Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1770/13.1TAGMR-C.G1
Relator: ISABEL CERQUEIRA
Descritores: CONTUMÁCIA
ARGUIDO RESIDENTE NO BRASIL
REGIME DE CESSAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/22/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
1- A contumácia só cessa com a apresentação pessoal do arguido em juízo ou com a sua detenção, e não com qualquer notificação feita a seu requerimento de designação de data para julgamento.
2 - Nem as declarações apresentadas pelo recorrente de que tem conhecimento da acusação, de que renuncia ao prazo para requerer a instrução e de que pretende ser julgado na sua ausência permitem a declaração da cessação da contumácia.
3 - Tal como não o permite a alegação de impossibilidade de se deslocar do Brasil a Portugal, por não ter cartão de cidadão e passaporte válidos e estarmos em tempos de restrições de viagens em função de pandemia, quando tal é possível, embora com incómodos e gastos, quando o recorrente foi declarado contumaz há cerca de 6 anos, e só em função da caducidade daqueles documentos se preocupou com tal situação restritiva de alguns dos seus direitos.
Decisão Texto Integral:
Relatora : Maria Isabel Cerqueira
Adjunto : Fernando Chaves

Relatório

No Juízo Local Criminal de Guimarães – Juiz 4, por despacho de 7/10/2020, foi indeferida a cessação da contumácia requerida pelo arguido B. C., por requerimento no qual alegava, em síntese, que pretendendo apresentar-se em juízo, não o pode fazer, por terem caducado o seu cartão de cidadão e o seu passaporte, o que o impede de sair do Brasil onde reside, ou pelo menos, de regressar a esse País. Acrescenta que tendo conhecimento da acusação deduzida contra si, e renunciando ao prazo para requerer instrução, quer ser julgado na sua ausência, sendo todas as notificações feitas na pessoa da sua mandatária, pelo que, e não podendo prestar TIR no Brasil, País onde reside há 10 anos, deve ser cessada a sua contumácia e designada data para o julgamento a realizar na sua ausência.
Foi daquele despacho que o arguido interpôs o presente recurso, que fundamenta, em síntese, nas conclusões do seu recurso, pelas quais se afere o seu âmbito, no facto de a letra da lei não exigir expressamente que a apresentação em juízo para a cessação da contumácia tenha que consistir num contacto pessoal do agente com o tribunal, e que a situação dos autos não se “compadece com a situação e enquadramento jurídico previsto no AUJ n.º 5/2014”, pelo que, mesmo podendo deslocar-se a Portugal, onde não tem habitação, familiares ou amigos, não pode depois regressar ao Brasil, devendo, pois, ser considerada para efeitos de cessação da contumácia como apresentação em juízo o requerimento apresentado em 24/02/2020, subscrito por si, e no qual assegura a continuidade dos autos, e designadamente a notificação da sentença que vier a ser proferida.
Tanto mais que, perante a crise de saúde mundial que se vive (COVID-19) e que levou a Organização Mundial de Saúde a fixar directrizes no sentido de se evitar toda e qualquer deslocação de pessoas excepto por razões de saúde, é completamente desproporcional e violadora dos seus direitos a exigência da apresentação pessoal (além de implicar a prática de actos inúteis e prejudicar a celeridade processual), tendo o despacho proferido violado os art.ºs 26º, 27º, 58º e 65º da CRP.
A Magistrada do M.P. junto do tribunal recorrido, respondeu àquele recurso, pugnando pela sua improcedência.
A Ex.mª Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta junto deste Tribunal emitiu douto parecer no qual se pronuncia no mesmo sentido.
Foi cumprindo o disposto no n.º 2 do art.º 417º do Código de Processo Penal (doravante apenas referido como CPP), tendo o arguido respondido ao parecer, foram colhidos os vistos legais, e procedeu-se à conferência, cumprindo decidir.
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É o seguinte o teor do douto despacho recorrido, que se reproduz parcialmente:

Fls. 280 e ss.: O arguido veio alegar, em suma, que reside no Brasil, pretende apresentar-se em juízo para fazer cessar a contumácia. Todavia, mostra-se impossibilitado de o fazer, em face da caducidade do seu cartão do cidadão e passaporte.
Mais alega que tem conhecimento da acusação, renuncia ao prazo para requerer a instrução, e autoriza que o julgamento se realize na ausência, devendo as notificações serem feitas à sua mandatária (inclusive da sentença).
A fls. 287 e 288, o MºPº, pugnou pelo levantamento da contumácia e marcação do julgamento.
O tribunal solicitou informação às entidades Consulares e Ministério dos Negócios Estrangeiros, no sentido de esclarecer se o arguido está ou não impossibilitado de viajar para Portugal e assim apresentar-se em tribunal.
A fls. 319 e ss., finalmente, a Embaixada de Portugal, respondeu, informando que existe um mecanismo legal que possibilita o regresso do arguido a Portugal e já se encontra em contacto com o mesmo para a emissão de tal documento.
O MºPº, pugna agora pela manutenção da contumácia.
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Estabelece o art.º º 335.º, n.º 3 do Código de Processo Penal dispõe que a «a declaração de contumácia (...) implica a suspensão dos termos ulteriores do processo até à apresentação ou à detenção do arguido, sem prejuízo da realização de actos urgentes nos termos do art.º 320.º(...)» (negrito nosso)
O n.º 1 do art.º 336.º preceitua que «a declaração de contumácia caduca logo, que o arguido se apresentar ou for detido». Por último, o art.º 337.º, n.º 1, dispõe que «a declaração de contumácia implica para o arguido a passagem imediata de mandato de detenção para efeitos do disposto no n.º 2 do artigo anterior» (...). (negrito nosso)
Como se defendeu no AUJ. Nº 5/2014 “Como vimos acima, a prestação de TIR assume-se, no enquadramento legal atualmente vigente, como o elemento fulcral de ligação do arguido ao processo, permitindo a sua tramitação até final, e simultaneamente facultando ao arguido o exercício efetivo dos seus direitos de defesa.
Contudo, como já se assinalou, não é a prestação de TIR que precede e provoca a caducidade da contumácia; pelo contrário, é a caducidade da contumácia que determina e provoca a prestação de TIR. É o que dispõe o art. 336.º, n.os 1 e 2, do CPP.
Ou seja: é o contacto pessoal do arguido com o tribunal (por meio da apresentação ou da detenção) que permite considerar caducada a contumácia, que é caracterizada precisamente pela impossibilidade de efetuar esse contacto. É o contacto pessoal que viabiliza, por meio da prestação de TIR, a manutenção de uma ligação do arguido ao processo até ao seu termo. O TIR é o instrumento dessa ligação subsequente à caducidade da contumácia, não a causa dessa caducidade.”
Na verdade, o arguido, através do título de viagem única, podia, como pode, querendo, regressar a Portugal, apresentar-se em juízo, prestar TIR e assim fazer cessar a contumácia. Todavia, até ao momento não o fez, tentando, antes, contornar a lei e o AUJ, invocando querer fazê-lo mas estar impossibilitado, o que como se viu, não é verídico.
Alega a sua il. mandatária, que basta a procuração junta aos autos e a manifestação de que o arguido requer o julgamento na ausência, para cessar a sua contumácia. Contudo, não existe qualquer fundamento legal para tal interpretação – em lado nenhum a lei consagra tal causa de cessação da contumácia - o interprete não pode fazer interpretações arredadas da letra da lei.
Como se expôs, só depois do arguido prestar TIR e cessar a contumácia, é que os autos prosseguem para julgamento – e isso está sempre dependente da sua apresentação em juízo.
Ademais, é irrelevante que autorize o julgamento na ausência e a notificação dos actos e até da sentença na pessoa da sua defensora, atento que poderia até ser o caso do tribunal indeferir tal requerimento de julgamento na ausência, e bem assim a sentença também não pode ser apenas notificada ao mandatário, mas antes também e sempre pessoalmente ao arguido.
Destarte, indefere-se ao requerido, mantendo-se a contumácia.
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Fundamentação de direito

No caso sub judice, o recorrente, declarado contumaz em 2014, veio requerer a cessação da contumácia, por tendo residência habitual no Brasil, e estar com o seu cartão de cidadão e passaporte portugueses caducados, não poder deslocar-se a Portugal, para se apresentar em juízo e prestar TIR.

