Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
189/12.6TJVNF-B.G1
Relator: MARIA DOS ANJOS MELO NOGUEIRA
Descritores: VENDA EXECUTIVA
DIREITO REAL DE GOZO
EXTINÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – Se estivermos perante um direito real de gozo cuja constituição seja posterior à penhora ou ao arresto, tal direito extingue-se na venda executiva. E extingue-se porque tratando-se de direito real de gozo constituído por acto voluntário do executado é inoponível ao exequente por força do art. 819.º CC (aplicável ao arresto pelo art. 622.º CC).

II - Tal como resulta do art.º 9.º do Código Civil não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (n.º 2), pois, na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (n.º 3).

III - Assim, não é admissível uma interpretação extensiva, nem analógica, dos arts. 819.º, n.º 1 e 820.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil, porquanto a letra da lei é clara no sentido de que o legislador pretendeu apenas abranger o conjunto de pessoas a serem convocadas para esses actos ou visadas no âmbito da sua aplicação.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I-Relatório

O exequente Banco A, S.A., com sede na Avenida … Lisboa, instaurou execução contra os executados X - Imobiliária, Lda, com sede na Praça … Vila Nova de Famalicão, M. J., com residência na Rua …, Vila Nova de Famalicão, M. F., com residência na Avenida …, Joane, M. C. e M. B., ambos com residência na Rua …, Vila Nova de Famalicão, alegando que, por operação de crédito realizada no âmbito da sua actividade comercial, é dono e legítimo portador de uma livrança, vencida em 16.12.2011, no valor de € 557.833,09, subscrita pela sociedade X - Imobiliária, Lda. e avalizada pelos demais executados, para caução de um contrato de abertura de crédito, e que apresentada a pagamento na data do vencimento, a mesma não foi paga então nem posteriormente, apesar dos executados terem sido interpelados para o fazer.

Invocou, ainda, que, por escritura pública outorgada em 19.11.2001, a sociedade executada constituiu a favor do Banco exequente hipoteca sobre o prédio misto, sito no Lugar …, freguesia de ..., concelho de Vila Nova de Famalicão, descrito na respectiva conservatória do registo predial sob o n.º ... e inscrito na matriz urbana com o artigo … e rústica com os artigos … e …, do qual foram desanexados outros imóveis, entre os quais o prédio urbano descrito na conservatória do registo predial sob o n.º …, que, por sua vez, veio a dar origem, também por desanexação, aos 27 lotes de terreno para construção sitos na freguesia de ..., concelho de Vila Nova de Famalicão, descritos na conservatória do registo predial sob os números … a … e inscritos na matriz urbana com os artigos … a … e nomeados à penhora;
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Elaborado o auto de penhora respeitante à fracção autónoma designada pela letra “H”, correspondente ao segundo andar, lado direito, norte, destinado a habitação, do prédio urbano sito na Avenida …., freguesia de Póvoa de Varzim, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número …- Póvoa de Varzim, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...º, com o valor patrimonial de 113.830,00€, procedeu-se ao seu registo, com data de 25.3.2014, a favor do exequente, tendo como sujeito passivo M. B. casada com M. C..
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O Requerente/Recorrente, P. M., intitulando-se dono e legítimo possuidor da referida fracção, e mencionando ter tido conhecimento da marcação da venda, requereu o cancelamento da penhora e a desmarcação da venda.
Juntou, para o efeito, cópia da escritura de compra e venda, datada de 28.4.2015, em que figurando como vendedores os referidos M. B. e M. C., estes declaram vender ao Requerente/Recorrente, P. M., e este comprar a dita fracção ´H´, aí se tendo, ainda, consignado, que sobre a identificada fracção incide uma penhora, cujo cancelamento os outorgantes vendedores se comprometem a efectuar.
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Posteriormente invocando ter sido a venda realizada sem ter tido conhecimento do levantamento da suspensão anteriormente decretada para esse efeito, não pôde estar presente, ou fazer-se representar, para defender os seus interesses, assim arguindo a nulidade com base no art. 195.º, do Cód. Proc. Civil.
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Face a esse requerimento foi proferido o seguinte despacho:

-“P. M. veio arguir a nulidade da venda do imóvel penhorado nos autos na medida em que não teve conhecimento do despacho que ordenou o “levantamento da suspensão”.
Tal facto determinou que não pudesse estar presente na venda ou fazer-se representar para defender os seus interesses.
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Respondeu o exequente “Banco AA, S. A.” sustentando que o despacho em causa não levantou a suspensão da venda inicialmente marcada para 22 de Novembro de 2016, pois esta nunca foi suspensa.

