Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4801/19.8T8GMR.G1
Relator: MARGARIDA ALMEIDA FERNANDES
Descritores: UNIÃO DE FACTO
CONTRATO DE COABITAÇÃO
COMPROPRIEDADE
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/15/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- A união de facto é uma realidade materialmente distinta do casamento pelo que, finda a mesma, quanto aos efeitos patrimoniais, há que recorrer ao direito comum (obrigacional ou real).
II- Caso os conviventes tenham celebrado um denominado “contrato de coabitação”, nos termos do qual designadamente tenham acordado acerca da propriedade dos bens resultantes da comunhão de vida e acerca das contribuições patrimoniais efetuadas, em caso de cessação da união de facto rege o referido contrato.
III- Na ausência deste contrato, finda a união de facto, a jurisprudência tem distinguido as seguintes situações:
a) Eventual compropriedade sobre determinados bens na sequência da intervenção de ambos no momento da aquisição podendo os mesmos ser partilhados nos termos gerais;
b) As despesas normais e correntes próprias da coabitação suportadas por um convivente ou por ambos, bem como o trabalho doméstico desenvolvido por um deles, não são restituíveis; e
c) As despesas estranhas aos encargos normais da vida em comum, suportadas por ambos no pressuposto da manutenção da união de facto, mas cuja propriedade ficou apenas no nome de um, deve o convivente enriquecido no seu património ser condenado a restituir ao outro o seu contributo.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório

M. C., residente na Urbanização …, Lote .., ..., Fafe, instaurou acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra A. G., residente na Rua do ..., nº …, ..., Fafe, pedindo:

- a declaração que autora e réu viveram em economia comum desde 2000 até 2017, trabalhando os dois para construir património comum;
- a declaração que é comum todo o património, designadamente imóveis, rendas, poupanças adquiridas desde 2000 até 2017;
- a condenação do réu a reconhecer a comunhão desses valores e a entrega de metade à autora.

Alega para o efeito que durante o referido lapso de tempo em que manteve com o réu união de facto construíram um “património comum” composto de imóveis, móveis (máquinas agrícolas, designadamente tractores e alfaias) e contas bancárias (Banco … e Banco ...). A aquisição deste património resultou também da poupança proporcionada pelo seu trabalho, não só na lida da casa, como na criação de animais para venda.
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O réu contestou impugnando a matéria de facto alegada pela autora. Negou qualquer contributo desta para a aquisição de património durante a união de facto, assim como para a generalidade das despesas domésticas e também com o tratamento dos seus problemas de saúde, todas suportadas por si.
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Por despacho de 08/12/2019 foi a autora convidada a identificar o alegado património comum e ainda indicar o valor pecuniário dos rendimentos proporcionados pelo trabalho doméstico e pela venda de animais realizados por ela, bem como o valor pecuniário das poupanças com que esta contribuiu para a aquisição dos aludidos imóveis, móveis e constituição de contas bancárias.
Esta veio em 20/12/2019 identificar os imóveis, os móveis cuja aquisição contou com o seu contributo, assim como a conta bancária cujo pecúlio em depósito é comum. Reiterou que cuidava da lida da casa, do espaço envolvente e criava animais (canídeos e suínos) que eram comercializados pelo casal, o que correspondia a um rendimento mensal de € 2.500,00. Juntou documentos.
O réu pronunciou-se nos mesmos termos que na contestação.
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Foi realizada audiência prévia, onde foi fixou o valor da acção, identificado o objecto do litígio, enunciados os temas de prova, admitidos os requerimentos probatórios e designada para audiência final.
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Procedeu-se a audiência de julgamento, após a qual foi proferida sentença, cuja parte decisória, na parte que interessa, reproduzimos:

“Pelo exposto, julgo:
1. Parcialmente procedente o pedido, declarando que Autora e Réu viveram em união de facto, desde 2001 até 2017.
2. Improcedente a parte restante do pedido, de que se absolve o Réu. (…)”.
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Não se conformando com esta sentença veio a autora dela interpor recurso de apelação, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões:

