no CPC - art.s 1 n.ºs 1 e 2 al. a) e 87.º n.º 1, do CPT.
Assim, quanto ao recurso subordinado o CPT limita-se a estabelecer, no art. 81.º n.º 5, que “Havendo recurso subordinado, deve ser interposto no mesmo prazo da alegação do recorrido, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto nos números anteriores”.
Donde, a admissibilidade do recurso subordinado deve ser aferida face ao artigo 633.º do CPC.

Nos termos do art. 633.º do CPC, cuja epígrafe é precisamente Recurso independente e recurso subordinado:

“1 - Se ambas as partes ficarem vencidas, cada uma delas pode recorrer na parte que lhe seja desfavorável, podendo o recurso, nesse caso, ser independente ou subordinado.
2 - O prazo de interposição do recurso subordinado conta-se a partir da notificação da interposição do recurso da parte contrária.
3 - Se o primeiro recorrente desistir do recurso ou este ficar sem efeito ou o tribunal não tomar conhecimento dele, caduca o recurso subordinado, sendo todas as custas da responsabilidade do recorrente principal.
4 - Salvo declaração expressa em contrário, a renúncia ao direito de recorrer ou a aceitação, expressa ou tácita, da decisão por parte de um dos litigantes não obsta à interposição do recurso subordinado, desde que a parte contrária recorra da decisão.
5 - Se o recurso independente for admissível, o recurso subordinado também o será, ainda que a decisão impugnada seja desfavorável para o respetivo recorrente em valor igual ou inferior a metade da alçada do tribunal de que se recorre.” (sublinhamos)

Como a propósito do recurso subordinado escreve Abrantes Geraldes[1], “Por vezes, uma das partes faz depender a sua actuação da posição adoptada pela parte contrária: optando por se abster de recorrer na parte em que a decisão lhe é desfavorável, reserva, contudo, o exercício do direito para a eventualidade de a parte contrária, também vencida, interpor recurso.”

Ora, como resulta do relatório supra, a ré empregadora, S..., S.A., foi absolvida dos pedidos contra si formulados, donde não é «parte vencida» (aliás, porque não é parte vencida, antes “totalmente vitoriosa”, a ré empregadora tampouco podia recorrer, quer por via independente quer subordinada[2]).

Mais, as questões suscitadas pelo recurso subordinado respeitam tão só ao problema da actuação culposa do empregador/responsabilidade agravada – agravamento que, a existir, recairia sobre o empregador -, ao passo que as questões suscitadas no recurso principal são relativas à excepção da descaracterização do acidente como acidente de trabalho.

Como em situação idêntica decidiu a RL por Ac. de 07-12-2010[3], e conforme o respectivo Sumário: “I- Numa acção emergente de acidente de trabalho em que são deduzidos pedidos distintos contra a seguradora e contra a empregadora, julgado improcedente o pedido deduzido contra a empregadora e interposto recurso pela seguradora, não podem os AA. interpor recurso subordinado contra o empregador, porque não se verifica o pressuposto de “ambas as partes ficarem vencidas (…)”

Pelo exposto, acorda-se em rejeitar o recurso subordinado do autor.

Delimitado que é o âmbito do recurso pelas conclusões da recorrente, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas (artigos 608.º n.º 2, 635.º, n.º 4, 639.º, n.ºs 1 e 2 e 640.º, todos do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 87.º n.º 1 do CPT), enunciam-se então as questões que cumpre apreciar:
a) Impugnação da matéria de facto;
b) Se o tribunal recorrido incorreu em erro na interpretação e aplicação do direito aos factos ao julgar improcedente a (excepção peremptória de) descaracterização do acidente, violando o disposto no art. 14.º da Lei 98/2009, de 04.9.

III – APRECIAÇÃO DO RECURSO

- Da impugnação da matéria de facto:

São os seguintes os factos que na decisão recorrida se consideraram provados e não provados:

“A). FACTUALIDADE ASSENTE
Encontra-se assente, com relevância para a decisão a proferir, a seguinte materialidade:
a). No dia 07.12.2017, o autor, nascido aos .../.../, exercia funções, com a categoria profissional de servente, sob as ordens, direcção e fiscalização da segunda ré, S..., S.A., mediante a retribuição anual de € 8.451,40. ---
b). Na data mencionada em a), pelas 13h30m, o autor encontrava-se nas instalações da segunda ré, a operar uma prensa enfardadeira de resíduos, de marca ..., modelo .... ---
c). O referido equipamento era integrado pelos seguintes elementos: ---
- Zona de abastecimento ou triagem, composta por tapete rolante horizontal, destinado à deposição dos resíduos e à condução dos mesmos para compactação na unidade central; ---
- Unidade central ou de compactação, composta por ---
- Tremonha ou canal de alimentação, no qual desembocavam os resíduos finda a sua condução pelos tapetes rolantes, que, a partir de certo ponto da sua extensão, em direcção progressiva para o corpo central da máquina, passavam a ter inclinação ascendente, apresentando-se o topo da tremonha a uma altura de cerca de 3 metros do pavimento; ---
- Câmara de compactação, composta por carro de compactação, de movimentação automática através de cilindro hidráulico, accionado por fotocélulas de barreira quando a tremonha apresentasse certo nível de carga, e dotado no seu topo de lâminas para corte dos resíduos, que, após o seu seccionamento, eram empurrados para o canal de compactação, por via de movimentos de contrapressão, para formação dos fardos; ---
- Zona de saída dos fardos, já amarrados por arames, através de processo automatizado, alimentado por bobines. ---
d). O corpo central da máquina era dotado pelo seu exterior, ao nível da câmara de compactação, de um painel de controlo automatizado. ---
e). Esse painel dispunha de botões, um deles de emergência, que, accionados, interrompiam o ciclo de funcionamento da máquina. --- f). O corpo central da máquina era dotado, também, de uma janela de inspecção, de tipo escotilha, que permitia visualizar, a partir do exterior, as operações em curso na câmara de compactação. ---
g). A referida janela de inspecção, que era mantida na condição de fechada com um aloquete, dispunha de mecanismo de encravamento, accionado por sensores, que determinava, caso a mesma fosse aberta, a interrupção do ciclo de funcionamento da máquina. ---
h). A máquina em questão dispunha de certificação de conformidade CE e estava, na data referida em a), completa nos seus componentes, não apresentando qualquer anomalia de funcionamento. ---
i). Dispunha, ainda, de manual de instruções em língua portuguesa, que foi facultado ao autor e que estava disponível para consulta, a qualquer momento, junto do equipamento. ---
j). O referido manual contemplava, para além do mais, indicações de segurança e enunciação de utilizações proibidas, entre estas se incluindo a proibição de entrar na tremonha/boca de alimentação. ---
l). Encontravam-se, também, afixadas no equipamento instruções de segurança. ---
m). O autor operava a referida máquina, por conta da segunda ré, pelo menos, desde 2013. ---
n). A anteceder o evento que vitimou o autor, a segunda ré prestou-lhe informação e ministrou-lhe formação, de que o mesmo ficou ciente, relativas ao equipamento em causa, mormente quanto aos perigos associados ao seu manuseamento e aos comportamentos proibidos susceptíveis de comprometer a sua saúde e segurança. ---
o). No dia e hora mencionados em b), o autor estava encarregue de operar a máquina em questão junto aos respectivos painel de controlo e janela de inspecção. ---
p). A determinando momento, apresentando-se o corpo do autor, por efeito de ocorrência não concretamente determinada, no interior do canal de alimentação/tremonha do equipamento, os seus membros inferiores vieram a ser colhidos pelo movimento das lâminas de corte do mecanismo de compactação, em resultado do que sofreu amputação transtibial bilateral. ---
q). A unidade central da máquina, mormente nas zonas de corte e de compactação, não era dotada de sistema que interrompesse automaticamente o seu funcionamento, em caso de presença de elementos no seu interior que não fossem resíduos. ---
r). As lesões que o autor sofreu foram determinantes de incapacidade temporária absoluta para o trabalho, desde 08.12.2017 até 30.05.2019. ---
s). As referidas lesões ficaram clinicamente consolidadas aos 30.05.2019, data da alta, tendo delas resultado para o autor uma IPP de 84%, com IPATH. ---
t). Por efeito da incapacidade permanente que para o autor adveio do sinistro que o vitimou, carece o mesmo de apoio, permanente também, de terceira pessoa, em particular para realização da sua higiene, pelo período de 1 hora por dia. ---
u). A habitação onde, actualmente, reside foi-lhe cedida pela segunda ré. ---
v). Em resultado das limitações de locomoção que apresenta, a sobredita habitação necessita de obras de readaptação, em especial de remoção de barreiras arquitectónicas que entorpecem a sua movimentação. ---
x). Até ter sido medicado, o autor vivenciou, em consequência das lesões que sofreu, intenso estado de dor. ---
z). Antes do evento ocorrido, o autor era pessoa activa e trabalhadora, que ambicionava reformar-se, um dia, com valor condigno, perspectiva que, por efeito das consequências que para si advieram, viu comprometida. ---
aa). Era, também, pessoa bem-disposta, tendo passado, depois do evento ocorrido, a vivenciar estados de tristeza, angústia e ansiedade, bem como a sentir-se diminuído, pela condição em que ficou e pelas limitações a isso associadas. ---
bb). Nas deslocações que, por efeito da pendência destes autos, realizou ao GML e às instalações deste Juízo do Trabalho, o autor despendeu a quantia de € 20,00. ---
cc). O Centro Distrital de ... do ISS, IP, pagou ao autor, a título de subsídio de doença, no período compreendido entre 07.12.2017 e 27.03.2020, a importância global de € 10.475,92. ---
dd). Pagou, também: ---
- No período compreendido entre 28.03.2020 e 08.12.2020, a importância global de € 3.346,08, a título de subsídio de doença; ---
- Prestação compensatória de subsídio de férias do ano de 2019, no valor de € 360,00; ---
- Prestação compensatória de subsídio de Natal do ano de 2019, no valor de € 360,00; ---
- Prestação compensatória de subsídio de férias do ano de 2020, no valor de € 381,08; ---
- Prestação compensatória de subsídio de Natal do ano de 2020, no valor de € 358,12. ---
ee). À data da ocorrência descrita em b), encontrava-se em vigor contrato de seguro do ramo de acidentes de trabalho de trabalhadores por conta de outrem, titulo pela apólice ...01, na modalidade de prémio variável, celebrado entre as rés L... – Companhia de Seguros, S.A., e S..., S.A., mediante o qual havia sido transferida para aquela, relativamente ao ora autor, o pagamento das indemnizações a que houvesse lugar emergentes de acidentes de trabalho, tendo por base a retribuição mencionada em a). ---

