Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
763/04.4TBCMN-G.G1
Relator: MARIA JOÃO MATOS
Descritores: DESPACHO DE MERO EXPEDIENTE
DESPACHO NO USO DE PODER DISCRICIONÁRIO
INTERPOSIÇÃO DE RECURSO
ALEGAÇÕES
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/05/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECLAMAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- O despacho em crise é recorrível, pois, embora regule o processamento dos autos, não consubstancia despacho de mero expediente, por contender com antagónicas pretensões das partes, tendo decidido no sentido requerido por uma delas, e desatendendo a oposição da outra.

II- O «requerimento [de interposição de recurso] é indeferido quando não contenha ou junte a alegação do recorrente ou quando esta não tenha conclusões.

III- Juntando a recorrente alegação referente ao recurso de uma outra decisão e não tendo sido admitida pelo Tribunal “a quo” a sua substituição, o recurso não pode ser admitido por falta de junção da pertinente alegação.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência (após corridos os vistos legais) os Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, sendo

Relatora - Maria João Marques Pinto de Matos;
1º Adjunto - José Alberto Martins Moreira Dias;
2º Adjunto - António José Saúde Barroca Penha.
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I - RELATÓRIO

1.1. Despacho reclamado

1.1.1. José, residente no lugar …, Caminha, propôs uma acção executiva para pagamento de quantia certa, sob a forma de processo sumário, contra Manuel, residente na Rua …, Caminha, e contra Maria (aqui Reclamante), residente na Rua …, Caminha, com vista a obter deles o pagamento coercivo da quantia de € 96.688,14, acrescida de juros de mora vincendos e despesas, apresentando como título executivo uma sentença judicial condenatória.

1.1.2. Em 05 de Dezembro de 2014, na acção executiva referida antes, foi penhorado o prédio urbano que constitui a casa de morada da co-Executada (Maria), cujo direito de uso e habitação lhe foi concedido pelo co-Executado (Manuel), na acção de divórcio que pôs fim ao casamento celebrado entre ambos.

1.1.3. Em 12 de Janeiro de 2016, e mercê de prévio requerimento nesse sentido da co-Executada (Maria), foi proferido despacho, ordenando a notificação à «agente de execução que deve fazer referência, no auto de penhora, ao direito da executada, caracterizando-o com base na sentença que o atribuiu», o que foi por ela cumprido, por averbamento de 23 de Março de 2016, completado em 12 de Abril de 2016.

1.1.4. Em 6 de Junho de 2016, a Agente de Execução determinou a venda do imóvel penhorado mediante propostas em carta fechada; em 29 de Junho de 2016 foi proferido despacho, designando para a abertura «de propostas» o «dia 11 de Outubro, às 13.45 horas»; e foram posterior e conformemente publicado anúncio e afixado edital, neles se referenciando o imóvel a vender tal como consta do auto de penhora respectivo.

1.1.5. Frustrando-se a venda mediante a apresentação de propostas em carta fechada, em 11 de Outubro de 2016 foi proferido despacho, onde, tendo «em conta que não foi apresentada qualquer proposta», se ordenou que se procedesse «à venda do imóvel através de negociação particular, nomeando-se encarregada de venda a agente de execução Ana».

1.1.6. Publicado pela Agente de Execução anúncio a publicitar a venda, reproduzindo o teor dos anteriores, veio o co-Executado (Manuel) requerer que se ordenasse à «Senhora Agente de Execução que corrija o Anúncio em conformidade com a lei», nomeadamente suprimindo a referência a quaisquer ónus não registados, por já ter sido destinatária de despacho judicial anterior, esclarecendo os termos da devida publicação do dito anúncio; e respondeu a co-Executada (Maria), opondo-se, por pretender que constasse do anúncio que «A REQUERENTE É TITULAR DO DIREITO DE UTILIZAÇÃO PROVISÓRIA DA CASA DE MORADA DA FAMÍLIA QUE INCIDE SOBRE O PRÉDIO DOS AUTOS, COM TODOS OS DEVIDOS E LEGAIS EFEITOS».

