Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
25/13.6TAVNF.G1
Relator: AUSENDA GONÇALVES
Descritores: CASO JULGADO
NEXO DE CAUSALIDADE
NOVAÇÃO OBJECTIVA
ARTºS 577º
I)
628º DO CPC
483º E 563º
Nº 1
857º E 859º DO CC
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I. Visando a impugnação ampla da matéria de facto, através da invocação de erro de julgamento, aos recorrentes era exigível que efectuassem a indicação concreta da sua divergência probatória, indicando as propostas de decisão alternativa sobre os concretos pontos de facto impugnados e os suportes onde se encontra gravada a prova, com remessa para os concretos locais da gravação que suportariam a sua tese: perante a falta dessa específica indicação, comprometida fica a possibilidade de este tribunal de recurso sindicar a matéria de facto fixada na sentença recorrida.

II. A intangibilidade (tendencial) do caso julgado (art. 628º do CPC) é um princípio do nosso ordenamento jurídico decorrente da exigência da boa administração da justiça, da funcionalidade dos tribunais e da salvaguarda da paz social, dado que dá expressão aos valores da segurança e certeza imanentes a qualquer ordem jurídica: o caso julgado acarreta para o tribunal do processo subsequente a dupla proibição de contradição ou de repetição da decisão transitada e resolve-se num pressuposto processual negativo e, portanto, numa excepção dilatória própria [art. 577º i) do CPC], mas a decisão proferida sobre o mesmo objecto também vale entre as mesmas partes de ambas as acções, como “autoridade de caso julgado”, e, quando tal sucede, o tribunal da acção posterior está vinculado à decisão proferida na causa anterior, mesmo sem a tríplice homotropia de sujeitos, pedido e de causa de pedir.

III. À verificação do nexo de causalidade, a que se reportam os arts. 483º, n.º 1, e 563º do CC, não basta que o evento tenha produzido certo efeito para que este, do ponto de vista jurídico, se possa considerar como tendo sido causado ou provocado por ele, sendo antes necessário que o evento danoso seja uma causa provável, adequada, desse efeito.

IV. A novação objectiva, prevista no art. 857º do CC e traduzida na celebração de um novo contrato, através do qual é contraída uma nova obrigação em substituição da antiga, pressupõe que a vontade das partes em contrair a nova obrigação em substituição da antiga – extinguindo-a e não apenas modificando-a – seja expressamente manifestada (art. 859º do CC), sendo expressa a declaração quando feita por palavras, escrito ou qualquer outro meio directo de manifestação de vontade, nos termos do art. 217º, n.º 1 do CC.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I- Relatório

No âmbito do supra identificado processo, a correr termos pelo Juízo Local Criminal de Vila Nova de Famalicão, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, os arguidos Alberto e Jorge, foram submetidos a julgamento e, proferida decisão a 21/03/2018 e depositada na mesma data, foram os mesmos condenados, como autores materiais de um crime de falsificação de documento p. e p. pelo art. 256º, n.º 1, d), em conjugação com o disposto no art. 255º, a), do Código Penal, nas penas de 200 (duzentos) dias de multa à taxa diária de € 7,50 (sete euros e cinquenta cêntimos) e € 8,50 (oito euros e cinquenta cêntimos), respectivamente e, ainda, a pagar solidariamente à demandante cível X - BS, Ldª, a quantia de € 30.000 (trinta mil euros), a título de danos patrimoniais, acrescidos de juros de mora legais, contados desde a notificação até integral pagamento), para ressarcimento dos danos patrimoniais pela mesma sofridos.

Inconformados, os arguidos interpuseram recurso, pugnando pela sua absolvição, rematando a motivação com as seguintes conclusões (sic):

«O douto Tribunal “a quo” embora refira que tomou em consideração toda a prova trazida aos autos, quer a testemunhal, quer a documental, o que é certo é que se alheou totalmente á vastíssima prova documental existente nos autos a qual, se tivesse sido atendida, teria tido como consequência, a absolvição dos arguidos do crime de que vêm acusados
2- Refere ainda o douto tribunal que “ a prova produzida deve ser analisada atenta a segurança oferecida por cada elemento probatório…. E bem assim ponderada de acordo com o seu confronto com os demais elementos de prova constantes nos autos…por forma a que o resultado final não produza uma decisão injusta, insuficientemente segura…ou incoerente com a realidade e o normal acontecer dos factos”.
3- Porém, atendendo á decisão que acabou por ser proferida nos autos, se verifica que, apenas tomou em consideração os depoimentos testemunhais produzidos em audiência, e desses, apenas dois, que são os prestados pela dona da empresa X, única interessada no desfecho deste processo e o da sua cunhada, para alicerçar a sua decisão.
4- Estas testemunhas além de prestarem depoimentos contrários a tudo o que anteriormente a empresa tinha trazido a Tribunal, demonstraram claramente um enorme interesse na causa, resultante da necessidade de tentarem receber de terceiros os montantes que não conseguiram dos devedores.
5- Contrariamente ao por si vertido na motivação de facto, o douto Tribunal “a quo” fez “tábua raza” da imensa prova documental que aí se encontrava.
6- Atenta a manifesta falta de provas e as dúvidas que se levantaram, devia o douto Tribunal ter recorrido ao princípio “In dúbio pro reo” e absolvido os arguidos dos crime de que vinham acusados.
7- Impondo-se assim que seja revogada a douta sentença e, considerar-se não provados os nºs 7, 8, 9, 11, 13, 14, 15, 16, 18, 20 21, 22 e 23 dos factos provados.
8- Ocorreu nulidade da sentença, por violação do princípio in dúbio pro réo, devendo por isso, substituir-se a douta decisão proferida por outra, que absolva os arguidos do crime em que foram condenados.
9- Apesar de referir o douto Tribunal “a quo” que a indemnização de perdas e danos emergentes de crime, se afere em função do disposto na Lei Civil, no regime previsto no artº 483 do Código Civil e que é “conditio sine qua non” da responsabilidade civil, a verificação dos danos, isto é que o facto ilícito culposo tenha causado prejuízo a alguém, não decidiu em conformidade.
10- A exigência do nexo de causalidade adequada deve marcar presença numa fase preliminar do contrato propriamente dito, como geradora de prejuízos, nisto se traduzindo a responsabilidade pré-contratual e em momento algum tal sucedeu.
11- Nenhum nexo de causalidade ocorreu entre a ordem de cancelamento dos cheques e o prejuízo da demandante, pois esta já tinha suportado o prejuízo quando fez o fornecimento a terceiros.
12- Devem os arguidos ser absolvidos do pagamento do valor titulado pelos cheques, porque não foi o seu cancelamento que provocou o prejuízo mas sim um fornecimento anterior, a um terceiro, a que estes eram totalmente alheios.
13- A partir do momento que foi acordado o pagamento da totalidade da dívida com uma letra, a demandante deixou de ser legítima portadora dos cheques, pois ocorreu novação da dívida, pois foi celebrada nova convenção pela qual as partes extinguiram a obrigação, mediante a criação de uma nova obrigação no seu lugar.
14- A novação da dívida foi confessada no requerimento executivo, nas declarações das testemunhas de acusação e foi considerada provada em nºs 26 e 27 dos factos provados.
15- Os arguidos invocaram essa circunstância em sede de contestação mas apesar de se considerarem provados os factos, em vez de ser daí extraída uma consequência jurídica, vem emanada uma injustificável justificação, pois o douto tribunal “a quo” entendeu que a letra não tinha validade só porque não foi descontada pelo banco.
16- Ao condenar os arguidos nos termos em que o fez, incorreu o douto tribunal “a quo” em erro de julgamento, pelo que deve ser proferida nova decisão que absolva os arguidos do pagamento de qualquer quantia á demandante, por os cheques não representarem qualquer assumpção de dívida, nem a demandante ser legítima portadora dos mesmos.
17- Ocorreu caso julgado porque o montante que os cheques titulavam enquanto ordem de pagamento, já tinham sido sujeitos a decisão anterior e, como tal, não podiam servir novamente de base a outra decisão.
18- A obrigação de pagamento do montante titulado nos cheques era da empresa, o prejuízo que alegadamente os referidos cheques representavam remetia-se apenas e só á empresa.
19- Não podem os arguidos vir agora responder pelos montantes apostos nos referidos cheques, porque nenhuma obrigação assumiram pessoalmente.
20- O douto tribunal condenou os arguidos numa indemnização sem justificar em que medida é que a conduta dos arguidos, com a prática do crime de falsificação de documento, provocaram tal montante de prejuízo.
21- Não tendo sido peticionado qualquer montante pelo cometimento do crime, além do resultante dos montantes mencionados nos cheques, já sujeito a caso julgado, nem tendo sido justificado o prejuízo, nunca os arguidos podiam ter sido condenados no pagamento do que quer que fosse, pelo que devem ser absolvidos do pagamento do que quer que seja.

Termos em que revogando a douta sentença substituindo-a por outra que absolva os arguidos quer do crime de que vinham acusados quer do pedido de indemnização e custas em que foram condenados, farão Vossas Excelências a habitual Justiça.».

O recurso foi admitido nos termos do despacho proferido a fls. 906.

A assistente apresentou resposta à motivação, pugnando pela rejeição do recurso, dizendo que os recorrentes não cumpriram o ónus de especificação que a lei impõe, limitando-se a fazer a sua própria apreciação dos meios de prova, pretendendo que prevaleça as suas declarações em detrimento dos demais elementos probatórios produzidos. Também asseverou que se deve manter a condenação dos arguidos na parte cível pela verificação do nexo causal entre a sua conduta e os prejuízos que da mesma resultaram, não se verificando ainda, qualquer excepção que obste ao seu conhecimento.

