Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3690/16.9T8VNF.G2
Relator: MARIA LEONOR CHAVES DOS SANTOS BARROSO
Descritores: CASO JULGADO
IDENTIDADE DA CAUSA DE PEDIR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
I- No caso verifica-se a excepção processual de caso julgado, porquanto as partes são as mesmas, a causa de pedir e pedido são idênticos.
II- O artigo 621º CPC, reporta-se à reapreciação da mesma questão, mas relativamente a casos em que a decisão anterior se baseou na não verificação de uma condição, em não se ter praticado certo facto ou não estar decorrido certo prazo e, supervenientemente, a condição se verifique, o prazo esteja decorrido e o facto praticado. Não se abarca o facto que não tenha sido alegado ou provado até ao encerramento da 1ª instância.

Maria Leonor Chaves dos Santos Barroso (relatora)
Decisão Texto Integral:
I – RELATÓRIO

Autora- C. A.; Ré - X Seguros, S.A.”
Acção - especial emergente de acidente de trabalho.

Em 21-11-2018, a autora apresentou petição inicial pedindo que a ré fosse condenada a pagar-lhe: pensão anual, vitalícia e actualizável de 4.639,20€, desde o dia 10/11/17; 9.616,53€, a título de indemnização por incapacidade temporária; 4.122,60€ a título de subsídio de elevada incapacidade e a quantia de 20€ de despesas de deslocação e transporte, tudo acrescido de juros de mora. Peticiona ainda a condenação da ré na prestação de tratamento cirúrgico.
Alegou que sofreu um acidente de trabalho em 29-04-2016, cerca das 09H30, quando trabalhava nas instalações de Y - Indústrias de Carnes …, S.A.. Ao pegar em produtos da canastra - numa caixa de carne - para colocar na balança, com cerca de 25Kg, sentiu uma dor de instalação súbita no ombro direito. Sofreu omalgia direita de esforço e lesões que a impediram de trabalhar desde 30-04-2016 a 9-11-2017, ficando portadora de uma IPP de 15%, com IPATH, tendo ainda suportado despesas com deslocações para o GML e para o tribunal, no montante de 20,00€.
A acção foi julgada improcedente por não se ter provado a ocorrência de acidente de trabalho, a saber o evento traumático ocorrido no local de trabalho. A decisão transitou em julgado, após prolação de acórdãos desta Relação datados de 19-11-2020 e 21-01-2021, este último respeitante a indeferimento de arguição de nulidade.
Em 30-12-2021, a autora, nestes mesmos autos, apresentou nova petição inicial contra a mesma ré, nos termos do artigo 117º do CPT. Pede que seja a “…Ré condenada a reconhecer o acidente como de trabalho e consequentemente a pagar à Autora:a) A pensão anual, vitalícia e atualizável de €4.639,20, devida desde o dia 10-11-2017, dia seguinte ao da alta; b) A quantia de €9.616,53, a título de indeminização por It’s;c) A quantia de €4.122,60, a título de subsídio de elevada incapacidade permanente (conforme artigo 67º, n.º 1 e 3 da LAT);d) A importância de €20,00, de despesas de transporte para se deslocar ao GML e a este Tribunal; e) Quantias estas acrescidas de juros às taxas legais desde 10-07-2018; e,f) Bem como a prestação de tratamento cirúrgico à rotula do supra espinhoso do ombro direito (conforme decorre do relatório médico do GML).
Mais requer seja a Ré condenada a pagar à Autora o valor do Salário Mínimo Nacional, desde dezembro de 2016 e até à concretização do tratamento cirúrgico à rotula do supra espinhoso do ombro direito da Autora, (conforme decorre do relatório médico do GML) e à consequente cura….”
Como causa de pedir invocado que em 29-04-2016, cerca das 09,30, sofreu um acidente de trabalho ao levantar uma caixa/canastra de carne para colocar na balança, com cerca de 25 kg de peso, sentiu repentinamente uma dor muito forte de instalação súbita no ombro direito. Em consequência deste acidente sofreu omalgia direita de esforço e as lesões descritas no boletim de exame e alta da seguradora e no relatório do Gabinete Médico-legal, os quais lhe determinaram ITA de 30-04-2016 a 09-11-2017. Foi-lhe atribuída alta em 09-11-2017, tendo-lhe sido fixada pelo perito médico do GML uma IPP de 15%, com IPATH (incapacidade permanente para o trabalho habitual). Refere ainda que a ora autora não logrou provar o evento traumático sofrido, ou seja, o acidente de trabalho e as suas consequências na anterior ação n.º 3690/16.9T8VNF que correu termos sobre o mesmo caso e também contra a ora Ré e cuja decisão transitou em julgado, o que foi considerado como condição da improcedência dessa ação.