B). FACTUALIDADE NÃO DEMONSTRADA
Não se demonstrou, com relevância para a decisão a proferir, que: ---
1. A ocorrência mencionada na al. p) da materialidade dada como demonstrada haja resultado de arrastamento que o corpo do autor sofreu. ---
2. Esse arrastamento haja tido na sua origem a circunstância de a zona de tapetes, destinada ao abastecimento e à triagem dos resíduos, se apresentar desprovida de resguardos de protecção, bem como de dispositivos foto celulares, sensores e/ou avisos sonoros/alertas que detectassem a presença de qualquer elemento diferenciado, mormente de pessoas, e interrompessem automaticamente o seu funcionamento. --
3. A máquina que o autor se encontrava a operar devesse, ou pudesse, estar equipada com os elementos referidos na al. q) da materialidade dada como demonstrada. ---
4. A máquina não fosse dotada de comandos manuais ou mecânicos, posicionados em locais estratégicos e de fácil acesso, que, na eventualidade de acidente, pudessem ser accionados por outros trabalhadores e que isso haja contribuído para o evento ocorrido. ---
5. Na circunstância dos factos, não operassem nas proximidades do equipamento outros trabalhadores capazes, ou em condições, de accionar os comandos/mecanismos de interrupção do ciclo de funcionamento da máquina. ---
6. Na zona onde o autor se encontrava a operar a máquina caíssem no piso das instalações plásticos, outros resíduos e gorduras, aptos a que os trabalhadores pudessem tropeçar, escorregar ou cair. ---
7. A formação que a segunda ré ministrou ao autor não haja abrangido especificamente matérias relativas ao funcionamento e ao manuseamento da máquina em questão, bem como aos perigos a isso associados, e que não lhe tenha facultado o respectivo manual de instruções.
8. Por estar apenas habilitado com formação básica, obtida no seu país de origem, o autor não dominasse a língua portuguesa nem apresentasse condições para compreender instruções que lhe fossem destinadas, ou formação que lhe fosse ministrada. ---
9. A segunda ré haja incumprindo deveres atinentes à segurança e saúde no trabalho e que tenha sido isso que esteve na origem do evento ocorrido. ---
10. O autor se haja introduzido, por determinação própria e sem causa justificativa, na zona de compactação da máquina, sabendo que os mecanismos aí existentes se encontravam em funcionamento, bem como dos riscos a isso associados e de que, por essa via, estava a violar as regras de segurança para que foi instruído pela segunda ré, em comportamento que prosseguiu de forma deliberada e consciente. ---
11. O autor padecesse de problemas de alcoolismo e que se apresentasse, frequentemente, no seu local de trabalho na condição de alcoolizado. ---
12. O autor apresentasse problemas pessoais, em particular de relacionamento com os seus filhos, e que, por isso, haja intentado pôr termo à sua vida. ---
13. O autor haja ficado a padecer de incapacidade permanente em medida e grau diversos dos referidos na al. s) da materialidade dada como demonstrada, muito em particular que se apresente afectado de incapacidade para todo e qualquer trabalho. ---
14. A assistência de que o autor se acha, nos termos referidos na al. t) da materialidade dada como demonstrada, carecido abranja a realização das tarefas de confecção de refeições, tratamento de roupa, arrumação da casa, realização/transporte de compras e deslocação ao exterior, e por período diário superior ao ali indicado, designadamente por 4 a 6 horas. ---
15. A casa-de-banho da habitação onde o autor reside careça da colocação de um polibã e de apoios. ---
16. Qualquer outra habitação onde o autor venha a residir careça, também, de readaptação nos termos referidos na al. v) da materialidade dada como demonstrada. ---
17. Mesmo depois de medicado, com fármacos e analgésicos, o autor tenha vivenciado intensos estados de dor e que, ainda hoje, isso continue, por vezes, a suceder, a determinar a necessidade de ser medicado. ---
18. Para além do reportado na al. z) da materialidade dada como demonstrada, o autor, antes do evento ocorrido, ambicionasse, também, regressar, um dia, ao seu país de origem com algumas poupanças.
19. O autor, em decorrência do evento ocorrido, haja visto totalmente comprometidas toda e qualquer perspectiva de vida futura e ambições. ---
20. Para além do reportado na al. aa) da materialidade dada como demonstrada, o autor tivesse, também, passado a apresentar, após o evento ocorrido, muito cansaço e irritação, dificuldade em reter, ou memorizar, informação, ainda que básica, e a dormir mal, acordando, por vezes, sobressaltado, bem como que os estados de alteração anímica que o afectam sejam reconduzíveis, ou hajam sido diagnosticados, como depressão.”