O Ministério Público, junto da 1ª Instância, sustentou que a matéria de facto foi fixada correctamente e de acordo com a prova produzida em audiência de julgamento, como base nos depoimentos que nela foram produzidos e nos elementos documentais juntos aos autos. Também defende que não ocorreu a violação do princípio in dubio pro reo, devendo, pois, manter-se a decisão recorrida.

Neste Tribunal, a Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer, sustentando, em suma, que, limitando-se o arguido, infundadamente, a impugnar a matéria de facto, apenas questionando a livre convicção do julgador, deverá a mesma manter-se intocada, pois, nada justifica a sua modificação, tanto mais que inexistem provas que imponham decisão diversa da adoptada, mantendo-se, consequentemente, a decisão.

Foi cumprido o art. 417º, n.º 2, do CPP.

Efectuado exame preliminar e, colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, nos termos do art. 419º, nº. 3, al. c), do CPP.
*
II- Fundamentação

Na medida em que o âmbito dos recursos se delimita pelas respectivas conclusões (art. 412º, nº. 1, do CPP), sem prejuízo das questões que importe conhecer oficiosamente, por obstarem à apreciação do seu mérito, no recurso suscitam-se as questões de saber se:

1) na decisão de 1ª instância, por deficiente apreciação da prova produzida, foram incorrectamente julgados os factos inseridos nos pontos 7, 8, 9, 11, 13, 14, 15, 16, 18, 20 21, 22 e 23 da matéria assente, por violação do principio in dubio pro reo;
2) os arguidos devem ser absolvidos do pedido de indemnização cível porque:
2.1) verifica-se a excepção do caso julgado;
2.2) inexiste nexo de causalidade entre a sua conduta e o prejuízo verificado;
2.3) existiu a novação da dívida.

Importa apreciar tais questões e decidir. Para tanto, deve considerar-se como pertinentes ao conhecimento do objecto do recurso os factos considerados provados e não provados na decisão recorrida e respectiva motivação (transcrição):

Matéria de facto provada:

«1. A sociedade “RS - Gabinete de Engenharia Civil, Ldª.” com sede na Av. de (…), Vila Nova de Famalicão, é uma sociedade por quotas, que tem por objecto a exploração de gabinete de engenharia e arquitectura compreendendo nomeadamente projectos, orçamentos, direcção, acompanhamento e fiscalização de obras de construção civil; actividades de consultoria nestas áreas, bem como consultoria para os negócios e a gestão.
2. A gestão da sociedade “RS - Gabinete de Engenharia Civil, Ldª.” esteve, desde a sua constituição em 2007 até ao ano de 2009, conjuntamente a cargo do arguido Alberto, na qualidade de sócio-gerente, e do arguido Jorge, na qualidade de sócio e gerente de facto, por quem passaram todas as decisões de gestão corrente.
3. Os arguidos Jorge e Alberto actuaram sempre por conta e ordem dessa sociedade, no exercício das suas funções.
4. Nos anos de 2007 e 2008 a sociedade “RS - Gabinete de Engenharia Civil, Ldª.” prestou serviços técnicos especializados à sociedade “Construções Y & Filho, Ldª.”, da qual José era sócio-gerente e J. A. era sócio e gerente de facto.
5. Entre as duas sociedades existia uma relação de estreita colaboração, sendo o arguido Jorge funcionário avençado da sociedade “Construções Y & Filho, Ldª.” durante o ano de 2008.
6. No período compreendido entre 1 de Junho de 2008 e 30 de Novembro de 2008 a sociedade “BS, Ldª.” forneceu material e produtos de construção civil à sociedade “Construções Y & Filho, Ldª.”, no valor global de € 112.155,97.
7. No início do mês de Agosto de 2008, o arguido Alberto, na qualidade de sócio-gerente da sociedade “RS - Gabinete de Engenharia Civil, Ldª.”, de comum acordo com o arguido Jorge, assinou o cheque bancário número 3600000045, sacado sobre a conta de depósitos à ordem número 17331372020, domiciliada na agência de Viatodos, do banco A, de que a sociedade “RS - Gabinete de Engenharia Civil, Ldª.” é titular.
8. A data de 15/10/2008, a sociedade “Construções Y & Filho, Ldª.” como beneficiária, bem como o montante de € 15.000,00, por extenso e em algarismos foi aposta pelo J. A., com o comum acordo dos arguidos e em frente do arguido Jorge.
9. Alguns dias depois, o arguido Jorge deslocou-se à sede da sociedade “BS, Ldª.”, sita na Rua (…), Póvoa de Varzim, acompanhado por J. A., na qual, com o assentimento do arguido Alberto, procedeu à entrega do referido cheque, endossado àquela, para pagamento parcial do montante devido pela sociedade “Construções Y & Filho, Ldª.”, mediante acordo do representante legal da sociedade “BS, Ldª.”.
10. No dia 19 de Agosto de 2008 a sociedade “BS, Ldª.”. depositou o cheque bancário número 3600000045 na sua conta corrente de cheques pré-datados.
11. No dia 15 de Novembro de 2008, depois de ter anuído a um pedido de deferimento de apresentação a pagamento por trinta dias, efectuado pelo arguido Jorge ou pelo J. A., a sociedade “BS, Ldª.” deu instruções ao banco para que o referido cheque fosse apresentado a pagamento.
12. Apresentado a pagamento na agência de Viatodos, do banco A, foi o mesmo devolvido em 19 de Novembro de 2008, por motivo de “extravio”.
13. A declaração aposta no verso desse cheque deveu-se ao facto de o arguido Alberto, actuando em concertação com o arguido Jorge, ter solicitado no dia 18 de Outubro de 2008 ao Banco A, através do sistema NetA, o cancelamento do cheque bancário número 3600000045, por motivo de extravio.
14. No início do mês de Novembro de 2008, o arguido Alberto, na qualidade de sócio-gerente da sociedade “RS - Gabinete de Engenharia Civil, Ldª.”, de comum acordo com o arguido Jorge, assinou o cheque bancário número 7000000052, sacado sobre a conta de depósitos à ordem número 17331372020, domiciliada na agência de Viatodos, do Banco A, de que a sociedade “RS - Gabinete de Engenharia Civil, Ldª.” é titular.
15. A data de 15/12/2008, a sociedade “Construções Y & Filho, Ldª.” como beneficiária, bem como o montante de € 15.000,00, por extenso e em algarismos foi aposta pela Maria (funcionária administrativa da X à data dos factos), com o comum acordo dos arguidos e em frente do arguido Jorge
16. Alguns dias depois, o arguido Jorge deslocou-se à sede da sociedade “BS, Ldª.”, sita na Rua (…), Póvoa de Varzim, na qual, com o assentimento do arguido Alberto, procedeu à entrega do referido cheque, endossado àquela, para pagamento parcial do montante devido pela sociedade “Construções Y & Filho, Ldª.”, mediante acordo do representante legal da sociedade “BS, Ldª.”.
17. No dia 14 de Novembro de 2008 a sociedade “BS, Ldª.”. depositou o cheque bancário número 7000000052 na sua conta corrente de cheques pré-datados.
18. No dia 15 de Janeiro de 2009, depois de ter anuído a um pedido de deferimento de apresentação a pagamento por trinta dias, efectuado pelo arguido Jorge ou pelo J. A., a sociedade “BS, Ldª.” deu instruções ao banco para que o referido cheque fosse apresentado a pagamento.
19. Apresentado a pagamento na agência de Viatodos, do Banco A, foi o mesmo devolvido em 19 de Janeiro de 2009, por motivo de “extravio”.
20. A declaração aposta no verso desse cheque deveu-se ao facto de o arguido Alberto, actuando em concertação com o arguido Jorge, ter solicitado no dia 13 de Janeiro de 2009 ao Banco A, através do sistema NetA, o cancelamento do cheque bancário número 7000000052, por motivo de extravio.
21. Os arguidos Alberto e Jorge e agiram livre, deliberada e voluntariamente, por mútuo acordo e em conjugação de esforços, dando ordens ao banco sacado para não proceder ao pagamento dos mencionados cheques que haviam emitido e entregue ao respectivo beneficiário, declarando por escrito que tais títulos de crédito haviam sido extraviados, bem sabendo que tal ocorrência não correspondia à verdade e que, ao actuar dessa forma, punham em crise a segurança e a credibilidade que a generalidade das pessoas atribuem a tais declarações, com o intuito concretizado de obstar ao pagamento dos cheques, em detrimento dos legítimos portadores.
22. Estavam cientes que a sua conduta não era permitida por lei.
23. Face à conduta dos arguidos a assistente/ demandante sofreu um prejuízo em igual valor ao titulado pelos referidos cheques, que somam € 30.000,00 (trinta mil euros), montante que ainda não foi ressarcida.
24. As ordens de cancelamento por extravio abarcou vários cheques avulsos, num total de 7.
25. A X – BS, intentou um processo executivo, que correu seus termos no 4º Juízo Cível do extinto Tribunal de Vila Nova de Famalicão, sob o nº 322/09.5TJVNF e actualmente corre termos sob o nº 322/09.5TJVNF do Tribunal da Comarca de Braga, em que são executados J. A., José, Construções Y e filhos, LDº, e RS – Gabinete de Engenharia Civil, Ldª, e exequente X – BS, Ldª.
26. Foi emitida uma letra no valor de 134.058,46€ correspondente á totalidade da dívida da sociedade “Construções Y e filho, Ldª”;
27. Tal letra foi emitida em 02/12/2008, e destinava-se a substituir aqueles cheques e outros do referido J. A., porém a mesma não foi aceite a descontar pela entidade bancária.
28. Os arguidos não têm averbados antecedentes criminais no seu registo criminal.
29. O arguido Alberto é engenheiro civil, auferindo mensalmente cerca de 800,00,€, vive numa casa arrendada pela qual paga 200,00€, com a companheira e dois filhos menores, e é licenciado em engenharia civil.
30. O arguido Jorge é engenheiro civil, auferindo mensalmente cerca de 1250,00,€, vive em casa própria pela qual paga de empréstimo bancário cerca de 400,00€, com a companheira e três filhos menores, e é licenciado em engenharia civil.