Foi proferido decisão de indeferimento liminar nos seguintes termos (ora alvo de recurso):

“C. A. veio apresentar petição inicial, no presente processo emergente de acidente de trabalho, nos termos do artigo 117.º do Código de Processo do Trabalho, contra “X Seguros, S.A.”
Sucede que, como decorre da análise dos presentes autos, a presente instância já se encontra extinta (artigo 277.º alínea a) do Código de Processo Civil), por via da improcedência total da acção e absolvição da Ré dos pedidos contra si formulados, através da sentença proferida em 28.07.2020, confirmada pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19 de Novembro de 2020, tendo-se aí concluído não se ter apurado a existência de um acidente de trabalho, encontrando-se já esgotado o poder jurisdicional quanto a esta matéria, não estando em causa nenhuma das situações referidas no artigo 621.º do Código de Processo Civil pela Autora citado.
Perante o assim exposto, há que concluir pelo indeferimento liminar da presente petição inicial.”
Citada para os termos da ação e do recurso a ré arguiu, entre o mais, a excepção de renovação ilícita da instância, sendo a presente petição, em tudo, igual à anteriormente apresentada nestes mesmos autos, onde a acção foi já julgada improcedente e a ré absolvida do pedido, com fundamento em não ter ficado provada a ocorrência de qualquer acidente laboral, por sentença transitada em julgado.

FOI INTERPOSTO RECURSO PELA AUTORA CONCLUSÕES:

A - A M.ma Juiz a quo indeferiu liminarmente a petição inicial por considerar “não estar em causa nenhuma das situações referidas no artigo 621.º do Código de Processo Civil pela Autora citado”, e no próprio corpo da Decisão sub judice a M.ma Juiz a quo consigna, relativamente à ação anterior : “… tendo-se aí concluído não se ter apurado a existência de um acidente de trabalho…”.
B - Trata-se exatamente do teor do alegado pela Autora no artigo 26. da petição inicial, e que para facilidade de análise aqui se transcreve: “26. A Autora não logrou provar o evento traumático sofrido, ou seja, o acidente de trabalho e as suas consequências, (conforme referido na Sentença da anterior ação n.º 3690/16.9T8VNF e respetivo Acórdão da Relação de Guimarães), que correu termos sobre o mesmo caso e também contra a ora Ré e cuja Decisão transitou em julgado, após a notificação do último Acórdão do Tribunal de Relação de Guimarães realização em 21-01-2021, situações estas que foram consideradas como condição da improcedência dessa ação”.
C- E na Motivação da Sentença proferida na ação anterior, processo n.º 3690/16.9T8VNF, consta exatamente que nessa ação a Autora decaiu precisamente por não ter logrado provar o acidente de trabalho nem as consequências do mesmo, extratos da Motivação que, para facilidade de análise, aqui se transcrevem :
“Em face de todo o exposto, entendeu o tribunal não ter resultado como provado o acidente invocado, nem as consequências do mesmo.
Ora, como decorre dos factos não provados, não logrou a autora provar, desde logo, a ocorrência do evento que alegava ter tido lugar no tempo e local de trabalho, cujo ónus da prova, como se disse, lhe cabia.”
D - Na presente ação alega a Autora factos novos e indica novas provas com vista a que nesta ação seja verificada / provada a condição necessária à Procedência da Ação - a existência do acidente de trabalho e respetivas consequências.
Condição esta - existência do acidente de trabalho e respetivas consequências - que determinou diretamente a improcedência da ação anterior,
Pelo que, a Sentença proferida naquela primitiva ação, não obsta, (não deve obstar), a que o pedido se renove na presente ação, se verificada / provada a referida condição, ou seja, a existência do acidente de trabalho e suas consequências, (artigo 621º do CPC).
E - Os limites do caso julgado são traçados pelos elementos identificadores da relação ou situação jurídica substancial definida pela Sentença: os sujeitos, o objeto, e a fonte ou título constitutivo. Por outro lado, é preciso atender aos termos dessa definição (estatuída na sentença). Ela tem autoridade - faz Lei - para qualquer processo futuro, mas só em exata correspondência com o seu conteúdo. Não pode, portanto, impedir que em novo processo se discuta e dirima aquilo que ela mesma não definiu.
F - Foi violado o disposto no artigo 621º do CPC.
Tal disposição deveria ter sido interpretada e aplicada e com o sentido de que não tendo a Autora logrado preencher / provar a condição necessária para a Procedência da Ação anterior - a prova da existência do acidente de trabalho e suas consequências - a Sentença proferida na primitiva ação, e que a julgou improcedente precisamente porque a Autora não logrou provar a referida condição, não deve obstar a que o pedido se renove na presente ação em que a Autora alega novos factos e apresenta novas provas para que a referida condição se verifique.
Termos em que pede a procedência do Recurso, revogando-se o Douto Despacho sub judice e ordenando-se o procedimento da ação …