Como decorre do auto de abertura de propostas relativo à diligência de venda de 22 de Novembro de 2016, a mesma foi adiada para o dia 13 de Dezembro 2016, a fim de o Tribunal poder apreciar convenientemente, entre outros, o requerimento que o aludido P. M. havia apresentado no dia 11 de Novembro de 2016 e reiterado a 22 de Novembro de 2016, pouco antes da diligência marcada para esse dia.
Esses requerimentos foram indeferidos por infundados.
Por esse motivo, nada obstou a que a venda se realizasse na data agendada (dia 13 de Dezembro de 2016).
O Tribunal, aliás, poderia na própria diligência de venda apreciar o requerido pelo identificado P. M..
Acrescenta que (…) De resto, não sendo executado, nem exequente, nem credor reclamante, nem proponente, nem titular de direito de preferência, a sua admissão na diligência sempre dependeria, salvo melhor opinião, da boa vontade dos demais presentes e da Mma. Juiz, dado que carecia de legitimidade para assistir à mesma – cfr. arts. 820.º, n.º 1 e 819.º, n.º 1, CPC.
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Apreciando.

Na sequência, entre outros, do requerimento que dirigiu no dia 11 de Novembro de 2016 (cfr. referência n.º 4679668), a venda judicial designada para o dia 22 de Novembro de 2016 foi adiada – e não suspensa – para o dia 13 de Dezembro de 2016 (cfr. referência n.º 150511614).
No dia 22 de Novembro de 2016, o identificado P. M. requereu a suspensão do acto da venda até decisão do pedido de extinção da execução (cfr. referência nº4729425).

No dia 12 de Dezembro de 2016 foi proferido o seguinte despacho:

“Compulsados os autos, constata-se que, com a venda realizada em 03.11.2013 o Banco exequente não foi integralmente ressarcido da quantia exequenda e custas processuais, não devendo pois, os presentes autos terem sido julgados extintos pelo pagamento. De facto, de acordo com a comunicação emitida pelo AE em 27.01.2014 (entrada em juízo a 31.01.2014), a venda dos imóveis penhorados a favor do Banco exequente não foi suficiente para assegurar o pagamento integral da divida exequenda que, assim, prosseguiu pelo valor de capital de € 108.828,56, a que acrescem os juros de mora calculados à taxa indicada no requerimento executivo inicial até efectivo e integral pagamento. Assim sendo, foi legal o prosseguimento da execução, nomeadamente, para penhora e venda de outros bens penhoráveis dos executados, entre os quais se inclui o bem imóvel identificado pelo requerente cuja venda se encontra designada. Mais se dirá que, a penhora efectuada no âmbito destes autos que recai sobre o imóvel em questão era do conhecimento do requerente aquando da celebração da escritura pública de compra e venda através da qual adquiriu a propriedade deste bem imóvel, constando expressamente, nessa escritura a menção de que “sobre a referida fracção autónoma incide uma penhora, conforme inscrição apresentação dois mil cento e dezasseis, de vinte e cinco de Março de dois mil e catorze (…)”. Ora, tal venda (atendendo à data da sua realização) é inoponível ao exequente, tendo este sempre o direito de ser pago com preferência sobre qualquer outro credor que não tenha garantia real anterior – cfr. art. 822.º n.º 1 do Cód. Civil (…) Assim sendo, não existe qualquer razão que leve ao cancelamento ou à suspensão da diligência de venda designada” (cfr. referência n.º 150511626).
Este despacho foi notificado ao aludido P. M. no dia 13 de Dezembro de 2016 (cfr. referência nº150721887).
Deste modo, tal como sustenta o exequente, em momento algum foi ordenada a suspensão da diligência de venda.
Apenas foi adiada do dia 22 de Novembro para o dia 13 de Dezembro de 2016, sendo que a pretensão do mencionado P. M. foi indeferida por despacho proferido no dia 12 de Dezembro de 2016.