Matéria de facto não provada

A) O arguido Alberto preencheu pelo seu punho os campos identificados em 8. e 15.
B) Nas circunstâncias de tempo, modo e lugar referidos em 16., J. A. acompanhou o arguido Jorge;
C) A demandante teve despesas administrativas associadas à devolução dos cheques em causa, no montante global de € 156,00 (cento e cinquenta e seis euros), bem como ainda do valor que despendeu a título de custas e despesas processuais com vista à cobrança judicial do seu crédito, no valor global de € 258,38 (duzentos e cinquenta e oito euros e trinta e oito cêntimos).
D) Os cheques mencionados nos autos estavam na sede da empresa de que o primeiro arguido era sócio-gerente e o segundo, sócio.
E) Tais cheques estavam assinados pelo gerente, mas não preenchidos, para serem utilizados quando fosse necessário para fazer pagamentos do giro comercial da empresa, ainda que na ausência do gerente.
F) Acontece que, em dia que não podem precisar, do mês de Outubro de 2008, deram conta que os mesmos não se encontravam no local habitual.
G) Contactaram a agência do seu banco para saber o que deveriam fazer e foram aconselhados a participar o extravio dos mesmos, o que fizeram.
H) A ordem de cancelamento abrangeu até cheques que tinham sido emitidos para proceder ao pagamento a fornecedores seus;
I) Os arguidos só se aperceberam de que os cheques se encontravam na posse da denunciante quando viram as contas bancárias e os bens da empresa, penhorados.
J) Aí tomaram conhecimento que a denunciante tinha intentado um processo executivo contra a sua empresa para cobrança dos ditos cheques.
K) No seguimento do referido em 24. foi lavrado um documento de constituição de hipoteca..».
*
Motivação da decisão:

«(…) Não foi feita prova bastante que afaste a genuinidade dos documentos juntos aos autos, pelo que relativamente aos documentos não autênticos (cfr. artigo 169.º do Código de Processo Penal, o qual refere que “consideram-se provados os factos materiais constantes de documento autêntico ou autenticado enquanto a autenticidade do documento ou a veracidade do seu conteúdo não forem fundadamente postas em causa”), o seu teor pode ser valorado livremente pelo Tribunal, conjugando os mesmos com a demais prova produzida e as regras de experiência. Assim sendo, o Tribunal teve em consideração os documentos juntos aos autos, designadamente:

- Cheques e documentos bancários de fls. 8-12;
- Informação bancária e extractos de conta de fls. 62-67, 77, 165, 335 e 336, 457, 493, 529,
- Certidão do teor da matrícula da sociedade arguida, constante de fls. 149-151 e 769-770,
- Certidão do teor da matrícula da sociedade assistente, constante de fls. 185-190;
- Certidão do teor da matrícula da sociedade “Construções Y e Filhos”, constante de fls. 194-199;
- Requerimento executivo de fls. 337-343,
- Declaração de fls. 402;
- Cópia de letra de fls. 403-404
- Documentos de fls. 580-619;
- Certificados de registo criminal de fls. 771-772;

Note-se que a prova produzida deve ser analisada atenta a segurança oferecida por cada elemento probatório (considerado individualmente, nomeadamente, quanto à sua credibilidade, isenção e fundamentação da razão de ciência), e bem assim ponderada de acordo com o seu confronto com os demais elementos de prova constantes nos autos (v.g., prova documental, pericial e testemunhal), por forma a que o resultado final não produza uma decisão injusta, insuficientemente segura em termos de corroboração factual, ou incoerente com a realidade e o normal acontecer dos factos.

Concretizando, quanto ao arguido Alberto, o mesmo quis prestar declarações, tendo relatado ao Tribunal que ele e o arguido Jorge eram os sócios da sociedade “RS”, e era ele o gerente da dita sociedade. Não obstante tal facto, todas as decisões relativas á referida sociedade eram tomadas pelos dois de comum acordo, sendo tal sociedade gerida de facto pelos dois. Referiu que à data dos factos estudava em Coimbra, pelo que deixava sempre numa gaveta do escritório cheques previamente assinados para o caso de o arguido Jorge precisar de fazer algum pagamento. Referiu que nem ele nem o arguido preencheram os cheques em causa, tendo os mesmos sido furtados por alguém do escritório deles, esclarecendo que tinha acesso a tal escritório o Sr. J. A. e o José, aos quais tinham a chave, dado que tinham emprestado o escritório para aqueles fazerem reuniões com clientes. Acrescentou que quando ele e o Jorge deram por falta dos cheques deram ordem de extravio dos mesmos, desconhecendo nessa data dos cheques aqui em questão. Referiu que souberam dos cheques, quando o Jorge foi fazer um pagamento e tinham a conta penhorada. Esclareceu a relação comercial que tinham com a sociedade “Y e filhos”, designadamente que acompanhavam algumas das suas obras. Confrontado com o cheque de fls. 8 (cheque que foi pago), confirmou a sua assinatura, referindo que os outros campos não foi ele que os preencheu. Acrescentou que como o José tinha problemas com o banco, entregava-lhe cheques de clientes, e quando o fundo destes ficava disponível na conta da sociedade arguida, então sacava um cheque desta e entregava-o aquele. Refere que tal situação ocorreu por 4 a 5 vezes.

O arguido Jorge, também quis prestar declarações, tendo relatado ao Tribunal que ele e o arguido Alberto eram os sócios da sociedade “RS”, sendo este o gerente da dita sociedade. Não obstante tal facto, todas as decisões relativas á referida sociedade eram tomadas pelos dois de comum acordo, sendo tal sociedade gerida de facto pelos dois. Referiu que os cheques desapareceram do escritório da empresa. À data dos factos o Alberto estudava em Coimbra, pelo que deixava sempre numa gaveta do escritório cheques previamente assinados para o caso de ele precisar de fazer algum pagamento. Referiu que tinha acesso ao escritório deles o Sr. J. A. e o José, os quais tinham a chave, dado que tinham emprestado o escritório para aqueles fazerem reuniões com clientes. Acrescentou que como a sociedade “Y e filhos” tinha problemas com o banco, entregava-lhe cheques de clientes, e quando o fundo destes ficava disponível na conta da sociedade arguida, então sacavam um cheque desta e entregavam-no àquele. Referiu que os cheques em causa não foram preenchidos ou entregues na X por ele ou o Alberto. Quando eles deram por falta dos cheques deram ordem de extravio dos mesmos para os cancelar, o que fizeram através da internet. Mais referiu que na ordem de cancelamento abrangeu vários cheques, tendo vários clientes deles reclamado posteriormente o valor dos cheques que entretanto tinham passado. Esclareceu a relação comercial que tinham com a sociedade “Y e filhos”, designadamente que orçamentavam e acompanhavam algumas das suas obras. Referiu que não se recorda de ter ido à X, mas admite ter lá ido ver preços e materiais. Referiu que souberam dos cheques, quando foi fazer um pagamento e tinham a conta penhorada. Por fim referiu que a “Y e filhos” fez um acordo de pagamento com a X, no qual está incluído o valor dos cheques em causa.

A testemunha Maria, sócia da X, de forma objectiva, coerente e descritiva, demonstradora de quem presenciou e tem conhecimento dos factos, relatou ao Tribunal que exerce funções de escriturária na assistente, e que conhece o arguido Jorge, identificando-o como o Engenheiro do Sr. Y. Esclareceu que os sócios da sociedade “Y e filho” tinham dado ordem para aceitarem encomendas efectuadas pelo arguido Jorge em nome da sociedade. Referiu que o Sr. J. A. referiu-lhe que não tinha cheques, pelo que se podiam pagar por cheques do arguido Jorge, ao que ela assentiu. Refere que lhe entregaram 3 cheques pós-datados (todos da RS), o primeiro teve provimento, os outros dois vieram devolvidos por extravio. Porém, antes de virem devolvidos o Sr. J. A. tinha-lhe pedido para adiar o desconto do cheque no Banco. Esclareceu que os cheques foram entregues pelo Jorge juntamente com o Sr. J. A. na X, relativamente aos primeiros dois cheques, e o terceiro cheque apenas foi entregue pelo Jorge, sendo que todos foram preenchidos à frente do Jorge. Confrontada com o cheque de fls. 12 referiu que foi preenchido por ela na presença do Jorge, e o cheque de fls. 10 foi preenchido pelo Sr. J. A. à frente dela e do Jorge. Referiu que até à presente data os montantes titulados nos tais cheques não foram pagos, tendo tido despesas com a sua devolução, mas não soube esclarecer qual o montante. Referiu que a “Y e Filhos” entregou para pagamento de toda a sua dívida, incluindo a dos cheques supra referidos, uma letra, a qual nunca foi paga, nem tampouco aceite pelo Banco e um documento particular a dar de hipoteca um imóvel, mas consultado um advogado verificara, que tal documento é inoperante para o fim a que se destina (tinha que ser através de escritura pública).

A testemunha L. M., empregada do escritório da X, de forma objectiva, coerente e descritiva, demonstradora de quem presenciou e tem conhecimento dos factos, relatou ao Tribunal que exerce funções de escriturária na assistente e que conhece os dois arguidos, principalmente o Jorge. Referiu que este lhes foi apresentado como sendo o Engenheiro da “Construções Y e Filho” e que estava autorizado a fazer encomendas em nome da referida sociedade. Relatou que lhes deram 3 cheques do gabinete (querendo se referir à RS) e que apenas um foi pago. Referiu que foi o Eng.º Jorge que pediu para adiar os cheques. Os dois primeiros cheques foram entregues pelo Jorge e pelo Sr. J. A. e o terceiro apenas pelo Jorge. Confrontada com os documentos de fls. 9 e 11, referiu que dos mesmos não consta o valor das despesas com a devolução dos cheques. Referiu que até à presente data o valor dos cheques não foi pago. Esclareceu que a “Y e Filhos” entregou para pagamento de toda a sua dívida, incluindo a dos cheques, uma letra, a qual nunca foi paga, nem tampouco aceite pelo Banco.

