Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
294/18.5T8PRG.G1
Relator: RAMOS LOPES
Descritores: PREFERÊNCIA
CADUCIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/19/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário do Relator:

O acontecimento que ‘torna certo e limitado o prazo para o exercício coercivo do direito de preferência’ – ou seja, que constitui o termo inicial do prazo de caducidade estabelecido no nº 1 do art. 1410º do CC – é, nas situações em que existe divergência entre o preço declarado e o preço real (sendo este superior àquele), o do trânsito da decisão que o declara, pois que nessa decisão se fixa um elemento essencial (o preço real devido) da alienação.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães (1)
*
RELATÓRIO

Apelante (autor): (…)
Apelados (réus): (…) e mulher, (…) e (…) e mulher, (…) .
*
Alegando (no que releva à economia da presente apelação) ter tomado conhecimento, em 5/02/2018, com a notificação de acórdão (transitado em julgado) da Relação de Guimarães proferido na acção comum que com o nº 290/15.4T8PRG moveu aos aqui réus no juízo de competência genérica do (...), que não só o objecto mediato do contrato de compra e venda outorgado em escritura pública de 6/08/2015 entre o primeiro réu varão (com consentimento da primeira ré mulher) e a segunda ré mulher não foi, como dela consta, o quarto indiviso do prédio rústico descrito na CRP do (...) sob o nº (…) da freguesia de (...), inscrito na matriz sob o artigo (…) , antes um prédio rústico com área de 546 m2 de terreno de cultura a vinha com sequeiro, tendo um armazém com a área de 35,20 m2 e uma construção arruinada com a área de 12 m2 (prédio que resultou da divisão material daquele prédio descrito na CRP de (...) sob o nº (…) e inscrito na matriz sob o artigo (..) operada há mais de oitenta anos e assim possuída pelos primeiros réus e antepossuidores), que confronta com prédio de que é, autor, proprietário, como ainda de que o preço do negócio não foi o ali declarado de quinhentos euros, mas antes o de dez mil euros, intentou o autor em 2/08/2018 a presente acção pedindo (além doutros que aqui não relevam):

- se declare que se operou a conversão do negócio nulo constante da escritura pública de 6 de Agosto de 2015, descrita e identificada nos artigos 26º a 33º da petição num negócio de tipo ou conteúdo diferente, designadamente a venda pelos primeiros réus aos segundos réus, que lhes compraram, do imóvel rústico melhor descrito e identificado nos artigos 7º a 17º da petição, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 293º do CC,
- se declare o direito de preferência do autor na venda do prédio rústico melhor descrito e identificado nos artigos 7º a 17º da petição que os primeiros réus fizeram aos segundos réus, sendo estes substituídos na respectiva titularidade e ordenando-se o correspondente registo de aquisição a favor do autor.

Propusera o autor a referida acção nº 290/15.4T8PRG em vista de preferir na venda (que não lhe foi comunicada pelo vendedor) de ¼ indiviso de imóvel de que era comproprietário, feita pelo primeiro réu varão à segunda ré mulher, pelo preço declarado de quinhentos euros, acção julgada improcedente e na qual se considerou provado não só que o objecto mediato do negócio não era o identificado no escritura pública que documentava o negócio celebrado entre os réus mas antes o que se deixou acima referido (e que é agora objecto da presente acção) como ainda que o preço real do negócio foi de dez mil euros e não de quinhentos euros.

Contestaram os segundos réus invocando, além do mais, a excepção da caducidade, argumentando que a acção foi proposta depois de decorridos seis meses sobre o conhecimento dos elementos essenciais da alienação (artigos 1380º, nº 4 e 1410º, nº 1 do CC), porquanto o autor, no âmbito da acção comum nº 290/15.4T8PRG em que exerceu a preferência (tanto na qualidade de comproprietário, como na qualidade de proprietário confinante, face à alteração/ampliação do pedido e causa de pedir formulados) teve conhecimento do valor real do negócio ao ser notificado da contestação, não tendo manifestado a intenção de preferir por tal preço (a pretensão de preferir por 5.000,00€, manifestada em audiência, não lhe foi deferida e foi-lhe denegado em sede de recurso o reconhecimento do direito de preferência pelo preço de 10.000,00€, por se tratar de questão nova, não apreciada na primeira instância).
Respondeu o autor, pugnando pela improcedência da excepção, mantendo que só com a notificação do acórdão da Relação de Guimarães de 5/02/2018 proferido na acção comum nº 290/15.4T8PRG tomou conhecimento real e efectivo dos termos do negócio celebrado entre os réus.
Realizada audiência prévia, foi proferido saneador que, conhecendo-a e apreciando-a, julgou procedente a excepção da caducidade, absolvendo os réus do pedido, considerando-se para tanto que o autor terá tomado conhecimento dos elementos essenciais do negócio pelo menos em 28/10/2015, data em que instaurou em juízo a referida acção nº 290/15.4T8PRG (sendo que por iniciativa própria obtivera em 13/08/2015 fotocópia da escritura celebrada), pelo que à data de 2/08/2018 (data da propositura da presente acção) estava já esgotado o prazo de caducidade estabelecido nos artigos 1380º, nº 4 e 1410º, nº 1 do CC.

Inconformado, apela o autor, pugnando pela revogação da decisão e substituição por outra que, considerando não se verificar a caducidade, determine o prosseguimento dos autos para apreciação dos pedidos, formulando as seguintes conclusões:

