Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
269/20.4GB BCL.G1
Relator: TERESA BALTAZAR
Descritores: CRIME DE RESISTÊNCIA E COAÇÃO SOBRE FUNCIONÁRIO
ELEMENTO OBJETIVO DO CRIME
ALTERAÇÃO NÃO SUNSTANCIAL DA ACUSAÇÃO
ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DA ACUSAÇÃO
ARTIGO 347º
NºS 1 E 2 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/06/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - Não estão preenchidos os elementos objetivos do crime de resistência e coação sobre funcionário, previsto no art.º 347.º, n.º 1, do Código Penal, quando em momento algum ficou provado que o comportamento do arguido tenha assumido os contornos de violência ou ameaça grave que a norma exige;
II – E o grau de violência ou de ameaça necessários para que se possa considerar preenchido o tipo legal não há-de medir-se pela capacidade de afetar a liberdade física ou moral de ação de um homem comum. A utilização do critério objetivo-individual, há-se assentar na idoneidade dessa violência ou ameaça para perturbar a liberdade de ação do funcionário;
III- No entanto, o crime de resistência e coação sobre funcionário pode ser preenchido com uma outra conduta típica, exatamente a prevista no n.º 2 do art.º 347do Código Penal, o que é a situação dos autos;
IV - No caso concreto, a possibilidade de condenação do arguido pela tipicidade do n.º 2 do art.º 347.º do Código Penal não implica qualquer alteração dos factos descritos na acusação, sendo que todos os elementos atinentes ao tipo subjetivo já constam da acusação;
V - O que ocorrerá simplesmente é uma alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, porém, em moldes que não implicam uma agravação da respetiva moldura penal abstrata, já que se trata do mesmo crime, embora da previsão do n.º 2, ao invés do n.º 1 do art.º 347.º.
Ora, este “facto” não constitui qualquer alteração substancial ou sequer não substancial dos factos descritos na acusação, não tendo qualquer repercussão negativa para o arguido, que se reflita numa diminuição das suas garantias de defesa;
VI - Nesta concreta situação, a condenação do arguido pela prática de um crime de resistência e coação sobre funcionário da previsão do n.º 2 do art.º 347.º do Código Penal não integra a imputação de um crime diverso daquele por que foi acusado que demande o cumprimento do estatuído no artigo 359.º do Código de Processo Penal, não constituindo também uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação que imponha a comunicação ao arguido nos termos e para efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 358.º.
Por outro lado, tendo sido permitido ao arguido o pleno exercício do contraditório e dos seus direitos de defesa, constitucionalmente consagrados no artigo 32.º da CRP, não tem sequer o Tribunal que proceder à comunicação ao mesmo da alteração da qualificação jurídica dos factos, nos termos e para efeitos disposto no n.º 3 do artigo 358.º do Código de Processo Penal.
Decisão Texto Integral:
- Tribunal recorrido:
Tribunal Judicial da Comarca ... - Juízo Local Criminal ... – Juiz ....
- Recorrente:
O arguido AA.
- Objecto do recurso:
No processo comum com intervenção de tribunal singular n.º 269/20...., do Tribunal Judicial da Comarca ... - Juízo Local Criminal ... – Juiz ..., foi proferida sentença, na qual, no essencial e que aqui importa, se decidiu o seguinte:
 
“III. Decisão
Tudo visto, decide-se :
1. Condenar o arguido AA, pela prática de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, p. e p. pelo art. 347.º, n.º 1, do Cód. Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses, cuja execução se suspende pelo período de dois anos.
2. Condenar o arguido AA, pela prática de dois crimes de injúria agravada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 181º, n.º1, e 184º, ambos do Cód. Penal, perpetrados contra os ofendidos BB e AA, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de € 8,00, por cada um dos crimes.
3. Em cúmulo jurídico das penas referidas em 2., condenar o arguido AA na pena única de 150 dias de multa, à taxa diária de € 8,00, no montante global de € 1200,00 (mil e duzentos euros).
4. (…)
5. Condenar o demandado AA no pagamento ao demandado BB da quantia de € 800,00 (oitocentos euros).
6. Condenar o demandado AA no pagamento ao demandado AA da quantia de € 600,00 (seiscentos euros).
    (…)” – (o sublinhado é nosso).
***
Inconformado com a supra referida decisão o arguido AA, dela interpôs recurso, terminando a sua motivação com as conclusões seguintes (transcrição):    

“1.- O arguido, ora recorrente foi condenado pela douta sentença judicial recorrida:- pela prática de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, p. e p. pelo art. º 347.º, n.º 1, do Cód. Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses, suspensa na sua execução pelo período de dois anos; - pela prática de dois crimes de injúria agravada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs. 181.º, n.º1, e 184.º, ambos do Cód. Penal, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de 8,00 €, por cada um dos crimes, em cúmulo jurídico dessas penas, na pena única de 150 dias de multa, à taxa diária de 8,00 €, no montante global de 1.200,00 €;- no pagamento das custas criminais do processo, fixada a taxa de justiça em 2UC; - no pagamento ao demandado BB da quantia de 800,00 € e no pagamento ao demandado AA da quantia de 600,00€.
2.- É desta douta decisão condenatória que vem interposto o presente recurso, discordando da decisão, por se entender que o Tribunal cometeu erro notório na apreciação e valoração da prova e na apreciação jurídica realizada, não analisando de forma crítica todas as provas produzidas em julgamento, violando as regras de experiência comum (e o senso comum).
3.- Como resulta da fundamentação da douta sentença judicial recorrida, foram dados como provados, entre outros, os seguintes factos:
-No dia 08/03/2020, pelas 13h35 horas, o militar BB, Guarda Principal da GNR, estava devidamente uniformizado, em serviço remunerado para acompanhamento de uma prova de ciclismo, no entroncamento da Rua ... com a Rua ..., ..., onde tinha por missão cortar o trânsito que fosse em direção à Rua ..., que era a artéria principal da referida prova- ponto a) dos factos provados;
- Por essa hora, o militar BB recebeu um telefonema do militar AA, Guarda Principal da GNR, informando-o que o arguido AA, estava a tripular o veículo automóvel de matricula ..-QI-.. e que o mesmo pretendia circular na Rua ..., apesar de ter sido por si informado que não o podia fazer- ponto b) dos factos provados;
- Passados 10 a 15 minutos (pelas 13h45), o arguido AA surge (a conduzir) pela Rua ..., querendo entrar na Rua ..., sendo que nesta altura o militar BB lhe de dá ordem de paragem para o impedir de aceder à dita via- ponto c) dos factos provados.
4.- Sucede que, nunca o arguido esteve na presença do indicado Agente, o Assistente, CC, ou por este transitou com a sua viatura ou sequer foi mandado parar por aquele ou por aquele alertado do que quer que fosse, o qual se encontrava em serviço perto da sede da Junta de Freguesia ..., a escassos metros do cruzamento da Rua ... com a Rua ..., onde se deparava o seu colega militar, o Assistente BB, no controlo de trânsito e apoio à segurança da prova de ciclismo que por ali haveria de passar.
5.- Com efeito, resultou provado no ponto n) da Fundamentação da douta sentença recorrida que, o recorrente, foi notificado do auto de contraordenação n.º ...14, emitido pelo Posto Territorial da Guarda Nacional Republicana de ..., levantado pelo militar DD, no qual lhe vem imputado a seguinte infracção: no dia 08.03.2020, pelas 13h37, na Rua ..., freguesia ..., concelho ..., o arguido tripulando a sua viatura de matrícula ..- QI-.., “desobedeceu ao sinal do agente regulador do trânsito de paragem do trânsito vindo de frente. Sinal executado atempadamente, com a palma da mão direccionada para o veículo/condutor e braço esticado acima cabeça”.
6.- Na Motivação da douta sentença recorrida, vem referido que, entre a Rua ... (Freguesia ...) ao início da Rua ... (freguesia ...) distam exactamente 2,3 km e admitindo-se que se falasse do meio de cada uma das artérias, a distância seria próxima dos 4 km, como resulta ademais do ponto O) dos factos provados.
7.- Resulta das declarações prestadas pelo Assistente, Agente BB, na Audiência de Julgamento de 17.05.2021, aos 15m20s a 15m35s de gravação que, para percorrer uma freguesia à outra, seriam necessários 10 a 15m de viagem.
8.- Pelo que, contrariamente à fundamentação aventada na douta sentença recorrida, a distância entre ambas as indicadas freguesias- sejam 2,3 km, sejam 4 km-, não podia ser percorrida em dois segundos e, por isso, se às 13h35 passou e foi mandado parar, pelo Assistente, Agente AA, na sede da Junta de Freguesia ...- diga-se, o que não aconteceu-, nunca aquele podia estar a passar na freguesia ..., junto de outro Agente autuante, DD, às 13h37 e o inverso também se aplica.
9.- Ainda, foi dado como provado que, pelas 13h35, o militar, Assistente, BB, recebeu um telefonema do colega militar, o Assistente, AA, informando-o que o recorrente estava a tripular a sua viatura e que pretendia circular na Rua ..., apesar de ter sido por si informado que não o podia fazer- ponto b) da Fundamentação.
10.- Ora, se o recorrente estava advertido, pelo agente militar AA que, não podia circular pela Rua ..., e se este alertou o colega militar, BB da pretensão daquele recorrente, mal se compreende então que lhe tenha sido permitida a passagem através desse arruamento por aquele Agente militar BB, como se comprova das declarações por este prestadas, na Audiência de Julgamento de 17.05.2021, aos 13m44s a 13m47s, em que referiu que “ o Sr. [referindo-se ao recorrente] estava advertido há muito que não podia circular naquela via” e, quando questionado por que artéria circulou o recorrente, ao passar por aquele Agente, este esclareceu, “pela Rua principal, pela ...”- depoimento gravado aos 17m56s a 18m08s. O que não é verdade, porque nunca o recorrente circulou naquela artéria, em que efectivamente pretendia seguir a sua marcha, nem às 13h35, nem posteriormente.
11.- Aliás, se verdade houvesse na versão apresentada pelos Assistentes, nenhuma razão haveria para o recorrente regressar novamente ao cruzamento da Rua ... com a Rua ..., para voltar a circular pelo mesmíssimo arruamento, e mais sabendo e tendo sido advertido “há muito” que não o podia fazer, como sustentaram aqueles Assistentes nas suas indicadas declarações, não restando dúvidas que a dinâmica dos factos, que constituem a matéria provada, não ocorreram da forma descrita pelos Assistentes.
12.- Existe, pois, erro na apreciação da prova, não estando conforme com a prova produzida em sede de Audiência de Julgamento, pelo que, os factos provados dos pontos b) e c), este na parte “ Passados 10 a 15 minutos…” da Fundamentação da sentença recorrida devem ser alterados, o primeiro, deve ser dado como não provado e o segundo, como não provado, na parte indicada “Passados 10 a 15 minutos”.
13.- Concomitantemente, evidencia-se das declarações prestadas pelo recorrente, na Audiência de Julgamento de 07.05.2021, gravadas 00:00:01 a 00:24:17, que, nunca aquele, exerceu qualquer tipo de violência ou de ameaça, sequer grave, sobre qualquer dos Assistentes, negando os factos que lhe foram imputados e nos moldes em que foram relatados pelos Assistentes em Audiência de Julgamento, tendo relatado a sua versão dos factos, como resulta na Motivação da douta sentença recorrida, explicando que era seu entendimento que, até às 14h00, podia circular pela Rua ..., conforme constava dos dizeres ínsitos no aviso afixado na via pública – cuja cópia se mostra junta a fls. 148 e que constitui o facto provado no ponto p) da Fundamentação.
14.- Resultou provado no ponto s) da Fundamentação da sentença recorrida, que o recorrente, é considerado por todos com quem manteve relações profissionais e sociais como sendo um cidadão trabalhador, respeitável e cordato. Assim resultou conjugadamente dos depoimentos prestados pelas testemunhas daquele, EE, FF, GG, HH, II e JJ, como ademais evidenciado na Motivação da douta decisão.
15.- Estas características intrínsecas, de personalidade e de carácter do recorrente, de pessoa trabalhadora e respeitável, de pessoa cordata, o mesmo é dizer-se, não conflituosa, sensata, conciliador, ajuizado… em nada se coadunam com o retrato trazido a juízo pelos Assistentes e cuja versão acabou por vingar, em detrimento da sua versão negatória dos factos.
16.- Sopesada toda a prova produzida, conjugadas as declarações prestadas pelo recorrente e pelos Assistentes, os testemunhos e demais prova, o Tribunal não podia atribuir maior credibilidade a uns que a outros e, por via disso, dar credibilidade à versão apresentada pelos Assistentes, em detrimento da do recorrente, que negou, desde sempre, os factos que lhe foram imputados.
17.- Entendendo-se, por isso que, que não podiam ser dados como provados os factos constantes dos pontos d), na parte “.. que não era nenhum militar da GNR que o iria impedir de o fazer e..” a m) e como não provados os factos constantes dos pontos i. a viii., da douta sentença recorrida, os quais têm de ser alterados.