A testemunha António, representante legal da sociedade “BS, Ldª.”, de forma objectiva e coerente relatou ao Tribunal que o Jorge foi com o Sr. J. A. às instalações da X, tendo-lhes dado 3 cheques pré-datados e apenas o primeiro teve provisão. Referiu que o Sr. J. A. referiu que não tinha cheques e que o Jorge ia-lhe pagar os fornecimentos que foram feitos à “Y e filhos”.

Relativamente às testemunhas de defesa:

A testemunha Filipe, amigo dos arguidos, revelou nada saber quanto ao objecto dos presentes autos, referindo apenas que o Alberto há cerca de 2/3 anos atrás lhe disse que lhe desapareceu uns cheques. Ora, veja-se que os cheques em causa tem quase 10 anos.

A testemunha Artur, ex-trabalhador da “Y e filhos”, revelou nada saber quanto ao objecto dos presentes autos, apenas referindo que chegou a ver o Jorge nas obras, e que o patrão dele era o Sr. J. A. e o José e que eram clientes da X.

A testemunha José, sócio-gerente da “Construções Y e Filho”, referiu que tal sociedade era dele e do pai J. A. e a X era fornecedora deles. Esclareceu qual a relação da sua sociedade com a “RS” e os arguidos, sendo que estes prestavam-lhes serviços, designadamente acompanhavam obras suas, e que chegaram a utilizar as instalações da “RS” para fazer reuniões com clientes, mas que nunca teve chave do escritório dessa sociedade, sendo os sócios dessa sociedade que lhe permitiam o acesso àquele local. Referiu que não tem qualquer conhecimento quanto aos cheques aqui em causa, dado que não obstante ser o gerente da sociedade, era o pai que na realidade geria a sociedade, pelo que tais cheques foram tratados com o pai. Apenas houve um cheque que foi falado à sua frente em que entregaram o dinheiro aos sócios da RS e estes passaram-lhe um cheque. Confrontado com o cheque de fls. 10, no seu verso reconheceu a letra e a rúbrica do pai. Referiu que não preencheu ou furtou os cheques.

A testemunha J. A., testemunha de acusação, referiu que foi sócio da “Construções Y e Filho”, sendo tal sociedade dele e do filho, o qual era gerente, e a X era fornecedores deles. Porém demarcou-se de tal sociedade, referindo que quem a geria era o filho, pelo que relativamente aos cheques aqui em questão, bem como às dividas da sociedade, designadamente à X, disse nada saber. Admitiu que possa ter entregue algum cheque dos arguidos na X, a pedido do seu filho, mas face ao decorrer do tempo já não se recorda. Negou que tivesse preenchido o cheque de fls. 10. De resto às várias questões que lhe foram colocadas, refugiou-se no tempo, ou seja, face aos quase 10 anos já decorridos, para os seus lapsos comprometidos de memória, o que não mereceu a credibilidade do Tribunal. Referiu que não furtou os cheques e negou que tivesse a chave do escritório da “RS”.

Do cotejo dos depoimentos das testemunhas arroladas pela acusação (exceptuando o J. A.) com os documentos juntos aos autos, dúvidas não existem que os arguidos praticaram os factos que lhe são imputados e resultaram provados. Ora, atendendo à tese sufragada pelos arguidos na sua contestação e nas declarações por eles prestadas em sede de audiência de julgamento, a questão relevante a apreciar era perceber se os cheques foram por eles preenchidos ou com o consentimento dos mesmos e se a ordem de cancelamento dos cheques em questão foi ou não dada com a intenção de evitar o pagamento dos mesmos, o que aqueles sabiam ser devido.

A resposta a esta questão há-de ser procurada essencialmente nos depoimentos recolhidos em sede de audiência de julgamento, uma vez que a demais prova produzida nos autos pouco ou nada esclarece quanto a esta matéria.

Os arguidos reconhecem a assinatura do arguido Alberto nos dois cheques, bem como terem, de comum acordo, comunicado o extravio dos mencionados cheques, com o objectivo de evitar que os mesmos fossem apresentados a pagamento, alegando que suspeitavam que os mesmo, juntamente com outros, tinham desaparecido do seu escritório.

No entanto, do depoimento das testemunhas Maria e L. M., que depuseram de forma clara e isenta, à data dos factos funcionárias da sociedade “BS, Ldª.”, resulta que as mesmas confirmam a entrega dos cheques pelo arguido Jorge, o qual havia sido apresentado pelo sócio da “Construções Y e Filho”, como seu colaborador e pessoa autorizada a fazer encomendas em nome desta sociedade.

Aliás, os próprios arguidos reconhecem que o primeiro cheque emitido pela sua sociedade foi usado pela “Construções Y e Filho” para pagamento de dívidas desta junto da “BS”, ou seja, reconheceram um comportamento idêntico àquele em apreço nos presentes autos (uso de cheques da sociedade “RS” para pagamento de dívidas da “Construções Y e Filho” junto da “BS”), quanto ao cheque que obteve pagamento, o que reforça a versão das testemunhas supra referidas.

Quanto ao pedido de deferimento de apresentação a pagamento dos mesmos, a primeira referiu que foi o Sr. J. A., a segunda referiu que foi o arguido Jorge, contudo face ao lapso de tempo decorrido é normal que tal divergência aconteça, até porque a entrega dos cheques foi acordada com a X, pelo arguido Jorge e pelo J. A.. De qualquer forma, ou um ou outro pediram tal deferimento.

Ora, se o arguido Jorge entregou os cheques em questão, e foi dito por ambos os arguidos que todos os assuntos relacionados com a RS eram decididos de comum acordo pelos dois arguidos, é legítima a conclusão que o fez com o conhecimento do seu sócio, o arguido Alberto, aliás é este que assina os cheques. Quanto ao pedido de cancelamento, ambos os arguidos disseram que foi feito pelos dois, e é legítimo concluir-se que apenas o fizeram com a intenção de os referidos cheques não serem pagos, o que resulta também da proximidade das datas em ocorreram as ordens de cancelamento com as datas de apresentação dos mesmos a pagamento. Assim, não mereceu credibilidade que os mesmos tinham desaparecido, que foram furtados. Ora, nenhuma prova disso foi feita, designadamente apresentada queixa-crime pelo desaparecimento dos mesmos. Ademais, tal tese a ser verdadeira não explica o porquê de terem sido feitos dois cancelamentos, coincidentemente dias antes de os cheques serem apresentados a pagamento.

No que concerne ao elemento subjetivo, a comprovação do mesmo em qualquer ilícito faz-se, ou pela confissão do agente, ou pela existência de elementos fácticos objetivos dos quais aquele elemento se extrai por aplicação das regras da experiência e do normal acontecer dos factos.

No caso concreto em análise a comprovação do elemento subjetivo resultou, sobretudo, da conjugação dos depoimentos das testemunhas e dos demais elementos documentais constantes nos autos, e das regras de experiência e do normal acontecer dos factos, uma vez que se afigura sobejamente conhecido que os arguidos ao procederem do modo com está exarado nos factos provados implica o preenchimento do crime em questão.

A respeito da inexistência de antecedentes criminais averbados, foi determinante o teor do certificado do registo criminal juntos aos autos.

A comprovação da situação pessoal, familiar e profissional dos arguidos, bem como a situação económico-financeira e dos seus encargos pessoais, decorreu das declarações dos próprios arguidos.
Na parte em que os factos não resultaram provados, tal circunstância deve-se quer à inexistência ou insuficiência de prova produzida, quer à circunstância de se terem provado factos contrários.».
*
III Fundamentação de Direito

1. O erro de julgamento.

Os arguidos/recorrentes impugnam a decisão proferida em 1ª instância sobre os pontos 7, 8, 9, 11, 13, 14, 15, 16, 18, 20 21, 22 e 23 da matéria de facto assente, dizendo que o Tribunal de 1ª Instância não atendeu à abundante prova documental junta aos autos, dando prevalência à prova testemunhal, e desta apenas se ateve aos depoimentos interessados das testemunhas Maria e L. M., dona da empresa X, e da sua cunhada e mulher do gerente da empresa, respectivamente, em detrimento dos depoimentos prestados pelas testemunhas José e J. A., desatendendo também à versão que apresentaram sobre os factos e incompatível com aquela que ficou a constar dos factos provados, violando, em todo o caso, o principio in dubio pro reo.

A assistente veio pugnar pela rejeição do recurso pois, segundo alega, não foi cumprido pela recorrente o ónus a que se refere o artigo 412.º, n.º 3, do CPP.

Vejamos, então.

Como se sabe, a par dos vícios previstos no art. 410º, n.º 2, do CPP, o regime processual penal consagra a chamada impugnação ampla da matéria de facto, através da invocação de erro de julgamento, nos termos previstos no art. 412º, n.º 3, do mesmo código.

Para correctamente se impugnar a decisão com fundamento em erro de julgamento, é preciso que se indiquem elementos de prova que não tenham sido tomados em conta pelo tribunal quando deveriam tê-lo sido; ou assinalar que não deveriam ter sido considerados certos meios de prova por haver alguma proibição a esse respeito; ou ainda que se ponha em causa a avaliação da prova feita pelo tribunal, mas assinalando as deficiências de raciocínio que levaram a determinadas conclusões ou a insuficiência – pela qualidade, sobretudo – dos elementos considerados para as conclusões tiradas.