1.1.7. Em 09 de Outubro de 2017, foi proferido despacho (Referência 41540698), lendo-se nomeadamente no mesmo:

«Antes de mais, notifique a agente de execução para, no prazo de cinco dias, publicar um novo anúncio de venda, sublinhando que o anterior fica sem efeito, utilizando uma linguagem escorreita e compreensível e sem dígitos estranhos e inconsequentes com a lógica do texto, devendo ainda fazer menção aos ónus que se encontram registados na respectiva Conservatória na ficha do imóvel em causa e só a estes.
Notifique».

1.1.8 Notificada desta decisão, e não se conformando com ela, em 30 de Outubro de 2017 veio a co-Executada (Maria) interpor recurso, dito como de apelação, «e de harmonia com o conjugadamente disposto nos artºs. 852º e 853º, ambos do Cód. de Proc. Civil».

1.1.9 Em 02 de Novembro de 2017, a Secretaria abriu conclusão com informação, lendo-se na mesma que, «não se compreende a junção aos presentes autos, por parte da executada Maria, das alegações de recurso, que parece ser as mesmas do processo apenso “D”, ainda não decidido, dada a reclamação - apenso “E” -, que em 11/10/2017, foi remetido ao Tribunal da Relação de Guimarães, pelo que, para os fins tido por convenientes, faço a presente informação»; e, na mesma data, foi proferido despacho (Referência 41695007), lendo-se nomeadamente no mesmo:
«Notifique a executada para, em 5 dias, esclarecer a junção das alegações em causa aos presentes autos não se terá ficado a dever a lapso».

1.1.10. Em 10 de Novembro de 2017, veio a co-Executada (Maria) esclarecer que «o recurso de apelação agora apresentado tem como objecto douto despacho exarado a fls. … (referência 41540698), atento o qual:

“Antes de mais, notifique a agente de execução para, no prazo de cinco dias, publicar um novo anúncio de venda, sublinhando que o anterior fica sem efeito, utilizando uma linguagem escorreita e compreensível e sem dígitos estranhos e inconsequentes com a lógica do texto, devendo ainda fazer menção aos ónus que se encontram registados na respectiva Conservatória na ficha do imóvel em causa e só a estes.
Notifique” (transcrevemos com a devida vénia)».

1.1.11. Em 30 de Novembro de 2017, foi proferido despacho pelo Tribunal de 1ª Instância (Referência 41797567), que indeferiu o recurso apresentado, lendo-se nomeadamente no mesmo:

«(…)
O despacho recorrido visou esclarecer uma dúvida suscitada no processo, não retirou, nem atribuiu direitos (do despacho recorrido: "uma vez que não cumpre antecipar eventuais decisões que podem vir a merecer pronúncia de mérito em sede própria"), tratando-se de um despacho de mero expediente e, como tal, insusceptível de recurso (cfr. artigo 630°, nº 1, do Código de Processo Civil).
Em face do exposto, e nos termos do disposto no artigo 641°, n° 2, alínea a), do Código de Processo Civil, indefiro o requerimento de interposição de recurso apresentado pela executada Maria.
Custas do incidente pela executada.
(…)»

1.1.12. A co-Executada (Maria) reclamou da não admissão do recurso, pedindo que o mesmo fosse admitido.
Alegou para o efeito, e em síntese, ter efectivamente recorrido do despacho com referência nº 41540698 (conforme já esclarecera em 10 de Novembro de 2017), e não de prévio despacho, objecto de citação no despacho com referência 41797567, que lhe indeferiu o seu recurso.