Ora, nos termos do n.º 3 do art.º 335º do CPP, a declaração de contumácia implica a suspensão dos ulteriores termos do processo até à apresentação ou detenção do arguido, sem prejuízo da realização de actos urgentes nos termos do art.º 320º do mesmo diploma legal, que refere estes actos urgentes sem os definir acrescentando-lhes aqueles cuja demora possa acarretar perigo para a aquisição ou a conservação da prova ou para a descoberta da verdade.
Não se encontrando definido expressamente na lei processual penal quais são os actos urgentes, não se pode deixar de considerar que estes são aqueles que implicam que a sua prática possa fazer-se fora do circunstancialismo temporal previsto no n.º 1 do art.º 109º do CPP, ou sejam todos os previstos no n.º 2 do mesmo normativo legal.

Nos autos não existe qualquer elemento que indicie que a não notificação do arguido declarado contumaz possa acarretar perigos para a aquisição ou conservação da prova ou para a descoberta da verdade, e a notificação requerida não integra nenhum dos casos previstos naquele n.º 2 do citado art.º 336º, nem qualquer acto que faça cessar a declaração de contumácia, estes sim também actos urgentes porque necessários para a prossecução da função jurisdicional do Estado que não pode ser cabalmente exercida sem a cessação da declaração de contumácia.

Porém, a contumácia só cessa quando deixam de estar suspensos os termos ulteriores à sua declaração, o que apenas acontece, como estipula o n.º 2 com a apresentação ou detenção do arguido, que é logo seguida de prestação de TIR, medida cautelar que é a única possibilidade de que o agente possa vir a ser julgado na sua ausência e que como é referido no AUJ n.º 5/2014 não pode preceder a cessação da contumácia, sendo uma consequência desta, pois, e como neste douto acórdão se refere:

“Efetivamente, com a reforma processual contida na Lei nº 59/98 e no DL nº 320-C/2000, o arguido que preste TIR pode ser notificado, mediante via postal simples, para os posteriores termos do processo, incluindo a audiência de julgamento, sendo julgado na sua ausência, caso não compareça (art. 196º, nºs 2 e 3, d), do CPP).
Pode, pois, o arguido ser julgado na sua ausência. Mas desde que regularmente notificado (art. 333º, nº 1, do CPP), notificação essa a realizar por meio de via postal simples, como se referiu. Sem essa notificação o julgamento na ausência do arguido não é admissível.
Acontece que a notificação por via postal simples segue o procedimento descrito nos nºs 3 e 4 do art. 113º do CPP, procedimento esse que, embora agilizado, relativamente a outras modalidades de notificação como a pessoal, garante, se cumprido nos seus precisos termos (e só nessas circunstâncias), a fiabilidade da transmissão ao arguido da comunicação do tribunal.
Esse procedimento consiste no seguinte: o distribuidor do serviço postal tem o dever de, após depositar a carta na caixa do correio do notificando, exarar uma declaração indicando a data e confirmando o local exato do depósito, que depois envia ao tribunal remetente. O distribuidor postal funciona, pois, como um “agente judiciário”, recaindo sobre ele o dever funcional, juridicamente fundado, de prestar aquela declaração, declaração essa que certifica a entrega da carta na caixa de correio do arguido. É essa declaração que fiabiliza a via postal como meio de comunicação ao arguido do ato ou da convocação do tribunal.
Esse dever jurídico imposto aos distribuidores dos serviços postais nacionais não é evidentemente extensível aos serviços postais estrangeiros, pelo que a remessa por via postal simples da comunicação de qualquer ato ou convocação do tribunal ao arguido residente no estrangeiro para a sua morada não cumpriria os requisitos do art. 113º, nºs 3 e 4, do CPP, não valendo, pois, como notificação.
Nem poderia “substituir-se” a notificação simples pela carta registada, prevista igualmente como meio de notificação na al. b) do nº 1 do art. 113º do CPP. Na verdade, não é por acaso que o legislador estabeleceu a via postal simples para a notificação do arguido sujeito a TIR. É que a notificação por via postal simples para a morada indicada pelo arguido, ao impor a elaboração pelo carteiro da declaração de depósito, e ao responsabilizar simultaneamente o arguido pela recolha da correspondência recebida nessa morada, assegura a entrega da correspondência no domicílio do destino, o domicílio indicado pelo arguido.
É essa declaração que o legislador entendeu ser a prova mais fiável, ou melhor a única fiável, da efetivação da notificação ao arguido, por sua vez responsabilizado pela receção de qualquer comunicação do tribunal naquele endereço, que ele escolheu para esse fim.” (texto do mesmo AUJ).