É certo que a possibilidade de a Relação modificar a decisão da 1ª instância, sem que se imponha qualquer limitação relacionada com a convicção que serviu de base à decisão impugnada – ainda que, quanto à prova gravada, com a consciência dos condicionamentos postos pela limitação da acção do princípio da imediação –, é inteiramente congruente com o objectivo de garantir um duplo grau de jurisdição em matéria de facto, claramente prosseguido pela lei de processo (1). Todavia, uma vez invocado o erro de julgamento, embora a sua apreciação se alargue à análise do que se contém e pode extrair da prova documentada e produzida em audiência, a mesma é balizada pelos concretos pontos impugnados e meios de prova indicados, ou seja pelos limites fornecidos pelo recorrente, a quem se impõe o estrito cumprimento dos ónus de especificação previstos no art. 412º, n.ºs 3 e 4, do CPP (2). É esta a doutrina recomendada pelo STJ, p. ex., nos sumários dos seus Acs. de 10-01-2007 e 15-10-2008 (3).

O que se visa é, assim, uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos concretos pontos de facto que o recorrente especifique como tendo sido incorrectamente julgados, na sua perspectiva, a fim de poder obviar a eventuais erros ou incorrecções na forma como foi apreciada a prova.

Daí que a delimitação desses pontos de facto seja determinante na definição do objecto do recurso, cabendo ao tribunal da relação confrontar o juízo que sobre eles foi realizado pelo tribunal a quo com a sua própria convicção, determinada pela valoração autónoma das provas que o recorrente identifique nas conclusões da motivação.

Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova apontados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa.

Sendo certo que neste tipo de recurso sobre a matéria de facto (impugnação ampla), o tribunal da relação não se pode eximir ao encargo de proceder a uma ponderação específica e autonomamente formulada dos meios de prova indicados, deverá fazê-lo com plena consciência dos limites ditados pela natureza do recurso e pelo facto de se tratar de uma apreciação de segunda linha, a que faltam as importantes notas da imediação e da oralidade de que beneficiou o tribunal a quo.

Precisamente por isso, o recorrente que pretenda impugnar amplamente a decisão sobre a matéria de facto deve cumprir o ónus de especificação previsto nas alíneas do nº. 3 do citado art. 412º. A referida especificação dos concretos pontos factuais traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam na sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados. E a especificação das “concretas provas” só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico dos meios de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual impõem decisão diversa da recorrida. Exige-se, pois, que o recorrente refira o que é que nesses meios de prova não sustenta o facto dado por provado ou como não provado, de forma a relacionar o seu conteúdo específico, que impõe decisão diversa da recorrida, com o facto individualizado que se considera incorretamente julgado.

Note-se que o cumprimento ou incumprimento da impugnação especificada pelo recorrente afecta os direitos do recorrido. Este, para defesa dos seus direitos, tem de saber quais os pontos da matéria de facto de que o recorrente discorda, que provas exigem a pretendida modificação e onde elas estão documentadas, pois só assim pode, eficazmente, indicar que outras provas foram produzidas quanto a esses pontos controvertidos e onde estão, por sua vez, documentadas. É que aos princípios da investigação oficiosa e da descoberta da verdade material contrapõem-se os do exercício do contraditório e da igualdade de armas, para que o processo se desenrole de acordo com o due process of law.

Daí a necessidade e importância da impugnação especificada, por permitir a devida fundamentação da discordância no apuramento factual, devendo tais especificações constar ou poder ser deduzidas das conclusões formuladas (art. 417º, n.º 3). Face ao nosso regime processual quanto aos pressupostos do exercício do duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto, é possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação e um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pelo recorrido e pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que, actualmente, se alcança com a indicação concreta das passagens em que se funda a impugnação, como consta do nº. 4 do citado art. 412º.

É também por isso que se reconhece não existir fundamento bastante para rejeitar a impugnação da decisão numa situação em que, nas conclusões delimitadoras do objecto do recurso, tenha sido devidamente cumprido o ónus primário ou fundamental, identificando os concretos pontos de facto impugnados e as propostas de decisão alternativa sobre os mesmos, bem como os concretos meios de prova que imponham tal alternativa, já podendo – e até devendo – o cumprimento do ónus secundário ser satisfeito na motivação (corpo das alegações), para aí sendo relegadas a valoração dos concretos meios de prova indicados nas conclusões e a determinação da sua relevância para a distinta decisão proposta, bem como a indicação concreta das passagens da gravação (4).

E, nessa senda, a análise da impugnação tem que ser feita por referência à matéria de facto efectivamente provada ou não provada e não àqueloutra que o recorrente, colocado numa perspectiva subjectiva, não equidistante, tem para si como sendo a boa solução de facto e entende que devia ser provada.

Como em geral sucede, esta tarefa é norteada pela ideia de que a apreciação da prova, segundo o grau de confirmação que os enunciados de facto obtêm a partir dos elementos disponíveis, está vinculada a um conceito ou a um critério de probabilidade lógica preponderante e, especificamente, face a uma eventual divergência inconciliável de depoimentos, produzidos por pessoas dotadas de uma razão de ciência sensivelmente homótropa, prevalecerão os contributos colhidos por essa via, que sejam corroborados por outras provas, ou que, ao menos, melhor se conjuguem entre si e/ou com a experiência comum.

Contudo, no âmbito penal, o princípio in dubio pro reo – a que os recorrentes também aludiram, não nas conclusões com que delimitou o objecto do recurso, mas apenas na respectiva motivação – estabelece a imposição de que, após a produção da prova, o tribunal terá de decidir a favor do arguido, perante a persistência de uma dúvida razoável: exige-se uma pronúncia favorável ao arguido quando o tribunal não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Neste conspecto, esse princípio constitui um limite normativo do princípio da livre apreciação da prova, na medida em que impõe orientação vinculativa para os casos de dúvida sobre os factos. Ora, como resulta do exposto, a violação desse princípio só se pode verificar quando o juiz tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido.

Normalmente, a imputação de uma alegada violação desse princípio suscita a necessidade de ser demonstrado o erro na apreciação da prova produzida, com vista a evidenciar no recurso a carência de prova de que os factos imputados ao arguido foram por este protagonizados ou de que se verificou qualquer circunstância que a lei faz depender a punibilidade do mesmo.

É certo que a prova não pressupõe uma certeza absoluta, mas, por outro lado, também não se pode quedar na mera probabilidade de verificação de um facto. Assenta no alto grau de probabilidade do facto suficiente para as necessidades práticas da vida (5). Trata-se de uma liberdade de decidir segundo o bom senso e a experiência da vida, temperados pela capacidade crítica de distanciamento e ponderação, ou no dizer de Castanheira Neves da «liberdade para a objectividade» (6).

É por isso que nos casos em que o julgador não logra decidir com segurança com base nas mesmas e permanecendo uma dúvida consistente e razoável não pode desfavorecer a posição do arguido, só lhe restando concluir pela absolvição do mesmo por apelo do princípio in dubio pro reo (7), pois convém não esquecer que «o arguido beneficia da presunção de inocência: a prova para condenação tem de ser plena (...). Desde que a prova suscite (…) a possibilidade de diferente hipótese que não pode ser afastada, prevalece, por força da lei, a presunção de inocência».

Assim é, porque «a condenação de um inocente afecta muito mais gravemente a justiça, e por isso também o próprio interesse social, do que a não punição de um culpado» (8).

E, como é evidente, é segundo esta perspectiva que hão-de ser apreciados os factos provados e a fundamentação que o tribunal recorrido levou a efeito para sustentar a sua convicção acerca deles, ou seja, o processo avaliativo que o tribunal levou a cabo de modo a que se possa dizer com segurança se houve ou não uma errada apreciação da prova produzida. Em suma, neste processo, a violação do invocado princípio deve ser defrontada ou apreciada também nesta vertente da adequação da decisão proferida à prova produzida.

É ponto assente na doutrina e na jurisprudência que na fundamentação da matéria de facto se hão-de indicar as razões porque se atribui credibilidade a certos meios de prova, incluindo naturalmente os depoimentos prestados, e a explicação das razões porque se não confere essa credibilidade a outras provas que hajam sido produzidas e que apontem em sinal contrário. O que implica, claro está, que todos os meios de prova sejam escrutinados quanto ao seu interesse e ao seu valor. Sabendo-se que as provas são, em princípio, apreciadas segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador (art. 127º CPP) é necessário que o processo de formação dessa convicção seja explicado, esclarecendo-se nomeadamente porque se entende que ele se encontra em conformidade com as regras da experiência. Isto significa que não basta afirmar que certo depoimento, onde se abordaram determinados pontos está de acordo com as regras da experiência e, por isso, é credível; é preciso, dar o passo seguinte que consiste exactamente em esclarecer de forma raciocinada a compatibilidade do seu teor com as tais regras da experiência. Tanto mais detalhadamente quanto a decisão esteja em aparente desconformidade com essas regras.

Com efeito, num sistema como o nosso em que a prova não é tarifada, não podemos olvidar que, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, o tribunal, orientado pela descoberta da verdade material, aprecia livremente a prova e não está inibido de socorrer-se da chamada prova indiciária ou indirecta, nem das declarações de uma única testemunha (9), seja ou não vítima (ofendido), desde que credíveis e coerentes, as quais, ainda que opostas, em maior ou menor medida, ao depoimento do arguido, podem fundamentar uma sentença condenatória, se depois de examinadas e valoradas as versões contraditórias apresentadas se considerar verdadeira a contida naquelas declarações, em função de todas as circunstâncias que concorrem no caso.