Em face do que fica exposto, aderimos aos fundamentos invocados pelo exequente “Banco AA, S. A.”, que, por brevidade de exposição, aqui reproduzimos.
Por outro lado, à abertura das propostas deve assistir o agente de execução e podem assistir o executado, o exequente, os reclamantes de créditos com garantias, os proponentes e os titulares do direito de preferência.
O identificado P. M., porém, não assume nenhuma destas qualidades processuais, o que significa que nem sequer teria de ser notificado para a diligência de venda.
Termos em que se conclui não ocorrer a invocada nulidade da venda efectuada nos autos.
Custas do incidente suscitado, que se fixam em 2 UC.
Notifique.”.
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II- Objecto do recurso

Não se conformando com a decisão proferida veio o requerente/recorrente interpor recurso, juntando, para o efeito, as suas alegações, e apresentando, a final, as seguintes conclusões:

1.ª Está provado e reconhecido, nos presentes autos, que o RECORRENTE é dono e legítimo possuidor da FRACÇÃO AUTÓNOMA designada pela letra “H”, correspondente ao segundo andar, lado direito, norte, destinado a habitação, do prédio urbano sito na Avenida …, na freguesia de …, concelho de Póvoa de Varzim, inscrito na matriz no artigo sob o artigo …, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número …- Póvoa de Varzim, cuja inscrição da sua aquisição, por compra, por parte do Recorrente, consta da INSCRIÇÃO feita pela Apresentação n.º 1506, de 8 de Janeiro de 2015, no referido registo.
2.ª Essa fracção foi penhorada nos presentes autos, a fim de, com o proveito da sua venda judicial, ser satisfeita uma dívida da executada X – Imobiliária, Lda. Por isso a fracção penhorada não pertence à referida executada nem a qualquer outro executado neste processo, sendo assim a coisa penhorada pertença de terceiro (em que este é o Recorrente).
3.ªA fracção ora referida foi vendida nos presentes autos, sem que o Recorrente tivesse sido notificado para os termos dessa diligência, como também nunca fora notificado para qualquer outro acto do processo.

Na verdade, o Recorrente não foi:

i- Notificado nos termos e para os efeitos do art.º 812.º do C.P.C, mormente para se pronunciar sobre a modalidade da venda e sobre o valor base da coisa a vender;
ii- Não foi notificado da decisão tomada nos termos do n.º 2 do art.º 812.º do C.P.C, respeitante à modalidade e valor base do bem a vender, para a poder impugnar, caso se justificasse.
iii- Não foi notificado do dia e hora e local da abertura de propostas de aquisição do bem - ou de outra forma da sua alienação -, para, assim, exercer os seus direitos de fiscalização do modo de publicitação da venda e do modo como decorreu a diligência de venda, assim como para poder exercer as impugnações pertinentes, caso para isso houvesse motivo.
4.ªPor nunca ter sido notificado para qualquer acto do processo, mormente o da sua venda, o Recorrente não pôde exercer, além dos direitos referidos na conclusão anterior, os direitos por que poderia defender o interesse:
i- De que a fracção fosse vendida pelo mais elevado valor, e, se possível, por valor superior ao da dívida, cujo pagamento garantia, porque o valor excedente reverteria em seu favor.
ii- De poder pagar a dívida até ao momento da emissão do título de transmissão da coisa, caso esse pagamento lhe fosse mais favorável que abrir mão da fracção.
iii- De poder pagar a dívida, impedindo a venda da fracção.
iv- O interesse moral de, caso não quisesse ou não pudesse exercer os direitos indicados nas alíneas anteriores, algum seu ascendente ou descendente ou cônjuge, adquirisse o imóvel exercendo o direito de remissão.
5.ª O Recorrente não pôde exercer os direitos invocados nas conclusões 3.ª e 4.ª, maxime os referidos nesta última, porque nunca foi notificado para qualquer acto do processo, mormente para o acto da sua venda. A omissão de todas essas notificações contende com o disposto nos artigos 820.º e 819.º, 812.º, 816.º, 817.º, 840.º, 220.º, 249.º, 195.º, e 197.º do C.P.C.
6.ª Por força do que foi alegado na fundamentação e sintetizado nas conclusões precedentes, o Recorrente arguiu a pertinente nulidade dos actos, que ignoraram a sua existência, ao não ser convocado para nenhum deles, e assim poder exercer os seus referidos direitos, mormente da sua não notificação para o acto da venda, por abertura de propostas.
7.ª O Tribunal julgou improcedente tal arguição, pois, com base nos art.º 820.º, 1 e 819.º, 1 do C.P.C disse que “à abertura de propostas deve assistir o agente de execução e podem assistir o executado, o exequente, os reclamantes de créditos com garantias, os proponentes e os titulares do direito de preferência”, e que, como o Recorrente “não assume nenhuma destas qualidades processuais”, isso “significa que nem sequer teria de ser notificado para a diligência de venda”.