“a) Vem a presente apelação interposta da douta sentença de fls., que julgou parcialmente procedente o pedido, declarando que Autora e Réu viveram em união de facto, desde 2001 até 2017; e improcedente a parte restante do pedido, absolvendo o Réu;
b) Porém, entende a apelante que esta decisão não está correcta quer do ponto de vista dos factos quer do direito, tendo o Tribunal “a quo” incorrido em erro de julgamento, impondo-se assim, a impugnação quanto à matéria de facto e do direito aplicável;
c) A sentença reconheceu a união de facto entre A. e R. desde janeiro de 2001 a fevereiros de 2017, negando o reconhecimento de que as partes viveram com economia doméstica conjunta, para a qual contribuíram ambos com os seus rendimentos como da pensão e dos trabalhos domésticos e da actividade agropecuária.
d) Considerando a matéria de facto que consta da decisão de fls. e supra transcrita, a apelante não aceita a factualidade dada como provada pelo Tribunal “a quo” sob os pontos 2 (quanto à data do inicio da união de facto), 5, 6, 8, 9, 11, 12, 14, 16, 20, 22, 23, 24, 26, 29, 30, da douta sentença, e por outro lado, os factos 6 e 7 dos factos dados como não provados, na douta sentença, pois entende que aqueles factos dados como provados e com o teor deles constante, sempre teriam que ter outro teor, pois a prova foi diferente quanto aos mesmos e quanto aos não provados impunha-se que fossem dados como provados;
e) Na verdade, contrariamente ao decidido pelo Tribunal “a quo”, a apelante ao longos dos 17 anos de vida em comum com o apelado, sempre contribuiu para a economia do casal, pois a limpeza da casa, a preparação das refeições, o cuidar da roupa e ainda os trabalhos na parte rustica do prédio, cultivo e a criação e animais quer para consumo próprio quer para venda, como sucedeu ao longo dos anos, representa um valor monetário significativo, com contributo efetivo da autora e que contrariamente ao aludido na douta sentença, não constitui nenhuma obrigação natural;
f) No que concerne ao facto provado em 2., a união facto não se iniciou em janeiro de 2001, mas antes em setembro de 2000, tendo durado 17 anos e não 16 como se extraiu da decisão. O Tribunal “ a quo” na resposta a este facto teve presente as declarações de parte do réu/apelado. Contudo, esta posição é errada, na medida em que a demais prova produzida, designadamente o depoimento de parte da autora/apelante prestado em 29/09/2020 e gravado no sistema digital áudio, supra transcrito e que aqui se dá por reproduzido e ainda das testemunhas prestado e gravado no mesmo, também supra transcritos e que por brevidade se dão por reproduzidos, e em que todos são inequívocos quanto ao inicio da relação e ao tempo que a mesma durou, neste caso, 17 anos;
g) Com efeito, a consideração da alegação do réu sem qualquer substrato probatório, é errada, tanto mais que a prova produzida aponta em sentido diverso e assim devia ser considerado pelo Tribunal. Pelo que, a união de facto iniciou-se em setembro de 2000 e perdurou até fevereiro de 2017;
h) Quanto ao facto alegado em 5., o aí mencionado, não se mostra totalmente correcto atenta a prova produzida, pois as tarefas e ou actividades desenvolvidas pela autora em prol do casal, foram muito mais do que aquelas que deste ponto 5. constam. Pois as testemunhas de forma clara mencionaram o desenvolvimento das actividades agropecuárias, quer a plantação de hortaliças e outras e ainda a criação de animais como porcos, galinhas e cães;
i) Pelo que, o teor da matéria provada neste ponto devia ser mais extenso mencionando todas estas actividades;
j) Relativamente aos factos constantes dos pontos 6. e 8. (que se mostram interligados, atenta a matéria), ao contrário do aí mencionado, resulta da prova testemunhal produzida que a venda de animais foi feita pelo réu/apelado e que permitiu a obtenção de lucros (ponto 6.). Por outro lado, não foi provado que o dinheiro realizado com aquela venda de animais se destinasse apenas a cobrir as despesas geradas com a alimentação e outros encargos com a criação, mas antes lucros para a economia comum do casal (ponto 8.);
k) Na verdade, a resposta efectuada pelo Tribunal “a quo”, resulta da alegação do réu, mas não tem fundamento em qualquer depoimento testemunhal ou outro qualquer elemento de prova, por si indicado;
l) Relativamente ao facto constante do ponto 9., o mesmo não é correcto na parte em que menciona que o réu/apelado suportava as despesas pessoais da autora, devendo nesta para ser dado como não provado. Pois como melhor resulta do depoimento de parte da autora, que nesta matéria, contradita as declarações de parte do réu, este não pagava as suas despesas pessoais;
m) No que ao facto constante no ponto 11. diz respeito, é evidente que o mesmo é contraditório com o facto constante no ponto 2. dos factos não provados. Pois tendo o Tribunal “a quo”, considerado que não ficou provado que a autora devido à artrite reumatoide de que padecia, tivesse ficado impedida de fazer esforços, cuidar da casa, não fazer as lides de casa, nem limpezas nem refeições, entendemos que, é errado dar como provado que “Por causa da doença, a autora ficou limitada na realização de esforços mais intensos, e em momentos pontuais, impedida de fazer tarefas da lide da casa”.
n) Pelo que, ante a prova feita, a autora sempre executou as tarefas da lide da casa e como tal este facto inserto em 11. atento o inserto no facto 2. Dos não provados, sempre devia merecer uma resposta negativa;
o) Relativamente ao facto inserto em 12., da prova produzida, não é possível dar tal facto como provado, o tribunal (erradamente) fê-lo com base nas declarações de parte do réu, mas a diversa prova testemunhal deu conta de que nunca foi contratada qualquer empregada, que as tarefas de casa sempre foram executadas pela autora;
p) É ainda errado o facto constante no ponto 14., pois o valor aí indicado pelo Tribunal, não tem acolhimento nas declarações de quem quer que fosse, pois, o réu alegou 50/60 euros e a autora 20/30 euros;
q) Ora, o réu tinha o ónus da prova do valor que entregava à autora, contudo, não logrou provar.
r) Pelo que, este ponto devia ter sido dado como não provado, ou no limite, apenas aceite o valor indicado pela autora, por ser esse o valor admitido e não outro;
s) Quanto ao facto inserto no ponto 16. dos factos provados, contrariamente ao decidido, da prova produzida não é possível tal situação. Na verdade, o referido em declarações de parte do réu, foi contraditado pela autora em depoimento de parte, como se infere do supra transcrito e que aqui se dá por reproduzido;
t) Incumbia ao réu a prova do que alegou, mas não apresentou qualquer elemento de prova, limitando-se a declarar. Neste sentido, não podia o tribunal aceitar e dar como provado tal facto quando este está impugnado e foi posto em causa pela autora;
u) A resposta ao facto constante do ponto 20., é errada atenta a prova existente nos autos, mormente a declaração da segurança social junta a fls. 39 dos autos, que refere que a autora ficou reformada em 29/12/2004 e a pensão é de €282,96. Pelo que, a indicação de uma pensão de “cerca de €250,00”, é errada;
v) O facto dado como provado sob o ponto 22., não tem qualquer fundamento probatório, pois o rendimento do réu, não tem qualquer elemento documental a atesta-lo e resultou apenas da mera declaração do reu. Sendo certo que, a questão do rendimento podia e devia ser aferida por documento, o que não sucedeu.
w) Os factos constantes dos pontos 23., 24., 26., 29. e 30., padecem da mesma vicissitude do mencionado quanto ao facto inserto sob o ponto 22., pois o dado como provado é fruto da mera declaração de parte do réu, sem estar estribado em qualquer prova documental, sendo certo, que tais declarações desacompanhadas de qualquer outra prova, não podem merecer crédito.
x) Ante o exposto, as respostas a todos aqueles factos deveriam ser diferentes, o que se propugna.
y) Mais entende o apelante que a factualidade constante supra nos pontos 6. e 7., da matéria de facto não provada, perante a prova produzida e melhor constante dos autos, deveria ter sido dada como provada;