CONTRA-ALEGAÇÃO não foram apresentadas.

PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO – sustenta-se a improcedência do recurso.
O recurso foi apreciado em conferência – art.s 657º, 2, 659º, do CPC.
QUESTÕES A DECIDIR (o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recurso (1)): verificação da excepção de caso julgado.

II – FUNDAMENTAÇÃO

A) FACTOS – são os referidos no relatório.
B) DIREITO - importa saber se, com a apresentação de nova petição inicial nestes autos emergentes de acidente de trabalho, se verifica a excepção do caso julgado relativamente à causa anteriormente decidida.
O caso julgado material é um efeito da sentença/despacho transitada/o em julgado que decidiu sobre a relação jurídica ou mérito da causa (2).
Esse efeito significa, em primeiro lugar, que a decisão se tornou definitiva e, portanto, imodificável - 619º CPC. E, em segundo lugar, que a decisão tomada terá de ser acatada pelos demais tribunais e autoridades em futuros casos que sejam submetidos, quer a título principal (repetição de causa), quer a título prejudicial (como fundamento ou pressuposto de outro efeito da mesma relação) (3).
Consequentemente, o caso julgado material tem força dentro e fora do processo e impede que outro tribunal “possa definir em termos diferentes o direito concreto aplicável à relação material litigada” (4).
Veda a prolação de nova decisão que verse sobre a mesma questão e que seja discutida entre as mesmas partes. Visa evitar que sejam proferidas decisões repetidas ou contraditórias, o que afetaria os valores de certeza e segurança jurídica com prejuízo para os tribunais e para a paz jurídica (5).
A força obrigatória do caso julgado “desdobra-se numa dupla eficácia, designada por efeito negativo do caso julgado e efeito positivo do caso julgado” (6).
A função negativa refere-se à exceção de natureza processual de caso julgado propriamente dita. Significa a inadmissibilidade de uma segunda acção e de nova decisão de mérito. Proíbe-se a repetição de causa sobre idêntica questão, a que corresponde o brocardo non bis in idem. A exceção de caso julgado é exigente, porque requer a verificação da tríplice identidade de sujeitos, pedido e de causa de pedir- artigo 581º do CPC. Na sua literalidade, apenas abrange os casos óbvios em que tais realidades coincidam totalmente.
Já a função positiva identificada pela expressão “autoridade do caso julgado” refere-se aos reflexos que uma primeira decisão pode projectar numa outra. Este efeito positivo implica que a solução compreendida na primeira decisão seja vinculativa em outros casos a ser decididos, em objectos processuais conexos ao objecto já decidido e em face de uma relação de prejudicialidade. Ou seja, julgada certa questão em acção que correu entre determinadas partes esta “… impõe-se necessariamente em todas as acções que venham a correr termos entre as mesmas partes, ainda que, incidindo sobre um objecto diverso, mas cuja apreciação dependa decisivamente do objecto previamente julgado, perspectivado como verdadeira relação condicionante da relação material controvertida na acção posterior. A atribuição de valor de caso julgado com base numa relação de prejudicialidade supõe ou exige que o fundamento da decisão transitada condicione a apreciação do objecto de uma acção posterior “ (7). Também Rui Pinto refere que a autoridade de caso julgado, implica o acatamento de uma decisão proferida em ação anterior cujo objeto se inscreve, como pressuposto indiscutível, no objeto de uma ação posterior. Obstando assim a que a relação jurídica ali definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa. A autoridade de caso julgado destina-se a evitar a prolação de decisões posteriores que sejam juridicamente incompatíveis com a primeira (8).