1.1.13. Foi proferida decisão singular, indeferindo a reclamação da co-Executada (Maria).
Ponderou-se na mesma, em síntese: não consubstanciar a decisão recorrida um despacho de mero expediente, nomeadamente por ter interferido no conflito de interesses entre o co-Executado e a co-Executada (concreto conteúdo do anúncio a publicitar a venda do imóvel penhorado nos autos), deferindo o requerimento apresentado por aquele, e a que esta se tinha oposto (nomeadamente, determinando que o dito anúncio não fizesse menção a quaisquer ónus não registados); não ter sido proferido no uso de um poder discricionário, nomeadamente porque, uma vez submetido o requerimento do co-Executado à sua apreciação, o Tribunal a quo tinha que se pronunciar sobre ele, e fazê-lo nos termos da lei; mas não terem sido oportunamente apresentadas as obrigatórias alegações de recurso.
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1.2. Reclamação para a Conferência (fundamentos)

Foi precisamente inconformada com esta decisão que a co-Executada (Maria) veio reclamar para a Conferência, pedindo que a sua reclamação fosse julgada procedente, e se admitisse o recurso interposto.

Alegou para o efeito, e em síntese:

1 - Não poderem existir quaisquer dúvidas que o despacho por si recorrido (a que depois se reportaria a sua reclamação, pela não admissão do dito recurso) foi o proferido pelo Tribunal a quo a 30 de Outubro de 2017, com a referência 41540698, conforme desde logo resultaria de uma mais completa consideração dos autos principais, face à feita na decisão singular da reclamação em apreço.

2 - Não tendo sido admitida a junção das alegações de recurso apresentadas em momento posterior, em substituição de outras apresentadas antes, dever-se-ia então manter o requerimento de recurso destas outras alegações e as mesmas, rectificando-se porém em ambos a menção ao objecto do recurso (desconsiderando-se o despacho efectivamente aí mencionado - com referência 41004369 -, por forma a que tais peças se passassem a reportar ao despacho aqui pretendido recorrer - com referência 41540698).

3 - Constar das iniciais alegações de recurso (expressamente apresentadas como reportando-se ao despacho recorrido com referência 41004369) matéria com relevância para apreciação do recurso que teve por objecto o despacho com referência 41540698 (e cujo indeferimento deu lugar a esta reclamação).
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1.3. Resposta

Não foi apresentada qualquer resposta.
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II - VALIDADE E REGULARIDADE DA INSTÂNCIA

O tribunal é o competente em razão da matéria, da nacionalidade e da hierarquia.
O processo é o próprio, e não enferma de outras nulidades que o invalidem na sua totalidade.
As partes dispõem de personalidade e de capacidade judiciárias, são legítimas e mostram-se devidamente patrocinadas.
Inexistem outras excepções dilatórias, nulidades parciais ou quaisquer questões prévias ou incidentais que obstem ao conhecimento de mérito e de que cumpra conhecer.
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III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A factualidade relevante para a decisão da reclamação apresentada para a conferência coincide com a descrição feita em «I - RELATÓRIO» da mesma (que reproduz, de forma fiel, o processamento dos autos, nomeadamente dos principais, consultados expressamente para o efeito), que aqui se dá por integralmente reproduzida.
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IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

A reclamação apresentada pela co-Executada (Maria) (quer a inicial, quer a posterior para a Conferência) apenas pode ter como fundamento: a recorribilidade da decisão contra à qual reage, face aos motivos em que o Tribunal de 1ª Instância radicou a não admissão do seu recurso; ou o cumprimento do ónus de acompanhar o requerimento de interposição de recurso com as respectivas alegações, face ao motivo em que, na prévia e respectiva decisão singular, esta Relatora radicou o indeferimento da sua reclamação inicial.

Assim, esta Conferência apreciará - simultânea e complementarmente - ambos os fundamentos referidos, já que a Reclamante se limitou (quer na sua reclamação inicial, quer na posteriormente apresentada para a Conferência) a reiterar qual a correcta identificação do despacho recorrido, e por que razão se deveria considerar oportunamente apresentadas as respectivas alegações.
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4.1. Despacho de mero expediente e no uso de poder discricionário

4.1.1. Lê-se no art. 630º, nº 1 do C.P.C. (expressamente citado pelo Tribunal de 1ª Instância, para fundamentar a não admissão do recurso interposto, no único despacho que aqui se pode considerar como justificando a presente reclamação) que não «admitem recurso os despachos de mero expediente nem os proferidos no uso legal de um poder discricionário».