A recorrente pretende que:
- a matéria de facto dada como provada sob a alínea p) seja alterada, passando a constar dessa alínea a seguinte factualidade: “a determinado momento, apresentando-se o corpo do autor, por efeito de se ter introduzido pela lateral da máquina, dado ter trepado pelos fardos de resíduos e pela zona de saída dos fardos, no interior do canal de alimentação/tremonha do equipamento, os seus membros inferiores vieram a ser colhidos pelo movimento das lâminas de corte do mecanismo de compactação, em resultado do que sofreu amputação transtibial bilateral” (isto é, pretende que se substitua o segmento “por efeito de ocorrência não concretamente determinada” por “por efeito de se ter introduzido pela lateral da máquina, dado ter trepado pelos fardos de resíduos e pela zona de saída dos fardos”);
- a matéria de facto dada como não provada no ponto 10. transite para a matéria de facto dada como provada;
- bem como seja aditada à matéria de facto dada como provada a seguinte matéria: “O Autor, em manifesto incumprimento das instruções recebidas pelo Entidade Empregadora, ausentou-se do seu posto de trabalho, deixando a máquina em funcionamento.”

O recorrido pugna pela rejeição do recurso quanto à impugnação da matéria de facto, em suma porque a recorrente não indicou especificamente quais os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados, não indica, muito menos com exactidão, as passagens das gravações dos depoimentos em que funda o seu recurso, sendo que quanto ao alegado em 53 e 54 do recurso a recorrente não indica sequer quais os meios probatórios que, a seu ver, justificam a alteração da matéria de facto aí em causa.

Vejamos.

Estabelece o artigo 662.º n.º 1 do CPC , sob a epígrafe Modificabilidade da decisão de facto, que “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”

Dispõe, por seu lado, o artigo 640.º do CPC, cuja epígrafe é Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.” (sublinhamos)

Decorre com clareza das normas citadas que ao recorrente cumpre discriminar os pontos de facto que a seu ver foram incorrectamente julgados, especificar os meios probatórios que impunham, relativamente aos concretos pontos da matéria de facto impugnados, decisão diversa da recorrida, sendo que se se tratar de declarações/depoimentos gravados, incumbe ao recorrente indicar com precisão as passagens da gravação em que funda o recurso - sem prejuízo de poder, aí querendo,   proceder à transcrição   dos excertos das gravações que considere relevantes -, impondo-se-lhe ainda  que explicite a decisão que, no seu entender, deveria ter sido dada a cada um dos pontos de facto por si impugnados.

Note-se que quanto ao dever de o recorrente indicar em concreto as passagens da gravação das declarações e/ou depoimentos em que se funda a impugnação e que no juízo do recorrente impõem decisão diversa da recorrida, a lei comina tal ónus sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte.
E, “Um tal ónus não pode considerar-se satisfeito se, por exemplo, o impugnante se limita a indicar o início e o fim do depoimento dos participantes processuais ouvidos na audiência final, nas quais funda a impugnação.”[4].

Acresce que sempre que impugne a decisão da matéria de facto deve o recorrente procurar demonstrar o erro de julgamento dessa matéria (art. 640.º/1 b) do CPC), donde, obrigatoriamente, indicar as razões que, no seu entendimento, evidenciam tal erro.  
           
Ademais, “As referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo.”[5], não obstante não se deva exponenciar os requisitos formais a um ponto que sejam violados os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.[6]

No caso em análise a recorrente, para efeitos da impugnação da matéria de facto levada pelo Tribunal a quo à alínea p) dos factos provados, limita-se a indicar, quanto à testemunha BB, o início e o fim do respectivo depoimento (procedendo de modo semelhante no que tange à transcrição do depoimento, integral), no qual funda (também) a impugnação, para os ditos efeitos de demonstrar que foram produzidas provas que impõem decisão de facto diversa.

Com igual intuito trouxe a recorrente à colação os depoimentos das testemunhas CC, DD, EE e FF, relativamente a estes, contudo, indicando quais os segmentos dos depoimentos que considera relevantes, procedendo às respectivas transcrições e indicando os «minutos» em que se encontram (com referência à duração da gravação).

Atentos aos aludidos os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, entendemos que quanto a estes depoimentos cumpriu a recorrente o apontado ónus de indicação das passagens da gravação.

Quanto à matéria de facto que a recorrente pretende ver aditada, e ao ponto 10 da matéria de facto não provada, que a recorrente quer se dê como provada, temos de concordar com o recorrido quando afirma que no recurso não se indica quais os meios de prova que justificam ou fundamentam a alteração da matéria que nesses termos se pretende ver incluída no rol dos factos provados, em violação do estatuído no art. 640.º/1 b) do CPC.
Com efeito (cf. art.s 53. e 54. das alegações, e conclusões XX e XXI), a recorrente não identifica qualquer prova concreta que imponha decisão diversa da que proferiu o Tribunal recorrido, mormente a decisão que ora propõe, sendo que nem implicitamente se pode considerar efectuada essa indicação, pois que, como decorre do que se disse supra, não está agora em causa proceder a um novo/integral julgamento, mas antes curar de pontos específicos da matéria de facto, com base em concretos meios de prova, ademais impondo-se a indicação das concretas passagens dos depoimentos gravados que – relativamente à concreta matéria em análise – obrigam à (diversa da proferida) decisão reclamada, concretizações essas que não estão, minimamente, clarificadas.

Acresce que, quanto à matéria que a recorrente quer ver aditada - “O Autor, em manifesto incumprimento das instruções recebidas pelo Entidade Empregadora, ausentou-se do seu posto de trabalho, deixando a máquina em funcionamento” - não informa a recorrente onde se encontra alegada, parecendo depreender-se do recurso que no seu entendimento resultou da discussão da causa.
Mas se assim é então deveria a recorrente ter oportunamente requerido ao Tribunal recorrido que tais factos fossem tidos em consideração (cf. art. 72.º n.ºs 1 e 2 do CPT e art. 5.º/2 al. b) do CPC).[7]
 
Assim, e em suma:
Porque a recorrente identificou expressamente os pontos da matéria de facto que a seu ver foram incorrectamente julgados, como diz de forma clara o sentido em que tal matéria de facto deve ser julgada, indicando quanto à al. p) dos factos provados as provas e adiantando as razões por que, no seu entendimento, houve erro no julgamento da dita matéria de facto, entendemos que a recorrente deu, nesta parte, suficiente cumprimento aos assinalados ónus, pelo que cumpre conhecer do recurso nessa medida, sem prejuízo de não se atender ao depoimento da testemunha BB, nem aliás, à documentação junta aos autos, posto que também relativamente a esta a recorrente não assinalou qualquer concreto documento, ou parte, que imponha, por si só ou conjugada com a demais prova que invoca, decisão diversa da recorrida (mas também sem embargo dos poderes de investigação oficiosa do Tribunal).
Rejeita-se quanto ao mais o recurso da matéria de facto.