Como é evidente, tais princípios não comportam apreciação arbitrária nem meras impressões subjectivas incontroláveis, antes têm, sempre, de nos remeter, objectiva e fundadamente, ao exame em audiência, com critérios da experiência comum e da lógica do homem médio supostos pela ordem jurídica, das provas aí validamente produzidas, visando a descoberta da verdade prático-jurídica e não a verdade transcendente, inalcançável, fruto de especulação projectada para fora do domínio da racionalidade prática, sem suporte em concretos argumentos e elementos de prova objectivos (10).

Analisemos, então, os elementos de prova invocados nas conclusões de recurso e na decisão impugnada sobre os pontos da impugnação deduzida.

À luz do que acima expendemos, o recorrente não cumpriu, sequer por aproximação, o apontado ónus de especificação legalmente exigido para o conhecimento da impugnação da decisão sobre a matéria de facto que formulou. Basta atentar em que, nas conclusões delimitadoras do objecto do respectivo recurso, apenas se limita a identificar os concretos pontos de facto impugnados sem indicar as propostas de decisão alternativa sobre os mesmos, bem como os concretos meios de prova que imporiam tal alternativa. Acresce que, tendo sido gravados os meios de prova produzidos, o recorrente não indica as concretas passagens em que se funda a impugnação, apenas transcrevendo pequenos excertos de alguns desses depoimentos.

Com efeito, os recorrentes apenas remeteram para a “vastíssima prova documental” junta aos autos, sem os especificar (11) para particulares pontos das suas declarações e, vagamente, para os depoimentos que foram prestadas pelas testemunhas que indicam evidenciando a sua própria leitura sobre os factos e a forma como julgam que eles deveriam ser apreciados.

Aos recorrentes era, assim, exigível que efectuassem a indicação concreta da sua divergência probatória, fazendo-o para os suportes onde se encontra gravada a prova, remetendo para os concretos locais da gravação que suportam a sua tese, ou, então, transcrevendo os excertos dessa gravação.

Perante a falta de específica indicação, com remissão para os concretos locais da gravação onde se encontram registadas as provas, que, relativamente aos pontos de facto impugnados pelos recorrentes, imporiam decisão diversa, transcrevendo tão só em relação a alguns desses depoimentos pequenos excertos, comprometida fica a possibilidade de este tribunal de recurso sindicar a matéria de facto fixada na sentença recorrida.

Ou seja, o não acatamento do ónus de impugnação especificada faz com que não se verifique o circunstancialismo referido na citada al. b) do art. 431º, tornando inviável a modificabilidade da decisão sobre a matéria de facto.

Acrescente-se que, não contendo também o corpo da motivação a especificação em apreço exigida por lei, não estamos somente perante uma situação de insuficiência das conclusões, mas sim de deficiência substancial da própria motivação ou de insuficiência do próprio recurso, insusceptível de aperfeiçoamento, com a consequência de o mesmo, nessa parte assim afectada, não poder ser conhecido.

Sobre este particular segmento se tem pronunciado o Supremo Tribunal de Justiça (12) no sentido de que o convite ao aperfeiçoamento conhece limites, pois que se o recorrente, no corpo da motivação do recurso, se absteve do cumprimento do ónus de especificação, que não é meramente formal, antes tendo implicações gravosas ao nível substantivo, não enunciando as especificações, então o convite à correcção não comporta sentido porque a harmonização das conclusões ao corpo da motivação demandaria a sua reformulação, com novas conclusões e inovação da motivação, precludindo a peremptoriedade do prazo de apresentação do recurso.

No mesmo sentido se vem pronunciado também o Tribunal Constitucional, ao entender não haver lugar ao convite ao aperfeiçoamento quando estejam em causa omissões que afectem a motivação do recurso e não apenas as conclusões (13).

Apesar da deficiente forma de impugnação, não podemos deixar de assinalar que os recorrentes apenas colocam em causa a convicção levada a cabo pelo tribunal de 1ª Instância.

Assim sendo, a crítica à convicção do tribunal a quo, sustentada na livre apreciação da prova e nas regras da experiência, não pode ter sucesso se se alicerçar apenas na diferente convicção dos recorrentes sobre a prova produzida.

Na verdade, os recorrentes apenas fundamentam a sua discordância com base na leitura que eles próprios fazem das declarações que produziram em audiência, concluindo que os factos não poderiam ter sido considerados provados. Tal razão de discordância prende-se unicamente com a convicção levada a cabo pela julgadora.

Como resulta expressamente da motivação da decisão, a Sra. Juíza sublinhou ter atribuído credibilidade aos elementos colhidos dos depoimentos prestados pelas testemunhas que referencia, Maria, L. M. e António por lhes terem parecido lógicos e conformes com a realidade, com os documentos juntos e com as regras da experiência comum, em detrimento dos fornecidos pelas declarações dos recorrentes, consignando, também, o motivo pelo qual desconsideraram o teor das declarações destes. Também referenciou os depoimentos das testemunhas de defesa, assinalando que de concreto nada sabiam sobre os factos em apreciação.

Aos recorrentes assistia, evidentemente, o direito de apresentar a versão que lhe aprouvesse e que tivessem por mais adequada à sua defesa. Porém, os mesmos limitaram-se a alegar a credibilidade ou falta dela dos depoimentos que referem, sem apontar argumentos ou provas impositivas de uma decisão diversa da que foi tomada pelo tribunal nos segmentos aludidos.

Ora, não é suficiente pretender o reexame da convicção alcançada pelo tribunal de 1ª instância apenas por via de argumentos que apontem para a possibilidade de uma outra convicção, antes é necessário demonstrar que as provas indicadas impõem uma diversa convicção, ou, dito de outro modo, é indispensável a demonstração de que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, por violação de regras de experiência comum, uma patentemente errada utilização de presunções naturais.

Como tem vindo a referir o Tribunal Constitucional (14), «a censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção.

Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão».

Estando nós perante uma convicção cuja formação assentou na imediação e na oralidade, não podemos deixar de observar que às razões pelas quais se confere credibilidade a determinados elementos de prova – sejam declarações do arguido sejam depoimentos de testemunhas – subjazem componentes de racionalidade e da experiência comum, mas nelas também se intrometem factores de que o tribunal de recurso não dispõe.

Donde, resulta do teor da decisão impugnada que nela se procedeu a uma correcta e devida ponderação de todos os meios de prova produzidos: sendo lícito aos juízes, na formação da sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, utilizar a experiência da vida, inferindo de um facto conhecido outro ou outros factos desconhecidos, convencem sobejamente as explicações vertidas na decisão recorrida.

Na verdade, ressalta da decisão sobre os factos constantes da sentença recorrida uma imagem lógica do que realmente aconteceu, sem que subsistam dúvidas de que os recorrentes, ao fazerem a declaração de extravio dos cheques quiseram obstar ao pagamento dos mesmos, sabendo que tal facto não correspondia à verdade dos factos. E também resulta da respectiva motivação, acima transcrita, que a Sra. Juíza indicou cabalmente os fundamentos que foram decisivos para a formação da sua convicção e as razões pelas quais relevaram os meios de prova de que se socorreu e obtiveram credibilidade no seu espírito. Para tanto, não se limitando a indicar os concretos meios de prova geradores do seu convencimento, revelou as razões pelas quais, apoiando-se nas regras de experiência comum, adquiriu, com apoio na imediação e na oralidade da produção de tais meios, a convicção sobre a realidade dos factos tidos por provados e a inveracidade dos demais. Como se escreveu nessa motivação, para a formação da sua convicção quanto aos factos impugnados, foram determinantes os referenciadas depoimentos, coadjuvados com os elementos documentais, que se lhes afiguraram ser coerentes, confluindo, nos elementos essenciais dos factos, não tendo suscitado reservas do tribunal quanto à sua credibilidade.

Assim, a Senhora Juíza fez um exame, uma observação atenciosa e cuidada, efectuando de modo crítico um juízo sobre a prova produzida, que permite compreender a opção pelos meios probatórios e os motivos pelos quais o elegeu em detrimento de outros.

Por fim, dir-se-á que é certo que, se existisse a possibilidade razoável de uma solução alternativa ou de uma explicação racional e plausível diferente, dever-se-ia assentar a decisão na que se mostrasse mais favorável aos arguidos, de acordo com o aludido princípio in dubio pro reo. Contudo, o apelo a este princípio, fundamentalmente como corolário da apreciação que o recorrente fez da prova, não colhe no caso em apreço, porquanto não se demonstra que o tribunal de 1ª instância se tivesse defrontado com qualquer dúvida na formação da convicção, contra eles resolvida.

Efectivamente, atentando na motivação da decisão de facto, logo se constata que a Senhora Juíza não ficou em estado de dúvida: fica-se a conhecer, cristalinamente, o processo de formação da sua convicção, através do enunciado sobre o exame crítico da prova, com a justificação das razões pelas quais foram valorados e tidos em consideração os depoimentos das testemunhas indicadas, em conjugação com os demais meios de prova produzidos, referentes a todos os segmentos da decisão, como se deixou explícito, em detrimento da defesa apresentada pelos arguidos/recorrentes.
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E, não restando dúvidas da prática pelos arguidos dos factos assentes, consequentemente, também não merece tal censura a avaliação feita em 1ª instância da prova produzida em audiência. Na verdade, todos os aduzidos elementos, conjugados entre si, analisados criticamente, segundo o indicado critério de probabilidade lógica prevalecente, facultam as ilações extraídas na decisão quanto à matéria em apreço, incompatíveis com o acolhimento do sentido por que pugnou os recorrentes quanto aos pontos referidos no recurso. Assim, não se detecta qualquer patente irrazoabilidade na convicção probatória expressa pela julgadora com imediação.

Improcede, pois, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
2. O pedido cível.

Os recorrentes nas conclusões de recurso esgrimem argumentação que, na sua óptica, evidenciaria que obstaria à sua condenação no pedido de indemnização cível a ocorrência do caso julgado, a ausência do nexo de causalidade adequada entre os danos e o facto ilícito e culposo e a verificação da novação da dívida.