AINDA,
18.- No que tange ao enquadramento jurídico-penal dos factos, não resultam demonstrados os elementos objectivos e subjectivos que permitem imputar e condenar o recorrente pelos crimes de resistência e coacção sobre funcionário e de injúria agravada.
19.- Quanto ao crime de resistência e de coação sobre funcionário, a par da idade do recorrente – 68 anos-, o mesmo não possui condições físicas que lhe permitissem encetar “golpes de Karaté” contra qualquer dos Assistentes, pois que, padece, há mais de 10 anos, de tremor ortostático, acarretando-lhe incapacidade funcional relevante, que se traduz em parca mobilidade e equilíbrio físico- cfr. ponto q) da matéria de facto provada.
20.- Em virtude dessa debilitação física, e por causa dela, acaso os factos tivessem decorrido da forma como foram configurados pelos Assistentes, facilmente, quer um, quer outro, o teriam manietado, primeiro por se tratarem de
pessoas bastantes jovens, na casa dos 30 anos de idade, com a pujança própria da- ainda- juventude e, em segundo, porque detêm uma preparação física e psicológica, fruto das funções que exercem, que lhe permitiriam cumprir tal desiderato, sem qualquer dificuldade.
21.- No preenchimento do tipo legal de Resistência e coacção sobre funcionário, previsto no art. 347.º do Cód. Penal, relevam as caraterísticas do funcionário na situação concreta em que se encontra, incluindo as especiais capacidades e aptidões que são inerentes à sua função, como sejam as decorrentes da formação, treino ou adestramento ministrados com vista a poder resistir a níveis de oposição e constrangimento que sejam normalmente de esperar no exercício das suas funções.
22.- Esse tipo legal de crime, não pune toda e qualquer forma de oposição ao exercício de funções, mas apenas formas de resistência qualificadas pela utilização de violência adequada ao fim ilícito típico, e não o mero desrespeito ou desobediência para com a ordem do funcionário que se proponha praticar atos relativos ao exercício das suas funções, ainda que ao fazê-lo interaja fisicamente com o funcionário, desde que o faça de forma consentânea com a reacção que pode esperar-se da generalidade dos cidadãos ao ser fisicamente privado da liberdade.
23.- A concreta atuação do recorrente, que se encontra plasmada nos factos dados como provados, nos pontos h) e i) da douta sentença recorrida, ao esbracejar, espernear, dizendo que dava uma cabeçada, eventualmente soltando-se e afastando-se dos Agentes de Autoridade, fazer força, e empurrando estes, não constitui meio idóneo de impedir os militares da GNR de procederem à detenção do arguido, pois é inerente ao exercício das suas funções que aqueles militares se encontrem habilitados para assegurar a detenção de cidadãos que, perante a iminência ou a execução de detenção, tenham manifestações moderadas de resistência e hostilidade- neste sentido, entre outros, Ac. Trib. Relação de Évora, de 20.03.2018, in www.dgsi.pt.
24.- Assim, mesmo que em abstracto, tendo por base os indicados factos dados como provados na douta sentença recorrida, pudesse reputar-se de violenta a conduta do agente, nomeadamente por se traduzir em acção corporal ou psicológica sobre o funcionário, aquela não será típica se a acção concretamente executada corresponder a comportamento para o qual o funcionário deve estar preparado no normal exercício das suas funções.
25.- A própria sentença ora recorrida bem refere, o emprego de violência ou ameaça grave é um elemento típicos deste tipo de ilícito, porém, em momento algum ficou provado que, o comportamento do recorrente, tenha assumido tais contornos de violência ou ameaça grave que a norma exige, e nem se pode considerar o esbracejar, espernear, num contexto de ânimos exaltados, como violência ou ameaça grave- neste propósito citam-se os Acórdões do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 7/10/2004, in www.dgsi.pt e da Relação do Porto, datado de 05/07/2006, in www.dgsi.pt.
26.- Quando muito, o recorrente, a ter adoptado a descrita actuação, procurou evitar ou dificultar a actuação dos militares da GNR relativamente à sua detenção, os quais têm capacidades e competências especiais para não se deixarem abalar por meras tentativas de obstar ao exercício das suas funções- neste sentido, Acórdão da Relação do Porto, datado de 27/06/2010, in www.dgsi.pt. no qual se pode ler que: “O tipo legal de crime em apreço apresenta uma especificidade. Ora deverá ter-se em consideração que os destinatários da violência ou coação possuem especiais qualidades no que concerne à capacidade para suportar pressões e que estão munidos de instrumentos de defesa que vulgarmente não assistem ao cidadão comum” e, ainda, se citam no mesmo sentido, o Acórdão da Relação de Coimbra, de 08/09/2010 e os Acórdãos da Relação do Porto de 05/07/2006 e de 17/04/2013, todos in www.dgsi.pt.
27.- De igual modo, contrariamente ao que foi o entendimento do tribunal a quo, o alegado “empurrar com o carro” as pernas do Assistente BB, constante do ponto f) dos factos provados, não consubstancia em si qualquer intenção de o atingir, como não atingiu e, nessa medida, nenhuma violência ou ameaça grave existiu, por um lado; e, por outro, não obstou, nem obstava a que, aquele Militar, prosseguisse com as suas funções de autoridade policial, até porque este advertiu o recorrente que, acaso prosseguisse marcha pela indicada Rua do Além, incorreria num crime de desobediência (facto provado no ponto e) da douta sentença recorrida). Pelo que, não existiu qualquer exclusão da liberdade de actuação daquele Agente de Autoridade.
28.- Assim sendo, não se encontra integrado o conceito de violência usado pelo legislador no art. 347.º, n.º 1 do Cód. Penal, aferido pelo critério individual objetivo supra referido, pelo que, ao ter condenado o recorrente, pelo crime de resistência e coacção sobre funcionário, incorreu a Meritíssima Juiz “a quo” em erro-jus-subsuntivo ou erro na aplicação do direito ao caso concreto, impondo-se a sua revogação e absolvendo-se o recorrente.
29.- Quanto aos dois crimes de injúrias agravadas, o recorrente não proferiu os epítetos expressos na matéria provada do ponto g) da decisão recorrida, contudo, concedendo-se terem existido- o que se formula num plano meramente hipotético- nunca poderia o mesmo ser condenado.
30.- Os factos relatados pelos Assistentes e recorrente em Audiência de Julgamento – e assim resulta da Motivação da douta sentença recorrida-, inserem- se num ambiente de – diga-se, grande- exaltação, impulsividade, acaloramento de ânimos, decorrentes da actuação do Assistente militar, BB, ao impedir a passagem do recorrente pela referenciada artéria, da Rua ..., estando aquele convicto que podia transitar por se encontrar afixado o cartaz, que possibilitava a circulação rodoviária até às 14h00, e bem assim da consequente detenção do recorrente, em que, naturalmente, as expressões em causa, a terem sido proferidas, foram-nas naquele contexto e estados concretos, de crítica directamente dirigida à actuação daquele Assistente, ao seu comportamento estritamente profissional, mas não expressamente à pessoa ou à dignidade pessoal dos Assistentes.
31.- Aflorando este contexto, de descarga emocional do arguido e num estado de nervosismo extremo, com os Assistentes a realizarem a detenção com recurso à força…indiferentes à aflição daquele, aos berros, às dores que possa ter sentido naquele momento, as expressões não podem ter outro significado que não seja a mera verbalização de linguagem, dita grosseira, deselegante, traduzindo num juízo de valor no âmbito do exercício de direito de crítica, sendo absolutamente incapazes de pôr em causa o carácter, o bom nome ou reputação do indicado Assistente ou de ambos.
32.- Não será despiciendo referir que, além do mais, os Agentes das forças de segurança no exercício da sua actividade profissional, não podem ser particularmente sensíveis a alguns destemperos ou incorrecções de linguagem usados por um cidadão mais exaltado, devem construir uma carapaça que os proteja contra comportamentos que ferem as regras do civismo exigível na convivência social.
33.- Como se escreveu em Acórdão desta Relação de Évora, no Proc. 488/09.4TASTB.E1, relatado pela Exma. Sra. Desembargadora, Dra. Ana Brito, “o direito penal reveste natureza fragmentária, de tutela subsidiária (ou de última ratio) de bens jurídicos dotados de dignidade penal, ou, o que é dizer o mesmo, de bens jurídicos cuja lesão se revela digna de pena” (in, Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, 2001, p. 43), ou seja, tutela apenas os valores essenciais e fundamentais da vida em sociedade, obedecendo a um princípio de intervenção mínima, bem como de proporcionalidade imanente ao Estado de Direito.
34.- No caso, a lei tutela a dignidade e o bom-nome do visado, e não a sua susceptibilidade ou melindre e tal valoração far-se-á de acordo com o que se entenda por ofensa da honra num determinado contexto temporal, local, social e cultural pois que, nem tudo aquilo que alguém considera ofensa à dignidade ou uma desconsideração deverá considerar-se difamação ou injúria puníveis- Beleza dos Santos- in “Algumas Considerações sobre Crimes de Difamação ou de Injúria, RLJ 92, p.167” e Oliveira Mendes, in “O Direito à Honra e a sua Tutela Penal, p. 37”, que alerta para que nem todo o facto que envergonha e perturba ou humilha cabe na previsão das normas dos arts. 180° e 181°, tudo dependendo da intensidade ou perigo da ofensa- neste sentido, entre outros Ac. do Tribunal da Relação de Évora de 13- 05-2014, proferido no Proc. n° 956/07.2TALLE.E1 no site htpp//www.dgsi.pt.
35.- Não pode, por tudo isso, salvo o devido respeito, considerar-se as expressões alegadamente proferidas pelo recorrente, na sequência da detenção nada pacífica a que foi sujeito, susceptiveis de integrarem a prática de crime de injúrias agravada.
36.- Ao condenar o recorrente, por dois crimes de injúria agravada, incorreu a Meritíssima Juiz “a quo” em erro-jus-subsuntivo ou erro na aplicação do direito ao caso concreto, uma vez que, não está preenchido o elemento objectivo daquele crime, impondo-se a revogação da douta sentença e a consequente absolvição do recorrente daqueles crimes em que foi condenado.
37.- Na sequência do que, não se verificando os crimes pelos quais o recorrente veio a ser condenado, não pode o mesmo ser condenado nos pedidos de indemnização civil deduzidos pelos Assistente, nos moldes arbitrados na douta sentença recorrida, impondo-se a sua revogação e absolvição daquele dos mesmos.