No caso dos autos estamos perante uma óbvia excepção de natureza processual de caso julgado, tratando-se de uma pura repetição de causa sobre idêntica questão. Tudo é igual. Os intervenientes são os mesmos. A causa de pedir é a mesma (veja-se a idêntica narração dos factos). Os pedidos são os mesmos. Verifica-se a tríplice identidade de partes, causa de pedir e pedido.
A autora não alega sequer factos novos - ao contrário do que refere - e a eventual apresentação de outras provas em nada interfere na análise do caso julgado (que de nada valem, fora do âmbito de recurso de revisão- 696º, c), CPC).
A argumentação da ré não tem qualquer cabimento e ignora regras jurídicas essenciais ligadas à segurança jurídica, as quais asseguram que, uma vez decidido pelo órgão judicial próprio um litigio entre as mesmas partes, o mesmo não possa ser reapreciado sob pena de caos jurídico. Na perspectiva da autora nenhuma sentença poderia ser definitiva, num permanente desassossego jurídico.
A invocação do artigo 621º CPC não é pertinente. Este normativo reporta-se à reapreciação da mesma questão, mas relativamente a casos em que a decisão se baseou na não verificação de uma condição, em não se ter praticado certo facto ou não estar decorrido certo prazo e, supervenientemente, a condição se verifique, o prazo esteja decorrido e o facto praticado.
Diverso é o caso em que, estando a condição já verificada à data do encerramento da discussão em 1ª instância, o facto não tenha sido alegado ou provado…o caso julgado impede a propositura da nova acção…” (9).
Este é o caso dos autos. O alegado evento naturalístico acidente de trabalho era um facto passado que a autora não conseguir provar e, consequentemente, a acção foi julgada improcedente.
A apreciação do pedido nos presentes autos representa uma inequívoca repetição de causa, em violação do principio processual do caso julgado, sem sequer ter de se recorrer à autoridade de caso julgado. ~

III – DECISÃO

Pelo exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida- 87º do CPT e 663º do CPC.
Custas a cargo da recorrente.
Notifique.
15-06-2022

Maria Leonor Chaves dos Santos Barroso (relatora)
Antero Dinis Ramos Veiga
Alda Martins


1. Segundo os artigos 635º/4, e 639º e 640º do CPC, o âmbito do recurso é balizado pelas conclusões do/s recorrente/s salvo as questões de natureza oficiosa.
2. Distingue-se do caso julgado formal. Que é o que resulta do trânsito de sentenças e despachos que unicamente recaem sobre a relação processual e apenas operam dentro do processo, ali vedando a modificação da decisão.
3. Artur Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, Almedina, 1982, p. 383, 384.
4. Antunes Varela, Manual de Processo Civil, p. 703
5. Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, volume II, p. 448.
6. Rui Pinto, “Excepção e autoridade do caso julgado, algumas notas provisórias”, revista Julgar, novembro de 2018, edição online.
7. Ac. RC de 26-02-2019, www.dgsi.pt
8. Rui Pinto, “Excepção e autoridade do caso julgado, algumas notas provisórias”, revista Julgar, novembro de 2018, edição online, em especial p. 33.
9. José Lebre de Freitas, CPC Civil Anotado, Vol. II, 4ª ed, p. 756.