1. O Apelante não se conforma com a decisão do Tribunal a quo, por, em seu entender, a mesma consubstanciar uma menos correta interpretação e aplicação do direito ao caso em apreço.
2. Quanto ao prazo de caducidade, prevê o artigo 1410º nº 1 do CC, que a acção de preferência terá de dar entrada dentro do prazo de seis meses, a contar da data em que teve conhecimento dos elementos essenciais da alienação e deposite o preço devido nos oito dias seguintes ao despacho que ordene a citação dos réus.
3. Com a factualidade supra descrita nos artigos 1º a 25º da p.i., o A. identificou o prédio de que é proprietário e a forma como este adveio à sua titularidade. (Cfr. Artigo 1º da p.i.)
4. Por forma a expor a origem do direito de preferência que assiste ao A., aqui Recorrente, na qualidade de proprietário de um prédio confinante ao prédio que foi objecto da compra e venda celebrada entre os 1ºs e 2ºs RR..
5. Para além disso, mais alegou a factualidade constante dos artigos 28º a 53º da p.i., de onde resulta exposto que o Recorrente ao ter conhecimento de que havia sido celebrada a referida escritura de compra e venda entre os 1ºs e os 2ºs RR. interpôs acção judicial, que deu origem ao processo nº 290/15.4T8PRG, invocando o seu direito de propriedade sobre prédio confinante ao prédio objecto da compra e venda.
6. Salvo o devido respeito, não pode o Apelante concordar com o entendimento do tribunal a quo de que o Autor, aqui Recorrente, teve conhecimento dos elementos essenciais da alienação, a 13 de agosto, data em que obtiveram a fotocópia com valor de informação da escritura celebrada.
7. No decorrer do processo nº 290/15.4T8PRG, a matéria factual relativa à dita escritura de compra e venda, esteve em discussão, sendo matéria controvertida nos autos, até à prolação da decisão final da causa.
8. Com efeito, o tribunal recorrido definiu a sua decisão por referência à data de 13 de agosto de 2015, data em que o A., aqui Recorrente, obteve a fotocópia com valor de informação da escritura celebrada.
9. E o certo é que, da cópia da escritura a que a Mmª Juiz faz referência, não constam os elementos essenciais do negócio celebrado entre os 1ºs e os 2ºs RR. e que posteriormente se discutiram no decorrer do processo nº 290/15.4T8PRG, cuja decisão final foi notificada ao Autor a 5 de fevereiro de 2018.
10. A Mmª Juiz desconsiderou a factualidade alegada pelo A., designadamente a título da invocada nulidade da escritura e da invocada nulidade parcial do acórdão.
11. E o certo é que, a matéria de facto alegada pelo A., aqui Apelante, na sua p.i., que não se considerou assente, tem que ser declarada controvertida, atenta a posição das partes nos autos, e como tal, sujeita a instrução e prova no âmbito dos presentes autos para demonstração do efeito jurídico alegado e pedido pelo A., aqui Apelante, até segundo as várias soluções plausíveis de direito.
12. Os RR. em sede de contestação impugnaram a matéria vertida nos artigos 17º, 24º, 53º, 55º, 56º, 57º, 58º, 61º, 77º, 78º, 79º, 96º e 99º da petição inicial, alegando a falsidade dos mesmos, por não corresponderem à verdade e/ou porque não podem ser interpretados nesse sentido, e ainda a matéria constante dos artigos 23º, 54º a 62º, 65º a 76º. 80º, 84º a 88º, 97º, 98º e 100º da petição inicial, por serem inócuos, mera questões de direito e/ou conclusões.
13. Os RR. invocaram ainda a excepção peremptória da caducidade nos artigos 6º a 21º, os quais foram impugnados pelo A., aqui Recorrente, em 7º da resposta às excepções.
14. Ou seja, trata-se de matéria controvertida que exige a produção de prova.
15. Ao assim decidir ignorou determinados factos essenciais a ter em atenção, nomeadamente:
- O facto de que da cópia da escritura a que a Mmª Juiz faz referência, não constam os elementos essenciais do negócio celebrado entre os 1ºs e os 2ºs RR. e que posteriormente se discutiram no decorrer do processo nº 290/15.4T8PRG, cuja decisão final foi notificada ao Autor a 5 de Fevereiro de 2018.
- A matéria factual relativa à dita escritura de compra e venda, esteve em discussão, sendo matéria controvertida nos autos, até à prolação da decisão final da causa.
- Por último, sempre se dirá que, o Tribunal a quo ignorou por completo a factualidade alegada pelo Recorrente em sede de petição inicial, e que supra se expôs.
16. O Tribunal recorrido ao ter decidido pela forma que decidiu, violou e fez errada aplicação da lei de processo, assim como errada interpretação e aplicação da lei substantiva aplicável ao caso concreto.
17. O certo é que, a matéria de facto alegada pelo A., aqui Apelante, na sua p.i., que não se considerou assente, tem que ser declarada controvertida, atenta a posição das partes nos autos.
18. E como tal, sujeita a instrução e prova no âmbito dos presentes autos para demonstração do efeito jurídico alegado e pedido pelo A., aqui Apelante, até segundo as várias soluções plausíveis de direito.
19. Com a prolação do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, no processo nº 290/15.4T8PRG.G1, é que o Recorrente teve conhecimento definitivo que a compra e venda teve o preço de € 10.000,00 e não o valor que consta da escritura de compra e venda outorgada a 6 de agosto de 2015 e cuja cópia do A. obteve a 13 de agosto de 2015.
20. Até então, esteve em discussão nos autos o valor declarado na escritura e o valor efectivamente pago no âmbito do referido negócio jurídico.
21. Daí que tendo a acção sido interposta a 02 de agosto de 2018, o seu direito não caducou, nem poderia ter sido declarada procedente a aduzida excepção peremptória de caducidade.
22. Daí que o estado do processo não permitisse, sem necessidade de mais provas, a apreciação total da excepção peremptória de caducidade alegada pelos RR., com conhecimento do mérito dos autos pela Mmª Juiz da causa e absolvição dos RR. dos pedidos formulados pelo A..
23. Devendo em consequência ter sido proferido despacho saneador, assim como devendo a acção prosseguir com despacho destinado a identificar o objecto do litígio e a enunciar os temas da prova, seguindo-se os demais trâmites legais e processuais até final – artigo 596º do CPC.
24. O Tribunal recorrido violou o disposto nos artigos 595º, nº 1, b) e 596º e ss do CPC, pelo que a decisão judicial recorrida é nula, o que se invoca para os devidos efeitos legais.
25. Caso assim não se entenda, a sentença é nula ao abrigo do disposto no artigo 668º, nº 1 al. d), segunda parte, do CPC, porquanto a Mmª Juiz conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento, designadamente da caducidade do direito do A, sem atender ao demais alegado pelo A., aqui Apelante.
26. E ainda ao abrigo do disposto na primeira parte do mesmo artigo 668º, nº 1 al. d) do CPC, pelo facto de a Mmª Juiz ter deixado de apreciar questões que devia ter apreciado, nomeadamente, a factualidade invocada quanto à nulidade da escritura pública celebrada a 6 de agosto de 2015 e a nulidade parcial do acórdão.
27. O artigo 607º nº 4 do CPC mais dispõe que na fundamentação da sentença, o juiz declara que os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção.
28. Mais dispondo o artigo 613º, nº 3 do CPC que o disposto nos números anteriores, bem como nos artigos subsequentes, aplica-se, com as necessárias adaptações aos despachos, contudo, na decisão judicial recorrida, o Tribunal a quo não enunciou especificamente a fundamentação de facto.
29. Nada disse quanto à matéria de facto alegada pelo A., aqui Apelante, nos artigos 1º a 25º, 28º a 82º da petição inicial, designadamente, se os considerava provados ou não provados.
30. O Tribunal não cumpriu com o disposto no artigo 162º do CPC relativo ao dever de fundamentar a decisão.
31. O qual deve ser lido em conjugação com o artigo 205º da Constituição da República Portuguesa, cujos termos referem que “as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.
32. A necessidade de fundamentação das decisões deve apresentar uma densidade suficiente para que se possam dar por satisfeitos os objectivos constitucionais (artigo 205º, nº 1 da CRP) e legais (artigo 162º do CPC), isto é, permitir aos destinatários exercitar com eficácia os meios legais de reacção ao seu dispor e assegurar a transparência e a reflexão decisória, convencendo e não apenas impondo.
33. Atento todo o supra exposto, incorreu a decisão recorrida na nulidade prevista no artigo 615º, nº 1, b), 1ª parte do CPC, que se argui com as legais consequências.
34. No caso dos presentes autos, não foi dada a oportunidade ao preferente de adquirir o imóvel objecto da preferência.
35. E, assim sendo, o preferente goza do direito potestativo de, numa acção de preferência se substituir ao adquirente da coisa, no contrato que celebrou com o obrigado a dar preferência.
36. De acordo com o previsto no artigo 1410º do CC, a acção de preferência terá de dar entrada dentro do prazo de seis meses, sendo que o prazo indicado de seis meses começa a contar desde a data em que o titular do direito de preferência teve conhecimento dos elementos essenciais da alienação e deposite o preço devido nos oito dias seguintes ao despacho que ordene a citação dos réus.
37. Os elementos essenciais cujo conhecimento importa ao começo da contagem do prazo de caducidade são, conforme se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Janeiro de 1974 (B. M. J., 241º, págs. 292-293), “todos os factores do negócio capazes de influir decisivamente na formação da vontade de preferir ou não, todos os elementos reais do contrato que pudessem ter influência num sentido ou noutro.”
38. No âmbito processo nº 290/15.4T8PRG decidiu-se que o preço da venda constante da escritura de compra e venda, não corresponde ao valor efectivamente pago pelos 2ºs RR. aos 1ºs RR..
39. O referido processo terminou com acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, já transitado em julgado, e do qual resultou fixado como preço da compra e venda celebrada a quantia de € 10.000,00.
40. Tendo o referido acórdão do tribunal da Relação de Guimarães sido notificado ao aqui Recorrente a 5 de Fevereiro de 2018, sempre se dirá que o Recorrente apenas teve conhecimento efectivo do preço do negócio nessa mesma data!
41. O preço do negócio é, sem dúvida, um elemento essencial do negócio, sendo a partir do seu conhecimento que se inicia a contagem do prazo de caducidade!
42. Ou seja, o prazo de caducidade de 6 meses, para o Recorrente exercer o seu direito de preferência, atento o valor real do negócio - € 10.000,00 – iniciou-se a 5 de Fevereiro de 2018.
43. Esclarece Antunes Varela (1997: 376) que “No caso de só estar disposto a preferir em relação ao preço que julga ser o realmente fixado pelas partes, o preferente pode aguardar a decisão da acção de simulação, para, na hipótese de ela proceder, exercer o seu direito no prazo de seis meses a contar do trânsito em julgado da decisão que fixa o elemento essencial da alienação, que é o preço.(negrito e sublinhado nosso)
44. Por tudo o exposto, tendo a presente acção dado entrada a 2 de Agosto de 2019 e tendo o Recorrente sido notificado do douto acórdão proferido no âmbito do processo nº 290/15.4T8PRG, com a decisão transitada em julgado do preço real do negócio, não se verifica a caducidade do direito de preferência, que o Recorrente pretende ver reconhecido com a presente acção.
45. Foi incorrectamente aplicado o disposto nos artigos 416º, 1380 nº 1 e 4 e 1410º nº 1 do CC, pelo que, deve ordenar-se que os autos baixem à primeira instância, para prosseguirem os seus termos até final, dado que o direito de preferência do Recorrente não se encontra ferido de caducidade.