Finalmente,
38.- Também a medida da pena aplicada ao recorrente, não se pode manter dado que se revela injusta, pouco criteriosa e excessiva.
39.- Na fixação da medida da pena é necessário, ordenar, relacionando-os a culpa, a prevenção geral e a prevenção especial, tendo-se, para isso, em conta os quadros agravativos e atenuantes, sob pena de se frustarem as finalidades da sanção, ou seja, a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do arguido na sociedade.
40.- O recorrente não tem antecedentes criminais, está bem inserido socialmente, quer a nível profissional, quer a nível familiar, não apresentando qualquer perigo para a sociedade e, ademais, é considerado por todos com quem manteve relações profissionais e sociais como sendo um cidadão trabalhador, respeitável e cordato (cfr. facto provado no ponto s) da Fundamentação e da respectiva Motivação da decisão recorrida).
41.- Contudo, o Tribunal “a quo” condenou o recorrente, na assinalada pena, sem ter em conta as descritas circunstâncias, bem como sobretudo, as circunstâncias em que decorram os factos, não aplicando correctamente o art.º 18.º da Constituição da República Portuguesa, na medida em que não foram tidos em conta os princípios da proporcionalidade, exigibilidade e razoabilidade na imposição dos deveres para a suspensão da execução da pena de prisão.
42.- Pelo que, ressalvando o respeito devido, a douta sentença recorrida violou, ou interpretou erradamente, por um lado, o conjugadamente disposto nos art.ºs 2.º, 18.º e 32.º da Constituição da República Portuguesa, os art.ºs 347.º, n.º 1, 14.º, n.º 1, 181.º, n.º 1, 184.º, 132.º, n.º 2, al. l, 14.º, n.º 1, 26.º, 30.º, 40.º.º, 45.º,  7.º, 70.º do Cód. Penal e, por outro lado, os art.ºs 97.º, 127.º, 374.º, n.º 2, 410.º , n.º 2, al. a) e c) do Cód. Proc. Penal.
NESTES TERMOS e nos melhores de Direito aplicáveis, deve ser dado provimento ao presente Recurso e revogar-se a Douta Sentença Recorrida, julgando-a improcedente por não provada a Acusação, absolvendo-se o arguido pela prática dos crimes de que foi condenado, com todas as devidas e legais consequências.
Assim farão Vossas Excelências, Senhores Juízes Desembargadores deste Venerando Tribunal,
         A habitual JUSTIÇA!”.
*
O recurso foi admitido.
*
O M. P., na 1ª instância, respondeu ao recurso pedindo a sua improcedência.
*
O Ex.mº Procurador Geral Adjunto, nesta Relação, emitiu parecer pugnando pela parcial procedência do recurso (quanto ao crime de resistência e coação sobre funcionário).
*
Cumprido o disposto no artigo 417º, n.º 2, do C. P. Penal, não veio a ser  apresentada resposta ao parecer.
(Sendo que, convidado para o efeito, veio o arguido a apresentar novas conclusões do recurso apresentado).
*
Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos, prosseguiram os autos para conferência, na qual foi observado todo o formalismo legal.
**
- Cumpre apreciar e decidir:

A) - É de começar por salientar que, para além das questões de conhecimento oficioso, são as conclusões do recurso que definem o seu objecto, nos termos do disposto no art. 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
B) – No recurso, no essencial, o arguido invoca o seguinte:
1 – Impugna a matéria de facto fixada na sentença;
2- Invoca os vícios previstos no art. 410.º , n.º 2, al.s a) e c) do Cód. Proc. Penal;
3 – Refere entender que não se encontram preenchidos os elementos constitutivos do crime de resistência e coação sobre funcionário;
4 – Defendendo, também, que as expressões por si proferidas não são suscetíveis de integrar a tipicidade dos crimes de injúria agravada;
5 -  Mais referindo que “a medida da pena aplicada não se pode manter, dado que se revela injusta, pouco criteriosa e excessiva”.   
*
- C -     Matéria de facto dada como provada e não provada, na 1ª instância e sua motivação - (transcrição):

II - Fundamentação
1. De facto
1.1. Factos provados
1.1.1. da acusação e pedido de indemnização civil

a) No dia 08/03/2020, pelas 13h35 horas, o militar BB, Guarda Principal da GNR, estava devidamente uniformizado, em serviço remunerado para acompanhamento de uma prova de ciclismo, no entroncamento da Rua ... com a Rua ..., ..., onde tinha por missão cortar o trânsito que fosse em direção à Rua ..., que era a artéria principal da referida prova.
b) Por essa hora, o militar BB recebeu um telefonema do militar AA, Guarda Principal da GNR, informando-o que o arguido AA, estava a tripular o veículo automóvel de matricula ..-QI-.. e que o mesmo pretendia circular na Rua ..., apesar de ter sido por si informado que não o podia fazer.
c) Passados 10 a 15 minutos (pelas 13h45), o arguido AA surge (a conduzir) pela Rua ..., querendo entrar na Rua ..., sendo que nesta altura o militar BB lhe de dá ordem de paragem para o impedir de aceder à dita via.
d) Acto contínuo, o arguido AA sai da viatura e dirigiu-se ao militar BB dizendo-lhe que podia circular até às 14h00 horas, que não era nenhum militar da GNR que o iria impedir de o fazer e pedindo-lhe que se identificasse, ao que o militar acedeu, passando identificando-se.
e) Então, o militar BB impetrou o arguido a não prosseguir a marcha pela Rua ..., com a cominação de que se o fizesse incorreria na prática de um crime de desobediência, colocando-se o referido guarda a cerca de 2 metros ao diante da viatura do arguido para impedir que este entrasse com a mesma na aludida Rua ....
f) Não obstante, o arguido AA entrou na sua viatura e iniciou a marcha em direção a BB, encostando o para-choques às pernas deste e empurrando-o para a retaguarda num espaço de cerca de 2 metros.
g) De seguida, o arguido saiu da viatura e apodou o militar BB e ao militar AA (que, entretanto chegou ao local), de “filhos da puta” e “cabrões”.
h) Nesta altura, o militar BB deu voz de detenção ao arguido, sendo que ele, quando levado para o interior do carro patrulha, esbracejou e esperneou, tendo dito ao referido militar que lhe dava uma cabeçada.
i) O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo e querendo, ao agir do modo descrito - usando de violência física contra BB, que sabia ser militar da GNR e que se encontrava no exercício das suas funções, devidamente uniformizado, e que pretendia levar a cabo actos compreendidos nessas funções – actuava com o propósito de o impedir de as concretizar.
j) Mais sabia que os epítetos dirigidos aos militares BB e AA eram suscetíveis de pôr em causa a honra e consideração pessoal e profissional dos ditos militares da GNR a quem se dirigiu, actuando com essa mesma intenção.
k) O arguido sabia que a sua conduta era proibida e criminalmente punida.
l) Como consequência da actuação do arguido, os militares BB e AA sentiram-se vexados e envergonhados em razão das expressões que lhes foram dirigidas pelo arguido.
m) Os demandantes são pessoas respeitadas na comunidade onde se inserem e, ademais, local de trabalho onde exerciam e, no caso do AA, continua a exercer funções.

1.1.2. da contestação

n) Em data não concretamente apurada mas posterior ao dia referido em a), o arguido foi notificado do auto de contraordenação n.º ...14, emitido desde o Posto Territorial da Guarda Nacional Republicana de ..., levantado pelo militar DD, no qual lhe vem imputado a seguinte infracção: no dia 08.03.2020, pelas 13h37, na Rua ..., freguesia ..., concelho ..., o arguido tripulando a sua viatura de matrícula ..- QI-.., “desobedeceu ao sinal do agente regulador do trânsito de paragem do trânsito vindo de frente. Sinal executado atempadamente, com a palma da mão direcionada para o veículo/condutor e braço esticado acima cabeça”.
o) A Rua ... dista não mais de 4 kms da referida Rua ... e da Rua ....
p) Nas imediações do local onde o arguido foi interceptado pelos militares da GNR estava afixado um aviso com o seguinte teor «AVISO// 8 MARÇO// TRÂNSITO CONDICIONADO //Prémio Ciclismo ...// 14h ÀS 17H30».
q) O arguido padece, há mais de 10 anos, de tremor ortostático, impossibilitando-o de se manter de pé, no mesmo local, (i.e., em posição ortostática), causando-lhe instabilidade quando permanece mais do que alguns segundos nessa posição.
r) Depois de dada a voz de detenção, o arguido permaneceu no local, acompanhado pelos assistentes e enquanto decorria a prova de ciclismo, até que chegou a patrulha que o conduziu ao posto da GNR ....

Mais se provou que:

s) O arguido é considerado por todos com quem manteve relações profissionais e sociais como sendo um cidadão trabalhador, respeitável e cordato.
t) O arguido está reformado, auferindo uma pensão mensal de cerca de € 800,00; a cônjuge, com quem vive em casa própria, trabalha no escritório da empresa criada pelo arguido, auferindo um vencimento mensal de cerca de € 1000,00; tem a 4.ª classe de escolaridade.
u) O arguido não tem antecedentes criminais.

