Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2984/18.3T8GMR.G1
Relator: PEDRO DAMIÃO E CUNHA
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
SUSTENTO MINIMAMENTE CONDIGNO
SUBSÍDIOS DE FÉRIAS E DE NATAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/17/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (elaborado pelo relator):

“Por força da submissão ao instituto da exoneração do passivo restante aquilo a que o devedor tem direito é apenas a um montante que lhe proporcione um sustento minimamente condigno; e, não sendo os subsídios de férias e de natal imprescindíveis para o sustento minimamente condigno da apelante, têm que ser incluídos no rendimento a disponibilizar ao fiduciário para os fins da insolvência.”
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães.

I. RELATÓRIO.
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R.R., insolvente nos presentes autos, veio requerer a exoneração do passivo restante.
Cumprido o formalismo legal previsto no CIRE, foi proferida decisão a declarar a Requerente em estado de insolvência.
A Administradora de Insolvência pronunciou-se no sentido de nada ter a opor, desde que verificados os requisitos legais.
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O Tribunal Recorrido, na sequência, pronunciou-se no seguinte sentido, tendo em conta a factualidade e os meios de prova juntos aos autos:

“ (…) Para a fixação do montante disponível, atendendo às atuais condições económicas da insolvente e ao facto de não ter a seu cargo, além da renda quaisquer outros encargos, mas atendendo ao facto de ser diabética e dever ter cuidado com a alimentação e efectuar desporto, este Tribunal entende como adequado fixar em um salário mínimo, acrescido de 1/5, o montante que a insolvente poderá dispor. (atendendo a que o Tribunal usualmente fixa apenas um salário mínimo por pessoa maior de idade acrescido de ¼ por cada filho menor. Neste caso atendeu-se às questões de saúde, devendo no restante: seguros, vestuário, despesas de telecomunicação, a insolvente adequar ao seu estado de insolvência e ao regime de prova dos 5 anos que se iniciarão).

(…)
Todo o rendimento excedente, que lhe advenha por qualquer forma e no qual obviamente se incluem os subsídios de natal e férias, deverão ser cedidos, a fim de se evitar a inutilidade superveniente deste incidente, que pressupõe a boa vontade da insolvente em contribuir voluntariamente para o abatimento da divida, ainda que numa parcela diminuta (…) ”.

(Nota: estas decisões surgem na decisão proferida na sua fundamentação e não na parte em que se devia ter concluído com a decisão final – não se mostrando convenientemente cumprido o disposto no art. 607º, nº 2 e 3 do CPC).
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É justamente desta decisão que a Recorrente veio interpor o presente Recurso, concluindo as suas alegações da seguinte forma:

1. Em requerimento de 06/09/2018, com a referência 30018751, a Recorrente juntou aos autos comprovativos das suas despesas, reputando como necessário para fixação do montante disponível o valor mensal equivalente, pelo menos, a um salário mínimo nacional acrescido de metade.
2. Isto porque a Recorrente sofre de doença que requer alimentação especial, medicação e prática regular de exercício físico, além de o seu agregado familiar ser composto por apenas pela Recorrente, que não tem com quem partilhar despesas como a renda da habitação, telecomunicações, água, gás e electricidade, sendo certo que as despesas apresentadas estão já reduzidas ao seu mínimo essencial, pelo que não é suficiente para que a Recorrente viva com dignidade o montante disponível fixado pelo Tribunal a quo de um salário mínimo nacional acrescido de .
3. “Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional.” (artigo 239º, nº 3, alínea b), subalínea i), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas,)
4. Nenhuma das despesas apresentadas pela Recorrente pode ser caracterizada como desnecessária, sendo todas essenciais ao seu sustento minimamente digno, não sendo, com certeza, o Tribunal ad quem alheio à realidade de que um salário mínimo, mesmo acrescido de , não é suficiente para uma pessoa, sozinha, viver uma vida condigna.
5. Actualmente, um salário mínimo, acrescido de , é apenas de € 696,00. A renda que a Recorrente paga mensalmente pela sua habitação (€ 330,00) corresponde a quase metade deste montante disponível, pelo que, para todas as outras suas despesas, sejam elas relacionadas com a sua saúde, serviços essenciais como electricidade, gás e água, ou algo tão básico como a sua alimentação, sobrar-lhe-ão apenas € 366,00, valor este patentemente insuficiente.
6. “Quanto ao valor mínimo que se deve considerar como mínimo garantido, o mesmo resultará das necessidades que em concreto o Insolvente apresentar” (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12/03/2013, Proc. nº 1254/12.5TBLRA-F.C1, disponível in www.dgsi.pt) e “O rendimento indisponível para efeitos de exoneração do passivo restante (art.º 239.º n.º 3 al. b) do CIRE) há-de fixar-se através da ponderação das concretas circunstâncias do caso, alcançando, no âmbito dos parâmetros legalmente estabelecidos, o montante razoavelmente necessário para fazer face ao sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não descurando a finalidade do processo de insolvência no sentido da satisfação dos credores.” (Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 20/10/2016, Proc. nº 2419/16.6T8STB-E.E1, disponível in www.dgsi.pt).
7. Assim, ponderando-se as concretas circunstâncias do caso, o montante disponível adequado será o valor mensal equivalente a um salário mínimo nacional, acrescido de ½, tal como inicialmente requerido.
8. No que diz respeito aos subsídios de férias e de natal, que o Tribunal a quo decretou serem rendimento excedente que terá de ser cedido na parte que ultrapassar o montante disponível, diz o Professor João Leal Amado o seguinte:

“ (...) mais do que como um simples período de inactividade, as férias são hoje concebidas como um factor de equilíbrio biopsíquico do trabalhador, implicando um «corte com a rotina», uma ruptura drástica com o quotidiano laboral e extralaboral, o que redunda, mais ou menos inevitavelmente , num acréscimo de despesas para o trabalhador e respectiva família (deslocação, alojamento, etc.).
Em ordem a possibilitar que o trabalhador enfrente este previsível aumento de gastos, o nº 2 deste preceito determina que, além da retribuição de férias prevista no nº 1, o trabalhador terá outrossim direito a auferir um subsídio de férias.” (in Contrato de Trabalho, 3ª edição, p. 288).
9. Sendo, por isso, o subsídio de férias elemento essencial do regime jurídico das férias e do direito ao repouso e ao lazer, devido ao “ (...) o elevado calibre dos valores envolvidos na matéria das férias (direito ao repouso e aos lazeres, recomposição das energias físicas e psíquicas despendidas ao longo do ano, salvaguarda de um espaço temporal alargado de autodisponibilidade pessoal do trabalhador, etc.) ” (in Contrato de Trabalho, 3ª edição, p. 293); do mesmo modo, é também essencial - e, por isso, imprescindível - o subsídio de natal, que ajuda a fazer frente a uma época de gastos igualmente acrescidos, em que o trabalhador é encorajado a descomprimir do trabalho e a celebrar a época festiva com família e amigos.
10. Assim, ao ter de entregar na totalidade os seus subsídios de férias e de natal, será posto em causa o pleno exercício do direito da Recorrente a repouso e aos lazeres, uma vez que ficará privada de parte essencial para a reposição do seu equilíbrio biopsíquico. Pelo que, para que não haja subversão da finalidade dos subsídios de férias e de natal, deverá ser estabelecido que, quanto a estes subsídios, o montante a ceder não poderá exceder ½ do seu valor.
Termos em que o douto despacho recorrido deve ser substituído por outro que fixe em um salário mínimo, acrescido de ½, o montante que a Recorrente poderá dispor e que limite o montante a ceder dos subsídios de férias e de natal a ½. “
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do(s) recorrente(s), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.
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No seguimento desta orientação, a Recorrente, coloca a(s) seguinte(s) questão(ões) que importa apreciar:

1. Saber se o valor fixado à insolvente, em termos de rendimento disponível, cumpre os requisitos previstos na alínea b) do n.º 3 do artigo 239.º do CIRE.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
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O Tribunal de Primeira Instância considerou provados os seguintes factos:

“Compulsados os autos resulta provado dos elementos juntos que:

1. A Requerente é assistente técnica no Centro Hospitalar X e aufere a remuneração mensal líquida de € 941,44;
2. Por manifesta falta de liquidez, derivada da crise económica e do seu recente divórcio, a Requerente entrou em incumprimento junto das instituições bancárias Banco A, S.A, e Banco B, S.A., e de particulares;
3. A Requerente vive sozinha e paga mensalmente de renda € 330,00;
4. A Requerente apresenta um passivo global superior a € 87 948,88.
5. Apresentou ao Tribunal as seguintes despesas fixas mensais:
Habitação: € 330,00;
Telecomunicações: € 38,37;
Água: € 24,17;
Gás e Electricidade: € 52,17;
Alimentação, vestuário, calçado, seguros, etc.
Saúde (a insolvente é diabética): € 51,00 (Doc. 9 - Despesas Dedutíveis);
Ginásio: € 20,00
6. A requerente apresentou-se à insolvência;
7. À requerente não lhe são conhecidos antecedentes criminais”.
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B)- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Como supra se referiu, a questão que importa apreciar e decidir consiste em saber se o valor fixado à insolvente, em termos de rendimento disponível, foi fixado de uma forma adequada, tendo em conta os requisitos previstos na alínea b) do nº 3 do artigo 239.º do CIRE.