2.1. O caso julgado.

Na concretização do primeiro de tais obstáculos, os recorrentes alegam que o montante que os cheques titulavam, enquanto ordem de pagamento, já tinham sido sujeitos a decisão anterior e, como tal, não podiam servir novamente de base a outra decisão.

A insusceptibilidade de impugnação de uma decisão decorrente do seu trânsito em julgado (art. 628º do CPC) é uma exigência de boa administração da justiça, da funcionalidade dos tribunais e da salvaguarda da paz social, dado que dá expressão aos valores da segurança e certeza imanentes a qualquer ordem jurídica: a res judicata obsta a que uma mesma acção seja instaurada várias vezes, impede que sobre a mesma situação recaiam soluções contraditórias e garante uma composição, tendencialmente definitiva, dos litígios que os tribunais são chamados a resolver.

A intangibilidade (tendencial) do caso julgado é um princípio do nosso ordenamento jurídico com que se pretende evitar, não uma colisão teórica de decisões, mas a contradição de julgados, a existência de decisões, em concreto, incompatíveis (15).

Enquanto o caso julgado formal – que respeita às decisões que recaiam unicamente sobre a relação processual – tem uma eficácia estritamente intraprocessual (cf. art. 620º) (16), o caso julgado material é sempre vinculativo no processo em que foi proferida a decisão ou em processos distintos (cf. art. 619º).

Havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar, sendo aplicável o mesmo princípio à contradição existente entre duas decisões que, dentro do processo, versem sobre a mesma questão concreta da relação processual (art. 625º).

A eficácia do caso julgado material varia, porém, em função da relação entre o âmbito subjectivo e o objecto da decisão transitada e o âmbito subjectivo e o objecto do processo posterior.

Se o âmbito subjectivo e objectivo da decisão transitada for idêntico ao processo posterior, i.e., se ambas as acções possuem o mesmo âmbito subjectivo e a mesma causa de pedir e nelas for formulado o mesmo pedido, o caso julgado vale, no processo subsequente, como excepção do caso julgado (arts. 580º e 581º do CPC). O caso julgado acarreta para o tribunal do processo subsequente a dupla proibição de contradição ou de repetição da decisão transitada, o que explica que se resolva num pressuposto processual negativo e, portanto, numa excepção dilatória própria [art. 577º i) do CPC]. Verificando-se a tripla identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir, a decisão goza de força obrigatória, no processo e fora dele, não podendo o mesmo tribunal ou um outro ser colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir a decisão, destinando-se a excepção a impedir uma nova decisão inútil, com ofensa do princípio da economia processual.

É certo que importa não confundir a “excepção do caso julgado” com a “força e autoridade do caso julgado”, esclarecendo que, como tem vindo a ser sustentado, se a primeira pressupõe a aludida tríplice identidade (de sujeitos, de pedido e de causa de pedir), a segunda dispensa-a, ou seja, a autoridade do caso julgado pressupõe uma decisão (transitada) de determinadas questões que já não podem voltar a ser discutidas e, diversamente daquela excepção, pode funcionar independentemente da verificação de tal tríplice identidade (17).

Realmente, mesmo não ocorrendo completa identidade do âmbito objectivo na relação entre a acção em que foi proferida a decisão transitada e a acção subsequente, nem por isso, o caso julgado deixa de ser relevante: a decisão proferida sobre o mesmo objecto vale entre as mesmas partes de ambas as acções como autoridade de caso julgado e, quando tal suceda, o tribunal da acção posterior está vinculado à decisão proferida na causa anterior, mesmo sem a tríplice homotropia de sujeitos, pedido e de causa de pedir. O que significa que, mesmo sem essa completa identidade, o tribunal está vinculado na acção subsequente a tudo o que esteja coberto pela autoridade do caso julgado formado pela decisão proferida na causa anterior. A força e autoridade do caso julgado tem por finalidade evitar que a relação jurídica material, já definida por uma decisão com trânsito, possa vir a ser apreciada diferentemente por outra decisão, com ofensa da segurança jurídica (18).

Todavia, sobre esta matéria apenas se extrai da factualidade provada que a “X - BS” intentou um processo executivo, que actualmente ainda corre termos, em que são executados J. A., José, Construções Y e filhos, Lda, e RS - Gabinete de Engenharia Civil, Lda.

Ora, como se disse, a alegada ofensa do caso julgado envolveria a questão de saber se uma suposta decisão precedente, transitada em julgado, seria ou não susceptível de ser ofendida pela decisão recorrida, uma vez verificada a aludida tripla identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir. O que, obviamente, tal matéria infirma liminarmente: não se demonstra que tenha sido proferida uma qualquer decisão transitada numa precedente acção nem que pudesse ocorrer a completa identidade do âmbito subjectivo e objectivo na relação entre tal acção e o subsequente pedido cível presentemente em apreço.

2.2. O nexo de causalidade.

Os recorrentes também aduzem que nenhum nexo de causalidade ocorreu entre a ordem de cancelamento dos cheques e o invocado prejuízo da demandante civil, pois, não foi aquela que provocou este prejuízo, mas sim um fornecimento anterior, a um terceiro, a que os arguidos eram totalmente alheios.
A reparação dos danos de natureza cível, fundamentada na responsabilidade subjectiva, haverão que ser apreciados à luz do disposto na lei civil (art. 129º do C. Penal).

Dispõe o art. 483º do Código Civil que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação” (nos termos dos arts. 562º e seguintes do mesmo código).

A obrigação de indemnizar, nesses termos, pressupõe: o dano, o facto causador do dano, o nexo de causalidade entre o facto e o dano, a ilicitude desse facto e o nexo de imputação do facto ao lesante (“dolo ou mera culpa”).

Por conseguinte, a obrigação indemnizatória, só se constituirá, no âmbito extracontratual, quando estejam presentes, de forma cumulativa, os pressupostos da ilicitude, da culpa, do dano e do nexo de causalidade, sendo ao lesado, titular do direito à indemnização, que compete a prova de tais pressupostos.

Apurado que está o facto ilícito e culposo – os recorrentes declararam ilicitamente que os cheques em causa nos autos se haviam extraviado –, há pois que ponderar, se é ou não objectivamente provável que tal declaração de extravio, feita exclusivamente para obstar ao pagamento dos valores neles inscritos, como sucedeu no caso vertente, é ou não apta a desencadear um dano para o portador. E a resposta só pode ser afirmativa.

Efectivamente, a fórmula usada para definir o nexo de causalidade – quando é que, para efeito do direito, o facto pode e deve ser tido como causa do dano? –, a que se reporta o falado art. 483º, n.º 1, e o 563º do C. Civil, é a considerada pela doutrina e pela jurisprudência na sua vertente negativa, ou seja, o facto-condição só não deve ser considerado causa adequada do dano quando se mostre, pela sua natureza, de todo inadequado à produção do dano e o haja produzido apenas por ocorrência de circunstâncias anómalas ou excepcionais que intervieram no caso concreto: não basta que o evento tenha produzido certo efeito para que este, do ponto de vista jurídico, se possa considerar como tendo sido causado ou provocado por ele, sendo antes necessário que o evento danoso seja uma causa provável, adequada, desse efeito.

Por outro lado, este dano deve ser entendido como a frustração de uma utilidade que era objecto de tutela jurídica ou toda a ofensa de bens ou interesses alheios protegidos pela ordem jurídica, cuja verificação é condição essencial para que haja obrigação de indemnizar, ou seja, de reparar os prejuízos causados ao lesado, sem os quais aquela não existe.

Revertendo ao caso concreto, a demandante alegou e provou que sofreu um prejuízo, de que ainda não foi ressarcida, adequadamente causado pela conduta dos arguidos/recorrentes, no montante de € 30.000, correspondente ao valor titulado pelos referidos cheques.
Assim, terá que forçosamente, improceder também nesta parte a pretensão dos recorrentes.

2.3. A novação da dívida.

Sustentam também os recorrentes que a partir do momento em que foi acordado o pagamento da totalidade da dívida com uma letra de câmbio, ocorreu novação da dívida, deixando a demandante de ser legítima portadora dos cheques.

Vejamos.

A questão está pois em saber se a emissão da letra de câmbio configura uma novação objectiva, traduzida na celebração de um novo contrato, através do qual foi contraída uma nova obrigação em substituição da anterior.

Nos termos do disposto no art. 857º do C. Civil “Dá-se a novação objectiva quando o devedor contrai perante o credor uma nova obrigação em substituição da antiga”.
A novação consiste, pois, “na convenção pela qual as partes extinguem uma obrigação, mediante a criação de uma nova obrigação em lugar dela” (19).
Essencial para haver novação é que os interessados queiram realmente extinguir a obrigação primitiva por meio de contracção de uma nova obrigação. Se a ideia das partes é a de manter a obrigação, alterando apenas um ou alguns dos seus elementos, não há novação, mas simples modificação ou alteração da obrigação (20).
A vontade de contrair a nova obrigação, em substituição da antiga, deve ser expressamente manifestada – art. 859º do C. Civil –, sendo expressa a declaração quando feita por palavras, escrito ou qualquer outro meio directo de manifestação de vontade, nos termos do art. 217º, n.º 1 do C. Civil.
Não havendo, portanto, declaração expressa de que se pretende novar, a obrigação primitiva não se extingue, sendo apenas modificado ou transmitido o crédito ou a dívida para terceiro.
E, sendo a novação um facto extintivo da obrigação accionada, a intenção de novar e a expressa manifestação dessa intenção, têm que ser provadas por quem a invoca.