Contra-alegaram os réus apelados, sustentando a improcedência da apelação e consequente manutenção de decisão recorrida.
*
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
*
Delimitação do objecto do recurso.

Considerando, conjugadamente, a decisão recorrida (que constitui o ponto de partida do recurso) e as conclusões das alegações do apelante (por estas se delimita o objecto dos recursos, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso - artigos 608º, nº 2, 5º, nº 3, 635º, nºs 4 e 5 e 639, nº 1, do CPC), a questão a decidir (para lá das arguidas nulidades da decisão – quer por omissão e excesso de pronúncia, quer por falta de fundamentação) reconduz-se a apreciar se o direito que o autor pretende exercer na presente demanda se mostra ou não caduco, por decorridos, à data da sua instauração, mais de seis meses sobre a data em que teve conhecimento dos elementos essenciais do negócio em que se pretende substituir à compradora, pelo exercício da preferência.
*
FUNDAMENTAÇÃO
*
Fundamentação de facto

A decisão recorrida atendeu (ainda que os não tenha elencado autónoma e separadamente – como exigido pela estrutura assinalada para as sentenças e despachos, nos artigos 607º, nº 3 e 4 do CPC –, a eles aludindo ao apresentar os argumentos jurídicos tidos por pertinentes para considerar verificada a excepção peremptória da caducidade) aos seguintes factos:

1. Em acção que interpôs em 28/10/2015, que correu termos sob o nº 290/15.4T8PRG, pediu o autor lhe fosse reconhecido o direito legal de preferência na venda que os primeiros réus vendedores fizeram aos segundos réus compradores de ¼ do prédio rústico composto de vinha da região demarcada do Douro, com a área de 2.624m2, sito no lugar das …, dita freguesia de (...), inscrito na matriz cadastral respectiva sob o art. 356-J e descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o nº1380/19970319.
2. Na data de 18 de Janeiro de 2016, no âmbito do processo 290/15.4T8PRG, o autor, através da resposta, ampliou o pedido e a causa de pedir.
3. A presente acção deu entrada em tribunal no dia 02/08/2018.
4. O autor obteve por iniciativa própria, a 13/08/ 2015, fotocópia com valor de informação da escritura celebrada.