Importa, pois, fazer essa ponderação.

Como é sabido, tendo por pressuposto a incapacidade económico-financeira para cumprir as suas obrigações, o processo de insolvência destina-se a liquidar o património do devedor e repartir o produto obtido pelos diversos credores: art. 1º do CIRE.
Sobre o conceito de massa insolvente, colhe-se do art. 46º nº 1 do CIRE que ela “abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo”.

Porque estamos no domínio de situações de cariz económico, no âmbito da insolvência, o conceito de património do devedor deve ser entendido como formado pelo conjunto de todos os bens (materiais e imateriais) de que ele é proprietário e que sejam susceptíveis de avaliação pecuniária, bem como dos direitos de crédito e outros de conteúdo patrimonial.

Ora, nos casos em que o produto dessa liquidação do património não é suficiente para o cumprimento integral das obrigações do devedor, nem por isso os credores vêem definitivamente cerceado o seu direito.

Na verdade, em caso de regresso de melhor fortuna, os credores podem sempre accionar os Insolventes pois estes sempre estarão vinculados até ao limite do prazo ordinário de prescrição de 20 anos (art. 309º, do CC), o que pode inviabilizar a reabilitação económica das pessoas.

O instituto da exoneração do passivo restante vem responder a essa questão, possibilitando um recomeçar de novo, “fresh restart”, na medida em que o devedor insolvente se vê livre dos débitos que não foram pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento.

Verificados os requisitos, e tendo-lhes sido deferido o pedido, determina-se que durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (o dito período da cessão), o rendimento disponível que o devedor venha a auferir deverá ser entregue ao fiduciário, que o distribuirá pelos credores: art. 239º nº 2 e 241º do CIRE.
No final desse período da cessão, mesmo aqueles créditos que não lograram pagamento no processo de insolvência se consideram extintos: art. 245º CIRE.

No caso concreto, o que se questiona é justamente o valor fixado pelo Tribunal recorrido em sede de rendimento disponível, que a decisão aqui posta em crise entendeu dever fixar-se no valor do salário mínimo acrescido de 1/5 desse valor (696 € - seiscentos noventa e seis euros) - em termos de valor excluído do rendimento disponível da Insolvente.

Vejamos, então, se a decisão do Tribunal de Primeira Instância ponderou de uma forma adequada o valor do rendimento disponível da Insolvente, tendo em conta os critérios legais que devem ser atendidos nessa valoração.

Preceitua o art. 239º do CIRE que, não havendo motivo para indeferimento liminar, é proferido o despacho inicial (n.º 1), sendo que nesse despacho inicial se determina que, “…durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, (…) o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade (…) designada por fiduciário, escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência, nos termos e para os efeitos do artigo seguinte (nº 2).

Finalmente, no nº 3 estabelece-se, que “integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão:

a) Dos créditos a que se refere o artigo 115º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz;
b) Do que seja razoavelmente necessário para:

i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;
ii) O exercício pelo devedor da sua actividade profissional;
iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.»

Assim, da citada subalínea i) resulta que a exclusão do rendimento disponível tem como limite mínimo o que for razoavelmente necessário para garantir e salvaguardar o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar e como limite máximo o valor equivalente ao triplo do salário mínimo nacional, o qual só pode ser excedido em casos excepcionais, devidamente fundamentados.

A determinação do que é o valor necessário ao sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar é uma operação que assenta em múltiplos factores, alguns de índole subjectiva. O próprio conceito de existência minimamente condigna é vago, fluido e carece de concretização. Assim, se tem decidido e julgado, cremos que sem discrepância, com argumentos que aqui nos escusamos de repetir mas que adoptamos, por com eles concordarmos, e para os quais remetemos (1).

A Jurisprudência tem, por vias diversas, tentado encontrar um critério que se revele capaz de preencher a vaguidade daquele conceito normativo e facilitar a sua aplicação ajustada e equilibrada a cada situação concreta.

Nessa tarefa, desde logo e com frequência, tem-se entendido que o “sustento minimamente digno” convoca a ideia de “dignidade da pessoa humana” consagrada, entre outros afloramentos, nos arts. 1º, 2º, 13º, 59º, nº 1, e 67º, nº 1, da nossa CRP (Constituição da República Portuguesa) normas que esta, relativamente a direitos fundamentais, manda interpretar e integrar de harmonia com a DUDH (Declaração Universal dos Direitos Humanos), em cujo art. 25º se proclama “Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários...”.