Esta interpretação, estritamente literalista, que o Tribunal fez do disposto nos art.ºs 820.º, 1 e 819.º, 1, explica porque nunca o Tribunal deu qualquer importância ao facto do Recorrente nunca ter sido notificado do que quer que seja do processo.
Essa interpretação literal foi por isso sempre extensiva às normas processuais invocadas na conclusão 5.ª, das quais, interpretadas em conformidade com a Constituição, resulta o direito do recorrente dever ser notificado para os termos de qualquer acto processual
8.ª A decisão sob recurso viola assim as normas em que se louvou, bem como as invocadas na conclusão 5.º, porque, interpretadas à luz do art.º 11.º, 1 do C.C., ao recorrente teria de ser reconhecida posição idêntica à dos executados, fazendo-se a interpretação extensiva (ou por analogia) dessas normas, até por maioria de razão, para que o Recorrente pudesse exercer os direitos referidos na conclusão 4.ª.
9.ª Essa interpretação teria ainda de ser assim feita por força do princípio da interpretação das leis em conformidade com a Constituição, decorrente do disposto nos art.ºs 204.º e 202.º, 2 da Constituição. O modo como o Tribunal interpretou tais normas processuais contende com o disposto no art.º 62.º da Constituição; art.º 17.º da Declaração Univ. dos Dtos. do Homem; art.º 1.º do Protocolo n.º 11 da Conv. E. dos Dtos. do Homem e art.º 17.º da carta dos Dtos Fund. Da U. Europeia, que, ex vi art.º 8.º e 16.º da Constituição, dão ao direito de propriedade a natureza de um direito fundamental do cidadão.

Como os direitos fundamentas do cidadão gozam de tutela judicial, a decisão recorrida, no modo como interpretou as disposições dos art.ºs 820.º, 1 e 819.º, 1 do C.P.C., entendendo que estas normas vedam ao dono de uma coisa, nomeadamente uma habitação, quando esta está penhorada em processo executivo e o dono não é o executado, a sua intervenção em tal processo, e por isso, no caso dos autos, o Recorrente nunca foi notificado para qualquer acto ou termo de processo, mormente para o acto de venda da coisa, esse entendimento é inconstitucional.