Não pode deixar de considerar-se algo indigente a fundamentação de facto acima elencada – sendo irrelevantes outros factos concernentes às demais questões suscitadas pela demanda, a matéria pertinente (considerando aos alegações das partes) à apreciação da excepção não fica completamente retratada nos factos ponderados na decisão recorrida.

Assim, completar-se-á (oficiosamente), nos termos dos art. 607º, nº 3 e nº 4, 2ª parte e 663º, nº 2 do CPC, a matéria factual pertinente à causa e que se mostra documentalmente provada (mormente os termos da anterior e decisão nela proferida).
a. Em escritura pública outorgada em 6/08/2015, em Cartório Notarial sito no (...), o aqui primeiro réu varão declarou vender (tendo a aqui primeira ré mulher declarado prestar o seu consentimento) à aqui segunda ré, pelo preço de quinhentos euros, um quarto indiviso do prédio rústico descrito na CRP do (...) sob o nº 1380 da freguesia de (...), inscrito na matriz sob o artigo 356-J;
b. Na acção que correu sob o nº 290/15.4T8PRG:
b.1 o autor, invocou a sua qualidade de comproprietário de ¼ do bem alienado pelo aqui primeiro réu varão à segunda ré mulher, pretendendo preferir, atenta essa sua qualidade, no referido negócio celebrado pelo preço de quinhentos euros (declarado na referida escritura), dado a compradora não ser titular de qualquer direito sobre o prédio e não lhe ter sido comunicada o projecto de venda para que pudesse exercer a preferência;
b.2. contestaram tal acção os segundos réus, alegando (em síntese) que o preço real do negócio de compra e venda foi de dez mil euros e não o declarado na escritura e que o bem vendido foi uma parcela de terreno composta por um armazém de rés-do-chão, com a área de 32,59m2, uma construção arruinada com a área de 12 m2 e terreno de cultura, com área de 546m2, a vinha da região demarcada do Douro e sequeiro, parcela perfeitamente dividida, demarcada e autonomizada e que resultou da divisão material do prédio descrito na CRP de (...) sob o nº 1380/(...) e inscrito na matriz sob o artigo 356º-J, operada há mais de oitenta anos e assim possuída pelos primeiros réus e antepossuidores,
b.3. deduziram ainda os segundos réus reconvenção pedindo fosse declarado dividido em substância, por via da usucapião, o prédio rústico em causa e fosse declarado serem os reconvintes proprietários, com exclusão de outrem e por via da usucapião, atenta a divisão de facto referida e aquisição mencionada, de uma parcela de terreno composta por um armazém de rés-do-chão, com a área de 32,59m2, uma construção arruinada com a área de 12 m2 e terreno de cultura, com área de 546m2, a vinha da região demarcada do Douro e sequeiro, que fazia parte do rústico inscrito na matriz cadastral sob o artigo 356-J e descrito na CRP sob o nº 1380,
b.4. respondeu o autor, argumentando que a divisão do prédio descrito na CRP sob o nº 1380 viola o disposto no artigo 1376º do CC, não podendo por isso conduzir à aquisição de direitos, e para o caso de não ser atendido tal entendimento, alterou causa de pedir e pedido, argumentando (quanto à causa de pedir) ser proprietário de prédio confinante ao terreno alienado e ter assim direito de preferência no negócio, e quanto ao pedido passando este a consistir em reconhecer-se-lhe o direito de preferência na aquisição da referida parcela, mantendo ainda o que alegara na petição quanto ao valor do negócio (o valor de quinhentos euros),
b.5. admitida a reconvenção e a alteração da causa de pedir, prosseguiu a causa os seus normais termos, tendo em audiência de discussão e julgamento o autor formulado o seguinte requerimento: ‘Tendo em conta que se encontra documentada nos autos a transferência da quantia de 5.000,00 euros de uma conta dos Réus compradores para uma outra conta do Réu marido vendedor e admitindo que tenha sido esse o preço da compra e venda entre eles celebrada, o Autor desde já declara que, caso venha a demonstrar-se ter sido esse o preço real do negócio, pelo mesmo pretende exercer o seu direito de preferência’,
b.6. após pronúncia dos réus sobe tal pretensão, foi proferido despacho que, considerando que o pretendido consubstanciava uma ampliação do pedido, nos termos do art. 265º, nº 2 do CPC, não se encontrando ‘suportada pela necessária e inerente alteração da causa de pedir’ e que não constituía articulado superveniente admissível, não o admitiu (salvo na parte em que tomava posição quanto ao preço real do negócio alegado pelos réus);
b.7. realizado o julgamento, foi proferida sentença que, reconhecendo o direito de compropriedade do autor sobre o imóvel identificado nos autos, julgou no mais improcedente a acção, julgando também improcedente a reconvenção, tendo julgado demonstrado que a venda foi feita pelo preço de dez mil euros,
b.8. apresentado recurso pelo autor (defendendo este, além do mais, que a manter-se a decisão da matéria de facto sobre o preço real da venda - matéria de facto que impugnou -, lhe deveria ser dada oportunidade para exercer a preferência por tal valor) e pelos reconvindos, foi proferido acórdão pela Relação de Guimarães, em 1/02/2018, notificado ao autor em 5/02/2018, transitado em julgado, que julgou improcedente o recurso do autor (considerando ser questão nova a pretensão do autor de que lhe fosse dada oportunidade para exercer a preferência pelo preço de 10.000,00€) e parcialmente procedente o recurso dos reconvintes, declarando serem estes proprietários, com exclusão doutrem e por via da usucapião, de uma parcela de terreno resultante da divisão material do prédio descrito na CRP de (...) sob o nº 1380/(...) e inscrito na matriz sob o artigo 356-J, parcela composta por um armazém de rés-do-chão, com a área de 32,59m2, uma construção arruinada com a área de 12 m2 e terreno de cultura, com área de 546m2, a vinha da região demarcada do Douro e sequeiro.
*
Fundamentação de direito

A. Das invocadas nulidades da decisão

Invoca o apelante a nulidade da decisão recorrida quer por falta de fundamentação (art. 615º, nº 1, b) do CPC – conclusões 27ª a 33ª) (2), quer por omissão e excesso de pronúncia (art. 615º, nº 1 d) do CPC – conclusões 25ª e 26ª).

Sustenta (parte final da conclusão nº 28ª) que na decisão não é especificamente enunciada a fundamentação de facto (art. 615º, nº 1, b) do CPC).