Como já acima referimos, a recorrente pretende que se dê como provado que “a determinado momento, apresentando-se o corpo do autor, por efeito de se ter introduzido pela lateral da máquina, dado ter trepado pelos fardos de resíduos e pela zona de saída dos fardos, no interior do canal de alimentação/tremonha do equipamento, os seus membros inferiores vieram a ser colhidos pelo movimento das lâminas de corte do mecanismo de compactação, em resultado do que sofreu amputação transtibial bilateral”, isto é, pretende que se substitua o segmento “por efeito de ocorrência não concretamente determinada” por “por efeito de se ter introduzido pela lateral da máquina, dado ter trepado pelos fardos de resíduos e pela zona de saída dos fardos

O ponto é, portanto, este: dos invocados depoimentos das testemunhas CC, DD, EE e FF é possível formar convicção segura que o sinistrado se introduziu pela lateral da máquina, dado ter trepado pelos fardos de resíduos e pela zona de saída dos fardos?

Da exaustiva motivação exarada pela primeira instância quanto à matéria a que reporta a al. p) dos factos provados, em essência, o acontecer do acidente, respiga-se:
“Ora, da prova que, em audiência de julgamento, se produziu, conjugada com a análise dos elementos documentais juntos ao processo e os contributos proporcionados pelas testemunhas inquiridas, resultou que o acesso à tremonha/câmara de compactação só poderia ter-se dado por um de dois lados: pela zona dos tapetes rolantes ou pela zona do motor da máquina, localizados, visto o equipamento em perspectiva frontal, o primeiro, pelo lado esquerdo da unidade central, e, o segundo, pelo seu lado direito. ---
Analisemos, então, a primeira possibilidade. ---
Pois bem. ---
Já acima dissemos que, na data dos factos, o autor estava encarregue de operar/controlar o funcionamento da máquina junto à sua unidade central. ---
Também já referimos que, no dia em questão, eram as testemunhas CC e DD que estavam encarregues de proceder à triagem dos resíduos e de alimentar os tapetes, tendo por ambas sido referido que se encontravam de costas para a unidade central da máquina. Disseram, também, que não percepcionaram por que forma o corpo do autor resultou introduzido na tremonha/câmara de compactação. Equivale isso por dizer que não percepcionaram que o autor haja progredido, a partir da zona da unidade central da máquina, para o lado esquerdo, em direcção à zona dos tapetes, onde os mesmos se encontravam. ---
Por seu turno, a testemunha EE, segundo disse, estava junto ao ponto inicial da linha de tapetes, nada tendo percepcionado também, por não estar atenta às ocorrências envolventes. ---
Porém, apesar de a eventual progressão do autor para a zona dos tapetes não ter sido percepcionada por qualquer dos referidos trabalhadores, a verdade é que, estando CC e DD voltados de costas para a zona da unidade central da máquina, e a testemunha EE atenta à tarefa que desempenhava, pode aquela progressão ter ocorrido. ---
Tendo essa hipótese, se foi o caso, tido verificação, uma eventual subida deliberada pelo autor para a zona dos tapetes, ou, até mesmo, uma eventual queda, nesse acesso, ou já depois dele, poderia por eles não ter sido percepcionada. ---
Claro está que, tendo ocorrido uma queda acidental, sempre poderia dizer-se, como, de resto, o faz a entidade empregadora na contestação que ofereceu, que o autor teria, então, tido tempo para sair do tapete, ou pedir auxílio para o fazer, antes de o seu corpo alcançar a boca de alimentação da tremonha. E seria, de facto, assim, considerando os relatos produzidos em julgamento a respeito da velocidade do tapete, a menos, claro está, que o autor tivesse, por alguma razão, perdido a consciência. ---
E essa hipótese – que é, como se vê, mais uma, em atenção às variáveis em presença – não pode, simplesmente, ser descartada pelo facto de o autor ter sido colhido pelos seus membros inferiores. É que se foi o caso de ter caído no tapete/sobre o tapete e de ter perdido a consciência, o seu corpo poderia ter sido conduzido em uma qualquer posição, incluindo com os pés voltados para a boca de alimentação da tremonha. Claro está que, como se disse acima, o tapete tinha, no seu ponto de partida, considerado o lado pelo qual era alimentado, configuração rectilínea, ou seja, paralela ao pavimento, sendo que, em progressão para a boca de alimentação da tremonha, passava a ter inclinação ascendente. E isso, do ponto de vista da construção argumentativa, poderia conduzir a que se dissesse que o corpo do autor, estando com os membros inferiores voltados na direcção da boca da tremonha, tenderia, devido à gravidade, e uma vez alcançada a zona de inclinação dos tapetes, a retroceder para a zona rectilínea destes, e não a avançar para a unidade central. Simplesmente, fosse essa inclinação determinante desse efeito e, então, nenhum resíduo, uma vez alcançada a zona inclinada dos tapetes, poderia progredir para a boca de alimentação da tremonha/câmara de compactação. ---
Antes de encerrarmos as referências que se impõem, relativamente à primeira hipótese de que se tratámos nos antecedentes parágrafos, importa, acrescidamente deixar expresso que, em julgamento, foi junto ao processo o auto de notícia elaborado pela testemunha GG, que, acompanhada pela testemunha HH, ambos militares da GNR – a última delas já anteriormente referida -, se deslocou, após a ocorrência dos factos, às instalações da ré empregadora. ---
Ora, do sobredito auto, que se acha a fls. 424 a 428, foi feito constar, sem que as testemunhas referidas disso hajam guardado especial memória, que outros trabalhadores presentes no local teriam dito que era “habitual” ocorrer subidas aos tapetes, para acelerar o processo de condução dos resíduos. Trata-se, porém, de afirmação que, para além de não corroborada em julgamento por qualquer das testemunhas inquiridas, não traz, sequer, esclarecimento sobre quem é que tinha por “hábito” fazer isso, sendo certo que não era o autor que tinha como missão alimentar os tapetes, não sendo de excluir que quem prestou o relato em causa à GNR estivesse a falar de si próprio e de outros com as mesmas funções. Mas, se há virtualidade que pode extrair-se do auto de notícia elaborado, é a constância no relato produzido pelos trabalhadores presentes no local de que não percepcionaram o que, na circunstância, sucedeu. ---
Vejamos, agora, da segunda das enunciadas possibilidades, ou seja, a de acesso ao interior da unidade central da máquina se ter dado pelo lado, contrário aos tapetes, onde se localizava a zona de saída dos fardos/motor da máquina. ---
Pois bem. ---
Já acima deixámos enunciado, a propósito daquilo que a testemunha II fez constar do relatório que elaborou, que o mesmo, na oportunidade da avaliação que esteve ao seu alcance realizar, apenas admitiu a possibilidade – tal como sucedeu com a testemunha JJ no relatório que elaborou e que consta de fls. 217 a 219 - de o acesso se ter dado pelo lado dos tapetes. Fez, aliás, aquela testemunha constar do referido relatório que não viu, no local das instalações, em especial na zona da unidade central da máquina, qualquer escada que permitisse acesso pelo corpo central do equipamento. ---
Ora, que o autor não acedeu à máquina socorrendo-se de qualquer auxiliar da referida natureza, afigura-se, considerada a verificação realizada pela testemunha II, ponto assente, assim como, também, em atenção à altura a que o topo da unidade central ficava do pavimento, de cerca de 3 metros, que nenhum acesso se poderia ter dado pela parte frontal ou posterior da máquina. ---