Assim, por força do que o dispõem o art.º 20.º, 1 e 4 e 202.º, 1 e 2 e 204.º e 18.º, 1 da Constituição, tal interpretação das normas processuais ajuizadas é inconstitucional.
10.ª Estando assim em causa um direito fundamental do cidadão no caso dos autos um direito fundamental do Recorrente, a interpretação em causa, ao impedir ao Recorrente o acesso ao processo para defender os seus interesses sob a coisa penhorada, tutelados pelo direito de propriedade que tem sobre essa coisa, ainda viola outras normas constitucionais ou de igual valor.
11.ª Assim essa interpretação viola, desde logo, o disposto no artigo 1.º da constituição assim como o art.º 1.º da Decl. U. dos Dtos. do Homem, o art.º 1.º da Carta dos Dtos. Fund. Da U. Europeia e art.º 1.º da Conv. E. dos Dtos. do Homem, onde a dignidade da pessoa humana é o valor supremo que essas normas consagram, sendo essa dignidade a base da República Portuguesa. Essa interpretação esvai a pessoa dessa dimensão, que é a sua essência, objectivando-a, deixando a pessoa de ser a razão de todas as coisas.
12.ª Como consequência necessária da violação do princípio da dignidade da pessoa humana – que assim objectivou – a interpretação em causa também acaba por violar o direito do Recorrente de acesso ao direito e a um processo justo e equitativo, decorrentes, esses direitos, dos n.ºs 1 e 2 do art.º 20.º da Constituição e art.º 47.º da Carta E. dos Dtos. Fund. E, assim, não pode defender, na medida do que for possível, um direito que as leis dizem ser fundamental.
13.ª Ainda como consequência necessária da violação do princípio da dignidade da pessoa humana, a interpretação sob contestação viola os princípios da igualdade e da proporcionalidade, respectivamente consagrados nos art.ºs 13.º e 18.º, 2 da Constituição, ao desfavorecer a posição do dono da coisa penhorada, que não é executado, em relação ao executado, que pode intervir no processo, sendo esse desfavorecimento desproporcionado, excessivo, e sem nada que justifique tal desigualdade e tal desproporcionalidade.
14.ª No caso de se julgar que a intenção normativa, que tais normas comportam, é mesmo a de impedir a intervenção do dono da coisa penhorada – quando esse dono não é o executado – no processo executivo em que a coisa foi penhorada, para aí defender os seus interesses sobre essa coisa, enquanto seu proprietário, e, assim, consequentemente, não tem que ser – nem será – notificado para qualquer acto do processo, nomeadamente os respeitantes a todos os aspectos da fase de venda da coisa (in casu uma habitação), então não estamos, no caso dos autos, perante uma interpretação inconstitucional, porque desconforme com todas as normas constitucionais, e de igual valor, mas de uma decisão que deu guarida a normas crassamente inconstitucionais.
15.ª Na verdade se o disposto nos n.º 1 do artigo 820.º e n.º 1 do art.ºs 819.º do C.P.C, que deram arrimo ao Tribunal para julgar improcedente a nulidade invocada, recusam ao dono da coisa penhorada, em que esse dono não é o executado, o direito de ser notificado para os actos de venda dessa coisa e a neles intervir para assim defender os seus interesses sobre a coisa de que é proprietário; se as demais normas que integram esses artigos, bem como as que dão corpo aos já invocados artigos 812.º, 816.º, 840.º 220.º, 249.º, 195.º e 197.º, também não compreendem, nos seus campos de aplicação, o dono da coisa penhorada que não é executado, em posição idêntica à do executado, que terá sido o entendimento do Tribunal, pois nunca os fez cumprir ao longo do processo, então todas estas normas processuais são inconstitucionais, porque violam as normas constitucionais, ou de igual valor, invocadas nas conclusões 9.ª, 10.ª, 11.ª, 12.ª e 13.ª, agora não em forma de interpretação desconforme com as normas e princípios aí invocados, mas como directa violação dessa normatividade superior.
Como violou as normas e princípios invocados nestas conclusões, a decisão recorrida deverá ser revogada.
Justiça!
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O recurso foi recebido como de apelação, com subida imediata, em separado e efeito devolutivo.
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Foram colhidos os vistos legais.
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III. O objecto do recurso

Como resulta do disposto nos arts. 608.º, n.º 2, ex. vi do art.º 663.º, n.º 2; 635.º, n.º 4; 639.º, n. os 1 a 3; 641.º, n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, (C.P.C.), sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex. officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.

Face às conclusões das alegações de recurso, cumpre apreciar e decidir se os actos praticados previamente à venda são nulos por omissão das formalidades necessárias, com base no disposto nos artigos 820.º e 819.º, 812.º, 816.º, 817.º, 840.º, 220.º, 249.º, 195.º, e 197.º do C.P.C. ou, se assim não se entender, a sua leitura restritiva, ao não contemplar a notificação de quem é dono e não executado, redunda na inconstitucionalidade desses preceitos, obrigando à notificação do proprietário, ainda que não executado.
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- Fundamentação de facto

- as incidências fáctico-processuais acima descritas que aqui se dão por reproduzidas.
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- Fundamentação de Direito

Na execução para pagamento de quantia certa destacam-se, essencialmente, dois grandes momentos: a penhora e o pagamento - neste sentido, J. P. REMÉDIO MARQUES, (2000); Curso de Processo Executivo Comum à Face do Código Revisto; Coimbra: Almedina, pág. 19 e 20.

A penhora é a antecâmara necessária ao pagamento, pois consiste na apreensão, pelo tribunal, dos bens considerados necessários à concretização do mesmo – cfr. neste sentido J. M. ANTUNES VARELA, (1997); Das Obrigações em Geral (7ª ed., vol. 2); Coimbra: Almedina, pág. 153.

Especificamente, neste mesmo sentido JOSÉ LEBRE DE FREITAS, in ‘A Acção Executiva, Depois da reforma (5ª ed.), Coimbra Editora, pág. 263, refere que “(…) a penhora é o acto fundamental do processo executivo, de que as restantes fases do processo são como que o desenvolvimento natural. (…) a penhora não esgota em si mesma a sua finalidade: (…) é dirigida aos actos ulteriores de transmissão dos direitos do executado para, através deles, (…) ser satisfeito o interesse do exequente”.