Já acima referimos que a decisão recorrida (decisão à qual se aplica o regime das nulidades da sentença - art. 613º, nº 3 do CPC) não elencou autónoma e separadamente a matéria de facto a que atendeu para fundar a decisão sobre a invocada excepção da caducidade.

Porém, a tal matéria de facto aludiu (expressando-a – matéria acima identificada) ainda que o tenha feito no segmento em que expôs a argumentação jurídica (e, por isso, no segmento que, face à estrutura própria e adequada às decisões judiciais, estaria reservado para a fundamentação de direito).

Reconheceu-se ainda que a matéria a que atendeu ficou aquém da relevante para a apreciação da excepção – o que levou este tribunal a completá-la (oficiosamente), nos termos dos art. 607º, nº 4, 2ª parte e 3 e 663º, nº 2 do CPC.

Todavia, para que exista falta de fundamentos de facto, como causa de nulidade da decisão, torna-se necessário que o juiz omita totalmente a especificação dos factos que considera provados, de harmonia com o que se estabelece no art. 607º, nº 3 e nº 4, 2ª parte do CPC e que suportam a decisão (3) - só a absoluta falta de motivação é considerada pela lei como causa de nulidade da sentença, não já a fundamentação deficiente (4).

Analisada a decisão recorrida, constata-se que tal absoluta omissão de fundamentação de facto não ocorre, pois que nela (ainda que de forma não estruturalmente correcta) se elencaram os factos tidos por pertinentes para a decisão (mesmo considerando que a matéria ponderada tenha ficado aquém da relevante para a apreciação da excepção conhecida).

Invoca também o apelante não ter a decisão recorrida tomado posição sobre a matéria por si alegada nos artigos 1º a 25 e 28º a 82º da petição inicial, considerando-os provados ou não (matéria que se mostra controvertida).

Argumentação improcedente, pois que a decisão recorrida se circunscreveu a apreciar da invocada excepção da caducidade, julgando-a procedente, o que determinou que as demais questões suscitadas nos autos ficassem prejudicadas – e por isso que a matéria de facto a ter em consideração estava balizada à concernente à apreciação da excepção.
Não se verifica, pois, a apontada nulidade da decisão por falta de fundamentação de facto.

Sustenta ainda o apelante a nulidade da decisão por excesso – por ter conhecido de questão que não podia conhecer, pois que conheceu da invocada caducidade do direito sem atender ao demais por si alegado (conclusão 25ª) – e por omissão de pronúncia – por ter deixado de apreciar de questões que devia ter apreciado, nomeadamente a factualidade invocada quanto à nulidade da escritura pública celebrada pelos réus e nulidade parcial do acórdão da Relação de Guimarães proferido na acção nº 290/15.4T8PRG.G1.

A nulidade prevista no art. 615º, nº 1, d) do C.P.C. abrange os casos da omissão de conhecimento e do conhecimento indevido (5).

O primeiro desses casos – omissão de pronúncia (6) – traduz-se na circunstância do juiz se não pronunciar sobre questões que devesse apreciar, ante o estatuído na 1ª parte do nº 2 do art. 608 do CPC (7).
A segunda situação – pronúncia indevida (8) – consiste em o juiz conhecer de questões de que não podia tomar conhecimento – nulidade relacionada com a 2ª parte do nº 2 do art. 608º do CPC, onde se proíbe ao juiz ocupar-se de questões que as partes não tenham suscitado, a menos que a lei lho permita ou imponha o conhecimento oficioso (9),
Cremos unânime a doutrina ao relacionar este vício da sentença com o dispositivo do art. 608º do CPC, por ele tendo de ser integrado (10).

Deve o conceito (questões) ser tomado em sentido amplo, englobando tudo quanto diga respeito à concludência ou inconcludência das excepções e da causa de pedir (melhor, à fundabilidade ou infundabilidade dumas e doutras) e às controvérsias que as partes sobre elas suscitem – tal causa de nulidade da sentença completa a da nulidade por falta de fundamentação, pois não à regularidade da sentença a fundamentação que contém, sendo ainda necessário que trate e aprecie o dissídio jurídico trazido aos autos pelas partes, ou dito de outro modo, que o contraditório propiciado às partes sob os aspectos jurídicos da causa não deixe de encontrar a devida expressão e resposta na decisão (11).

Pode afirmar-se que a nulidade da sentença com fundamento na omissão de pronúncia só ocorre quando uma questão que devia ser conhecida nessa peça processual não teve aí qualquer tratamento, apreciação ou decisão e cuja resolução não foi prejudicada pela solução dada a outras – seria um erro inferir-se que ‘a sentença tem de examinar toda a matéria controvertida, se o exame de uma só parte impuser necessariamente a decisão da causa, favorável ou desfavorável’ (12).

Por outro lado, a nulidade da sentença com fundamento na pronúncia indevida não ocorre quando se aprecia questão (mormente excepção peremptória) invocada e discutida pelas partes – se foi apreciada a questão sem que se tivesse em conta todo o enquadramento relevante e indispensável para o seu conhecimento, ter-se-á decidido mal (até precipitadamente, por não estar processualmente adquirida toda a materialidade concernente à decisão), mas tal não significa emitir pronúncia sobre questão subtraída ao poder cognitivo do tribunal (13).

Assim que no caso dos autos não ocorre nulidade da decisão por conhecimento indevido ou por omissão de conhecimento – não se verifica o excesso de pronúncia pois que a decisão se debruçou sobre questão expressamente suscitada (a invocada excepção da caducidade) e não se verifica a omissão de pronúncia pois que considerando a procedência da excepção, ficaram prejudicadas as questões suscitadas pelo autor em vista de ver reconhecida a sua pretensão.

Improcedem, pois, as invocadas nulidades da decisão.

B. Da caducidade da acção

Apresentou-se o autor na presente acção a exercer direito de referência, enquanto proprietário confinante (art. 1380º do CC), relativamente a contrato de compra e venda celebrado pelos réus em 6/08/2015.
O direito de preferência consiste na faculdade atribuída ao seu titular de celebrar o contrato dela objecto com prioridade sobre terceiro, nas mesmas condições (‘tanto por tanto’) ajustadas entre esse terceiro e o sujeito passivo (14) - numa ‘versão tradicional autêntica, consiste na faculdade atribuída a alguém de em condições de igualdade (tanto por tanto) chamar a si, com preterição de outrem a aquisição de determinada coisa ou direito que o titular pretenda alienar’ (15).