Poderia, contudo, já, hipótese que a testemunha II, na avaliação que, de seguida à ocorrência dos factos fez, não foi por ela ponderada, ter acedido pela lateral esquerda da máquina, mormente pela zona de saída dos fardos/motor da máquina, através de escalamento, como os registos fotográficos constantes dos autos atestam, e foi dito em julgamento, que seria possível. ---
Mas se o fez, hipótese que se apresenta - a par de outras, em particular a de ter ocorrido acesso, deliberado ou inadvertido, pela zona dos tapetes -, como cogitável, a verdade é que se desconhecem vários aspectos. ---
O primeiro deles é a razão que poderia ter motivado o autor a aproximar-se da boca de alimentação da tremonha. ---
De registar que não se demonstrou, remotamente que fosse, que o autor, a ter sido o caso de assim ter procedido, pudesse estar imbuído da intenção de pôr termo à sua vida. É que nada do que poderia sugerir essa possibilidade – potencial alcoolismo ou problemas familiares – resultou corroborado em julgamento. ---
Para além disso, e tanto quanto foi possível apurar, o autor era pessoa que, sendo residente em território nacional há cerca de 20 anos, se apresentava adequadamente integrada, não só do ponto de vista profissional, sendo estimado pelos seus companheiros de profissão e pelo seu patrão, como, também, pessoal e socialmente, cultivando relações fora do seu contexto profissional, mormente de natureza íntima. ---
Acresce considerar que, ninguém que intente pôr termo à sua vida, o faz, ditam as regras de normalidade, começando por provocar, ou por auto-infligir, lesões em zonas não vitais, como os membros inferiores, sendo que, aliás, o autor clamou por auxílio, o que sempre contrariaria qualquer putativa vontade, pelo menos resoluta, de perder a vida. ---
Não é, também, ou, melhor dizendo, sequer, cogitável que o autor, não querendo, embora, por termo à sua vida, tivesse em vista vir a sofrer lesões que o habilitassem a beneficiar da atribuição de prestações no quadro de reparação proporcionado pela lei dos acidentes de trabalho. É que é preciso perceber que, conhecendo o mesmo, como conhecia, o modo de funcionamento do equipamento que operava, não podia ignorar que, não fosse a actuação dos seus colegas, em particular de quem imobilizou o funcionamento da máquina e de quem lhe prestou o primeiro auxílio – retirando-o do interior da máquina e contendo a hemorragia dos seus membros inferiores -, a sua vida poderia ter sido ceifada. Quisesse o autor produzir, de forma deliberada, qualquer de lesão corporal, por forma a poder beneficiar de uma eventual reparação, e estamos seguros que nunca optaria por ficar amputado dos seus dois membros inferiores, com as tremendas implicações que isso, naturalmente, acarreta. ---
Partindo-se das inquestionáveis premissas de que o autor não pretendeu, se subiu deliberadamente para a parte superior da máquina, pôr termo à sua vida nem, tampouco, criar contexto favorável para vir a sofrer lesões corporais, mantém-se a questão de saber o que poderia tê-lo determinado, se foi o caso, reforça-se, a escalar a lateral da máquina e a aproximar-se da boca de alimentação da tremonha/câmara de compactação. ---
E, nesse contexto de possibilidade – de acesso deliberado ao topo da unidade central da máquina -, várias hipóteses são prefiguráveis: ---
i. A de os resíduos, considerada a sua leveza e consistência – saliente-se, novamente, que se tratava de folhas/sacos plásticos -, no movimento de progressão para a boca de alimentação da tremonha/câmara de compactação, terem sido projectados para cima da zona do motor; ---
ii. A de o material, por se tratar de plástico de reduzida espessura e translúcido, não ter accionado o sensor de nível de enchimento da tremonha, a determinar que as lâminas e o cilindro da câmara não tivessem entrado em movimento, ou que, tendo esse movimento sido iniciado, tivesse, por efeito daquela ocorrência, cessado; ---
iii. A de o material ter, por alguma razão, empancado, não progredindo da tremonha para a câmara de compactação, originando que esta estivesse a trabalhar “em seco” ou que os seus mecanismos tivessem parado. ---
Nos enunciados cenários, a terem tido, reforça-se mais uma vez, verificação, a deslocação do autor para junto da boca de alimentação da tremonha/câmara de compactação poderia ter sido motivada pelo propósito, na hipótese referida em i., de colocação dos resíduos no interior da tremonha, e, nas referidas em ii. e iii., de remover as causas de mau funcionamento, ou de interrupção, momentânea que fosse, do funcionamento, da tremonha/câmara de compactação. ---
Em nenhuma das enunciadas hipóteses, porém, pode excluir-se que o autor tenha caído na tremonha. Do mesmo modo que assim é, não pode excluir-se, também, que tenha colocado os seus pés no interior da tremonha, sentando-se no rebordo dessa estrutura, e acabando por cair, ou que se tenha posicionado de pé sobre os próprios resíduos, por efeito do que, na contraposição entre o peso do seu corpo e a (fraca) resistência dos resíduos em causa – folhas/sacos plásticos –, o que poderá não ter antecipado, tenha acabado o seu corpo por cair desamparado sobre as lâminas de corte da câmara de compactação, situadas a uma profundidade que não lhe permitiu já sair da estrutura antes de ser colhido. ---
Do mesmo modo, não se sabe, sequer, se, a ter sido o caso de o autor se ter deslocado deliberadamente para o topo da máquina, o mecanismo de compactação, quando assim procedeu, e, especialmente, quando se abeirou da tremonha, se foi também esse o caso, estava, ou não, em movimento. É que, apesar de os tapetes poderem estar a trabalhar, não é de excluir que, se, porventura, o material empancou ou não accionou os sensores da tremonha, as lâminas e o cilindro de compactação tivessem, momentaneamente que fosse, parado. ---
Serve tudo quanto vem de dizer-se para significar que qualquer uma das hipóteses enunciadas, nenhuma delas contrária a regras de racionalidade – acesso pelos tapetes, deliberada ou resultante de queda, com/sem perda de consciência; acesso por escalamento pela zona dos fardos/motor da máquina, com queda acidental na tremonha ou introdução deliberada nesta, estando o mecanismo de compactação em funcionamento ou, nesse instante, paralisado –, poderá ter tido verificação, sem que a prova que se produziu haja permitido optar por alguma delas. ---
Registe-se, ainda que a latere neste percurso motivacional, que, se foi caso de o autor se ter introduzido na tremonha, para na mesma colocar resíduos que tivessem caído ou para desempacar o mecanismo, a verdade é que, sendo ele operador da máquina, desde há vários anos, não se crê, e a ter sido esse o caso, reforça-se novamente, que tivesse sido essa a primeira vez que o autor assim teria procedido, sem que, contudo, haja notícia, ou registo, de sinistros anteriores a envolver a máquina, a sugerir, caso alguma das enunciadas hipóteses se tivesse comprovado, que não se comprovou, habitualidade ao perigo ou confiança fundada na experiência. ---“

Afigura-se-nos que a motivação apresentada pela Mm.ª juiz a quo é coerente e consistente, e conforme às regras da experiência, não se podendo, efectivamente, ir mais longe quanto ao iter do acidente.

O art.º 607.º n.º 5 do CPC estabelece que “O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.”.

Esta norma, como é consabido, consagra o princípio da livre apreciação da prova.