1.2. Factos não provados.

Com relevo para a decisão da causa, nenhum outro facto se demonstrou.
Designadamente, não se apurou que:
i. Depois de o arguido ter sido mandado parar pelo militar BB, este virou costas ao arguido, nada mais lhe dizendo, sendo que em face dessa conduta, o arguido saiu da sua viatura, no intuito de conversar com aquele, e explicar que apenas pretendia dirigir-se pela indicada artéria, a escassos metros onde o assistente se encontrava, a fim de nesse local, poder sentar-se no exterior (num muro ou banco ou qualquer outro sítio), para assistir à prova de ciclismo, explicando-lhe que padecia do problema de saúde referido q) dos factos provados.
ii. O arguido não consiga deslocar-se a pé, pelos seus meios, ainda que com dificuldade determinada pela condição clínica referida em q). dos factos provados.
iii. Nas circunstâncias de tempo referidas na acusação, o assistente BB, sem que nada o fizesse prever, dirigiu-se para a viatura do arguido, entrou para o interior daquela para retirar a chave da ignição, tendo o arguido nessa altura agarrado no braço do dito militar para o retirar para o exterior, perguntando-lhe quem lhe tinha autorizado a entrada “na sua propriedade” (viatura).
iv. Uma vez no exterior da viatura, o assistente BB encostou o seu peito ao do arguido, ao que o arguido, tão só lhe disse que tivesse respeito para ser respeitado.
v. Foi na altura referida em iv. que o assistente telefonou para um outro militar, que se encontrava a escassos metros do local onde aquele se encontrava, solicitando que lhe trouxesse as algemas para deter o arguido.
vi. O arguido, quando detido, tivesse perguntado aos dois militares que já se encontravam presentes qual a razão da sua detenção, sem que obtivesse resposta.
vii. O assistente BB ainda contactou outro militar que também se encontrava em serviço, próximo do local onde aquele se encontrava, que para aí se dirigiu, sendo que nesse momento, deu ordem para o arguido arrumar a sua viatura, o que ele fez.
viii. O arguido tivesse aguardado nos termos referidos em r) dos factos provados no recinto da Junta de Freguesia ....
ix. O assistente BB, enquando decorreu a prova de ciclismo, permitiu a circulação de viaturas para a indicada Rua ....

1.3. Motivação

A despeito da versão do arguido, que iniciou a prestação das suas declarações com um texto que trazia escrito e que, de forma genérica, dão conta da versão constante da acusação escrita apresentada nos autos, confirmou haver estado nas circunstâncias espácio temporais referidas (ainda que com as reservas que se referirão, no que tange à hora do episódio) a circular na sua viatura automóvel, insistindo que pretendia, a despeito de o BB lhe ter dito que não podia circular, atravessar a artéria por onde vira a decorrer a prova de ciclismo, porquanto no seu entender a mesma deveria estar livre para circulação até às 14h00 como dizia no cartaz afixado (cuja cópia se mostra junta a fls. 148) e que o arguido fez questão de exibir (fotografia a cores) na audiência de julgamento. No que tange aos factos imputados, nega ter batido com a frente do carro no assistente BB, antes esclarecendo que parou a viatura a cerca de meio metro a um metro do local onde ele se encontrava. Negou ter chamados os epítetos mencionados na acusação a qualquer um dos militares, sendo que no decurso das declarações mostrou, afinal, saber quem era o militar AA, confirmando que o mesmo se deslocou para junto do militar BB (referindo mesmo que foi ele quem o autorizou a arrumar o carro). Invocou, por outra banda, discrepância na localização temporal do evento, referindo que recebeu passados uns tempos uma multa por uma infracção que teria acontecido na hora destes factos.
Já o assistente BB, que inicialmente começou a ser ouvido através do sistema de videoconferência, por se encontrar a residir na ... (onde actualmente trabalha, estando no gozo de licença sem vencimento), esclareceu que no dia em causa, desde as 13h00, se encontrava, uniformizado no cruzamento das Rua ... e Rua ..., no controlo de trânsito e apoio à segurança de uma prova de ciclismo que por ali haveria de passar. Entretanto, esclareceu o assistente ter recebido ordem para cortar o trânsito, sendo que por volta das 13h30 foi alertado (por chamada) pelo militar AA para o facto de um veículo da marca ... pretender circular no trajecto da prova de ciclismo. Cerca de 10 a 15 minutos depois, a dita viatura tenta penetrar na Rua ..., provinda da Rua ..., pelo que o militar ordena a sua paragem, a qual foi acatada. Contudo, nesse momento, o arguido saiu da viatura, e exaltado disse ao militar que poderia circular até ás 14h00, que nenhum GNR o iria impedir, mais solicitando a sua identificação, ao que o assistente se identificou ao mesmo tempo que comunicou ao arguido que se circulasse na dita artéria incorreria na prática de um crime de desobediência. Regressou o arguido para o interior do seu veículo, posicionando-se o declarante 2 metros ao diante do carro, com o fito de obstar ao prosseguimento da marcha. Porém, o arguido não só encostou o carro nas pernas do declarante, como foi avançando, empurrando-o para trás cerca de 2 metros, ficando aliás a viatura a ocupar a via por onde acabou por passar a prova desportiva. Nessa altura, e tendo chegado ao local o militar AA, dirigiu-se o arguido a ambos (nesse momento só se encontravam os dois militares) com os epítetos constantes dos factos provados. Também por essa altura foi dada voz de detenção ao arguido, que além de esbracejar e espernear, oferecendo ao depoente uma cabeçada, acabou por ser imobilizado, tendo sido acalmado, destafeita, pelo militar AA que esperou com ele, no local, até à chegada da patrulha que o levou para o posto da GNR. Referiu não se ter apercebido de, durante todo o episódio, ter passado no local quem quer que seja. Acrescentou, finalmente, ter ficado traumatizado com o sucedido, não só por temer pela sua vida, mas porque se sentiu vexado e aborrecido com a situação.
Esta versão foi confirmada pelo militar AA, que confirmou a chamada (realizada por volta das 13h30) que fez ao militar BB, no sentido de o alertar para a pretendida entrada no circuito da prova do veículo tripulado pelo arguido (que lhe disse também que a via só podia ser cortada depois das 14h00), sendo que este quando passou por si estava acompanhado de uma pessoa do sexo feminino, a qual já não estava consigo quando o arguido foi depois interceptado pelo militar BB. Passados cerca de 10 a 15 minutos, o BB ligou-lhe dando conta da intenção do arguido entrar na pista da prova, sendo que o declarante se dirigiu ao local com o fito de auxiliar o colega. Estando a 50 metros do local onde se encontrava o militar BB, viu o carro do arguido empurrar as pernas do seu colega, que foi recuando. Nessa altura, o arguido parou o carro e saiu aos gritos apodando, a si e ao BB, de “filhos da puta” e “cabrões”, sendo que nessa altura o BB lhe deu voz de detenção. Porque o arguido voltou para o carro foi usada força para o retirar do interior da viatura, sendo que ele foi sempre esperneando (tentando desferir pontapés) e anunciou ao BB que lhe dava uma cabeçada. Chegada uma patrulha, já enquanto decorria a prova de ciclismo, foi o arguido levado para o posto.
Ora, a despeito do depoimento da testemunha EE, que como a testemunha FF é funcionário da empresa criada pelo arguido (e de que o mesmo, nas próprias palavras destes depoentes, ainda é o patrão), que diz ter-se apercebido de o seu empregador dizer a um dos militares que não autorizava que ele entrasse no carro, até que chegou outro militar, ficando todos a assistir tranquilamente ao decurso da prova de ciclismo, sem que tivesse escutado a prolação de qualquer epíteto (“chamar nomes”) ou visto o arguido desferir pontapés ou esbracejos, o mesmo não nos mereceu qualquer credibilidade: ora porque tivesse uma memória e audição muito selectiva, só sabe o que o patrão disse, mas não ouviu o que foi dito ao arguido; ora porque viu o arguido chegar e parar a um metro e meio do militar (mais longe, aliás, do que é reconhecido pelo próprio arguido), ora porque não viu o arguido ser conduzido para o posto enquanto decorria a prova; e, finalmente, porque não se compreende a razão pela qual, vendo o seu patrão (com quem disse manter uma relação de proximidade) envolvido numa altercação, optou por se manter à distância, quase como se se quisesse esconder, não procurando sequer saber com mais pormenor o que se estava a passar. Já o FF, além de ter visto o arguido no local a gesticular dentro do carro, nada acrescentou de relevante para a boa decisão da causa.
Em síntese, a despeito do esforço argumentativo e criativo da defesa (do arguido e da testemunha EE), certo é que a versão proposta por esta parte, não só não é crível, como padece de internamente de algumas contradições (v.g., discrepância no que concerne ao confronto físico, i.e. encostar de peito, entre o arguido e o militar, que o EE não viu, passando logo o relato do momento da chegada do arguido para a tentativa da entrada no carro deste), sendo que os obstáculos que invoca para pôr em causa a acusação são facilmente removíveis: em primeiro lugar, importa referir que da análise da carta militar e das ruas das freguesias de ... e ... (este disponível na aplicação OpenStreetMap), logo se verifica que da Rua ... (...) ao início da Rua ... (...) distam exactamente 2,3 km. Ora, mesmo admitindo-se que se falasse do meio de cada uma das artérias, a distância nunca ultrapassaria os 4 km, distância percorrida em cerca de 5 a 6 minutos. Assim, é perfeitamente admissível que o arguido, entre o local onde inicialmente se deparou com o militar AA e depois onde se defrontou com o BB, tivesse tido tempo para passar pelo posto do militar DD (que elaborou o expediente referente à contraordenação cuja cópia da notificação foi junta com a contestação), como aliás o próprio AA explicou nas suas declarações (estavam a cerca de 2 km um do outro).
Em segundo lugar, efectivamente o arguido mostrava-se frustrado pelo facto de não lhe ser permitida a passagem, razão pela qual é crível que tenha reagido nos moldes mencionados pelos assistentes, não se vendo, outrossim, qual a motivação para que estes houvessem de agir tal qual descrito na contestação. Aqui valem as regras da experiência e da normalidade.
Mais, depois da actuação referida, não se percebe como ficou o arguido com dúvidas acerca da razão da sua detenção. Por outro lado, a incapacidade física do arguido, documentada aliás nos relatórios médicos também juntos com a contestação, sem prejuízo de darem conta da incapacidade do mesmo de se manter de pé (em sentido estático) por períodos mais longos, não determinam a sua incapacidade de andar (como o Tribunal percebeu) e, nem sequer de esbracejar e espernear.
Aliás, no decurso da audiência de julgamento, ficou o Tribunal persuadido da personalidade impulsiva do arguido, a que a certa altura (e apesar de estar a prestar declarações sentado) acabou por espontaneamente se levantar, com relativa agilidade, com o fito de sustentar a sua intervenção.
Que os militares BB e AA ficaram aborrecidos e se sentiram vexados com o sucedido é facto que, ademais, foi corroborado pelo militar KK, o qual tomou conhecimento da situação por ser colega deles.
Ainda, valorou o Tribunal o teor das declarações complementarmente prestadas pelo arguido, conjugadamente com o teor das testemunhas EE, FF, GG, HH, II e JJ, designadamente no que tange à sua situação pessoal, laboral (até à reforma) e social, considerando-se, ademais, o teor do certificado do registo criminal junto a fls. 136.”.
**
Quanto ás questões suscitadas no recurso:

Desde já se refere que o nosso entendimento quanto ás questões em apreço é, no essencial, coincidente com o mencionado pelo Digno PGA no seu parecer.
Daí que, aderindo nós á argumentação aduzida por aquele magistrado, sendo inútil tudo aqui repetir por outras palavras, permita-se-nos efectuar a transcrição parcial de partes do aludido parecer.