z) Ora, como decorre da prova produzida, o casal criava animais e vendia parte desses animais, e nessa medida, o preço obtido na venda, tem que ser considerado um rendimento para as despesas e poupanças do casal;
aa) Quanto ao inserto no ponto 7., é uma evidencia natural, pois se a autora não realizasse aquelas tarefas quer da lide da casa e das roupas, refeições e ainda actividade agropecuária, sempre teriam que ser contratadas pessoas para esse fim, implicando uma jornada normal de trabalho e que em Portugal é tido como de 8 horas/dia. Sendo que este tem um custo, que por via do seu desenvolvimento ter sido levado a cabo pela autora, permitiu essa mesma economia;
bb) Impunha-se o reconhecimento do contributo da autora para a economia do casal, devendo ser ressarcida por este contributo.
cc) A comunhão de vida é sustentada pela contribuição dos seus membros, com rendimentos do seu trabalho e com a participação nas tarefas domésticas e na assistência ao lar.
dd) A lei não exige que o contributo de ambos os membros seja simétrico para ponderar uma divisão igualitária dos bens no término da união: apenas se exige que a alocação dos proveitos auferidos por cada um seja dirigida ao bem comum dos unidos, dentro das possibilidades de cada um, num esforço comum, em que ambos os unidos contribuem com as suas economias e o seu trabalho em benefício do lar para a constituição do património comum;
ee) A autora e o réu viveram em comunhão de leito, mesa e habitação durante cerca de dezassete anos, e contrariamente ao entendido pelo tribunal “a quo”, constituíram um património comum (para o qual a autora sempre contribuiu dentro das suas possibilidades), que contém os bens adquiridos entre setembro de 2000 e fevereiro de 2017, que melhor constam dos factos provados sob o ponto 32. sob as alíneas a) a g).
ff) Assim, deve ser revogada a douta sentença na parte em que negou o reconhecimento do património comum, e deve o réu ser condenado a reconhecer o direito da autora sobre a meação nesses bens.
gg) A gestão do dia a dia dos unidos de facto é feita segundo as regras sociais e legais vigentes para os casados, respeitando os deveres de assistência, cooperação, coabitação, respeito e fidelidade, justificando-se a aplicação analógica das regras da comunhão de adquiridos na vigência e na dissolução da união de facto.
hh) Os unidos de facto possuem entre eles um acordo de vontades para a partilha de recursos e o desenvolvimento de um projecto de vida em comum, que implica a gestão concertada dos seus patrimónios e rendimentos, de forma a que os mesmos concorrem para a constituição de um património comum.
ii) Esse património comum deve ser repartido de acordo com a regra de que lhe pertence tudo aquilo que os conviventes, no uso da sua discricionariedade e liberdade negocial, não excluíram especificadamente.
jj) Em consonância, autora e réu têm, cada um, direito a metade de tudo quanto trouxeram para o património comum durante o período em que durou a união de facto de que fizeram parte.
kk) Na eventualidade de assim se não se entender, a autora defende a divisão do património comum segundo critérios que avaliam e valorizam todos os contributos dados pelos conviventes para a criação do património comum, independentemente da sua forma e da sua natureza.
ll) O património comum constitui-se pelo esforço comum dos seus membros, sendo que, em contexto de comunhão de leito, mesa e habitação, o contributo dado através do trabalho doméstico assume importância idêntica ao contributo monetário, uma vez que os papéis que cada um dos conviventes desempenha na sociedade são definidos tendo em consideração os interesses, aspirações, qualidades, experiências e capacidades dos dois.
mm) As regras para a repartição desse património têm sido encontradas por parte da jurisprudência na legislação aplicável às sociedades de facto, por verificação da facti species do artigo 980º do C.C.
nn) Devia e deve avaliar-se o direito de cada um dos elementos do casal ao seu quinhão no saldo apurado entre o passivo e o activo no momento da cessação da união atendendo à contribuição que cada um forneceu durante a vida em comum.
oo) No caso concreto, o património comum foi constituído pelos rendimentos do trabalho de cada um dos membros da união, bem como pelo trabalho em prol do lar, este último proveniente, sobretudo, da autora.
pp) Convém não olvidar a gestão com perfil aforrista do casal, bem como o facto de os rendimentos da autora serem todos destinados a satisfazer as necessidades da habitação comum.
qq) Deste modo, propugna-se por uma divisão igualitária do património comum, revogando-se a douta sentença recorrida na parte em que a mesma negou a realização dessa partilha.
rr) Com efeito, ao não suceder esta divisão, torna-se evidente que o réu tem o seu património valorizado e enriquecido à custa de uma parte do contributo da autora, atento todo o trabalho empregue e que permitiu a poupança respectiva, ajudando nessa medida à aquisição daqueles bens, e sem justa causa fica com a sua totalidade, em sacrifício da autora e que na verdade é injustificado por parte do réu.
ss) Em causa está o enriquecimento do réu na medida de tudo aquilo com que a autora contribuiu para a aquisição do património comum, bem como para a aquisição daquilo que são os seus bens próprios, por força do empobrecimento da autora, que investiu essas quantias na constituição de um património que queria e cria ser comum, mas na inexistência de obrigação para essa deslocação patrimonial.
tt) Em consequência, também por via da aplicação das normas supletivas do enriquecimento sem causa, tem a autora direito a ver o seu património reintegrado por tudo quanto fez deslocar para a esfera jurídica do réu, sem que houvesse uma causa jurídica justificativa.
uu) Destarte justificada está a revogação da douta sentença recorrida, em favor de um acórdão que condene o réu a indemnizar a autora.
vv) Sempre sem prescindir, a douta sentença negou a existência de bens comuns e considerou-os bens próprios do réu, contudo, alguns tiveram algumas contribuições da autora, o que justifica a condenação daquele a restituir a esta os montantes que, tal como resulta da prova produzida, a mesma demonstrou serem seus, num total que deve ser apurado sobre todas as horas, dias, meses e anos de trabalho, no caso, 17 anos entre setembro de 2000 e 15 de fevereiro de 2017, que atento o valor hora ou dia de trabalho que normalmente é imputado a estas actividades, importa liquidar, para efeitos de restituição à autora.
ww) Na verdade, tais rendimentos gerados pela autora não constituem qualquer obrigação natural, como refere o tribunal e a autora não os deu ao réu, ao abrigo do disposto no artigo 1142º do C.C..
xx) Assim, tal quantia imputada àquelas actividades desenvolvidas pela autora, importam que lhe sejam restituídas pelo réu.
yy) Procedendo o recurso de matéria de facto interposto pela autora, notar-se-á que as quantias entregues por si ao réu devem ser objecto de liquidação, que lhe deverão ser devolvidas.
zz) A douta sentença recorrida violou o disposto nos artigos 342º, 473º e seguintes, 980º e 1142º do C.C.
aaa) Funda-se, ainda, o presente recurso no disposto nos artºs 607º, 615º nº 1 al. b) e 662º, do CPC.”
Pugna pela revogação da decisão recorrida e pela sua substituição por outra que julgue a acção procedente.
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Foram apresentadas contra-alegações pugnando o apelado, desde logo, pela rejeição da reapreciação da matéria de facto e consequente extemporaneidade do recurso.
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O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
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Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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Tendo em atenção que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (art. 635º nº 3 e 4 e 639º nº 1 e 3 do C.P.C.), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, observado que seja, se necessário, o disposto no art. 3º nº 3 do C.P.C., as questões a decidir são:

A) Saber se ocorreu erro na apreciação da prova;
B) E na subsunção jurídica.
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II – Fundamentação

Foram considerados provados os seguintes factos:

1. Autora e réu são ambos divorciados (cfr. certidões de assento de nascimento juntas a fls. 91 e 92 dos autos);
2. Autora e ré iniciaram relação de namoro em Setembro de 2000 e viveram, desde Janeiro de 2001 até 15/02/2017, em comunhão de cama, mesa e habitação, como se de marido e mulher se tratasse, inicialmente, durante cerca de 10 anos, numa casa do réu, sita no lugar da …, freguesia de ..., do concelho de Fafe, e depois, numa casa da Rua do ..., nº …, freguesia de ..., concelho de Fafe (artigos 2º a 4º da p.i.);
3. Durante o lapso de tempo referido no facto provado nº 2, o réu trabalhava como sócio-gerente de uma empresa de camionagem designada “Transportadora ...” (artigo 8º da p.i.);
4. Durante o lapso de tempo referido no facto provado nº 2, a autora fazia as lides de casa, limpando a casa, cozinhando as refeições, lavando a loiça, lavando e passando a ferro as roupas de autora e réu, e deslocando-se na compra de bens essenciais para a casa (artigos 7º da p.i. e 8º do articulado de aperfeiçoamento);
5. Durante o mesmo lapso de tempo, a autora tratava da criação de galinhas para consumo doméstico, pondo-lhes alimento e limpando o galinheiro (artigo 10º do articulado de aperfeiçoamento);
6. Durante parte dos anos em que autora e réu residiram na casa da Rua do ..., criaram porcos para consumo próprio e venda ocasional, assim como canídeos, alguns dos quais venderam (artigo 10º do articulado de aperfeiçoamento);
7. Autora e réu alimentavam e cuidavam os animais referidos no número anterior (artigo 10º do articulado de aperfeiçoamento);
8. O dinheiro gerado pela venda de porcos e canídeos, aludida no facto provado anterior, destinava-se a cobrir as despesas geradas com a alimentação e outros encargos da sua criação (artigo 11º do articulado de aperfeiçoamento);
9. O réu suportava, com os rendimentos do seu trabalho e património, a generalidade das despesas domésticas da vida em comum do casal, bem como parte das despesas pessoais da autora (artigo 21º da contestação);
10. Pouco depois de ter ido viver com o réu foi diagnosticada à autora artrite reumatóide (artigo 22º da contestação);
11. Por causa da doença aludida no número anterior, a autora ficou limitada na realização de esforços mais intensos e, em momentos pontuais, impedida de fazer tarefas da lide da casa (artigo 25º da contestação);
12. Durante alguns dos anos em que autora e réu viveram juntos na casa da Rua do ..., o réu contratou e pagou a uma empregada que fazia a limpeza da casa duas vezes por mês (artigo 26º da contestação);
13. Durante os anos em que autora e réu viveram juntos na casa da Rua do ..., o réu contratou e pagou a um jornaleiro para tratar e cultivar os terrenos exteriores à habitação (artigo 27º da contestação);
14. O réu entregava à autora, todas as semanas, a quantia não inferior a € 40,00 para esta adquirir produtos alimentares e géneros de consumo para a casa (artigo 41º da contestação);
15. O réu suportava todas as despesas da casa, nomeadamente com a água, gás, luz, alimentação, telecomunicações, empregada, jornaleiro, aquisição de rações e alimento para os animais, entre outras (artigo 42º da contestação);
16. Até ao momento em que a autora passou a auferir pensão de invalidez, o réu pagou as consultas, medicamentos e tratamentos médicos que a autora precisava (artigo 30º da contestação);
17. Durante os tratamentos à artrite reumatóide da autora, era o réu quem mensalmente conduzia a autora ao Hospital de Ponte de Lima e semanalmente à quinta-feira ao Hospital de Braga, para aquela receber cuidados médicos (artigos 31º e 32º da contestação);
18. O réu tinha que deixar de trabalhar nos dias em que fazia o transporte e acompanhamento da autora referidos no número anterior (artigo 33º da contestação);
19. Em situações pontuais a autora ficava acamada por causa da artrite reumatóide de que padecia (artigo 34º da contestação);
20. A partir do ano de 2005 a autora, devido à doença referida nos números anteriores, passou a auferir pensão por invalidez no valor aproximado de € 250,00 (artigo 37º da contestação);
21. A pensão de invalidez foi o único rendimento da autora desde que lhe foi diagnosticada a doença artrite reumatóide (artigo 38º da contestação);
22. O réu foi emigrante em França durante treze anos até 1993, onde auferia um salário, à data, após o câmbio de francos para escudos, de cerca de 300 contos (artigos 46º, 51º e 52º da contestação);
23. O réu realizava trabalhos ao fim de semana, dos quais auferia rendimentos que acresciam ao salário aludido no número anterior (artigos 50º e 53º da contestação);
24. O réu depositava os rendimentos auferidos em França na conta bancária em Portugal, onde existiam, à data, juros a taxas bonificadas (artigo 54º da contestação);
25. Com os seus rendimentos e poupanças o réu adquiriu, antes de viver com a autora, prédios rústicos e urbanos em Portugal, aproveitando os benefícios legais para emigrantes, como a isenção de sisa, entre outros (artigo 55º da contestação);
26. O réu herdou bens móveis, imóveis e dinheiro do pai, falecido em 2002 (artigo 57º da contestação);
27. Desde Novembro de 1993 até à data da propositura da acção que o réu é sócio gerente, juntamente com outro sócio, da sociedade comercial por quotas denominada Transportadora ..., Lda., com sede em … (cfr. documento número 4 junto com a contestação – certidão do registo comercial) (artigo 60º da contestação);
28. Como sócio-gerente da empresa identificada no facto provado anterior o réu auferia, em Janeiro de 2017, um salário líquido de € 3.024,69 (artigo 61º da contestação);
29. Houve anos em que a mesma empresa distribuiu lucros pelos sócios, incluindo o réu, o que fez aumentar a sua capacidade financeira para adquirir património (artigo 62º da contestação);
30. Durante o período de tempo referido no facto provado número 29, o réu auferiu rendimentos mensais médios não inferiores a € 3.000,00 (artigo 39º da contestação);
31. Com os recursos aludidos nos factos provados números 22 a 25, o réu comprou, antes de iniciar a sua relação com a autora, o prédio composto de parte urbana, parcela de terreno para construção, e parte rústica, denominada “Bouça da …”, descrito na C.R. Predial de … sob o nº …/20000127, inscrito na matriz rústica sob o art. … e omisso na matriz urbana (cfr. registo predial, caderneta predial e escritura pública juntos como documento n.º 2 do articulado de aperfeiçoamento – fls. 50 e ss.) (artigos 45º e 63º da contestação e 1 do articulado de aperfeiçoamento);
32. Com os recursos financeiros aludidos nos factos provados nº 22 a 30, o réu comprou, durante o lapso de tempo aludido no facto provado nº 2, os seguintes bens:
I. Imóveis
a. Prédio rústico denominado “Sorte do …”, situado em …, freguesia de …, do concelho de Fafe, descrito na C.R.Predial de … sob o nº …/20010912 e inscrito na matriz sob o art. … (cfr. registo predial, caderneta predial e escritura pública juntos como documento nº 1 do articulado de aperfeiçoamento – fls. 47 e ss.);
b. Fracção autónoma designada pela letra “V”, habitação de tipo T3, localizada no 2º andar esquerdo do prédio urbano localizado na Praceta ... (...), descrito na C.R.Predial de … sob o nº …/19940915 e inscrito na matriz sob o art. ... (cfr. registo predial, caderneta predial e escritura pública juntos como documento nº 3 do articulado de aperfeiçoamento – fls. 54 a 60);
c. Fracção autónoma designada pela letra “CA”, garagem localizada na cave do prédio urbano localizado na Praceta ... (...), descrito na C.R.Predial de … sob o nº …/19940915 e inscrito na matriz sob o art. ... (cfr. registo predial, caderneta predial e escritura pública juntos como documento nº 3 do articulado de aperfeiçoamento – fls. 54 a 60);
d. Prédio urbano, casa de rés-do-chão e logradouro, situado na Rua …, da freguesia e cidade de Fafe, descrito na C.R.Predial ... sob o nº …/19891017 e inscrito na matriz sob o art. … (cfr. registo predial, caderneta predial e escritura pública juntos como documento nº 4 do articulado de aperfeiçoamento – fls. 61 a 63);
e. Prédio rústico denominado “Cerrado da …”, situado em ..., freguesia de ..., do concelho de Fafe, descrito na C.R.Predial ... sob o nº …/20001017 e inscrito na matriz sob os art. …, …, …, … e … (cfr. registo predial, cadernetas prediais e escritura pública juntos como documento nº 5 do articulado de aperfeiçoamento – fls. 64 a 69);
f. Prédio rústico denominado “Coutada de …”, situado em …, freguesia de …, do concelho de Fafe, descrito na C.R. Predial ... sob o nº …/19930317 e inscrito na matriz sob o art. … (cfr. registo predial, caderneta predial e escritura pública juntos como documento nº 6 do articulado de aperfeiçoamento – fls. 69 v.º a 71);
g. Prédio rústico denominado “Campo da … ou da …”, situado em ..., freguesia de ..., descrito na C.R.Predial ... sob o nº …/20001017 e inscrito na matriz sob o art. … (cfr. registo predial e caderneta predial juntos como documento nº 7 do articulado de aperfeiçoamento – fls. 72 e 73);
h. Prédio rústico denominado “Coutada da …”, situado em ..., freguesia de ..., descrito na C.R.Predial ... sob o nº …/20001017 e inscrito na matriz sob o art. … (cfr. registo predial e caderneta predial juntos como documento nº 8 do articulado de aperfeiçoamento – fls. 73 v.º e 74);
i. Prédio urbano, casa de habitação de 2 andares, inicialmente terreno para construção, situado em ..., freguesia de ..., do concelho de Fafe, descrito na C.R.Predial ... sob o nº …/20101014 e inscrito na matriz sob o art. … (cfr. registo predial e caderneta predial juntos como documento nº 9 do articulado de aperfeiçoamento – fls. 74 v.º e 75);