Da mesma forma, é pacífico que a prova, tendo como função a demonstração da realidade dos factos, tal como vem definido no artigo 341.º do CC, não propicia uma certeza absoluta, mas tão só um alto grau de probabilidade, “suficiente para as necessidades práticas da vida”[8], ou seja, suficiente para dirimir os conflitos trazidos a juízo.

Reportando ao caso em análise, e como refere o recorrido “o que as transcrições juntas no seu [da recorrente] recurso permitem extrair são duas conclusões seguras;
A primeira, que nenhuma testemunha viu ou sequer se apercebeu da dinâmica do acidente ou do próprio acidente,
A segunda, que qualquer análise conclusiva sob a forma como ocorreu o acidente é puramente especulativa.”

Até cingindo-nos aos excertos, assinalados pela apelante, dos depoimentos das testemunhas CC, DD, EE e FF, é esta a conclusão a que chegamos.
Com efeito, decorre de todos eles que nenhuma dessas testemunhas assistiu ao acidente, só se tendo apercebido do mesmo após o sinistrado gritar por auxílio: a testemunha CC reconheceu que “como ele entrou ou não, não faço ideia”, a testemunha DD também disse não se ter apercebido de “nada”, a testemunha EE também disse que “eu só dei por ela quando o FF chamou por mim, não dei por nada”, tendo esclarecido, aliás, que do local onde se encontrava a trabalhar, “ao fundo da linha de produção”, não tinha “visão” para o local do acidente, e a testemunha FF referiu que estava a trabalhar com o empilhador quando ouviu “uns berros fortes a vir da direcção da prensa”, tendo corrido então para o local do acidente (Prensa) (adiante-se que também a testemunha BB, perita averiguadora, concedeu que “há aqui a possibilidade de mil e uma situações que só ele [sinistrado] poderá esclarecer”.

Donde, nenhuma testemunha sabe realmente como chegou o sinistrado/recorrido à parte da máquina – interior do canal de alimentação/tremonha do equipamento - onde foi encontrado.
E não sabem, desde logo, porque, nada tendo visto, nada se apercebendo, a esse respeito, havia duas formas através das quais era (em abstracto) possível o sinistrado chegar ao sítio onde foi encontrado. Através do tapete de alimentação da unidade central ou de compactação, ou subindo pela parte lateral direita da máquina (zona de saída dos fardos/motor da máquina), sendo que é sempre possível congeminar, particularmente na primeira hipótese, quer que tenha ocorrido uma actuação consciente e propositada do sinistrado, quer que o que sucedeu foi um acontecimento involuntário.

A recorrente tenta evidenciar que a única hipótese que, de acordo com as regras da experiência, faz sentido é de que se tratou de uma atitude propositada – ainda que admita que a própria introdução no interior da máquina possa ter sido acidental -, e que o sinistrado ascendeu à tremonha do equipamento trepando pelos fardos/zona de saída dos fardos.
Não nos parece que a prova, e desde logo aquela em que se ancora o recurso, sustentem tal suposta evidência.

Em primeiro lugar, porque não foi adiantada qualquer razão plausível para que o recorrente assim tivesse agido.
Tendo-se até especulado sobre a eventualidade de o sinistrado ter assim actuado para corrigir qualquer anomalia no processo, como dar-se o caso de os resíduos por alguma razão terem “empancado”, como disse a testemunha CC o que acontecia então era o recorrido dizer para pararem de alimentar a máquina, e que paravam então os tapetes, tendo igualmente a testemunha DD referido que o recorrido dava alarme de qualquer  situação anómala que acontecesse (com a máquina ou com o processo de abastecimento), e que naquele dia não deu, no mesmo sentido indo o depoimento da testemunha FF pois, perguntado sobre qual o procedimento do operador da máquina caso ocorra um “bloqueio” por excesso de resíduos respondeu que “o procedimento é parar logo os dois tapetes para não deitar ainda mais material, colocar a prensa em manual e puxar a prensa para trás, voltar a puxar à frente, até que aquilo fique mais aliviado e depois voltar ao automático outra vez para ela fazer as suas funções”.

Isto é, nenhuma razão foi sequer aventada para que o recorrido tivesse voluntariamente acedido à tremonha do equipamento nos termos que a recorrente pretende fiquem a constar dos factos provados.
Uma eventual anomalia na própria máquina ou no processo de abastecimento sempre suporia que os outros trabalhadores que estavam a operar nesse processo, v.g. os que estavam a abastecer os tapetes com resíduos disso se apercebessem, sendo até alertados, e a correcção dessa eventual anomalia não implicava (pelo menos por norma) que o operador da máquina subisse ao, ou para junto, do canal de alimentação/tremonha do equipamento.

Por outro lado, enfatiza a recorrente a postura do sinistrado quando foi encontrado na tremonha da máquina pelos colegas de trabalho, como demonstrativa que o mesmo aí se introduziu/caiu de pé (na posição vertical), o que diz ser incompatível com a veiculada hipótese de ter sido arrastado pelo tapete de abastecimento de resíduos e bem assim de ter ocorrido uma perda de consciência.
Ora, não parece de todo impossível que na eventualidade de o sinistrado ter sido arrastado pelo/no tapete pudesse ter sido encontrado na posição em que o foi – com a cabeça para cima e membros inferiores para baixo, e com as costas encostadas à zona de saída da máquina – desde logo se tivesse sido levado pelo tapete na posição de deitado, com os pés para a frente/a cabeça para trás, tendo em conta o sentido em que rodava o tapete.
Esta hipótese não se afigura inconcebível nem sequer mais exuberante do que aquela propugnada pela recorrente, antes igualmente plausível face a critérios de idêntica racionalidade.

E, ademais e repisando, inexiste qualquer indício, sequer, de prova, do que poderia ter levado o sinistrado a, consciente e propositadamente, ascender a zona da máquina que lhe permitisse, de forma querida ou acidental, introduzir-se no interior da máquina.

É certo que o recorrido prestou depoimento de parte e nada esclareceu, o que poderia propender a dar credibilidade à versão dos factos reclamada pela recorrente pois, tendo conhecimento dos factos, não os quis esclarecer por, a serem dados como provados, poderem produzir um efeito jurídico que lhe era desfavorável; sucede que, como consignou a Mm.ª Juiz a quo, o depoente/recorrido afirmou não ter memória do que aconteceu, o que, tendo até em consideração tratar-se de factos especialmente traumáticos, se é hipótese que o Tribunal não pode asseverar como sendo verdadeira, também não foi de modo algum infirmada, apresentando-se como verosímil.

Assim, mesmo não sendo exigível que a convicção do Julgador sobre a validade dos factos em discussão equivalha a uma certeza absoluta, impossível ou pelo menos muito raramente atingível pelo conhecimento humano (como actualmente se defende, “operará o standard da probabilidade lógica prevalecente desde que seja ultrapassado o limite mínimo de probabilidade”[9]), não podemos considerar, pois, que a hipótese de facto ínsita à redacção da al p) dos factos provados sugerida pela recorrente deve preferir-se - e considerar-se como verdadeira – face às demais congeminadas como possíveis pelo Tribunal recorrido, v.g. o acesso, deliberado ou inadvertido, pela zona dos tapetes.

Mantém-se assim a matéria de facto tal como decidida pelo Tribunal recorrido.

- Do erro na interpretação e aplicação do direito aos factos alegadamente cometido pelo Tribunal recorrido:

Pretende a recorrente que o Tribunal recorrido errou ao julgar improcedente a (excepção peremptória de) descaracterização do acidente, violando o disposto no art. 14.º da Lei 98/2009, de 04.9 (LAT).