1 – Impugna o arguido a matéria de facto fixada na sentença.

Nomeadamente, referindo “16.- Sopesada toda a prova produzida, conjugadas as declarações prestadas pelo recorrente e pelos Assistentes, os testemunhos e demais prova, o Tribunal não podia atribuir maior credibilidade a uns que a outros e, por via disso, dar credibilidade à versão apresentada pelos Assistentes, em detrimento da do recorrente, que negou, desde sempre, os factos que lhe foram imputados..
Vejamos.
A prova produzida em audiência de julgamento tendo sido gravada, tem como consequência que o recurso poderá versar matéria de facto e de direito.
Nos termos do disposto no artigo 428º, do Código de Processo Penal, "As relações conhecem de facto e de direito.".
Aos recorrentes, sempre que impugnem a matéria de facto, incumbe o ónus de dar concretização aos pontos de facto que consideram incorrectamente julgados e às provas que impõem decisão diversa da recorrida; aliás, sempre que as provas tenham sido gravadas, a concretização destas terá de ser feita por referência ao consignado em acta. Veja-se o que decorre dos nºs 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal.
Como se refere no acórdão do STJ de 21/03/2003, proc. 024324, relator A. Paiva, "A admissibilidade da respectiva alteração por parte do Tribunal da Relação, mesmo quando exista prova gravada, funcionará assim, apenas, nos casos para os quais não exista qualquer sustentabilidade face à compatibilidade da resposta com a respectiva fundamentação”.

Assim, por exemplo:

a) apoiar-se a prova em depoimentos de testemunhas, quando a prova só pudesse ocorrer através de outro sistema de prova vinculada;
b) apoiar-se exclusivamente em depoimento(s) de testemunha(s) que não depôs(useram) à matéria em causa ou que teve(tiveram) expressão de sinal contrario daquele que foi considerado como provado;
c) apoiar-se a prova exclusivamente em depoimentos que não sejam minimamente consistentes, ou em elementos ou documentos referidos na fundamentação, que nada tenham a ver com o conteúdo das respostas dadas.".

Concordamos integralmente com o saber contido neste aresto. A sua visão é a interpretação fiel do que é um recurso sobre a matéria de facto.
Será que no caso em apreço se verifica uma qualquer das situações referidas na sentença proferida?
Cremos, objectivamente, que não.
A sentença criticada é absolutamente transparente quanto às provas que determinaram a sua convicção. Analisou a prova, nomeadamente depoimentos em confronto e revelou o ponto de chegada da sua ponderação.

É que, como se sumariou no acórdão de 21/11/2001 da Relação de Coimbra, proc. 926/2001, relator Barreto do Carmo:

"I - O acto de julgar é do Tribunal, e tal acto, tem a sua essência na operação intelectual da formação da convicção. Tal operação não é pura e simplesmente lógico-dedutiva, mas, nos próprios termos da lei, parte de dados objectivos para uma formulação lógico-intuitiva.
II - Na formação da convicção haverá que ter em conta o seguinte:
2.1. - a recolha de elementos - dados objectivos - sobre a existência ou inexistência dos factos e situações que relevam para a sentença; dá-se com a produção da prova em audiência;
2.2 - sobre esses dados recai a apreciação do Tribunal - que é livre, art. 127º do Código Processo Penal - mas não arbitrária, porque motivável e controlável, condicionada pelo principio de persecução da verdade material;
  2.3 - a liberdade da convicção, aproxima-se da intimidade, no sentido de que o conhecimento ou apreensão dos factos e dos acontecimentos não é absoluto, mas tem como primeira limitação a capacidade do conhecimento humano, e portanto, como a lei faz reflectir, segundo as regras da experiência humana;
III - A convicção assenta na verdade prático-juridica, mas pessoal, porque assume papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis - como a intuição.
IV - Esta operação intelectual não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis).
V - Para a operação intelectual contribuem regras, impostas por lei como sejam as da experiência, a percepção da personalidade do depoente (impondo­-se por tal a mediação e a oralidade), a da dúvida inultrapassável (conduzindo ao principio in dubio pro reo).
VI - A lei impõe princípios instrumentais e princípios estruturais para formar a convicção como sejam:
VII - O principio da oralidade, com os seus corolários da imediação e publicidade da audiência, é instrumental relativamente ao modo de assunção das provas, mas com estreita ligação com o dever de investigação da verdade juridico-prática e com o da liberdade de convicção - princípios estruturais; com efeito, só a partir da oralidade e imediação pode o juiz perceber os dados não objectiváveis atinentes com a valoração da prova.
VIII - A Constituição da República Portuguesa impõe a publicidade da audiência (art. 206Q) e, consequentemente o Código Processo Penal pune com a nulidade a falta de publicidade (art. 321º)  publicidade essa que se estende a todo o processo - a partir da decisão instrutória ou quando a instrução já não possa ser requerida (art 86º))  querendo-se que o público assista (art. 86º/a); que a comunicação social intervenha com a narração ou reprodução dos actos (art. 86º/b); que se consultem os autos, se obtenha cópias, extractos e certidões (art. 86º/c)). Há um controlo comunitário quer da comunidade jurídica quer da social, para que se dissipem dúvidas quanto à independência e imparcialidade.
IX - A oralidade da audiência que não significa que não se passem a escrito os autos, mas que os intervenientes estejam fisicamente perante o Tribunal (art. 96º do Código Processo Penal) permite ao Tribunal aperceber-se dos traços do depoimento denunciadores da isenção, imparcialidade e certeza que se revelam por gestos, comoções e emoções da voz, por ex.:
X - A imediação que vem definida como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de tal como que, em conjugação com a oralidade, se obtenha uma percepção própria dos dados que haverão de ser a base da decisão. É pela imediação, também chamado de princípio subjectivo, que se vincula o juiz à percepção, à utilização, à valoração e credibilidade da prova.
XI - A censura da forma de formação da convicção do tribunal não pode consequentemente assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção.
XII - Doutra forma, ... pretende-se uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão". (www.trc.pt).
Já no que concerne à convicção, à livre convicção que baseia a decisão, ela é de natureza eminentemente pessoal porque assume papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva, mas também elementos racionalmente não explicáveis - como a intuição.
A credibilidade dos depoimentos prestados em audiência foi aferida pelo julgador justamente na conformação do predito princípio. Como se refere no acórdão do STJ de 15/12/2005, proc. 2951/05, relator Conselheiro Simas Santos, "(...) 4 - Se o recorrente impugna somente a credibilidade da testemunha deve indicar os elementos objectivos que imponham um diverso juízo sobre a credibilidade dos depoimentos, pois ela, quando estribadas elementos subjectivos e não objectivos é um sector especialmente dependente da imediação do Tribunal, dado que só o contacto directo com os depoentes situados na audiência de julgamento, perante os outros intervenientes é que permite formar uma convicção que não pode ser reproduzida na documentação da prova e logo reexaminada em recurso" (www.dgsi.pt).
Ora, in casu a forma como o recorrente conforma a prova com a sua especial e subjectiva visão acaba por o colocar em área reservada ao julgador.
Como se decidiu no acórdão do STJ de 27/02/2003, Proc. 140/03, relator o Conselheiro Carmona da Mota:

" ii. O valor da prova, isto é a sua relevância enquanto elemento reconstituinte do facto delituoso imputado ao arguido, depende fundamentalmente da sua credibilidade, ou seja, sua idoneidade e autenticidade.
iii. A credibilidade da prova por declarações depende essencialmente da personalidade, do carácter e da probidade moral de quem as presta, sendo que tais características e atributos, em princípio, não são apreensíveis ou detectáveis mediante o exame e análise das peças ou textos processuais onde as declarações se encontram documentadas, mas sim através do contacto pessoal e directo com as pessoas.
iv. O tribunal de recurso, salvo casos de excepção, deve adoptar o juízo valorativo formulado pelo tribunal recorrido".