Entende-se por «despacho de mero expediente» os destinados «a prover ao andamento regular do processo, sem interferir no conflito de interesses entre as partes» (art. 152º, nº 4, I parte, do C.P.C.), isto é, não são «susceptíveis de ofender direitos processuais das partes ou de terceiros», por se tratar de «despachos banais, que não põem em causa interesses das partes, dignos de protecção» (Alberto dos Reis, Código Processo Civil, Volume V, Coimbra Editora, Limitada, p. 249-250).
Será, grosso modo, despacho relativo à mera tramitação do processo, «no corrente entendimento jurisprudencial, aquele que, proferido pelo juiz, não decide qualquer questão de forma ou de fundo, e se destina principalmente a regular o andamento do processo»: tem «uma finalidade - prover ao andamento regular do processo - e um pressuposto - sem interferir no conflito de interesses entre as partes» (Ac. da RP, de 21.01.2014, António Gama, Processo nº 12/12.1TXPRT-J.P1).

Com efeito, «alguns despachos incidem somente sobre aspectos burocráticos do processo e da sua tramitação, e por isso, não possuem um conteúdo característico do exercício da função jurisdicional, nem afectam a posição processual das partes ou de terceiros» (Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 1997, LEX, p. 213-4).

«Assim, o despacho de mero expediente integra formalmente uma ordem ou determinação com o propósito de dar cumprimento à lei, fazer respeitar o ordenamento ou expediente processual», mas sem que «o juiz, seu autor, jamais se» proponha «dizer ou definir o direito. Semelhante actividade, a despeito da qualidade em que o juiz está investido, não constitui acto jurisdicional, mas somente um acto judicial, um acto que obriga.
Será ainda o caso dos despachos respeitantes às relações internas, entre o juiz e os funcionários quando, v.g., se ordenar que os autos sejam submetidos a despacho», em que «não são afectados os interesses ou deveres das partes.
Trata-se antes de acto não controverso e, consequentemente, insusceptível de melhoramento por via de reclamação ou de reapreciação mediante recurso» (Ac, da RE, de 18.03.2009, Manuel Nabais, Processo nº 679/02.9PBBJA-E.E1, com bold apócrifo).
Acresce que, «sem possibilidade de ofenderem direitos processuais das partes ou de terceiros [os despachos de mero expediente], não envolvendo qualquer interpretação da lei, (…) não podem adquirir o valor de caso julgado, pois para haver caso julgado formal é indispensável a existência de uma decisão, de um julgamento» (Ac. do STJ, de 17.12.2009, Raúl Borges, Processo nº 09P0612, com bold apócrifo).

Precisa-se, porém, que sendo o processo um encadeamento de actos com vista à consecução de um determinado objectivo - a obtenção de uma decisão judicial -, na determinação da natureza de mero expediente, o despacho sob análise deverá ser apreciado, não apenas de forma isolada, mas à luz da intencional actividade processual desenvolvida.

Precisa-se, ainda, que os despachos de mero expediente só serão irrecorríveis se forem proferidos de forma conforme com a lei (neste sentido, Luís Filipe Brites Lameiras, Notas Práticas ao Regime dos Recursos em Processo Civil, 2ª edição, Almedina, p. 77, e Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª edição, p. 122. No mesmo sentido, Ac. da RP, de 21.01.2014, António Gama, Processo nº 12/12.1TXPRT-J.P1, onde se lê que o «despacho que a pretexto de dar andamento ao processo, o faz de forma não regular, não preenche tal conceito; neste caso, o despacho não é de mero expediente»). «Com efeito, nesta vertente, o juiz não actua de forma livre mas no cumprimento de uma actuação vinculada que se traduz na obrigação de ter de dar andamento ao processo no estrito cumprimento das “regras” legais pertinentes aplicáveis, e que no seu todo compõem o objecto dos vários códigos processuais» (Ac. da RG, de 14.11.2003, Lázaro Faria, Processo nº 1760/03-2).