E, em regra, a apreensão recaí sobre o património do devedor – nisto consiste a garantia geral das obrigações (art. 601.º CC); ou seja, pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor susceptíveis de penhora, com excepção dos patrimónios autónomos – cfr. NUNO DE LEMOS JORGE, (2002); Arrendamento de Imóveis Hipotecados: Caducidade do Arrendamento com a Venda Executiva; Trabalho Apresentado à Cadeira de Direito Civil no Mestrado em Ciências Jurídico-Processuais da FDUC., pág. 1, nota 1, e CARLOS A. MOTA PINTO, (2005); Teoria Geral do Direito Civil, (4ª ed. por MONTEIRO, A. Pinto, e PINTO, P. Mota);,Coimbra Editora, pág. 348.

Assim, por via da penhora, o exequente adquire o direito a ser pago com preferência sobre qualquer outro credor que não tenha garantia real anterior, salvo nos casos especialmente previstos na lei (art. 822.º, n.º 1 CC), estabelecendo uma indisponibilidade material absoluta dos bens penhorados, bem como jurídica relativa dos bens penhorados, na medida em que todos os actos de disposição, oneração ou arrendamento, praticados voluntariamente pelo executado sobre os bens penhorados são, apesar de válidos, provisoriamente ineficazes perante a execução, ressalvando-se as regras do registo (arts. 819.º e 820.º CC)
Por sua vez, a hipoteca constitui uma garantia especial real das obrigações que incide sobre coisas imóveis ou coisas móveis que, para este efeito, sejam por lei equiparadas às imóveis.

No entanto, o proprietário da coisa hipotecada pode continuar a praticar actos de alienação ou oneração sobre a mesma - cfr. art. 695.º, do Cód. Civil. Tal assim é porque essa possibilidade permite compatibilizar os interesses do comércio jurídico, os interesses do proprietário da coisa hipotecada e os interesses do credor hipotecário, porque não retira o bem imóvel ou equiparado de circulação, dado que, respectivamente, o proprietário da coisa hipotecada – que pode nem sequer ser o devedor da relação subjacente, mas um terceiro – pode continuar a usar, fruir e dispor de uma coisa que é sua, e previne injustiças e extorsões por parte do credor hipotecário, sem o prejudicar na medida em que não há uma depreciação do valor do bem hipotecado, nem com a alienação, nem com a oneração do mesmo.

Já a venda executiva constitui um contrato sui generis de compra e venda – cfr. JOSÉ ALBERTO DOS REIS, (1941); Da Venda no Processo de Execução publicado em ROA (ano 1, vol. 2), págs. 410 a 450; Lisboa, pág. 449. É um contrato de compra e venda porque nela existem duas manifestações de vontade de sentido oposto mas convergente – a do Estado, no exercício de um poder, e a do adquirente, no exercício de um direito subjectivo – ajustando-se na pretensão de produzir um resultado jurídico unitário – a transmissão da titularidade de um direito em contrapartida à transmissão do preço. Contudo, quem aliena é o Estado, e fá-lo no exercício de um poder de jurisdição executiva (poder de autoridade originário), pelo qual vende o bem do devedor em nome próprio e não em representação ou substituição do mesmo, sobrepondo-se à vontade deste. De qualquer das formas, os actos de alienação e oneração da coisa hipotecada são válidos mas ineficazes perante o credor hipotecário – cfr. J.Oliveira Ascensão, in ‘As Relações Jurídicas Reais’, pg. 359.

Na questão a decidir, para melhor compreensão de toda a situação, há, ainda, que ter em conta que, nos termos do disposto no art. 824.º, n.º 1, do Cód. Civil, em consonância com o art. 879.º, alínea a), do mesmo diploma, se estabelece que: “A venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida”, independentemente da modalidade da venda e da natureza do direito transmitido, e que “Os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os oneram, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente do registo” – cfr. art. 824º, n.º 2, do Cód. Civil.