É um direito potestativo constitutivo, pois consiste na faculdade do preferente constituir unilateralmente na esfera jurídica do sujeito passivo um dever de contratar consigo (16).
A acção de preferência traduz o exercício coercivo do direito ao contrato constituído pelo exercício da prelação, consistindo numa execução específica do dever de contratar a cargo do sujeito passivo (17) - tem por finalidade ‘conseguir, à custa de um terceiro, em relação ao qual o direito de opção é eficaz, a execução específica da prestação, que o vinculado à preferência não cumpriu, de, em igualdade de condições (‘tanto por tanto’), realizar o negócio com o preferente interessado em fazer valer o seu direito (18).
Ónus (19) que recai sobre o preferente (para lá do depositar o preço devido nos 15 dias posteriores à propositura da acção) é o de interpor a acção no prazo de seis meses a contar da data em que teve conhecimento dos elementos essenciais da alienação.
A não observância de tal prazo tem como consequência a extinção do direito de preferência – o prazo estabelecido é um prazo de caducidade, como decorre do nº 2 do art. 298º do CC (20).
Considerou a decisão recorrida a caducidade do direito de preferência ponderando para tanto que à data da propositura da presente acção (o acto a que a lei atribui efeito interruptivo – artigos 331º, nº 1 e 1410º, nº 1 do CC) se mostravam já esgotados os seis meses sobre a tomada de conhecimento, pelo autor, dos elementos essenciais do negócio, conhecimento esse que reportou (pelo menos) à data da propositura da anterior acção de preferência intentada contra os réus e que sob o nº 290/15.4T8PRG correu termos no juízo de competência genérica do (...), no qual a pretensão veio a ser julgada improcedente.
Sustenta o apelante – assim vem a acção estruturada desde a petição inicial – que só com a notificação do acórdão da Relação de Guimarães, transitado em julgado, proferido naquela anterior acção por si proposta contra os réus, tomou conhecimento de um dos elementos essenciais da venda – que o preço declarado na escritura (de quinhentos euros – o preço que depositara na anterior acção) não corresponde ao preço real, de dez mil euros. Porque só então (em 5/02/2018) tomou conhecimento de elemento essencial do negócio – o preço, argumenta, é sem dúvida um elemento essencial do negócio –, só então se iniciou a contagem do prazo de caducidade.
A questão a apreciar reconduz-se, pois, a apurar, no caso concreto, do termo inicial do prazo de caducidade estabelecido no art. 1410º, nº 1 do CC.
Sendo teoricamente possível configurar o recurso à acção de preferência logo após o primeiro incumprimento por parte do sujeito passivo a ela vinculado (em termos cronológicos, o primeiro dever susceptível de violação é o dever de boa-fé, traduzido no dever de comunicar o projecto de venda e as cláusulas do respectivo contrato e no dever de não comprometer a integridade do direito o preferente) (21), certo é que o termo inicial do prazo estabelecido no art. 1410º, nº 1 do CC ocorre apenas na data em que o preferente tiver conhecimento dos elementos essenciais da alienação – por estarem em causa a partir da alienação interesses alheios aos sujeitos da preferência (preferente e alienante), designadamente os do terceiro adquirente e a segurança e tráfico jurídico, o titular do direito deixa de poder exercê-lo a todo o tempo, fixando imediatamente a lei o momento a partir do qual o direito não mais poderá ser exercido, para permitir a rápida clarificação das situações jurídicas em causa, nomeadamente a que se refere à propriedade sobre o bem sujeito à preferência (22).
Pode, pois, afirmar-se que os limites temporais para o exercício da acção de preferência se iniciam no momento em que o vinculado à preferência deixa de cumprir os seus deveres e terminam decorridos seis meses contados da data em que o preferente teve conhecimento dos elementos essenciais da aludida alienação a terceiro (23).
Uma primeira aproximação à locução ‘elementos essenciais da alienação’ utilizada no preceito (art. 1410º, nº 1 do CC) – cujo conhecimento por parte do preferente define o acontecimento que torna certo e limitado o prazo para o exercício coercivo do direito de preferência (24) – conduz-nos à tradicional (e jurisprudencial e doutrinalmente aceite) afirmação de que se reconduzem a ‘todos os factores do negócio capazes de influir decisivamente na formação da vontade de preferir ou não, todos os elementos reais do contrato que pudessem ter influência num sentido ou noutro’ (25) – elementos entre os quais figura, em posição destacada, o preço.
Não se trata, pois, aquele acontecimento que constitui o termo inicial do prazo de caducidade estabelecido no art. 1410º,nº 1 do CC, do singelo conhecimento da alienação – o conhecimento (por parte do preferente) refere-se à alienação propriamente dita, ao bem alienado, e ao sacrifício económico global suportado pelo terceiro na aquisição, que será também aquele que o preferente terá de suportar se efectivamente exercer a sua prioridade de aquisição (26).
Teleologicamente ordenado a conciliar a protecção dos interesses do titular do direito de preferência (assegurando-lhe prazo adequado para decidir se quer ou não defender o seu direito através de acção judicial) e a exigência duma rápida clarificação da situação jurídica do bem sujeito à prelação (imposta pela necessidade de protecção da segurança do tráfico jurídico), o nº 1 do art. 1410º do CC submete ‘o exercício do direito de prelação a um prazo de seis meses a contar do momento em que o preferente tenha conhecimento dos elementos essenciais da alienação, e não da alienação propriamente dita, mas por outro lado, conhecidos esses elementos, o preferente passa a ter apenas seis meses para decidir se quer recorrer à via judicial e para efectuar as diligências necessárias à preparação da demanda’ (27).
Diligências necessárias à preparação da demanda e, acrescentamos nós, também à sua estruturação quanto a elementos essenciais à respectiva procedência – a procedência da preferência depende de ser exercida relativamente ao preço real da alienação (e seu depósito), pelo que o desconhecimento de tal elemento impedirá o preferente de se dirigir a juízo alegando os factos e satisfazendo o ónus de depositar o preço devido, essenciais à procedência da sua pretensão (28).
Inquestionável que o sacrífico económico a suportar pelo preferente para exercer a sua prioridade de aquisição, ou seja, o preço devido a depositar nos autos nos termos do art. 1410º, nº 1 do CC (o outro ónus que recai sobre o preferente no exercício da acção de preferência) é o preço real, não o declarado – apurando-se que o preço real é superior ao preço declarado em escritura pública em que tenham sido produzidas declarações negociais enformadoras do negócio, essa deve ser a contrapartida a suportar/liquidar pelo preferente, sob pena de locupletamento injustificado, não merecedor de tutela (29).
Por isso que uma abordagem funcionalmente fundada do conceito – ‘elementos essenciais da alienação’ – demonstra que o mesmo não se basta com os factores capazes de influenciar decisivamente na formação da vontade de preferir ou não, abrangendo ainda (e sendo necessariamente conformado por) aqueles elementos necessários à estruturação da acção a propor e essenciais à respectiva procedência (30).
A conclusão, pois, não pode ser outra (em exigência à segurança do comércio e à boa-fé, e ponderando os interesses a tutelar) senão a de que o acontecimento que determina o termo inicial do prazo de seis meses para a propositura da acção de preferência é o conhecimento, por parte do preferente, da alienação propriamente dita, da identificação do bem alienado e da contrapartida suportada pelo terceiro na aquisição – porém, a ‘contrapartida verdadeira, pois provando-se a existência de simulação de preço, o conhecimento relevante para efeitos do art. 1401º, nº 1 do Código Civil é evidentemente o conhecimento do preço real e não do preço simulado’ (31).
Acresce que nas situações em que o preferente, estruturando a acção proposta em função do preço revelado pelo acto jurídico, se vê surpreendido com a alegação de que o preço real é superior ao preço declarado, não pode considerar-se que o conhecimento efectivo de tal elemento deva estabelecer-se com a notificação da contestação, antes devendo situar-se com a trânsito da decisão que venha a declarar o preço real (superior ao declarado) (32).