Assim, as declarações apresentadas pelo recorrente de que tem conhecimento da acusação, de que renuncia ao prazo para requerer a instrução e de que pretende ser julgado na sua ausência, sendo notificado da sentença a proferir na pessoa da sua mandatária, não substituem a sua apresentação em juízo, esta sim conducente à prestação de TIR e ao prosseguimento dos autos mas apenas até ao julgamento e prolação da decisão, já que, e quanto à notificação desta, tendo a audiência sido efectuada na ausência do arguido, a mesma teria que ser pessoal.

Ora, não revestindo o requerido pelo recorrente a natureza de apresentação de arguido em juízo, nem sendo a notificação requerida de designação de julgamento apta a fazer cessar a contumácia, designação de data que não constitui a prática de acto de natureza urgente ou cuja falta possa acarretar qualquer perigo para a conservação da prova ou para a descoberta da verdade, tinha que ser indeferido, face ao disposto no n.º 3 do art.º 335º do CPP.

Na verdade nos autos não está demonstrada a impossibilidade de o arguido se deslocar ao nosso País para se apresentar em juízo (como é o caso da situação descrita no acórdão deste tribunal que cita na sua motivação, na qual o arguido está em cumprimento de uma pena de 12 anos de prisão), por a sua deslocação ser possível, conforme resulta de documento junto aos autos, e o seu regresso ao Brasil também ser possível, desde que como cidadão português aqui obtenha, cessada a contumácia, os documentos caducados e necessários para o efeito.

Podendo a sua deslocação a este país constituir um incómodo significativo e até despesas de monta, tal não equivale a impossibilidade, mesmo na actual situação de pandemia, sabido que é que existem voos de repatriamento entre Portugal e o Brasil, e sobretudo quando o arguido, declarado contumaz há cerca de 6 anos, à data do requerido, só vem requerer a cessação da contumácia, quando já se verificava aquela situação pandémica, mas ainda existiam voos comerciais, que lhe permitiam a deslocação a Portugal.

Tanto mais que, “O instituto da contumácia acarreta ao arguido determinadas inibições de âmbito pessoal e patrimonial e visa que o mesmo se coloque à disposição do Tribunal por forma a pôr termo à sua evasão do processo e, concomitantemente, a suspensão dos ulteriores termos do processo, sem prejuízo da prática de actos urgentes” (ac. deste tribunal de 21/05/2018, relatado pela Sr.ª Desembargadora Ausenda Gonçalves), e que frustaria aquele fim da lei o fazer outra interpretação do art.º 336º do CPP.

Também a imposição de apresentação pessoal em juízo para a cessação da contumácia não é violadora de qualquer norma constitucional, designadamente dos direitos ao trabalho e à habitação, ou do princípio da proporcionalidade, mas sim, uma obrigação decorrente do especial dever do arguido de comparecer, em juízo sempre que a lei lho exija, e de prestar termo de identidade e residência (alíneas a) e c) do n.º 6 do art.º 61º Do CPP).

Tem, pois, que improceder o recurso interposto.
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Decisão

Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso interposto pelo arguido B. C..
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 Ucs.
Guimarães, 22 de Março de 2021