No caso vertente, apenas se deu como provado (pontos 26 e 27) que em 02/12/2008 foi emitida uma letra no valor de € 134.058,46 correspondente à totalidade da dívida da sociedade “Construções Y e filho, Ldª”, destinando-se a substituir aqueles cheques e outros do referido J. A., não sendo a mesma aceite a descontar pela entidade bancária.

Ora, em face destes factos, não podemos concluir que houve qualquer declaração expressa no sentido de que as partes quiseram criar uma nova obrigação, tanto mais que tudo leva a crer que os recorrentes nem sequer foram intervenientes no putativo acordo para a invocada substituição da forma de pagamento.
Assim, não lograram os recorrentes, provar com lhes incumbia, o referido facto extintivo da obrigação, improcedendo, também nesta parte, o recurso.
*
Decisão:

Nos termos expostos, julgando-se o recurso improcedente, decide-se manter integralmente a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em quatro unidades de conta (arts. 513º, nº 1, do C.P. Penal, e 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa a este último diploma).
Guimarães, 24/09/2018

Ausenda Gonçalves
Fátima Furtado


1 O legislador pretendeu um grau de recurso que atentasse e procedesse – dentro dos limites que uma gravação, despida dos factores possibilitados pela imediação consentisse – uma verdadeira e conscienciosa reapreciação da decisão de facto.
2 Como se expendeu no acórdão do Tribunal Constitucional nº 312/2012, relatado pelo conselheiro Cura Mariano «…o direito ao recurso constitucionalmente garantido não exige que o controlo efetuado pelo tribunal superior se traduza num julgamento ex-novo da matéria de facto, face às provas produzidas, podendo esse controlo limitar-se a aferir se a instância recorrida não cometeu um error in judicando conforme já se decidiu no Acórdão n.º 59/2006 deste Tribunal (acessível em www.tribunalconstitucional.pt), onde se escreveu: “Na verdade, seria manifestamente improcedente sustentar que o recurso para o Tribunal da Relação da parte da decisão relativa à matéria de facto devia implicar necessariamente a realização de um novo julgamento, que ignorasse o julgamento realizado em 1ª instância. Essa solução traduzir-se-ia num sistema de “duplo julgamento”. A Constituição em nenhum dos seus preceitos impõe tal solução…».
3 Processos nºs 06P3518 e 08P2894, respectivamente, ambos relatados pelo Conselheiro Henriques Gaspar.
4 É, aliás, no cumprimento deste último requisito que, segundo parece ser consensual, se deve estabelecer alguma maleabilidade, em função das especificidades do caso, da maior ou menor dificuldade que ofereça, com relevo, designadamente, para a extensão dos depoimentos e das matérias em discussão, uma vez que se considere que a insuficiência de tal indicação não dificulta de forma substancial e relevante o exercício do contraditório, nem o exame pelo Tribunal.
5 Como dizia Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, p. 191.
6 Rev. Min. Pub. 19º, 40.
7 Com efeito, como ensina Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Vol. I, Verbo, 1993, pág. 41, «a dúvida sobre a responsabilidade é a razão de ser do processo. O processo nasce porque uma dúvida está na sua base e uma certeza deveria ser o seu fim. Dados, porém, os limites do conhecimento humano, sucede frequentemente que a dúvida inicial permanece dúvida a final, malgrado todo o esforço para a superar. Em tal situação, o princípio político-jurídico da presunção de inocência imporá a absolvição do acusado». Neste sentido se pronuncia, também, a generalidade da jurisprudência dos nossos tribunais superiores, como o atestam, v.g., o Ac. da RP, de 21/04/2004, in www.dgsi.pt, no qual se refere: «O princípio “in dubio pro reo” é uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Ou seja, e dito de outro modo, quando o juiz não consiga ultrapassar a dúvida razoável de modo a considerar o facto como provado, com a certeza que se exige para tal, e porque não pode haver um “non liquet”, tem de valorar o facto a favor do arguido. a favor do arguido é consequente do princípio da presunção de inocência».
8 Cfr. Manuel Cavaleiro de Ferreira, in “Curso de Processo Penal”, vol. 2º, 1986, Editora Danúbio, pág. 259.
9O provérbio “testis unus testis nullus” não tem, pois, definitiva relevância, apesar de muito ancestral. É hoje consensual que um único testemunho, pode ser suficiente para desvirtuar a presunção de inocência desde que ocorram: a) ausência de incredibilidade subjectiva derivada das relações arguido/vítima ou denunciante que possam conduzir à dedução da existência de um móbil de ressentimento, ou inimizade; b) verosimilhança – o testemunho há-de estar rodeado de certas corroborações periféricas de carácter objectivo que o dotem de aptidão probatória; c) persistência na incriminação, prolongada no tempo e reiteradamente expressa e exposta sem ambiguidades ou contradições (Nesse sentido, cfr., entre outros, António Pablo Rives Seva, La Prueba en el Processo Penal-Doctrina de la Sala Segunda del Tribunal Supremo, Pamplona, 1996, pp.181-187).
10 A óbvia vinculação dessa liberdade às regras fundamentais de um estado-de-direito democrático, sobretudo as vertidas na lei fundamental e na do processo penal, não obsta à busca da verdade material. Por ser condição da realização da justiça e da sua própria subsistência, não pode a concretização dessa tarefa, embora exercida com exigência e rigor, tropeçar em exagero ou comodismos, travestidos de juízos matematicamente infalíveis ou de argumentos especulativos e transcendentes, sob pena de essencialmente deixar de o ser e de o julgamento passar à margem da verdadeira, fundamental e íntima convicção dos juízes, com o risco indesejável de, assim, o tribunal abdicar da sua soberana função de julgar em nome da comunidade (cfr. Ac. STJ de 15/6/2000, in CJ(S), 2º/228, sobre a questão da livre convicção).
Mas, ainda a propósito da livre apreciação da prova, convém lembrar o que refere o Prof. F. Dias: «(…) o princípio não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável – e portanto arbitrária – da prova produzida». E acrescenta que tal discricionaridade tem limites inultrapassáveis: «a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada «verdade material» – , de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e de controlo». E continua: «a «livre» ou «íntima» convicção do juiz ... não poderá ser uma convicção puramente subjectiva, emocional e portanto imotivável». Embora não se busque o conhecimento ou apreensão absolutos de um acontecimento, nem por isso o caminho há-de ser o da pura convicção subjectiva. E «Se a verdade que se procura é...uma verdade prático-jurídica, e se, por outro lado, uma das funções primaciais de toda a sentença (maxime da penal) é a de convencer os interessados do bom fundamento da decisão, a convicção do juiz há-de ser, é certo, uma convicção pessoal – até porque nela desempenham um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v. g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais – mas, em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impôr-se aos outros». E conclui: «Uma tal convicção existirá quando e só quando ... o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável», isto é, «quando o tribunal ... tenha logrado afastar qualquer dúvida para a qual pudessem ser dadas razões, por pouco verosímil ou provável que ela se apresentasse» - Direito Proc. Penal, 1º. Vol., pp. 203/205.
11 Aludem apenas na motivação ao requerimento executivo.
12 Acórdão do STJ de 31-10-2007 (processo n.º 07P3218), disponível em http://www.dgsi.pt, bem como, em sentido coincidente, os acórdãos do mesmo Tribunal de 03-12-2009 (processo n.º 760/04.0TAEVR.E1.S1), de 28-10-2009 (processo n.º 121/07.9PBPTM.E1.S1), de 10-01-2007 (processo n.º 3518/06), de 04-01-2007 (processo n.º 4093/06) e de 04-10-2006 (processo n.º 812/06), disponíveis em http://www.dgsi.pt.
13 Acórdão n.º 140/2004, disponível em http://www.tribunalconstitcional.pt.
14 Designadamente no acórdão n.º 198/2004, de 24-03-2004, in DR, II Série, n.º 129, de 02-06-2004.
15 O caso julgado visa, essencialmente, obstar a que «o tribunal decida de modo diverso sobre o direito, situação ou posição jurídica concreta, já definida por decisão anterior, ou seja, desconheça de todo ou em parte os bens por ela reconhecidos e tutelados» (Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, III, p. 391 e s).
16 «As sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo» e, por isso, só vincula no próprio processo em que a decisão que o adquiriu foi proferida.
17 Cf., entre muitos outros, os Acs. do STJ de 4/6/2015 (177/04.6TBRMZ.E1.S1 - João Bernardo), de 19.5.2010 (3749/05.8TTLSB.L1.S1 – Sousa Grandão) e de 12/9/2013 (239/09.3TBVRS.E1.S1 – Fernando Bento). E, na doutrina, neste sentido, M. Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, 1976, p. 319 e s), bem como, entre outros:
- Miguel Teixeira de Sousa («Quando vigora como autoridade do caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade do caso julgado é o comando de acção ou a proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva a repetição no processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão antecedente» – cfr. “O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material”, in BMJ 325º-179).
- Mariana França Gouveia, in “A Causa de Pedir na Acção Declarativa, 2004, p. 394” («A excepção de caso julgado implica uma não decisão sobre a nova acção e pressupõe uma total identidade entre as duas. A autoridade de caso julgado implica uma aceitação de uma decisão proferida numa acção anterior, decisão esta que se insere, quanto ao seu objecto, no objecto da segunda acção, enquanto questão prejudicial» (…) «os efeitos do caso julgado material projectam-se em processo subsequente necessariamente como autoridade do caso julgado material em que o conteúdo da decisão anterior constitui uma vinculação à decisão de distinto objecto posterior ou como excepção de caso julgado em que a existência de decisão anterior constitui um impedimento à decisão de idêntico objecto posterior»).
18 Cf. Rodrigues Bastos, in “Notas ao Código de Processo Civil”, III, pp 60 e 61.
19 Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 5ª ed, pág. 229.
20 Cf. acórdão do STJ de 31/3/2009, processo 08A3353