Temos por válida a argumentação a propósito do tema expendida por A. Varela (33):

‘Antes de julgada a acção, o titular da preferência não terá muitas vezes senão uma convicção ou uma suspeita mais ou menos fundamentada acerca da simulação; mesmo quando a convicção seja firme, bem documentada, há que contar sempre com os riscos próprios e os imponderáveis próprios da acção judicial.
Por isso, de verdadeiro conhecimento do elemento essencial da venda que é o preço só poderá falar-se, com inteira propriedade, a partir do momento em que, instruída e julgada a causa, o tribunal o apurou e o declarou.
Contra esta dilação do prazo não pode argumentar-se com qualquer interesse sério do alienante ou do adquirente, visto que ela só funciona quando a simulação se prova e, nesse caso, o intuito que as partes agiram de enganar ou prejudicar terceiros não pode merecer a protecção da lei.
Quanto ao titular da preferência, volta a dizer-se que não há nenhuma razão validade para que não se lhe conceda, após o conhecimento firme, seguro do preço real por que a venda foi efectuada, o mesmo prazo que lhe é facultado, quando a venda não seja simulada, para decidir sobe o exercício do seu direito e para obter os meios necessários’.
Doutrina que temos por inteiramente aplicável aos demais casos em que se verifique divergência entre o preço declarado e o preço real – também aqui os interesses do preferente foram afectados pelo desconhecimento de tal divergência, não sendo a ela (divergência) alheios o alienante (vinculado à preferência) e terceiro adquirente (ainda que a divergência não quadre em todos os pressupostos e requisitos da simulação), não podendo eles desconhecer (ou, pelo menos, não merecendo tal grosseiro desconhecimento, a tutela do direito) que dela resultam implicações no comércio jurídico e nos interesses doutrem (mormente no titular da preferência).
Concluímos, pois, que o acontecimento que ‘torna certo e limitado o prazo para o exercício coercivo do direito de preferência’ é, nas situações em que existe divergência entre o preço declarado e o preço real (sendo este superior àquele), o do trânsito da decisão que o declara (decisão que fixa um elemento essencial – o preço real devido – da alienação).

No caso dos autos ficou estabelecido na anterior acção intentada pelo autor contra os réus – na qual se propôs exercer a preferência pelo peço de quinhentos euros, declarado por alienantes e adquirentes na escritura pública de compra e venda – que o preço real (dez mil euros) é superior ao declarado no negócio.
Assim, só a partir do trânsito em julgado de tal decisão (note-se que a alegação dos ali demandados quanto à divergência do preço foi impugnada pelo autor – discussão que foi mantida na apelação, pois que impugnada a decisão de facto a propósito proferida pela primeira instância) teve o autor conhecimento (não uma suspeita ou até uma convicção mais ou menos segura) de elemento essencial da alienação, decisivo não só à formação da vontade de preferir (ou não), como também para a estruturação da acção e procedência desta.
Estando na acção em discussão tal divergência – reportamo-nos aos casos em que o preço declarado é inferior ao preço real (34) – não pode legitimamente exigir-se ao autor que tenha por boa a alegação dos demandados quanto à referida divergência – ele tem direito a ser judicialmente convencido dela.
Entender doutra forma permitiria sujeitar o preferente a dever jurídico que não vemos impostos pela lei (sequer pela boa-fé ou dever de probidade), qual seja o de ter por boa e certa a alegação dos réus, tanto mais quando foi o incumprimento do vinculado à preferência (alienante) – desde logo ao não comunicar a alienação e o preço real dela – que gerou a necessidade do recurso à acção de preferência para a realização coerciva do direito ao contrato.
Assim, porque o termo inicial do prazo de caducidade estabelecido no art. 1410º, nº 1 do CC é, no caso concreto, o trânsito da decisão em que foi declarado o preço do negócio, tendo-se apurado que a sua notificação ao autor (forçosamente anterior ao seu trânsito) ocorreu em 5/02/2018 e que a acção deu entrada em 2/08/2018, há-de concluir-se não se verificar a excepção da caducidade.
Impõe-se assim concluir pela procedência da apelação, com a consequente revogação da decisão recorrida que, considerando a não verificação da excepção da caducidade, deve ser substituída por outra que determine o normal prosseguimento dos autos.
*
DECISÃO
*
Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível em julgar procedente com a consequente revogação da decisão recorrida que, considerando a não verificação da excepção da caducidade, deve ser substituída por outra, determine o normal prosseguimento dos autos.
Custas da apelação pelos apelados.
*
Guimarães, 19/06/2019
(por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico)