II. Móveis
a. Veículo automóvel ligeiro da marca SEAT, modelo MALAGA, de matrícula UI (cfr. documento nº 10 junto com o articulado de aperfeiçoamento – fls. 77 v.º dos autos);
b. Um tractor da marca KYMCO, de matrícula BZ (cfr. documento n.º 11 junto com o articulado de aperfeiçoamento – fls. 78);
c. Um tractor da marca KUBOTA, de matrícula FB (cfr. documento n.º 12 junto com o articulado de aperfeiçoamento);
d. Uma máquina de cortar erva;
e. Uma máquina de mexer e espalhar erva;
f. Um arado;
g. Uma fresa; (artigos 45º e 63º da contestação e 1 a 4 do articulado de aperfeiçoamento);
33. Autora e réu são contitulares da conta bancária com o IBAN PT50 ……………….., do Banco... (artigo 5º do articulado de aperfeiçoamento).
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Não se provou:

1. A Autora zelava e tratava do logradouro, jardins e terrenos rústicos envolventes da casa de morada de família, limpando-os, regando-os e assegurando a sua manutenção (artigo 9º do articulado de aperfeiçoamento);
2. Devido à artrite reumatóide de que a autora padecia, ficou impedida de fazer esforços e, por isso, não podia cuidar da casa, não podia fazer as lides de casa, nem as limpezas nem as refeições (artigo 25º da contestação);
3. Enquanto viveram juntos o réu teve que contratar e pagar a três empregadas para cuidar da casa e das refeições (artigo 26º da contestação);
4. O réu entregava à autora, todas as semanas, € 50,00 a € 60,00 para ela adquirir bens pessoais que necessitava (artigo 41º da contestação);
5. Na comercialização de animais, o agregado constituído pela autora e réu obtinha lucros médios de € 2.000,00/ano (artigo 13º do articulado de aperfeiçoamento);
6. A criação das galinhas para consumo doméstico e a venda de porcos e canídeos, aludidas nos factos provados nç 5 e 6, gerava rendimentos para as despesas e poupanças do casal (artigo 11º do articulado de aperfeiçoamento);
7. Para assegurar as tarefas realizadas pela autora, ter-se-iam de contratar serviços de uma ou mais empregadas domésticas e de um ou mais “jornaleiros”, no mínimo de 8 horas por dia, todos os dias da semana e do fim-de-semana (artigo 13º do articulado de aperfeiçoamento);
8. A contratação a terceiros dos trabalhos realizados pela autora durante o período de vida em comum com o réu, custaria € 2.500,00 / mês (artigo 12º do articulado de aperfeiçoamento);
9. Antes da autora viver com o réu, este já recebia rendas dos prédios que possuía, no total de cerca de € 2.000,00 por mês (artigo 59º da contestação);
10. Autora e réu adquiriram com recursos financeiros de ambos, os seguintes bens registados a favor da “Transportadora ..., Lda.”: a. Uma máquina giratória de pequenas dimensões; b. Uma máquina retroescavadora de cor amarela (artigo 3º do articulado de aperfeiçoamento);
11. A autora depositava os seus rendimentos em contas bancárias que apenas se encontram tituladas pelo réu (artigo 6º do articulado de aperfeiçoamento).
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A) Reapreciação da matéria de facto

Insurge-se a apelante contra os factos provados sob os nº 2 (pugna pela correcção da data de início da união de facto para Setembro de 2000), 5 (pugna pelo aditamento de aditamento de criação de porcos e cães e plantação de hortaliças), 6 e 8 (pugna pela consignação que a venda dos animais era feita pelo réu e esse dinheiro não se destinava apenas a cobrir as despesas com a alimentas e encargos com a criação), 9, 11 e 12 (devem ser dados como não provados), 14 (deve ser dado como não provado ou, no limite, apenas aceitar o valor indicado pela autora, pois esse é o valor admitido), 16 (deve ser dado como não provado), 20 (deve ser dado como provado em conformidade com a informação prestada pela Segurança Social), 22, 23, 24, 26, 29, 30 (devem ser dado como não provado) e contra os factos não provados nº 6 e 7 (devem ser dados como provados). Indica a prova em que se baseia.
O apelado defende que a recorrente não indicou os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, nem os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa pelo que deve ser rejeitada a requerida reapreciação da matéria de facto e, não podendo a apelante beneficiar do acréscimo de 10 dias, o recurso é extemporâneo.
Ora, vejamos.
Nos termos do art. 662º nº 1 do C.P.C., diploma que pertencerão os preceitos a citar sem menção de origem, A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Antes de mais, o Tribunal da 1ª Instância, ao proferir sentença, deve, em sede de fundamentação, (…) declarar quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas de factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência (art. 607º nº 4) e O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes (art. 607º nº 5).
Sendo certo que o julgador aprecia a prova de acordo com a sua livre convicção, salvo algumas limitações, a análise crítica da prova é da maior importância do ponto de vista da fundamentação de facto da decisão. Com efeito, esta deve ser elaborada por forma a que, através da sua leitura, qualquer pessoa possa perceber quais os concretos meios de prova em que o Tribunal se baseou para considerar determinado facto provado ou não provado e a razão pela qual tais meios de prova foram considerados credíveis e idóneos para sustentar tal facto. Esta justificação terá de obedecer a critérios de racionalidade, de lógica, objectivos e assentes nas regras da experiência.
A exigência de análise crítica da prova nos termos supra referidos permite à parte não convencida quanto à bondade da decisão de facto tomada pelo tribunal da 1ª instância interpor recurso contrapondo os seus argumentos e justificar as razões da sua discordância. Contudo, o recorrente deve cumprir os ónus previstos na lei processual.

O art. 639º alude ao ónus de alegar e formular conclusões.

E dispõe o art. 640º, sob a epígrafe Ónus a cargo do recorrente que impugna a matéria de facto:

1 – Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2– No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; (…).

Acompanhando de perto o Ac. do S.T.J. de 29/10/2015 (Lopes do Rego), in www.dgsi.pt, endereço a que pertencerão os acórdãos a citar sem menção de origem, que, em sede de pressupostos do exercício do duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto, distingue dois ónus:

- um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação minimamente concludente da impugnação, que se traduz na indicação dos pontos de facto questionados, dos meios probatórios que impõem decisão diversa sobre eles e do sentido decisório que decorreria da correcta apreciação destes meios de prova – a), b) e c) do nº 1 do art. 640º do C.P.C.. A falta de cumprimento deste ónus conduz à imediata rejeição do recurso por indiciar uma falta de consistência e seriedade na impugnação da matéria de facto;
- e um ónus secundário tendente a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida, que se traduz na indicação exacta das passagens da gravação em que se funda o recurso – a) do nº 2 do art. 640º do C.P.C.. A falta desta indicação conduz à imediata rejeição do recurso, contudo esta falha da parte deve ser avaliada de forma mais cautelosa e casuisticamente tanto mais que o conteúdo prático deste ónus tem oscilado ao longo dos anos e das várias reformas. Com efeito, a jurisprudência do S.T.J. tem entendido, face ao carácter algo equívoco da expressão “exacta indicação”, em nome do princípio da proporcionalidade e da adequação e ainda da prevalência do mérito sobre os requisitos puramente formais, que não se justifica a liminar rejeição do recurso quando não existe dificuldade relevante na localização pelo Tribunal dos excertos da gravação em que a parte se haja fundado. No mesmo sentido vide, entre outros, Ac. do S.T.J. de 19/01/2016 (Sebastião Póvoas), 28/04/2016 (Abrantes Geraldes), 31/05/2016 (Roque Nogueira), 08/11/16 (Fonseca Ramos).