Já por «despachos proferidos no uso legal de um poder discricionário» entendem-se aqueles que «que decidem matérias confiadas ao prudente arbítrio do julgador» (art. 152º, nº 4, II parte, do C.P.C.).

São, grosso modo, decisões de livre escolha - «livre determinação quer dizer determinação que não está sujeita a limitações ou qualquer condicionalismo» (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume V, Coimbra Editora, Limitada, p. 252); mas fundadas porém em circunstancialismo normativamente delimitado, entendendo-se como tal situações em que, existindo uma ou mais alternativas de opção, o juiz possa escolher uma delas em seu prudente arbítrio.

Com efeito, compreende-se que, neste circunstancialismo, não faça sentido que se aprecie em nova instância o prudente arbítrio do julgador que respeitou a regulamentação nele acolhida.

Serão, assim, «actos praticados no uso de poder discricionário aqueles relativamente aos quais a lei atribui à entidade competente a livre escolha quer da oportunidade da sua prática quer da solução a dar a certo caso concreto. É o contrário do que acontece no exercício de poderes vinculados, em que se trata de aplicar a um caso concreto a vontade objectivada na lei, de tal modo que o autor do acto deve pronunciar-se sobre o pedido em determinado prazo e tem de resolver a pretensão no sentido em que lei dispuser» (Jacinto Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, Volume III, Almedina, p. 272-4, com bold apócrifo).

Precisa-se, novamente, que os despachos proferidos no uso legal de um poder discricionário serão recorríveis quando se impugne, não o conteúdo do próprio despacho, mas a legalidade do uso dos poderes discricionários pelo juiz (Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa, 1997, p. 380 e 381, e José Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Volume 3º, Tomo I, Coimbra Editora, p. 23. No mesmo sentido, Ac. da RP, de 14.04.2006, Correia de Paiva, Processo nº 0621399, onde se lê que não «deve, porém, confundir-se poder discricionário, com simples arbitrariedade: é que o uso do poder discricionário é sempre reconhecido em vista à satisfação de determinado fim, que justifica a concessão daquele poder, limita a liberdade que é inerente à discricionariedade de tal modo que a sua falta, no caso concreto, afecta a validade do respectivo acto»).

Por fim, dir-se-á que contende com o mérito do recurso - e não com a sua admissibilidade - a questão de saber se o despacho considerado irrecorrível pelo Tribunal a quo é, ou não, ilegal: a admissibilidade e a procedência do recurso são questões autónomas, distintas e sucessivas, lógica e cronologicamente.
Por outras palavras, em sede de decisão sobre a admissibilidade do recurso (objecto de reclamação) haverá apenas que apreciar e decidir se se verificam os respectivos pressupostos; e só quando se conclua pela admissibilidade do recurso é que então (e só então) se colocará a questão da sua procedência, ou improcedência, competindo nessa altura apreciar e decidir outras e distintas questões de direito.
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4.1.2. Concretizando, e salvo o devido respeito por opinião contrária, verifica-se que o despacho recorrido (coincidindo indiscutivelmente com aquele que a Reclamante reiteradamente identificou como objecto da sua sindicância), sem prejuízo de «prover ao andamento regular do processo», não deixou de «interferir no conflito de interesses entre as partes», como desde logo resulta do facto de ter sido suscitado por um requerimento do co-Executado (Manuel), a que de imediato se opôs a co-Executada (Maria); e o objecto da decisão em causa - concreto conteúdo do anúncio a publicitar a venda do imóvel penhorado nos autos - influi indiscutivelmente com as pretensões das partes, já que a publicitação, ou não publicitação, de um ónus incidente sobre aquele imóvel terá inegáveis consequências ao nível da angariação dos seus potenciais adquirentes.