Ou seja, os elementos determinantes para a convicção do julgador assumem distinto cariz, crucial é que o mesmo, com absoluta transparência, os evidencie para que se alcance o juízo lógico que presidiu à decisão.
Visto isto, resulta evidente que a prova referida pelo recorrente como fundamento para a pretendida alteração da matéria de facto foi considerada, foi ponderada pelo julgador na sentença que proferiu. Sob o horizonte jurídico do princípio da livre convicção - art. 127º do C.P.Penal.
No sistema vigente, os contornos funcionais do recurso induzem á existência de uma instância de controle em que o tribunal se encontra investido de uma actividade crítica cujo objecto é a decisão impugnada, não se tratando, portanto, de um novum iudicium, destinado a substituir ex integro o precedente.
A configuração do segundo juízo como revisio prioris instantiae ("o recurso em matéria de facto não se destina a um novo julgamento, mas constitui apenas um remédio para os vícios do julgamento em 1ª instância", observa o Prof. Germano Marques da Silva, Forum Iustitia) significa que esta Relação - em que o contacto com as fontes de prova é amplamente mediato - só poderia alterar a matéria de facto se acaso surpreendesse nos autos, prova documental ou pericial, ou nos depoimentos prestados em audiência, a existência de um qualquer elemento probatório que, pela sua irrefutabilidade, não pudesse ser afectado pelo princípio da imediação.
O recorrente limita-se a dar a sua versão dos factos, não a fazendo acompanhar por nenhuma argumentação fundamentada num estudo preciso de molde a necessariamente implicar e impor alteração da matéria de facto fixada, pelo que nesta área não se descortina matéria que contraste com a resultante do convencimento expresso pelo tribunal de 1ª instância, e que assim se terá como consolidada.
O arguido não identifica as provas que impõem efectivamente decisão diversa. Note-se que o verbo usado pela lei é precisamente o verbo impor, o que, no caso, afasta a valia das provas que possam eventualmente sugerir ou até autorizar outra leitura das mesmas. Havendo mais que uma versão possível para os factos, adoptando o decisor por uma, importa que o mesmo fundamente a sua opção de forma racional, lógica e consistente, observando, sempre, o que determina o art. 127º referido: atentando às regras da experiência e, também, à sua livre convicção, que como é consabido, é de natureza subjectiva. A fundamentação da sentença é, pois, a objectivação da livre convicção e através dela se afasta o arbítrio e mero subjectivismo. 
A convicção quanto aos factos apurados existirá quando o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável.
Com efeito, também a prova não é avaliada de forma isolada, antes, tem de ser toda relacionada e conjugada, podendo o julgador através desse exercício chegar a conclusões que não seriam permitidas por cada um dos elementos de prova, se considerados isoladamente. Porém, da prova produzida, nomeadamente depoimentos prestados, conjugados, tal como se mostram referenciados na motivação da sentença recorrida, avaliados à luz das regras da experiência comum, é possível extrair a conclusão fáctica em causa, que se deu como provada. 
Como já se referiu entendemos que a sentença recorrida não merece, pois, reparos quanto à apreciação da prova produzida nos autos, cuja convicção está devidamente enunciada na motivação, o que acima integralmente se reproduziu.
E porque assim é, forçosamente se tem de concluir pela inexistência do apontado erro no julgamento da matéria de facto, não tendo havido qualquer facto incorrectamente julgado, sendo de todo manifesto que o tribunal a quo fez uma apreciação correcta e legal da mesma prova no quadro do princípio da livre apreciação da prova consagrado no art. 127.º do C.P.P., sendo que procurou atingir a verdade material, agindo com bom senso e sentido da responsabilidade, tendo apreciado tal prova dentro dos parâmetros legais, em termos de um “livre convencimento lógico e motivado” (J. Frederico Marques, cit. em “Código de Processo Penal Anotado”, 2.ª ed., pág. 685, de Simas Santos e Leal Henriques), e que “não se confunde com apreciação arbitrária, discricionária ou caprichosa da prova, de todo em todo imotivável” (Código de Processo Penal citado, id.).”.
Sendo que se concorda com o Digno P.G.A., quando no seu parecer refere o seguinte: “(…) No caso concreto, o arguido insurge-se pelo facto de se ter dado como provada no ponto n) que o mesmo foi notificado do auto de contraordenação n.º ...14, no qual lhe vem imputado a seguinte infração: no dia 08.03.2020, pelas 13,37 h, na Rua ..., freguesia ..., concelho ..., o arguido tripulando a sua viatura de matrícula ..-QI-.., “desobedeceu ao sinal do agente regulador do trânsito de paragem do trânsito vindo de frente. Sinal executado atempadamente, com a palma da mão direcionada para o veículo/condutor e braço esticado acima cabeça”, sendo que, no ponto b), dá-se como provado que, pelas 13,35 h desse mesmo dia, o militar BB – que se encontrava em serviço, no entroncamento da Rua ... com a Rua ..., em ... – recebeu um telefonema do militar AA, informando-o que o arguido AA, estava a tripular o veículo automóvel de matricula ..-QI-.. e que o mesmo pretendia circular na Rua ..., apesar de ter sido por si informado que não o podia fazer.
Ora, segundo o recorrente, ser-lhe-ia impossível percorrer a distância entre aquelas duas localidades (2,3 Km), em tão pouco tempo, o que constitui erro na apreciação da prova.
Dir-se-á liminarmente que não existe qualquer erro ou contradição na apreciação da prova. Na verdade, o que se deu como provado foi que o arguido “foi notificado do auto de contraordenação n.º ...14”, no qual lhe vem imputado a aludida infração. Não se deu, pois, como provado que o mesmo tripulava efetivamente a viatura de matrícula ..- QI-.. na Rua ... h. O que se diz é que auto de contraordenação menciona tal factualidade. Portanto, a contradição é apenas aparente, já que se poderia configurar um sem números de hipóteses capaz de sustentar a aparente contradição de factos: por exemplo, o participante da contraordenação ter-se equivocado na menção da hora porque o relógio onde se baseou estava adiantado; o participante ter perguntado as horas a alguém para lavrar o auto e ter sido mal informado; o participante ter-se equivocado na menção do local da prática da contraordenação, etc. Poder-se-á até configurar a possibilidade de não se provar o teor da contraordenação. Mas o que releva para estes autos é que não existe qualquer contradição ou erro na apreciação da prova neste particular, já que os factos que se dão por assentes nos pontos a), b), c) e n) não são ontologicamente incompatíveis.
De resto, com todo o respeito, não parece que tal assunto tenha qualquer relevância para a boa decisão da causa. Do que os autos cuidam não é da apreciação da eventual prática da contraordenação, mas sim dos crimes imputados ao arguido. E estes terão ocorrido “pelas 13,45 horas, na Rua ..., à entrada da Rua ..., em ..., ...”, como o próprio arguido admite e reconhece.”.
*
A este respeito, veja-se, entre muitos, o Acórdão da RP. De 12/5/04 –JTRP00036889, no sentido de que:

“I – A convicção do julgador só pode ser modificada pelo tribunal de recurso quando seja obtida através de provas ilegais ou proibidas, ou contra a força probatória plena de certos meios de prova ou, então, quando afronte, de forma manifesta, as regras da experiência comum.
II – Sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum (como é o caso), deve acolher-se a opção do julgador”.
Pelas razões apontadas, carece o arguido de razão.
Termos em que a apreciação da matéria de facto não merece qualquer reparo devendo ser a mesma inteiramente confirmada e por consequência ser negado provimento ao recurso nesta parte.
 Em suma, o tribunal a quo avaliou a prova segundo a sua livre convicção, sem que tivessem sido violadas quaisquer regras da experiência comum ou sido utilizados meios de prova proibidos, sendo que a factualidade dada como assente tem, pois, sustentabilidade nas provas indicadas na motivação fáctica.
Em face do que não assiste razão ao recorrente - mantendo-se a matéria de facto fixada na sentença.
*
2- Invoca o arguido os vícios previstos no art. 410.º , n.º 2, al.s a) e c) do Cód. Proc. Penal.

Nos termos do disposto no art. 410 n.º 2 do C. P. Penal, “mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamento, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.”

Como é unanimemente entendido, os vícios referenciados no art. 410 n.º 2 do C. P. Penal, têm de resultar do texto da decisão recorrida.
Refere-se o recorrente aos vícios das alíneas a) “Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada” e c), previstos no n.º 2, do artigo 410°, do Código de Processo Penal.
Temos que a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, como refere Germano Marques da Silva - Curso de Processo Penal – Vol.III, pág. 3339/340, “consiste na insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito. É necessário que a matéria de facto dada como provada não permita uma decisão de direito, necessitando de ser completada”, isto é, “quando o tribunal deixa de investigar, podendo fazê-lo, toda a matéria de facto relevante, de tal forma que os factos declarados provados não permitem, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do julgador.” Curso de Processo Penal – Vol.III, pág. 3339/340.

Como se refere no Acórdão do Supremo tribunal de Justiça de 19/03/2009, “A insuficiência da matéria de facto para a decisão implica a falta de factos provados que autorizem a ilação jurídica tirada. É uma lacuna de factos, que se revela internamente, só a expensas da própria sentença, sempre no cotejo com a decisão, e não se confunde, evidentemente, com a eventual falta de provas para que se pudessem dar por provados os factos que se consideram provados.”.
O vício em causa ocorrerá quando, da leitura da decisão, resulte evidenciado que faltam dados e elementos que poderiam e deveriam ter sido apurados e se mostram necessários para que se possa efectuar um juízo de condenação ou absolvição. 
Existirá insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, quando a decisão de direito não encontre na matéria de facto provada uma base tal que suporte um raciocínio «lógico-subsuntivo»” - cfr. Maria João Antunes, em anotação publicada na Revista Portuguesa de Ciência Criminal Ano 4, 1994, pg. 120). 
Dir-se-á como o Ac. do TRL, de 18-07-2013 que [A] insuficiência para decisão da matéria de facto provada não se confunde com a insuficiência da prova para os factos que erradamente foram dados como provados. Na primeira critica-se o Tribunal por não ter indagado e conhecido os factos que podia e devia, tendo em vista a decisão justa a proferir de harmonia com o objeto do processo; na segunda censura-se a errada apreciação da prova levada a cabo pelo Tribunal: teriam sido dados como provados factos sem prova para tal.
No caso dos autos, verifica-se que os factos dados como provados na sentença recorrida são os necessários ao preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos dos tipos de ilícito e de culpa e, por conseguinte, à formulação do juízo de condenação do arguido, bem como à quantificação da pena, não se divisando também que tenham sido omitidas diligências com vista ao esclarecimento do objecto do processo. 
Conclui-se, assim, que a decisão recorrida não evidencia qualquer insuficiência quanto à matéria de facto apurada, antes se devendo afirmar que, sob o manto da existência de tal vício, acaba o recorrente por se insurgir contra a factualidade considerada provada.
A este respeito, manifestamente, analisada a matéria de facto dada como provada verifica-se que a mesma é suficiente e justifica a decisão de direito constante na sentença.
Pelo que neste ponto não assiste razão ao recorrente.
*
Quanto ao vício do erro notório na apreciação da prova - art. 410 nº 2, al. c) do C.P.P., o mesmo, como aliás, todos os do art. 410 nº 2 do CPP, como já se referiu, tem forçosamente que resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum. Isso resulta inequivocamente do corpo da norma. “Trata-se de um erro de que o homem médio, suposto pelo legislador, facilmente se dá conta mediante a leitura da decisão recorrida e não com recurso a elementos a ela estranhos”. (...) “O erro notório só existe quando determinado facto provado é incompatível, ou irremediavelmente contraditório, com outro facto contido no texto da decisão, em termos de as conclusões desta surgirem como intoleravelmente ilógicas” - ac. STJ de 29-2-96, Revista de Ciência Criminal ano 6 pag. 55 e ss.
Tendo que resultar do texto da decisão recorrida, não é possível o recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, designadamente declarações prestadas ou documentos juntos durante o inquérito, a instrução, ou até mesmo no julgamento – cfr. ac. STJ de 19-12-90, citado por Maia Gonçalves em anotação a este artigo
Lendo-se a motivação vê-se que o recorrente para demonstrar a existência destes vícios, se socorre das declarações prestadas no julgamento, que não permitiriam que a decisão tivesse sido exactamente no sentido da sentença proferida, o que se reconduz ao erro de julgamento (a que acima nos referimos).
Improcede, assim, também esta arguição.
*
Não se verificam, pois, os invocados vícios da sentença, pelo que, nesta parte, deverá o recurso ser julgado improcedente.
*
3 – Refere o arguido entender que não se encontram preenchidos os elementos constitutivos do crime de resistência e coação sobre funcionário.

“Defende ainda o recorrente que não estão preenchidos os elementos objetivos do crime de resistência e coação sobre funcionário, já que, em momento algum ficou provado que o seu comportamento tenha assumido os contornos de violência ou ameaça grave que a norma exige.
Nesta parte, afigura-se-nos que assiste razão ao recorrente.
Vejamos.  

São requisitos essenciais do crime de resistência e coação sobre funcionário:
- a oposição a que funcionários, membros das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança, pratiquem ou continuem a praticar ato legítimo compreendido nas suas funções, ou constrangimento a que pratiquem ato relacionado com as suas funções mas contrário aos seus deveres;
- que essa oposição ou constrangimento sejam operados através de violência (física ou moral) ou ameaça grave;
- que o agente saiba que está perante um funcionário, membro das forças armadas, militarizadas ou de segurança;
- que tenha conhecimento de que a oposição e ou o constrangimento, através da violência ou ameaça, o impeçam de praticar o ato relacionado com as suas funções ou de prossegui-lo.