Assim, se estivermos perante um direito real de gozo cuja constituição seja anterior à apreensão (penhora ou arresto), mas posterior ao direito real de garantia de um credor reclamante, o mesmo só se extingue, transferindo-se para o produto da venda, se o credor reclamante, citado para o efeito, requerer a extensão do objecto da apreensão ao objecto da sua garantia e a citação do titular do direito real de gozo, para tomar a posição do executado no processo. Caso contrário, o direito real de gozo subsiste com a venda executiva. E subsiste tal direito real de gozo porque, no momento da constituição da penhora ou do arresto, o mesmo já existia, não podendo a apreensão ter recaído sobre ele.

Já, se estivermos perante um direito real de gozo cuja constituição seja posterior à penhora ou ao arresto, tal direito extingue-se na venda executiva. E extingue-se porque tratando-se de direito real de gozo constituído por acto voluntário do executado é inoponível ao exequente por força do art. 819.º CC (aplicável ao arresto pelo art. 622.º CC). Nesta hipótes

Acresce que, quanto aos direitos reais de gozo sujeitos a registo, a unidade do sistema jurídico impõe-nos que interpretemos o art. 824º, n.º 2 CC em consonância com o registo predial, através do qual se pretende consolidar ou confirmar as posições jurídicas emergentes dos actos sujeitos a registo, assegurando-lhes a sua eficácia perante certos e determinados terceiros (art. 5.º, n.º 1 CRPred.) pois, inter partes a constituição ou a transmissão de direitos reais opera solo consensu (art. 4.º, n.º 1 CRPred.). Em suma, com o título de aquisição (titulus adquirendi), constituem-se ou transmitem-se os direitos reais sobre coisa certa e determinada; com o registo, tornam-se oponíveis, perante certos e determinados terceiros, os factos sujeitos à publicidade registal (art. 5.º, n.º 1 CRPred.).

Certo é que, se o objecto da apreensão abarcar bens que não pertencem ao executado, estamos perante uma apreensão ilegal por impenhorabilidade subjectiva, susceptível de provocar uma reacção contra a mesma: a oposição por simples requerimento (arts. 723.º, n.º 1, alínea c) e d), 744.º, n.º 2 e 764.º, n.º 3 CPC), os embargos de terceiro (arts. 1285.º CC e 342.º a 350.º CPC) e a acção de reivindicação (arts. 1311.º a 1313.º CC e 839.º, n.º 1, alínea d), 840.º e 841.º CPC), para além da possibilidade de o titular inscrito vir ao processo, após citação, declarar se o prédio ou direito lhe pertence (art. 119.º CRPred.)

Posto isto, importa ter em conta o ritual que se segue até à venda, por forma a apurar-se se se cometeu alguma omissão em relação ao Requerente/Recorrente.

A este respeito, diz-nos o art. 812.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil, que a decisão sobre a venda cabe ao agente de execução, ouvidos o exequente, o executado e os credores com garantia sobre os bens a vender.

Assim, em conformidade com o disposto no art. 817.º, n.º 1, als. a) e b), 2 e 3, do mesmo diploma, determinada a venda mediante propostas em carta fechada, o juiz designa o dia e a hora para a abertura das propostas, devendo aquela ser publicitada, pelo agente de execução, com a antecipação de 10 dias, mediante anúncio em página informática de acesso público, nos termos de portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça, onde conste o nome do executado, a identificação do agente de execução, o dia, a hora e o local da abertura das propostas, a identificação sumária dos bens e o valor a anunciar para a venda; e mediante edital a afixar na porta dos prédios urbanos a vender, sem prejuízo de, por iniciativa do agente de execução ou sugestão dos interessados na venda, sejam utilizados outros meios de divulgação.

Por sua vez, preceitua-se no art. 819.º, n.º 1, do mesmo diploma, que os titulares do direito de preferência, legal ou convencional com eficácia real, na alienação dos bens são notificados do dia, da hora e do local aprazados para a abertura das propostas, a fim de poderem exercer o seu direito no próprio acto, se alguma proposta for aceite.
Contudo, como convém desde logo ter em consideração, o Requerente/Recorrente não é titular de um qualquer direito de preferência, mas sim o titular do bem adquirido após a realização e registo da penhora.

Acresce, ainda, que as irregularidades relativas à abertura, licitação, sorteio, apreciação e aceitação das propostas só podem ser arguidas no próprio acto, como decorre do disposto no art. 822.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil, e a venda só fica sem efeito, nomeadamente, se for anulado o acto da venda, nos termos do artigo 195.º, do mesmo diploma, e se a coisa vendida não pertencia ao executado e foi reivindicada pelo dono ( cfr. art. 839.º, n.º 1, als. c) e d), do Cód. Proc. Civi).