Com efeito, foi o próprio co-Executado requerente (Manuel) quem desde logo esclareceu que o «referido anúncio [com a menção ao direito de uso e habitação da co-Executada sobre o imóvel penhorado] compromete a venda judicial, objectivamente pode dissuadir os interessados na compra e reduz substancialmente o valor da venda, pois contém elementos desinteressantes e totalmente irrelevantes face a terceiros, uma vez que, como é bom de ver, a executada tem de entregar o bem a quem comprar o imóvel»; e que, ao agir de outro modo, «a Senhora Agente de execução está assim a beneficiar a executada em detrimento do executado, o que é ilegal e inaceitável».

Acresce que, na sua resposta, a co-Executada opoente (Maria) defendeu carecer o requerimento a que respondia «de qualquer fundamento sério de facto e de direito», nomeadamente face ao «teor do douto despacho exarado a fls…. (referência 38552952) há muito transitado em julgado», isto é, ao que determinara que a menção daquele seu direito constasse do auto de penhora.
É, pois, manifesto que o despacho em causa (com referência 41540698), regulando o processamento dos autos, não consubstancia porém despacho de mero expediente, por efectivamente contender com antagónicas pretensões das partes, tendo decidido no sentido requerido por uma delas, e desatendendo a oposição da outra (que, por isso, ficou vencida); e, do mesmo passo, falecendo a causa invocada pelo Tribunal de 1ª instância para a sua irrecorribilidade.

Adianta-se, desde já, que o dito despacho também não consubstancia qualquer despacho discricionário, uma vez que, submetido o requerimento do co-Executado (Manuel) à apreciação do Tribunal de 1ª instância, o mesmo tinha necessariamente que se pronunciar sobre ele; e fazê-lo nos termos da vinculante lei, embora segundo a interpretação que dela fizesse.

Pareceria, assim, que este Tribunal da Relação de Guimarães deveria decidir pela procedência da reclamação apresentada.
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4.2. Interposição de recurso - Apresentação imediata de alegações

4.2.1. Lê-se no art. 637º do C.P.C. que os «recursos interpõem-se por meio de requerimento dirigido ao tribunal que proferiu a decisão recorrida, no qual se indica a espécie, o efeito e o modo de subida do recurso interposto» (nº 1), contendo obrigatoriamente o dito requerimento «a alegação do recorrente, em cujas conclusões deve ser indicado o fundamento específico da recorribilidade» (nº 2).
Compreende-se, por isso, que se reafirme e explicite no art. 639º, nº 1 do C.P.C. que o «recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão».
«A actual norma vem clarificar uma dúvida que antes se suscitava, determinando de modo taxativo que fica vedada a possibilidade de existir uma cisão temporal entre a apresentação do requerimento e as alegações, na medida em que as alegações devem estar contidas obrigatoriamente no requerimento de interposição de recurso», o que «representa uma aproximação ao regime dos recursos que já vigorava em processo penal, laboral e administrativo».

Advêm, deste modo, «maiores ganhos (…) da firmeza e da seriedade na iniciativa de interposição de recurso, já que, ficando o recorrente obrigado a apresentar logo as alegações, sofrem forte abalo impulsos recursórios injustificados a que apenas esteja subjacente a não aceitação da decisão ou o objectivo de protelar a data do respectivo trânsito em julgado» (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, Julho de 2013, p. 102-3).

Lê-se ainda, no art. 641º, nº 2, al. b), do C.P.C. que o «requerimento [de interposição de recurso] é indeferido quando não contenha ou junte a alegação do recorrente ou quando esta não tenha conclusões».
Por fim, lê-se no nº 5 do art. 641º citado que a «decisão que admita o recurso, fixe a sua espécie e determine o efeito que lhe compete não vincula o tribunal superior».
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4.2.2. Concretizando, e tal como a própria Reclamante (Maria) desde logo o reconheceu nos autos, ao pretender recorrer do despacho referido supra (referência 41540698), fê-lo porém juntando alegações que não lhe diziam respeito, mas sim a outro despacho (referência 41004369, prévio ao aqui impugnado), objecto igualmente do seu recurso (também ele não admitido, o que originou subsequente reclamação, que consubstancia o Apenso nº 763/04.4TBCMN-E.G1, já definitivamente decidida por este Tribunal da Relação de Guimarães).