No caso dos autos, constata-se que o arguido:

A) Numa primeira fase (antes de lhe ter sido dada voz de detenção):

- após lhe ter sido dada ordem de paragem para o impedir de aceder à Rua ..., sob pena de, prosseguindo a marcha, incorrer na prática de um crime de desobediência, o arguido iniciou a marcha em direção ao militar da GNR – que se tinha colocado cerca de 2 metros ao diante da viatura do arguido – encostando o para-choques às pernas deste e empurrando-o para a retaguarda num espaço de cerca de 2 metros;
- saiu da viatura e apodou o militar BB e o militar AA (que, entretanto, chegou ao local), de “filhos da puta” e “cabrões”.
B) Numa segunda fase (depois de lhe ter sido dada voz de detenção):
- quando era levado para o interior do carro patrulha, esbracejou e esperneou, tendo dito ao militar da GNR que lhe dava uma cabeçada.

Ora, não parece que o comportamento descrito contenha o potencial de “violência” necessário ao preenchimento do tipo legal previsto no n.º 1 do art.º 347.º do Código Penal. É evidente que o arguido não facilitou na sua detenção, porém, tal não significa, só por si, que tenha praticado o crime aqui em discussão.
Na verdade, tal como tem sido entendimento maioritário da doutrina e da jurisprudência, para a consumação do crime de resistência e coação a funcionário é necessário que a ação violenta ou ameaçadora seja idónea a atingir de facto o seu destinatário ou destinatários, ou seja, que essas ações os possam impedir de concretizar a atividade por estes prosseguida.
Pela sua clareza e acerto, citamos os ensinamentos contidos no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17/4/2013 (Processo n.º 597/12.2 GCOVR.P1), com os quais concordamos integralmente «os meios utilizados – violência ou ameaça grave – devem ser entendidos, principalmente, do mesmo modo que no tipo legal de coação (…). Há-de considerar-se, em todo o caso, que os destinatários da coação possuem, nalgumas das hipóteses deste tipo legal, especiais qualidades no que diz respeito à capacidade de suportar pressões e estão munidos de instrumentos de defesa que vulgarmente não assistem ao cidadão comum. Membros da Forças Armadas, militarizadas ou de segurança não são, para efeitos de atemorização, homens médios. O grau de violência ou de ameaça necessários para que se possa considerar preenchido o tipo não há-de medir-se, por conseguinte, pela capacidade de afetar a liberdade física ou moral de ação de um homem comum. A utilização do critério objetivo-individual (…) há-se assentar na idoneidade dessa violência ou ameaça para perturbar a liberdade de ação do funcionário. Assim, será natural que uma mesma ação integre o conceito de violência relevante nos casos em que o sujeito passivo for mero funcionário e seja desvalorizada quando utilizada para defrontar, por exemplo, um militar. Ou seja, nalgumas hipóteses desta concreta coação que se considera, hão-de ter-se em conta não apenas as eventuais sub-capacidades do coagido ou ameaçado, mas talvez sobretudo as suas ‘sobre-capacidades».
Decidiu-se, assim, no referido Acórdão que “não comete o crime de resistência e coação sobre funcionário o agente que, ao ser-lhe dada voz de detenção, empurra dois agentes da GNR, começando a debater-se, a empurrar e a esbracejar para evitar a detenção, ao mesmo tempo que grita: “seus filhos da puta, eu vou-vos foder, eu mato-vos, vocês vão pagar por isto, estão fodidos”, já que tal conduta não é dotada de idoneidade suficiente para inviabilizar os atos funcionais dos agentes da GNR”. Na respetiva fundamentação explicita-se ainda que “não se mostra tal comportamento adequado a anular ou a dificultar de forma significativa a capacidade de atuação dos dois Militares”, tanto mais que estes “possuem especiais qualidades no que diz respeito à capacidade de suportar pressões e estão munidos de instrumentos de defesa que não assistem ao cidadão comum”.
Portanto, nesta parte, seríamos levados a concordar com o arguido.
Acontece, porém, que o crime de resistência e coação sobre funcionário pode ser preenchido com uma outra conduta típica, exatamente a prevista no n.º 2 do art.º 347.º do Código Penal que assenta na perfeição à situação dos autos.
Na verdade, aí se diz «a mesma pena é aplicável a quem desobedecer ao sinal de paragem e dirigir contra funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança, veículo, com ou sem motor, que conduza em via pública ou equiparada, ou embarcação, que pilote em águas interiores fluviais ou marítimas, para se opor a que ele pratique ato relativo ao exercício das suas funções, ou para o constranger a que pratique ato relativo ao exercício das suas funções, mas contrário aos seus deveres, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal».
Ora, foi exatamente o que se verificou no caso dos autos, com base na factualidade dada por assente que aqui se recorda:
«c) Pelas 13h45, o arguido AA surge (a conduzir) pela Rua ..., querendo entrar na Rua ..., sendo que nesta altura o militar BB lhe dá ordem de paragem para o impedir de aceder à dita via.
d) Ato contínuo, o arguido AA sai da viatura e dirigiu-se ao militar BB dizendo-lhe que podia circular até às 14h00 horas, que não era nenhum militar da GNR que o iria impedir de o fazer e pedindo-lhe que se identificasse, ao que o militar acedeu, passando a identificar-se.
e) Então, o militar BB impetrou o arguido a não prosseguir a marcha pela Rua ..., com a cominação de que se o fizesse incorreria na prática de um crime de desobediência, colocando-se o referido guarda a cerca de 2 metros ao diante da viatura do arguido para impedir que este entrasse com a mesma na aludida Rua ....
f) Não obstante, o arguido AA entrou na sua viatura e iniciou a marcha em direção a BB, encostando o para-choques às pernas deste e empurrando-o para a retaguarda num espaço de cerca de 2 metros».
Mais se apurou que:
«i) O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo e querendo, ao agir do modo descrito – usando de violência física contra BB, que sabia ser militar da GNR e que se encontrava no exercício das suas funções, devidamente uniformizado, e que pretendia levar a cabo atos compreendidos nessas funções – atuava com o propósito de o impedir de as concretizar.
(…)
k) O arguido sabia que a sua conduta era proibida e criminalmente punida».
A factualidade sopesada preenche, pois, na plenitude os elementos constitutivos do crime de resistência e coação a funcionário. Não o crime da previsão do n.º 1 do art.º 347.º (como erradamente foi qualificado pelo Ministério Público na acusação, lapso esse que se repercutiu na sentença recorrida), mas sim o crime da previsão do n.º 2 do mesmo normativo.