Tem-se entendido, designadamente Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4ª ed., Almedina, p. 158-159, que o recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto será, total ou parcialmente, rejeitado quando se verificar alguma das seguintes situações:

“a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635.º, nº 4, e 641º, nº 2, al. b));
b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (art. 640.º nº 1, al. a));
c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) Falta de indicação exacta, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação.”

Não havendo motivo de rejeição procede este Tribunal à reapreciação da prova nos exactos termos requeridos procedendo ao controlo da convicção do julgador da primeira instância verificando se esta se mostra contrária às regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos e sindicar a formação da sua convicção. i.e., o processo lógico. Assim, nada impede que, fundado no mesmo princípio da livre apreciação da prova, o tribunal superior conclua de forma diversa da do tribunal recorrido, mas para o fazer terá de ter bases sólidas e objectivas. Contudo, não poderá deixar-se de ter presente que, por força da imediação, o tribunal da primeira instância é o que se encontra melhor colocado para apreciar a prova, designadamente a testemunhal.
Revertendo ao caso em apreço verificamos que a apelante se insurge contra os factos provados sob os nº 2 (pugna pela correcção da data de inicio da união de facto para Setembro de 2000), 5 (pugna pelo aditamento de aditamento de criação de porcos e cães e plantação de hortaliças), 6 e 8 (pugna pela consignação que a venda dos animais era feita pelo réu e esse dinheiro não se destinava apenas a cobrir as despesas com a alimentas e encargos com a criação), 9, 11 e 12 (defende que devem ser dados como não provados), 14 (defende que deve ser dado como não provado ou, no limite, apenas aceitar o valor indicado pela autora, pois esse é o valor admitido), 16 (refere que deve ser dado como não provado), 20 (refere que deve ser dado como provado em conformidade com a informação prestada pela Segurança Social), 22, 23, 24, 26, 29, 30 (defende que devem ser dado como não provado) e contra os factos não provados nº 6 e 7 (que propugna que devem ser dados como provados). E em relação a cada um destes factos indica a prova em que se baseia. No que concerne à prova testemunhal se é certo que refere as passagens em que se funda por referência à hora em que os depoimentos foram prestados, atendendo à curta duração destes (entre 6 e 20 minutos) e à transcrição que fez da parte considerada pertinente, de modo algum, se pode considerar que não se mostre cumprido o acima referido ónus secundário.

Assim, inexiste fundamento para rejeitar a requerida reapreciação da prova.
Tendo por base estas considerações e ouvida toda a prova produzida, desde já se conclui que o tribunal a quo fez uma cuidadosa e correcta análise crítica da prova. Vejamos então os factos acerca dos quais a apelante discorda.

- Facto provado nº 2
Antes de mais, a alteração requerida é absolutamente irrelevante para a decisão da presente causa.
De qualquer modo, sempre se dirá que não vemos razão para tal alteração, pois, não sendo as declarações da autora e réu coincidentes quanto ao início da união de facto, das mesmas resulta que, pelo menos, desde Janeiro de 2001 passaram a viver na mesma casa. Nenhuma testemunha revelou saber o momento exacto a partir do qual as partes passaram a viver juntas, nem explicaram a razão que as fez dizer que a união de facto durou 17 anos.

- Facto provado nº 5 (parte) e facto não provado nº 7 (parte)
No que concerne ao não trabalho da autora no quintal e/ou horta mereceu-nos credibilidade o depoimento da testemunha P. O., sua filha, e da testemunha S. F., sua nora. A primeira, que teve um depoimento sereno e equilibrado, foi peremptória em afirmar que esse trabalho era feito pelo réu com a colaboração do seu marido e/ou de um “jornaleiro”. A testemunha P. F., que trabalhou como “jornaleiro” a pedido do réu e pago por este, confirmou que, durante os últimos 6, 7 anos em que prestou esse serviço (pontualmente e não todos os dias e aos fins de semana), nunca viu a autora a trabalhar no campo. Não nos mereceu credibilidade o depoimento da testemunha M. N., sua cunhada, por se revelar parcial. As testemunhas M. O., S. F. e A. S., a este respeito, limitaram-se a assentir à pergunta feita sem nada concretizarem.

- Factos provados nº 5 (parte), 6 e 8
Das declarações das partes e do conjunto da prova testemunhal produzida resulta que, além de tratar das galinhas, a autora também tratava dos cães e porcos, mas não em exclusividade, pois o réu também o fazia; as galinhas eram para consumo doméstico; os porcos eram para consumo doméstico e venda ocasional; alguns dos quais foram vendidos. Atendendo aos preços referidos dos porcos e cães (50€-100€) e aos custos com a sua alimentação e outros cuidados, de modo algum, tal venda tem a virtualidade de gerar verdadeiros lucros.
Assim, é de manter estes factos provados e manter como não provados os factos referidos sob os nº 5 e 6.

- Factos provados nº 9 e 16
É de manter estes factos provados. Com efeito, desde o início da união de facto até à atribuição da pensão de invalidez (em Dezembro de 2004 cfr. informação da Segurança Social), a autora não teve qualquer rendimento, aliás como a própria admitiu, e depois daquele momento, sendo tal pensão no valor de cerca de 280€, a mesma não poderia assegurar a totalidade das suas despesas pessoais que foram suportadas pelo réu como em parte ela admitiu (quanto à alimentação e contas da água e electricidade).

- Factos provados nº 11 e 12 e facto não provado nº 2 e 7 (parte)
Inexiste qualquer contradição entre o primeiro e último facto. A afirmação de que a doença, de modo geral, não impediu a autora de assegurar a lida da casa é compatível com a afirmação que a mesma doença limitava-a na realização de esforços mais intensos e que pontualmente a impedia de todo de assegurar tais tarefas.
Acresce que do conjunto da prova produzida resulta o facto provado nº 11, i.e., não obstante ter sido diagnosticado à autora artrite reumatóide, doença incapacitante que conduziu à atribuição de uma pensão por invalidez, esta assegurou a “lida da casa”, à excepção dos trabalhos mais intensos, sem prejuízo de pontualmente não o ter conseguido fazer. Atendendo às características dessa doença não mereceram credibilidade as afirmações da autora e testemunhas por si arroladas no sentido de que ela sempre fez tudo sem nunca ter tido quem ajudasse e foram bem mais credíveis as declarações do réu que aludiu à contratação de uma empregada para limpar a casa duas vezes por mês. Este último facto foi confirmado pela testemunha P. F..
É de manter esta matéria nos seus exactos termos.

- Facto provado nº 14
Não a censurar à credibilidade do tribunal recorrido quanto ao valor intermédio de € 40,00 face às divergentes declarações de autora (20€/30€) e do réu (€50€/60€), a qual subscrevemos atento o preço dos produtos alimentares e géneros de consumo para a casa.

- Facto provado nº 20
O ofício da Segurança Social a que apelante alude refere que esta é pensionista de invalidez desde 29/12/2004 e que actualmente aufere uma pensão € 282,96, o que resulta igualmente dos extractos das pensões referentes ao período compreendido entre 2015 e 2020 juntos pelo C.N.P. (não obstante haver sido requerida informação com início no ano de 2005). Aliás, isto mesmo resulta da “Evolução dos montantes das pensões” consultável em www.seg-social.pt ou em www.pordata.pt.
Assim sendo, em 2005 esta pensão era mais baixa pelo concordamos com a afirmação de que “(…) passou a auferir pensão por invalidez no valor aproximado de € 250,00” e mantemos este facto.