O artigo 14.º da LAT tem a seguinte redacção:

“Descaracterização do acidente
1 - O empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que:
a) For dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu acto ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei;
b) Provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado;
c) Resultar da privação permanente ou acidental do uso da razão do sinistrado, nos termos do Código Civil, salvo se tal privação derivar da própria prestação do trabalho, for independente da vontade do sinistrado ou se o empregador ou o seu representante, conhecendo o estado do sinistrado, consentir na prestação.
2 - Para efeitos do disposto na alínea a) do número anterior, considera-se que existe causa justificativa da violação das condições de segurança se o acidente de trabalho resultar de incumprimento de norma legal ou estabelecida pelo empregador da qual o trabalhador, face ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento ou, tendo-o, lhe fosse manifestamente difícil entendê-la.
3 - Entende-se por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão.”

Na sentença recorrida, e especificamente quanto a esta questão, sustentou-se:
“Tal como se deixou expresso, entre outros, no acórdão da do Tribunal da Relação de Guimarães de 12.02.2015 [Proc. nº 679/11.8TTVNF.P1.G1, disponível in www.dgsi.pt], na segunda parte da al. a) do nº 1 do artº 14º o que está em causa é a rebelião do trabalhador a ordens do empregador, ou desobediência à lei, estando a descaracterização dependente da verificação cumulativa dos seguintes requisitos – que ao responsável, de acordo com o ónus de repartição da prova, cabe demonstrar [cfr. artº 342º, nº 2 do CC]: ---
- Existência de específicas condições de segurança, estabelecidas pelo empregador ou pela lei; ---
- Violação dessas condições, por acto ou omissão; ---
- Inexistência de causa justificativa; ---
- Nexo causal entre a violação da regra e o acidente. ---
Importa, acrescidamente, dizer que a violação pressuposta tem que ser consciente e, por conseguinte, culposa – sem, contudo, expressar vontade intencional ou deliberada em produzir o sinistro, hipótese essa contemplada, como se viu, na primeira parte da alínea vinda de analisar -, não cabendo, porém, no âmbito de aplicação da norma, tal como se deixou também expresso no citado aresto, as situações emergentes de culpa leve, como sejam a imperícia, a distracção, o esquecimento ou qualquer acto involuntário. Tem que estar em causa culpa grave, assente em estado de consciência acerca da violação cometida e dos riscos a isso associados, sem que a situação seja, por conseguinte, decorrente de meros descuidos, erros e imprudências tão inerentes ao ser humano como à normalidade do trabalho por ele executado. A não entender-se, aliás, dessa forma, colocar-se-ia o trabalhador em situação particularmente precária do ponto de vista da sua segurança infortunística. ---
Aquilo que se deixa exposto, aplica-se, mutatis mutandis, à causa de descaracterização prevista pela al. b) do nº 1 do artº 14º, com a particularidade de não estar já em causa situação violação de regras de segurança pelo sinistrado tipificável como consciente, mas resultante de mera negligência. Sucede, contudo, que, também no caso prevenido na disposição normativa que, agora analisamos, aquilo que aí está em causa não é uma negligência qualquer. Esta tem que ser grosseira, definindo-a a própria lei, no nº 3, como o comportamento temerário em alto e relevante grau, com exclusão dos actos ou omissões resultantes da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão. ---
Como se deixou expresso no acórdão da Relação de Guimarães de 21.04.2022, proferido no Proc. nº 408/19...., deste Juízo do Trabalho – e de que, segundo se julga, não terá sido, ainda, publicado -, o artº 14º da LTA “(…) pretende desonerar o responsável relativamente a situações cujo risco não será adequado atribuir-lhe. Quem beneficia da actividade do trabalhador deve assumir os riscos inerentes a essa mesma actividade, considerando que ela é prestada por homens e não por máquinas, sujeitos no seu agir a imprecauções e erros. Os riscos normais, ainda que previsíveis, devem ser suportados pelo empregador, aí se devendo incluir designadamente os decorrentes de alguma imprudência, distracção, por parte do trabalhador.
Se é de aceitar que a responsabilidade do empregador seja “temperada” quando ocorram situações que interferem no risco que socialmente se considera deverem assumir (como os atos dolosos do trabalhador, a culpa grosseira, o desrespeito gratuito de ordens e regras), não parece aceitável desresponsabilizá-lo por uma falta do trabalhador cometida por imprudência por imprecaução, decorrentes de habituação ao risco; já que sabemos serem essas falhas inerentes ao próprio agir dos indivíduos”. ---
Efectuada, na medida do necessário até ao momento, a pertinente análise hermenêutica, é tempo de descer, novamente, ao caso. ---
Pois bem. ---
Conforme resulta do julgamento da matéria de facto, não lograram as rés, entidades seguradora e empregadora, e como era seu ónus – cfr. artº 342º, nº 2 do Cód. Civil -, demonstrar a materialidade que, tendo em vista a exclusão da responsabilidade com fundamento na previsão do artº 14º da NLAT, alegaram, muito, em particular, que o autor haja dolosamente provocado o sinistro – com o propósito, segundo alegação da segunda ré, de pôr termo à sua vida – nem, tampouco – agora, segundo a alegação de ambas -, que se haja introduzido, por determinação própria e sem causa justificativa, na zona de compactação da máquina, sabendo que os mecanismos aí existentes se encontravam em funcionamento, bem como dos riscos a isso associados e de que, por essa via, estava a violar as regras de segurança para que foi instruído pela segunda ré, em comportamento prosseguido de forma deliberada e consciente. --
Na verdade, a única materialidade que, sendo concernente à dinâmica do sinistro ocorrido, logrou demonstrar-se é que, estando o autor, na data dos factos, e como acima se disse já, encarregue de operar uma máquina industrial existente nas instalações da segunda ré, mormente uma prensa enfardadeira de resíduos, o seu corpo, a dado momento, passou a apresentar-se no interior do canal de alimentação/tremonha do equipamento, vindo os seus membros inferiores a ser colhidos pelo movimento das lâminas de corte do mecanismo de compactação, em resultado do que sofreu as lesões traumáticas acima mencionadas. ---
De tudo se conclui não ser de descaracterizar o acidente de trabalho de que o autor foi vítima, assistindo-lhe, por conseguinte, o direito a reparação nos termos previstos pela NLAT, pela qual é, desde logo, responsável a ré entidade seguradora, para a qual, na data do considerado evento, se encontrava, tal como demonstrado, transferido, ao abrigo de contrato de seguro celebrado com a ré empregadora, o correspondente risco, em correspondência com a medida da retribuição por aquele auferida. ---”

Concorda-se.

Em primeiro lugar, porque da matéria de facto provada não constam factos donde se possa concluir que o sinistrado teve uma actuação desrespeitadora de regras de segurança impostas pela entidade patronal ou pela lei.
A procedência do recurso dependia, nesta parte, do sucesso – que não ocorreu - da impugnação da matéria de facto, sendo manifestamente insuficientes os factos provados, e nomeadamente sob a al. o) – o autor estava encarregue de operar a máquina em questão junto aos respectivos painel de controlo e janela de inspecção - para que possa assacar-se ao sinistrado qualquer violação de ordens ou de normas legais.
Não se sabe, em boa verdade, como deflagrou o acidente/a sua causa imediata, desconhecendo-se outrossim a sua dinâmica.