Quid iuris?
Dispõe o art.º 379.º, n.º 1, al. b), do CPP: «é nula a sentença que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º».
Com esta cominação visa-se a salvaguarda da estrutura acusatória do processo penal, consagrada no art.º 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, o qual dispõe: «o processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os atos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório».
Por força da referida estrutura acusatória do processo, o juiz de julgamento encontra-se tematicamente vinculado, em relação ao objeto do processo (thema decidendum), aos poderes de cognição (thema probandum) e aos limites da decisão, pela acusação ou pela pronúncia, o que constitui, para o arguido, uma garantia de defesa.
Tal implica, nomeadamente, a proibição de condenação por crime diverso do da acusação ou pronúncia, sem o arguido ter podido contraditar os respetivos fundamentos.
É à luz da preservação das garantidas de defesa, constitucionalmente reconhecidas (art.º 32.º, n.º 1, da CRP), que se justificam os cuidados postos pelo legislador nas situações de alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, quer a nível substancial (art.º 359.º do CPP), quer não substancial (art.º 358.º), equiparando a esta última a alteração da qualificação jurídica dos factos (n.º 3 do art.º 358.º).
A definição de “alteração substancial de factos” mostra-se consignada na al. f) do art.º 1.º do Código de Processo Penal, como sendo “aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”.
Não fornecendo a lei a definição de alteração não substancial, a sua delimitação terá que ser definida por contraposição com a alteração substancial, ou seja, aquela que «consubstanciando embora uma modificação dos factos constantes da acusação ou da pronúncia, não tem por efeito a imputação de um crime diverso, nem a agravação nos limites máximos das sanções aplicáveis» (Oliveira Mendes, in “Código de Processo Penal Comentado”, Almedina, 2016, 2ª edição, pág. 1081).
«O instituto da alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia visa assegurar as garantias de defesa ao arguido. O que a lei pretende é que este não venha a ser censurado jurídico-criminalmente com violação do princípio do acusatório, sem que tenha tido a possibilidade de adequadamente se defender» (cfr. o Acórdão desta Relação de 24/10/2016, Processo n.º 1386/11.7TABCL.G1).
Por isso, a modificação dos factos constantes da acusação ou da pronúncia só integra o conceito normativo da “alteração não substancial de factos” quando tiver relevo para a decisão da causa e implique uma limitação dos direitos de defesa do arguido.
No caso concreto, a possibilidade de condenação do arguido pela tipicidade do n.º 2 do art.º 347.º do Código Penal não implica qualquer alteração dos factos descritos na acusação, sendo que todos os elementos atinentes ao tipo subjetivo já constam da acusação.
O que ocorrerá simplesmente é uma alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, porém, em moldes que não implicam uma agravação da respetiva moldura penal abstrata, já que se trata do mesmo crime, embora da previsão do n.º 2, ao invés do n.º 1 do art.º 347.º.
Ora, este “facto” não constitui qualquer alteração substancial ou sequer não substancial dos factos descritos na acusação, não tendo qualquer repercussão negativa para o arguido, que se reflita numa diminuição das suas garantias de defesa.
Na verdade, trata-se exatamente dos mesmos factos, do mesmo crime (embora da distinta previsão) e da mesma moldura penal abstrata.
Por isso, entendemos que, nesta concreta situação, a condenação do arguido pela prática de um crime de resistência e coação sobre funcionário da previsão do n.º 2 do art.º 347.º do Código Penal não integra a imputação de um crime diverso daquele por que foi acusado que demande o cumprimento do estatuído no artigo 359.º do Código de Processo Penal, não constituindo também uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação que imponha a comunicação ao arguido nos termos e para efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 358.º.
Por outro lado, tendo sido permitido ao arguido o pleno exercício do contraditório e dos seus direitos de defesa, constitucionalmente consagrados no artigo 32.º da CRP, não tem sequer o Tribunal que proceder à comunicação ao mesmo da alteração da qualificação jurídica dos factos, nos termos e para efeitos disposto no n.º 3 do artigo 358.º do Código de Processo Penal.
Assim sendo, no nosso modesto entendimento, poderá esta Veneranda Relação, sem necessidade de cumprimento do art.º 358.º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Penal:
- absolver o arguido da prática de um crime de resistência e coação sobre funcionário, previsto no art.º 347.º, n.º 1, do Código Penal;
- condenar o arguido pela prática de um crime de resistência e coação sobre funcionário, previsto no art.º 347.º, n.º 2, do Código Penal, mantendo, se assim for entendido, as penas aplicadas ao arguido na primeira instância.
No sentido por nós defendido, cfr. o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 8/9/2020, Processo n.º 12/17.5GASLV.E1, que aqui seguimos de perto.  
(…)”.  
Em face do que, sendo in casu, desnecessário o cumprimento do art.º 358.º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Penal, se deve:
- Absolver o arguido da prática de um crime de resistência e coação sobre funcionário, previsto no art.º 347.º, n.º 1, do Código Penal;
- E condenar o arguido pela prática de um crime de resistência e coação sobre funcionário, previsto no art.º 347.º, n.º 2, do Código Penal, mantendo, as penas aplicadas ao arguido na primeira instância (é aplicável a mesma pena nestes dois números do art. 347.º do C. Penal).
Pelo que deve o recurso ser julgado como parcialmente procedente, nesta parte.  
*
4 – Defendendo, também, o arguido que as expressões por si proferidas não são suscetíveis de integrar a tipicidade dos crimes de injúria agravada;
“Entende ainda o recorrente que as palavras que proferiu não integram a prática do crime de injúria por “não terem outro significado que não seja a mera verbalização de linguagem, dita grosseira, deselegante, traduzindo num juízo de valor no âmbito do exercício de direito de crítica, sendo absolutamente incapazes de pôr em causa o carácter, o bom nome ou reputação dos ofendidos”, já que sendo os mesmos “agentes das forças de segurança no exercício da sua atividade profissional, não podem ser particularmente sensíveis a alguns destemperos ou incorreções de linguagem usados por um cidadão mais exaltado, devem construir uma carapaça que os proteja contra comportamentos que ferem as regras do civismo exigível na convivência social”.
Manifestamente, não assiste razão ao recorrente nesta parte, sendo que, a seguir-se o seu entendimento, os agentes da autoridade jamais poderiam ser vítimas de um crime de difamação/injúria.
Vejamos.
O artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal, confere tutela penal ao direito do cidadão à sua integridade moral e ao seu bom-nome e reputação, ao estabelecer que comete o crime de difamação “quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração”.
O bem jurídico protegido com a incriminação é a honra (que respeita mais a um juízo de si sobre si) e a consideração (que se reporta prevalentemente ao juízo dos outros sobre alguém).
A integridade moral, o bom-nome e a reputação foram erigidos a direitos fundamentais (art.ºs 25.º, n.º 1 e 26.º da Constituição da República Portuguesa) e traduzem a emanação do princípio da dignidade da pessoa humana (art.º 1.º da Lei Fundamental).
A honra manifesta-se num “bem jurídico complexo, que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior” (Faria Costa, «Comentário Conimbricense do Código Penal», Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, pág. 607).
Quanto ao elemento subjetivo do tipo, traduz-se na vontade livre de praticar o ato com a consciência de que as expressões utilizadas ofendem a honra e consideração alheias ou, pelo menos, são aptas a causar tal ofensa (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/10/2009, Processo n.º 1/08.0 TRLSB.S1, in www.stj.pt).
O elemento objetivo reveste duas modalidades: o agente imputa à vítima factos desonrosos ou dirige-lhe palavras ofensivas da sua honra e consideração.
Aqui chegados importa avaliar se as afirmações imputadas ao arguido, nas circunstâncias em que o foram, revestem dignidade penal, ou seja, se podem ser objetivamente vistas como lesivas da honra e consideração dos ofendidos.
Para responder a tal questão importa, em primeiro lugar, ter presente o contexto em que as mesmas foram proferidas. Como refere Faria Costa “o significado das palavras, para mais quando nos movemos no mundo da razão prática, tem um valor de uso. Valor que se aprecia, justamente, no contexto situacional e que ao deixar intocado o significante ganha ou adquire intencionalidades bem diversas no momento em que apreciamos o significado”, o que não significa que não haja palavras “cujo sentido primeiro e último é tido, por toda a comunidade falante, como ofensivo da honra e consideração” (obra citada, pág. 630).
Em segundo lugar, como se realça no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14/7/2008 (Processo n.º 0841633) há que ter presente que o Direito Penal não deve intervir para criminalizar condutas comuns, simples desrespeitos, descortesias ou más educações. Tem que haver um mínimo de significado da conduta, um mínimo de gravidade, para que se considere ter a mesma alcançado o patamar da tipicidade e para se lhe conferir dignidade penal. Como bem se expressa no Acórdão da Relação de Lisboa de 20/3/2006 (Processo n.º 4290/2006-5, in www.dgsi.pt) “a proteção penal dada à honra e consideração e a punição dos factos lesivos desse bens jurídicos só se justifica em situações em que objetivamente as palavras proferidas não têm outro conteúdo ou sentido que não a ofensa, ou em situações, em que, uma vez ultrapassada a mera suscetibilidade pessoal, as palavras dirigidas à pessoa a quem o foram, são indubitavelmente lesivas da honra e da consideração do lesado”.
No caso dos autos, deu-se como provado que o arguido, em plena via pública, às 13,45 horas, aquando da realização de uma prova de ciclismo, ao ser impedido de entrar numa Rua, saiu da viatura que conduzia, dirigiu-se aos militares da GNR BB e AA que ali se encontravam devidamente uniformizados e no exercício de funções e apodou-os de “filhos da puta” e “cabrões”.
Mais se apurou que o arguido “sabia que os epítetos dirigidos aos militares BB e AA eram suscetíveis de pôr em causa a honra e consideração pessoal e profissional dos ditos militares da GNR a quem se dirigiu, atuando com essa mesma intenção”, sendo que “como consequência da atuação do arguido, os militares BB e AA sentiram-se vexados e envergonhados em razão das expressões que lhes foram dirigidas pelo arguido”.
Ora, afigura-se-nos apodítico ser ofensivo do bom-nome dos visados chamar-lhes “filhos da puta” e “cabrões” nas aludidas circunstâncias. De resto, não vemos que outra intenção poderia ter o recorrente ao apodar os visados com as aludidas expressões.
Defende o recorrente que as palavras proferidas traduzem apenas “um juízo de valor no âmbito do exercício de direito de crítica”. Crítica?! Mas que concreta censura estava o arguido a expressar? Que reprovação ou reparo pretendia formular? Não se vislumbra. O que se intui, muito prosaicamente, é a intenção de denegrir o carácter, o bom-nome e a reputação dos ofendidos.
Bem andou, pois, o Tribunal a quo ao condená-lo pela prática dos crimes de injúria agravada.”.
Pelo que neste aspecto não assiste razão ao recorrente.
*
5 -  Mais referindo o recorrente que “a medida da pena aplicada não se pode manter, dado que se revela injusta, pouco criteriosa e excessiva”.   

Vejamos.

Estipula o art. 70º do C. Penal que se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
O artº 71º do Cód. Penal indica os critérios para a escolha da medida da pena, estatuindo que esta deve fazer-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, tendo em vista a protecção dos bens jurídicos e a reintegração daquele (artº 40º nº1 do C.P.).
E no seu nº 2 manda atender àquelas circunstâncias que não fazendo parte do tipo, depuserem a favor ou contra o agente, indicando, a título exemplificativo, algumas delas nas várias alíneas.
A medida concreta da pena tem que ser determinada sempre conjugando os factores culpa e prevenção, estando o primeiro ligado a uma vertente pessoal do crime e o segundo à necessidade sentida pela sociedade na punição do caso concreto.
Quanto à culpa, ela irá não só fundamentar como também limitar a pena.
Esta será estabelecida com base na intensidade ou grau de culpa e a sua medida não poderá ultrapassá-la. Estará sempre limitada, no seu máximo, por ela. 
Segundo Figueiredo Dias[1], na fixação da pena terá que estar sempre presente a ideia de prevenção, não de “prevenção em sentido amplo, como finalidade global de toda a política criminal, ou seja, como conjunto dos meios e estratégias preventivos da luta contra o crime” mas prevenção significando,  “por um lado, prevenção geral, e, por outro lado, prevenção especial, com a conotação específica que estes termos assumem na discussão sobre as finalidades da punição”.
Assim, a pena deve ser fixada de forma a que contribua para a reinserção social do agente e não prejudique a sua posição social mais do que o absolutamente inevitável e, por outro lado, neutralize os efeitos do crime como exemplo negativo para a sociedade e simultaneamente contribua para fortalecer a consciência jurídica da comunidade sem deixar de ter em consideração o que foi afectado com o delito e suas consequências.
“Insurge-se ainda o arguido contra a “medida da pena”, que considera “injusta, pouco criteriosa e excessiva”.
Desde logo, constata-se que, ao arguido, foram aplicadas 3 penas, portanto, não se percebe a que “pena” concreta pretende o mesmo aludir.
Mas mesmo que se presuma que se tratará da pena correspondente ao crime de resistência e coação sobre funcionário, dir-se-á que não lhe assiste razão.
Em consonância com o disposto no art.º 71.º do Código Penal, interpretado à luz do art.º 40.º do mesmo diploma, a determinação da pena, dentro dos limites fixados na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido.
O limite máximo da pena deverá ser fixado de acordo com a culpa, o limite mínimo de acordo com as exigências de prevenção geral e a pena a aplicar, dentro da moldura penal assim conseguida, de acordo com as exigências de prevenção especial que o caso concreto reclama.
O crime de resistência e coação sobre funcionário (previsto no art.º 347.º do Código Penal) é punido com pena de prisão de um a cinco anos, tendo o Tribunal decidido condenar o arguido na pena de um ano e seis meses de prisão, ou seja, muito próximo do seu limite mínimo.
Por outro lado, decidiu o Tribunal a quo suspender a execução da pena pelo período de dois anos. Presumimos que não será contra este segmento da decisão que o arguido se insurge.
Não vemos que censura possa ser assacada a tal pena. Na verdade, a pena aplicada ao arguido relativamente a tal ilícito e, acrescente-se, também as penas relativas aos crimes de injúria agravada, revelam-se criteriosas, ponderadas e equilibradas, tendo em conta a culpa do agente e as demais circunstâncias do caso e, bem assim, as molduras penais abstratamente cominadas nos tipos legais subsumidos à sua conduta.”.
As penas assim aplicadas ao recorrente, parcelares e única, não excedem a medida da culpa, cumprem os fins das penas, mormente a prevenção geral e especial e não deixam de prosseguir a almejada reintegração social do arguido, pelo que se mostram correctas e justas, face aos critérios legais, mormente dos artºs 40º e 71º do C. Penal.
Deve, assim, o recurso nesta parte ser também julgado como improcedente.
*
Deve, assim, ser dado parcial provimento ao recurso.
***
- Decisão:

- Pelo exposto, neste Tribunal da Relação, julgando o recurso como parcialmente procedente, decide-se:
- Absolver o arguido AA, da prática de um crime de resistência e coação sobre funcionário, previsto no art.º 347.º, n.º 1, do Código Penal;
- E condenar o arguido pela prática de um crime de resistência e coação sobre funcionário, previsto no art.º 347.º, n.º 2, do Código Penal, mantendo as penas aplicadas na primeira instância (sendo é aplicável a mesma pena abstracta neste dois números do art. 347.º do C. Penal / e sendo in casu, desnecessário o cumprimento do disposto no art.º 358.º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Penal, como acima se referiu).
Revogando-se a sentença nesta parte, que no demais se mantém.
*
Sem custas.
Notifique.
D. N.
*
(Documento exarado com recurso a processador de texto, lido e revisto pela signatária, que o elaborou, nos termos do disposto no art. 94.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, sendo datado e assinado eletronicamente no canto superior esquerdo, na primeira página).


[1] Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, pág.286