- Factos provado nº 22, 23, 24
Tendo em atenção as declarações do réu acerca dos valores que ganhava em França, o que está em conformidade com o documento nº 3 junto com a contestação referente aos rendimentos por ele auferidos nesse país. Acresce que é sabido que nos anos em que o réu trabalhou nesse país o nível dos salários aí praticados eram altos para as referências nacionais.
Merece-nos igualmente credibilidade a afirmação do réu no sentido de também trabalhar ao fim de semana, de poupar ao máximo, transferir o dinheiro para bancos portugueses onde se praticavam taxas de juro bonificadas. O mesmo foi confirmado pelas testemunhas J. P., seu ex-sócio na sociedade Transportadora ..., Lda., e J. M., seu irmão.
Assim, é de manter estes factos provados.

- Facto provado nº 26
É de manter igualmente este facto por nos ter merecido credibilidade as declarações do réu a este respeito que foram confirmadas pela testemunha J. M., seu irmão.

- Facto provado nº 29
Merece-nos credibilidade as declarações do réu, bem como o depoimento da testemunha J. P., tanto mais que a actividade comercial visa exactamente o lucro sendo normal a distribuição dos mesmos pelos sócios.

- Facto provado nº 30
Mantem-se uma vez que é repetição do facto provado nº 28 uma vez que não se apuraram as rendas que o réu referiu receber.
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B) Subsunção jurídica

Insurge-se igualmente a apelante contra a subsunção jurídica levada a cabo pelo tribunal a quo por, em síntese, entender ter direito a metade dos bens constantes do ponto 32 al. a) a g) dos factos provados por os mesmos terem resultado do produto do trabalho de autora e réu e assim constituírem um património comum ou, caso se entenda que são bens próprios do réu, pretende ver reconhecido o direito à restituição do valor correspondente ao seu trabalho doméstico.

Vejamos.
Antes de mais, importa ter presente que a Constituição da República Portuguesa reconhece o direito de constituir família, quer através do direito a contrair casamento (art. 36º), quer através de outras formas, onde se insere a união de facto, enquanto direito ao desenvolvimento da personalidade (art. 26º nº 1), e incumbe ao Estado proteger a família (art. 67º).
Assim, desde a Reforma introduzida pelo Dec.-Lei nº 496/77 de 25/11 até aos dias de hoje tem-se assistido por parte do legislador à adopção de medidas no sentido da aproximação do regime jurídico próprio do casamento (art. 1577º do C.C.) às situações decorrentes da união de facto com vista à protecção desta estendendo-lhe alguns direitos inicialmente apenas previstos para aquele.
Assim, primeiramente foi aprovada a Lei nº 135/99, de 28/08 que adoptou medidas de protecção das uniões de facto, a qual veio a ser revogada e substituída pela Lei nº 7/2001, de 11/05 (alterada pelas Leis nº 23/2010, de 30/08, nº 2/2016, de 29/02, nº 49/2018, de 14/08 e nº 71/2018, de 31/12). Este diploma dá a seguinte noção de união de facto: (…) situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos (art. 1º nº 2). No seu art. 3º são atribuídos aos membros da união de facto determinados direitos, como por exemplo, a protecção da casa de morada de família (a)), a nível laboral no tocante a férias, feriados, faltas e licenças (b) e c)), em matéria fiscal no que concerne ao IRS (d)), em matéria de protecção social na eventualidade de morte (e)).
Contudo, a maioria da doutrina e da jurisprudência defende que a união de facto não pode ser equiparada ao casamento, permanecendo como realidade com diferente regime jurídico, pessoal e patrimonial.
A este propósito lê-se no Ac. da R.L. de 29/11/2012 (Catarina Arêlo Manso): “O casamento e a união de facto são situações materialmente diferentes, assumindo os casados o compromisso de vida em comum, mediante a sujeição a um vínculo jurídico, enquanto que os conviventes não o assumem, por não quererem ou não poderem. O diferente tratamento do casamento e da união de facto não viola o princípio da igualdade previsto no art. 13º da CRP.” e no Ac. desta Relação de 18/10/2018 (José Alberto Moreira Dias): “Com efeito, a união de facto não é casamento. Quem recorre à união de facto faz a sua opção por não celebrar um casamento, constituindo uma intolerável violação da liberdade individual introduzir-se efeitos imperativos na área da união de facto destinados a equipará-la ou aproximá-la do casamento e que não foram queridos pelos cidadãos que recorreram a este meio informal de constituir família e que, de contrário, se teriam casado. De resto, dentro do princípio da autonomia privada, onde se insere a liberdade contratual (arts. 405º do CC), esses cidadãos que recorrem à união de facto como modo de constituir família, podem, querendo, regular as suas relações jurídicas, designadamente em caso de morte de um dos elementos da união de facto ou de rutura desta, mediante a celebração de acordos a que a doutrina designa de “contratos de coabitação””.
Tendo sido uma opção do legislador apenas conceder aos conviventes os direitos previstos na acima referida lei inexiste um estatuto jurídico pessoal e patrimonial próprio pelo que ficam os membros da união de facto sujeitos ao regime geral. Assim sendo, não estão os mesmos vinculados aos deveres de cooperação e assistência a que alude o art. 1672º do C.C. sob a epígrafe “Deveres dos cônjuges”, às regras que disciplinam os efeitos patrimoniais do casamento independentes do regime de bens, o denominado regime primário previsto nos art. 1678º a 1697º do C.C. (administração, alienação dos bens, dívidas, bens que respondem por elas e partilha de bens), nem a união de facto gera por si só um património comum.
Assim sendo, finda a união de facto nos termos do art. 8º nº 1 da referida Lei nº 7/2001, coloca-se a questão de saber quais os eventuais efeitos patrimoniais.

Caso os conviventes tenham, ao abrigo da autonomia privada, celebrado um denominado “contrato de coabitação”, nos termos do qual tenham designadamente acordado acerca da propriedade dos bens resultantes da comunhão de vida e acerca das contribuições patrimoniais efectuadas, naturalmente que rege o referido contrato.

Na ausência deste, o que se verifica na esmagadora maioria das situações, há que recorrer ao direito comum (obrigacional ou real) tendo a jurisprudência distinguido as seguintes situações:

I.
Pode haver uma efectiva compropriedade (art. 1403º e ss. do C.C.) sobre determinados bens (com quotas quantitativamente iguais ou diferentes) na sequência da intervenção de ambos no momento da aquisição. Finda a união de facto tais bens podem ser partilhados, ou amigavelmente (art. 1413º nº 1, 1ª parte e nº 2 do C.C.), ou através da acção de divisão comum (art. 1413º, nº 1, 2ª parte do C.C.).
II.
As despesas normais e correntes próprias da coabitação suportadas pelos conviventes, v.g. alimentação, vestuário, transportes, água, luz, finda a união de facto, não são restituíveis ao abrigo do instituto do enriquecimento sem causa.