Por outro lado, para que conste, dado que o Requerente/Recorrente refere que, se notificado, poderia sempre fazer valer o direito de remir o bem vendido pelo preço da venda, tal apenas é facultado, tal como decorre do disposto no art. 842.º, do Cód. Proc. Civil, ao cônjuge que não esteja separado judicialmente de pessoas e bens e aos descendentes ou ascendentes do executado e não em relação a qualquer outro interveniente, por não ter passado a ocupar a posição daquele.

Assim, perante o exposto, importa agora atentar no que se estipula quanto às nulidades processuais.
A este respeito, como ensina Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, 1979, página 176, "As nulidades de processo (...) são quaisquer
desvios do formalismo processual seguido em relação ao formalismo processual prescrito na lei e a que esta faça corresponder - embora não de modo expresso - uma invalidação mais ou menos extensa de actos processuais ( ... )".


Tais nulidades, podem ser principais ou secundárias.

Ora, como decorre do disposto no art. 195.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil, a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão.

Das restantes nulidades, que não as mencionadas nos artigos 186.º e 187.º, na segunda parte do n.º 2 do artigo 191.º e nos artigos 193.º e 194.º do citado diploma, o tribunal só pode delas conhecer sobre reclamação dos interessados, salvos os casos especiais em que a lei permite o conhecimento oficioso – cfr. art. 196.º, 2.ª parte, do Cód. Proc. Civil.

À excepção das nulidades a que se referem o artigo 186.º e o n.º 1 do artigo 193.º, bem como as dos artigos 187.º e 194.º, as demais, o prazo para a sua arguição conta-se do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum acto praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele – cfr. art. 199.º, 1.ª parte, do Cód. Proc. Civil – e são apreciadas logo que sejam reclamadas – cfr. n.º 3, do art. 200.º, do mesmo diploma.

In casu, é inequívoco que, tal como decorre dos preceitos citados, não sendo o Requerente/Recorrente executado, o mesmo não é, nem deve, ser notificado para estar presente no acto da abertura de propostas, nem para qualquer outro acto atinente ao processo de venda do bem penhorado, pelo que fácil se torna concluir não ter existido qualquer omissão de um acto ou formalidade prescrita na lei.

Por outro lado, mesmo que assim não se entendesse, também necessário seria, dado que a lei não o declara, que a irregularidade cometida pudesse influir no exame ou na decisão, o que, in casu, não se mostra alegado e, muito menos, demonstrado.

E se, tal como resulta do art.º 9.º do Código Civil, a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (n.º 1), o facto é que não pode, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (n.º 2), pois, na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (n.º 3).

Assim, não é admissível uma interpretação extensiva, nem analógica, dos arts. 819.º, n.º 1 e 820.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil, porquanto a letra da lei é clara no sentido de que o legislador pretendeu apenas abranger o conjunto de pessoas a serem convocadas para esses actos ou visadas no âmbito da sua aplicação.
Por conseguinte, não se pode concluir que o princípio da unidade do sistema jurídico imponha o alargamento da sua aplicação a outras pessoas, já que o legislador expressamente as não quis contemplar ou abranger, como o poderia fazer se quisesse referindo, ‘bem como outros interessados no acto’.

Perante o descrito enquadramento normativo e a apontada visão doutrinal, e porque o Requerente/Recorrente não integra o conjunto de pessoas indicado nos citados preceitos, entende-se que a decisão proferida não merece censura, nem tais normas são inconstitucionais, por não violarem os princípios constitucionais apontados.

Pois, tal como se apontou, tendo a venda ao Requerente/Recorrente, ocorrido após a penhora, tal acto é inoponível ao exequente, não se encontrando, por isso, o comprador protegido, muito menos aquele, como é o caso dos autos, que conhecia os exactos termos e condições em que o bem se encontrava.

Face ao exposto, julga-se improcedente a apelação interposta

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IV- Decisão

Pelo exposto acordam os juízes nesta Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo, consequentemente, a decisão recorrida nos termos supra expostos.
Custas pelo recorrente.
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TRG, 22.11.2018
(O presente acórdão foi elaborado em processador de texto pela primeira signatária)

Maria dos Anjos S. Melo Nogueira
Desembargador José Carlos Dias Cravo
Desembargador António Manuel Antunes Figueiredo de Almeida