Ora, como se sintetizou em Ac. RP de 24.09.2020[10], “IV - Para que o acidente de trabalho seja descaracterizado nos termos do artº 14º, n.º 1, al. a), da LAT/2009, é necessária a verificação dos seguintes requisitos: (a) existência de condições de segurança estabelecidas pela entidade patronal ou previstas na lei; (b) violação, por ação ou por omissão, dessas condições, por parte da vítima; (c) que a atuação desta seja voluntária e sem causa justificativa; (d) que exista um nexo de causalidade adequada, na sua formulação positiva entre essa violação e o acidente, nexo de causalidade esse que não se refere ao facto e ao dano isoladamente considerados, mas ao processo factual que, em concreto, conduziu ao acidente.”

E mesmo que se admitisse que o sinistrado actuou com alguma falta de cuidado ou foi menos diligente – mas o que não concebemos no caso sub-júdice, pois não podendo valer-nos de qualquer presunção, nem se tratando de afirmar qualquer posição de princípio (do tipo, se o acidente ocorreu, é porque o trabalhador foi negligente…), desconhecemos quer a razão de acontecer quer a dinâmica do acidente - certo é que o legislador consagrou que, para que provoque a descaracterização do acidente (e para além deste ter de resultar exclusivamente desse comportamento negligente) há-de tratar-se de negligência grosseira.
A negligência grosseira pressupõe uma gravidade acentuada, senão mesmo excepcional.
Como escreveu Carlos Alegre em anotação ao preceito correspondente na anterior LAT ao supra citado art. 14.º/1 b) (art. 7.º, n.º 1, al. b), da Lei 100/97) “Ao qualificar a negligência de grosseira, o legislador está a afastar implicitamente a simples imprudência, inconsideração, irreflexão, impulso leviano que não considera os prós e os contras.”[11]
Como também já se escreveu em douto acórdão do STJ, e valendo-nos também das palavras do respectivo sumário: “3. A habitualidade ao perigo e o excesso de confiança na experiência profissional podem determinar, da parte dos trabalhadores, um aligeiramento das condições de segurança e levar à prática de atos imprudentes no decurso da execução de certos trabalhos, que não integram o conceito de negligência grosseira.” – Ac. de 11-5-2017, Proc.1205/10.1TTLSB.L1.S1, Chambel Mourisco, www.dgsi.pt.
Na mesma linha de argumentação já havia o mesmo Tribunal entendido, e também na síntese do respectivo sumário, “III - Não é passível de um indesculpável reparo, nem de uma insustentável gratuitidade, a conduta irreflectida e precipitada de um manobrador que, não obstante saber que em caso de soltura do cabo de aço da máquina em que operava podia pará-la imediatamente antes de providenciar pela sua reparação (bastando-lhe pressionar um dos botões vermelhos situados no painel de comando onde desenvolvia a sua actividade), e porque trabalhava com a máquina há já algum tempo, resolveu recolocar o cabo de aço dentro da roldana avançando para cima do corpo da máquina com a mesma em funcionamento e veio a desequilibrar-se, entalando o pé nas correntes em funcionamento.
IV - Excluem a negligência grosseira as omissões resultantes da habituação ao perigo do trabalho executado ou da rotina de procedimentos bem sucedidos, que induzem à confiança na experiência profissional.”[12]
Deste entendimento nos dá nota também Mariana Gonçalves de Lemos na sua dissertação de mestrado, onde, a pág. 79, escreve: «Ficam, também, de fora os casos em que o acidente se ficou a dever a um comportamento temerário resultante da habitualidade a perigo do trabalho, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão. Com esta exclusão “pretende-se proteger o trabalhador até onde os riscos próprios da simples execução do trabalho o justificam, protecção essa que se estende à diminuição progressiva da prudência e previdência normais do trabalhador, a qual provém do contacto habitual e quotidiano com os riscos e perigos da sua actividade, que o levam ao esquecimento mecânico e, por vezes, instantâneo dos cuidados a observar na execução do trabalho”»[13].

Ora, para além de desconhecermos a génese e o iter do acidente, sempre teríamos de cuidar se a actuação do sinistrado, que habitualmente, desde há vários anos, operava com a máquina em causa (v. ponto m) dos factos provados), mesmo que eventualmente negligente não estaria de algum modo «justificada» face aquela habitualidade.

Não temos, assim, razão para censurar a douta decisão recorrida.

IV - DECISÃO

Nestes termos, acordam os juízes que integram a Secção Social deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e confirmar a decisão recorrida.
Custas da apelação a cargo da recorrente.
Notifique.
Guimarães, 27 de Abril de 2023

Francisco Sousa Pereira (relator)
Antero Veiga
Vera Maria Sottomayor


[1] António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2017- 4.ª Ed., pág. 90.
[2] Cf. Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina, 5.ª Ed. Actualizada, pág. 333
[3] Proc. 82/09.0TTPDL.L1-4, Maria João Romba, www.dgsi.pt              
[4]Cf. https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2015/07/painel3_recursos_henriqueantunes.pdf, pág.s 22/23, onde também se lê: “Com a Reforma dos recursos, aquele ónus – que transitou, qua tale, para o Código de Processo Civil vigente - tornou-se mais exigente: não basta a localização dos depoimentos no registo, pela simples indicação do seu início e do seu fim: reclama-se a indicação, precisa, exacta, das passagens da gravação – o mesmo é dizer dos depoimentos – que, no ver do recorrente, inculcam, para os pontos de facto que reputa mal julgados, uma decisão diferente da que foi achada pelo decisor de facto da 1ª instância.”.
[5] António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 4.ª Ed., pág. 159.
[6] Cf. António Santos Abrantes Geraldes, Ob. Citada pág. 160, e, a título de ex. (e para além do já citado), Ac. do STJ de 06.7.2022, Proc. 3683/20.1T8VNG.P1.S1, Mário Belo Morgado, também em www.dgsi.pt.
[7] – Cf. Ac. RE de 15-04-2021, Proc. 570/20.7T8EVR.E1, Moisés Silva, www.dgsi.pt, em cujo
Sumário se lê: (…) ii) os factos instrumentais e os que sejam complemento ou concretização do que as partes tenham alegado têm que resultar da instrução da causa e sobre eles as partes têm que ter tido a possibilidade de se pronunciar e oferecer prova, não podendo o tribunal da Relação apreciá-los se não tiverem sido alegados e se não tiverem sido trazidos à discussão durante a audiência de julgamento nos termos referidos, constituindo, nesta hipótese, questão nova.”
[8] Cf. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, Coimbra Editora, pág. 436.
[9] Luís Filipe Pires de Sousa O standard de prova no processo civil e no processo penal, pág. 13, in https://www.oa.pt/upl/%7B4b6f3e08-f2a4-47f2-950e-82552acc8b74%7D.pdf
[10] Proc. 4015/15.6T8MTS.P1, Jerónimo Freitas, www.dgsi.pt ; no mesmo sentido, também o recente Ac. RE, de 15-12-2022, Proc. 1765/19.1T8EVR.E1, Mário Branco Coelho, www.dgsi.pt    
[11] in Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Regime Jurídico Anotado, 2ª. Ed., Almedina, pág. 63.
[12] Ac. de 22.10.2008, Recurso n.º 935/08 - 4.ª Secção, Sousa Grandão, consultado em cadernotematico_descaracterizacaodeacidentedetrabalho_actualizadoa2018.pdf 
[13] Consultado em https://run.unl.pt/bitstream/10362/6903/1/Lemos_2011.PDF