Lê-se no Ac. do S.T.J. de 20/03/2014 (Nuno Cameira): “(…) porque a união de facto é uma forma de estar em família que em si mesma implica o contributo de cada um dos seus elementos, deve entender-se que tudo o que sejam as despesas normais e correntes próprias de quem vive, embora “informalmente”, a “plena comunhão de vida” de que fala o artº 1577º do CC não é repetível, finda a relação, mediante a aplicação do regime do artº 476º deste mesmo diploma; e isto porque se considera que houve então uma causa justificativa para tais atribuições patrimoniais impeditiva da conclusão de que o prestado foi indevido; essa causa justificativa reside, precisamente, na subsistência da união de facto, para a qual cada um dos membros contribuiu em termos materiais pela forma tacitamente acordada pelo casal enquanto a relação se manteve.”.
O trabalho desenvolvido por parte de um convivente em casa como, por exemplo, na confecção de refeições, limpeza, no tratamento de roupas e mesmo cuidando do quintal e de galinhas, é visto como uma contribuição para a economia comum não judicialmente exigível configurando o cumprimento espontâneo de obrigação natural, insusceptível de ser repetida.
Neste sentido vide Ac. do S.T.J. de 06/07/2001 (Sérgio Poças), onde se lê: “Em caso de dissolução da união de facto, o trabalho doméstico que a autora fez enquanto viveu naquela situação com o réu, porque constitui uma participação livre para a economia comum baseada na entreajuda ou partilha de recursos, não lhe confere o direito de restituição do respectivo valor.” e Ac. do S.T.J. de 22/10/2017 (Ana Paula Boularot) que refere: “(…) não decorrendo, (…), quaisquer obrigações decorrentes de um dever de assistência entre ambos, há que entender que tudo o que foi prestado por aquela, mesmo a nível de trabalho doméstico (…), terá de ser entendido como uma obrigação natural, de coercitividade e repetição impossíveis, atenta a natureza da relação instituída, artigos 402º a 404º do CCivil e artigo 1º, nº2 da Lei 7/2001, de 11 de Maio (…)”. Ainda no mesmo sentido vide Ac. da R.C. de 22/05/2018 (Vítor Amaral).
III.
As despesas estranhas aos encargos normais da vida familiar, suportadas por ambos os conviventes no pressuposto da manutenção da união de facto, mas cuja propriedade ficou apenas no nome de um, como por exemplo, a compra ou construção de uma casa, a realização de benfeitorias num imóvel, a compra de um automóvel, cessada a união de facto, cessa a causa justificativa da contribuição monetária pelo que deve o convivente enriquecido no seu património ser condenado a restituir ao outro o seu contributo com fundamento no enriquecimento sem causa (art. 473º nº 2 do C.C.).
Neste sentido vide, entre outros, Ac. do S.T.J. de 08/05/1997, publicado na CJSTJ 1997, t. II, p. 81/82, Ac. da R.L. de 21/01/1999, CJ1999, t. I, p. 83 e segs., Ac. da R.E. de 10/04/2003, CJ, t. II, p. 242/244, Ac. da R.P. de 19/02/2004, Ac. da R.L. 03/07/2012, todos citados no Ac. da R.P. de 04/02/2016 (Pedro Martins), in www.outrosacordaostrp.pt.
A este propósito refere-se no Ac. do S.T.J. de 03/11/2016 (Olindo Geraldes): “I- A contribuição monetária de um dos membros da união de facto, para a construção de uma casa e a aquisição de um veículo automóvel, não se enquadra no âmbito da satisfação dos encargos da vida familiar. II - Com a dissolução da união de facto extingue-se a causa jurídica da contribuição monetária, deixando de ter justificação a privação da contribuição monetária prestada. III - A restituição opera, nomeadamente, por efeito do instituto do enriquecimento sem causa.”.
Tem sido defendido uniformemente pela doutrina e pela jurisprudência que, na acção de enriquecimento, cabe ao autor o ónus da prova da falta de causa da prestação efectuada, não bastando que no final do processo não resulte provada qualquer causa.

In casu a autora pede o reconhecimento que, durante a união de facto, foi constituído, com o trabalho de ambos, um património comum constituído por imóveis, rendas e poupanças pedindo igualmente que lhe seja reconhecido o direito a metade. Tinha aquela o ónus da prova dos factos constitutivos do direito por si alegado nos termos do art. 342º, nº 1 do C.C. uma vez que, como ficou dito, a união de facto não gera ela própria qualquer património comum que tenha de ser partilhado ou liquidado em caso de dissolução da mesma. Contudo não logrou fazer aquela prova.
Com efeito, no que concerne aos bens referidos no ponto 32 dos factos provados mostram-se todos definitivamente registados no nome do réu pelo que, nos termos do art. 7º do C.R.Predial, se presume que o direito existe e pertence ao titular inscrito. Acresce que segundo os contratos juntos foi o réu o único adquirente. Assim, não se prova qualquer compropriedade com a autora.
Acresce que, quanto a estes bens, a autora não logrou provar qualquer comparticipação de dinheiro seu nas respectivas aquisições (pelo contrário, provou-se que as mesmas foram efectuadas exclusivamente com os rendimentos, poupanças do e bens herdados pelo réu), pelo que, de modo algum, se pode dizer que este enriqueceu à sua custa.
Por fim, também conforme ficou dito, o trabalho doméstico desenvolvido pela autora em prol da vida e economia comum é considerado o cumprimento espontâneo de uma obrigação natural, insusceptível de ser exigida judicialmente e de ser restituída, pelo que também não se pode afirmar que o réu tenha enriquecido à custa da autora.
Por fim, ainda que assim não fosse, sempre se dirá que não se vislumbra qualquer enriquecimento por parte do réu, não obstante o trabalho doméstico da autora, face à matéria de facto provada, nos termos da qual durante os primeiros 4 anos da vida em comum foi o réu que suportou todas as despesas pessoais daquela e todas as despesas comuns e que, a partir do ano de 2005, atento o reduzido valor da pensão de invalidez paga aquela, o réu teve necessariamente que suportar parte das suas despesas pessoais, bem como continuar a suportar todas as despesas comuns.
Pelo exposto, improcede a apelação.
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As custas da apelação são da responsabilidade da apelante face ao seu decaimento (art. 527º, nº 1 e 2 do C.P.C.).
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Sumário – 663º nº 7 do C.P.C.:

I - A união de facto é uma realidade materialmente distinta do casamento pelo que, finda a mesma, quanto aos efeitos patrimoniais, há que recorrer ao direito comum (obrigacional ou real).
II – Caso os conviventes tenham celebrado um denominado “contrato de coabitação”, nos termos do qual designadamente tenham acordado acerca da propriedade dos bens resultantes da comunhão de vida e acerca das contribuições patrimoniais efectuadas, em caso de cessação da união de facto rege o referido contrato.
III – Na ausência deste contrato, finda a união de facto, a jurisprudência tem distinguido as seguintes situações:
a) Eventual compropriedade sobre determinados bens na sequência da intervenção de ambos no momento da aquisição podendo os mesmos ser partilhados nos termos gerais;
b) As despesas normais e correntes próprias da coabitação suportadas por um convivente ou por ambos, bem como o trabalho doméstico desenvolvido por um deles, não são restituíveis; e
c) As despesas estranhas aos encargos normais da vida em comum, suportadas por ambos no pressuposto da manutenção da união de facto, mas cuja propriedade ficou apenas no nome de um, deve o convivente enriquecido no seu património ser condenado a restituir ao outro o seu contributo.
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III – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e, consequentemente, confirmam a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
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Guimarães, 15/04/2021

Relatora: Margarida Almeida Fernandes
Adjuntos: Afonso Cabral de Andrade
Alcides Rodrigues