1. Apelação nº 294/18.5T8PRG.G1; Relator: João Ramos Lopes; Adjuntos: José Fernando Cardoso Amaral; Helena Melo
2. Nas alegações o apelante alude ao artigo 668º do CPC, o que constitui evidente erro de indicação do preceito correcto – no vigente CPC, aprovado pela Lei 41/2013, de 26 de Junho, as nulidades da sentença estão elencadas no artigo 615º; no CPC pretérito (resultante das alterações do DL 329-A/95, de 12/12 e DL 180/96, de 2/09 - e alterações introduzidas pelo DL 303/2007, de 24/08) estavam descritas no art. 668º.
3. P. ex., Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recurso em Processo Civil, 9ª edição, p. 55 e Antunes Varela e outros, Manual de Processo Civil, 2ª edição revista e actualizada, p. 688.
4. P. ex., Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, reimpressão, p. 140 e Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Volume III, 1982, p. 141.
5. A. Varela e outros, obra citada, p. 690.
6. Alberto dos Reis, obra citada, p. 142.
7. Fernando Amâncio Ferreira, obra citada, p. 57.
8. Alberto dos Reis, obra citada, p. 143.
9. Fernando Amâncio Ferreira, obra citada, p. 57.
10. Para lá de Fernando Amâncio Ferreira, p. ex., Anselmo de Castro, obra citada, p. 142, A. Varela e outros, obra citada, p. 690 e Alberto dos Reis, obra citada, p. 142.
11. Anselmo de Castro, obra citada, p. 142.
12. Anselmo de Castro, obra citada, pp. 142/143.
13. Neste sentido, Alberto dos Reis, obra citada, p. 144.
14. Agostinho Cardoso Guedes, O Exercício do Direito de Preferência, Publicações Universidade Católica, Porto, 2006, Colecção Teses, p. 689.
15. Antunes Varela, in RLJ, Ano 119, p. 381.
16. Neste sentido, Agostinho Cardoso Guedes, obra citada, p. 689.
17. Agostinho Cardoso Guedes, obra citada, p. 692.
18. Henrique Mesquita, Obrigações reais e ónus reais, 1990, p. 228.
19. Ónus e não dever, como bem nota Agostinho Cardoso Guedes, obra citada, p. 639 (em nota) – a não adopção dos comportamentos em questão por parte do preferente não o constitui em responsabilidade mas tem como consequência uma desvantagem: a perda do direito. Sobre a distinção de ónus e deveres, cfr. p. ex., A. Varela, RLJ, Ano 126º, p. 14 (referindo-se aos ónus como a ‘peça curiosíssima da joalharia conceitual jurídica que abunda desde há muito na vitrine do processo’).
20. P. ex., Agostinho Cardos Guedes, obra citada, p. 350, A. Varela, RLJ, Ano 100, p. 351 e RLJ, Ano 103, p. 298 e P. de Lima e A. Varela, C.C. Anotado, Volume III, 2ª edição revista e actualizada, p. 372.
21. Como refere Agostinho Cardoso Guedes, obra citada, p. 693, o ‘preferente pode recorrer à acção de preferência em qualquer situação de incumprimento dos vários deveres que impendem sobre o vinculado à preferência, e não apenas quando este contrata com terceiro’.
22. Agostinho Cardoso Guedes, obra citada, p. 643.
23. Agostinho Cardoso Guedes, obra citada, p. 644.
24. Agostinho Cardoso Guedes, obra citada, p. 647.
25. A afirmação, feita no acórdão do STJ de 12/01/1974, in BMJ nº 241, pp. 290 e ss, maxime fls. 292/293, foi secundada e corroborada por P. de Lima e A. Varela, C.C. Anotado, Volume III, 2ª edição revista e actualizada, pp. 372/373. Cfr., dando nota de ser esse o conceito difundido na doutrina e jurisprudência, Agostinho Cardoso Guedes, obra citada, p. 644.
26. Agostinho Cardoso Guedes, obra citada, p. 693.
27. Agostinho Cardoso Guedes, obra citada, pp. 646/647.
28. Cfr., considerando o depósito do preço devido como condição de procedência do pedido, v.g., o acórdão da Relação de Coimbra de 20/01/2015 (Arlindo Oliveira), no sítio www.dgsi.pt/jtrc.
29. P. ex., o acórdão do STJ de 8/09/2016 (Fernanda Isabel Pereira), no sítio www.dgsi.pt/jstj, (que elenca a propósito da questão, e referindo-a como jurisprudência dominante, outras decisões do STJ e das Relações).
30. Por isso que nos afastamos do entendimento exposto no acórdão da Relação do Porto de 20/01/2005 (Pinto de Almeida), no sítio www.dgsi.pt/jtrp - considerou bastantes os factores determinantes para a formação da vontade de adquirir, descurando os factores necessários à estruturação da acção e sua procedência, o que significaria (a adoptar o entendimento ali sufragado) que o titular da preferência (no caso de simulação de preço, com indicação na escritura de preço inferior ao real) teria de recorrer a juízo, independentemente de conhecer (e por isso poder alegar e cumprir) elementos essenciais à procedência da acção.
31. Agostinho Cardoso Guedes, obra citada, p. 649 (nota 160).
32. P. ex., situando na data do trânsito da decisão que declara o preço real do negócio (superior ao declarado) o termo inicial do prazo de caducidade estabelecido no art. 1410º, nº 1 do CC, P. de Lima e A. Varela, obra citada, p. 376. Também Vaz Serra RLJ, Ano 111, p. 260, situa na data do trânsito da decisão que fixa o preço real do negócio (em caso de simulação do preço) o início do prazo de caducidade previsto no art. 1410º, n 1 do CC. Esse entendimento parece ter sido também acolhido no acórdão do STJ de 22/02/2005 (Revista nº 4669/04), aludido no citado no acórdão do STJ de 8/09/2016, ao referir que, existindo divergência entre o preço declarado e o preço real (superior àquele), ‘só a partir do trânsito da decisão que fixar o preço real do negócio é que começa a correr o prazo para o exercício da acção de preferência’.
33. RLJ, Ano 100, p 352. No mesmo sentido, Baptista Lopes, Do contrato de compra e venda, p. 351.
34. Em situação inversa, em que o preço declarado é superior ao real, deverá o preferente, se estiver disposto a preferir pelo preço simulado (rectius, declarado), sem abdicar do poder de reagir contra ele, deve intentar a acção no prazo de seis meses logo que conhecido o negócio, pois se improceder a sua arguição de simulação ou de divergência entre o declarado e o suportado (o ónus de prova, em tal caso, a si incumbe), ele perderá o direito de preferir, por caducidade – P. de Lima e A. Varela, obra citada, pp. 375/376. Em tais casos, em que improcede a arguição do preferente de que o preço declarado é inferior ao legal, o conhecimento dos elementos essenciais da alienação tem de ser reportado ao momento em que conhece os termos do negócio (incluindo a declaração sobre o preço).