Com efeito: lê-se expressamente no intróito das ditas alegações que vem «o presente recurso de apelação interposto do douto despacho exarado a fls. …(referência 41004369)», quando o aqui em causa é referência nº 41540698; o despacho com referência 41004369 é depois integralmente reproduzido nas ditas alegações, de forma absolutamente desconforme com o aqui recorrido (referência nº 41540698); e parte substancial dos fundamentos do dito recurso também não encontra qualquer justificação no despacho aqui em causa (v.g. a alegada violação do princípio do contraditório, quando é certo que, previamente à prolação da decisão recorrida a co-Executada recorrente se pronunciou sobre a antagónica pretensão do co-Executado requerente).

Compreende-se, por isso, que apercebendo-se depois da omissão em que incorrera, a co-Executada recorrente (Maria) tenha vindo pedir que fosse «ADMITIDA A JUNÇÃO AOS AUTOS DO REQUERIMENTO DE MOTIVAÇÃO DE RECURSO QUE, POR LAPSO, NÃO FORAM ENVIADOS»; ou, «CASO SE ENTENDA NÃO SER DE ADMITIR A JUNÇÃO DE TAIS PEÇAS PROCESSUAIS», fosse «MANTIDO O REQUERIMENTO E MOTIVAÇÃO APRESENTADOS COM O ESCLARECIMENTO PRESTADO, RECTIFICANDO-SE EM CONFORMIDADE O TEOR DOS MESMOS», por forma a que passassem a «FAZER REFERÊNCIA AO DOUTO DESPACHO DE FLS…(REFERÊNCIA 41540698)», e não ao que efectivamente mencionavam, referência 41004369.

Ora, e independentemente daquele que fosse o entendimento deste Tribunal da Relação, certo é que sobre a sua pretensão recaiu despacho do Tribunal de 1ª instância, indeferindo-a, nomeadamente considerando não se estar «perante um lapso rectificável», e porque «as novas alegações são apresentadas, agora, extemporaneamente».

Logo, o requerimento de interposição de recurso indiscutivelmente em causa nestes autos (tendo por objecto o despacho referência 41540698), da co-Executada (Maria), não foi efectivamente acompanhado das devidas e pertinentes alegações (já que as então apresentadas se reportavam ao recurso que teve por objecto o despacho referência 41004369), como ela própria reconheceu, sendo que as devidas (e depois por ela pretendidas apresentar, face precisamente ao lapso por si) não foram admitidas, por extemporâneas.
Falece, assim, uma das condições legais de admissibilidade do seu recurso (a imperativa simultânea junção de alegações), pelo que - e por este fundamento - não pode ser provida a respectiva reclamação.
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Importa, pois, decidir em conformidade, pela improcedência da reclamação para a Conferência apresentada.
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V – DECISÃO

Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar totalmente improcedente a reclamação para a Conferência apresentada por Maria (co-Executada) e, em consequência, em

· confirmar o despacho de indeferimento do recurso que interpôs, da decisão do Tribunal de 1ª Instância (despacho com referência 41540698), determinando que o anúncio de venda do imóvel penhorado na acção executiva que constitui os autos principais fosse publicado «utilizando uma linguagem escorreita e compreensível e sem dígitos estranhos e inconsequentes com a lógica do texto, devendo ainda fazer menção aos ónus que se encontram registados na respectiva Conservatória na ficha do imóvel em causa e só a estes».
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Custas pela Reclamante (art. 527º, nº 1 do C.P.C.).
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Notifique.
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Guimarães, 05 de Abril de 2018


Maria João Marques Pinto de Matos
José Alberto Martins Moreira Dias
António José Saúde Barroca Penha