Todavia, não pode esquecer-se, neste âmbito, o contraposto interesse dos credores que também merece, como vimos, protecção jurídica.

Há quem entenda que o salário mínimo nacional é o limite que assegura a subsistência com o mínimo de dignidade (2) e, aliás, é desse entendimento, como é sabido, que resulta, em sede da acção executiva, a redacção do nº 2 do art. 824º do CPC, hoje o nº 3 do art. 738º do CPC, imposta pelo Tribunal Constitucional.

Com efeito, no art. 738º do CPC, depois de, no seu nº 1, determinar a impenhorabilidade de dois terços da parte líquida de quaisquer vencimentos, salários … ou prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado, concretiza, no nº 3, em claro paralelo com a norma do regime insolvencial ora em apreço, que tal impenhorabilidade tem como limite máximo o montante equivalente a três salários mínimos nacionais e como limite mínimo, quando o executado não tenha outro rendimento, o montante equivalente a um salário mínimo nacional, não se aplicando, porém, tais limites, conforme prevê o nº 4, quando o crédito exequendo for de alimentos, caso em que tal impenhorabilidade se confina à quantia equivalente à totalidade da pensão social do regime não contributivo.

Apesar de, portanto, o estabelecimento do valor do salário mínimo não obedecer, na sua génese, estritamente às necessidades de sobrevivência do trabalhador nem corresponder, pela sua natureza, à garantia de um mínimo de subsistência (3), é óbvia a força indicativa que, para o efeito, advém de tal referencial.

Neste sentido, afigura-se-nos que deve o salário mínimo nacional funcionar como referência do aqui procurado critério que permitirá aferir em cada caso concreto o que seja “…o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar…”.

Invoca-se aqui, como decorre do exposto, quer a unidade do sistema jurídico, quer a similitude do regime do CPC quanto aos limites de impenhorabilidade em sede de acção executiva, pelo que “…podemos concordar que, independentemente da necessária ponderação casuística, o valor do salário mínimo nacional como limite mínimo de exclusão poderá constituir um ponto de partida razoável para as decisões…” (4).

Aqui chegados, e tendo presente este ponto de partida, na concretização do citério legal - “do sustento minimamente digno” – vem-se entendendo que necessariamente se tem que atender “às condições pessoais e de vida do insolvente e do seu agregado (…), designadamente a sua idade, situação profissional, estado de saúde, rendimentos, composição do seu agregado familiar, encargos essenciais com o seu sustento, habitação, vestuário e despesas de saúde” (5).

Contudo, e naturalmente, tal não significa que o devedor deva manter “o nível de vida que tinha anteriormente, antes pode/deve mesmo baixá-lo, ainda que tendo sempre como limite o quantum necessário para a salvaguarda de uma existência condigna” (6).

Prosseguindo, e tendo em conta que a lei fixou um tendencial limite máximo equivalente a três salários mínimos nacionais (de que, porém, o juiz se pode afastar, desde que o fundamente de forma especial), dir-se-á que - na ausência de prova da existência de despesas ou encargos extraordinários - o limite mínimo deverá coincidir com um salário mínimo nacional.

Precisa-se, porém, que um salário mínimo nacional que constitua o limite inferior para o “sustento minimamente digno” deverá, naturalmente, ser considerado, não só relativamente ao insolvente, como igualmente quanto a cada um dos elementos que componham o seu agregado familiar e que estejam inteiramente a seu cargo.

Aqui chegados, e dentro destas considerações, importa, pois, reverter para o caso concreto, e verificar se, conforme pretende a Recorrente, não deverá o montante fixado nos presentes autos ser alterado para o valor do Salario Mínimo Nacional acrescido de metade do seu valor, ou seja, em vez do montante de 696 € (seiscentos noventa e seis euros) fixado pelo Tribunal Recorrido, se não deve antes tal montante fixar-se em 870 € (oitocentos e setenta euros) - avançando-se, desde já, que os rendimentos da Recorrente atingem o montante mensal líquido de € 941,44 decorrente do exercício da profissão de assistente técnica no Centro Hospitalar X.

Apurou-se também que:

-. A Requerente vive sozinha e paga mensalmente de renda € 330,00;
- Apresenta um passivo global superior a € 87 948,88.
Tem as seguintes despesas fixas mensais:
Habitação: € 330,00;
Telecomunicações: € 38,37;
Água: € 24,17;
Gás e Electricidade: € 52,17;
Alimentação, vestuário, calçado, seguros, etc.
Saúde (a insolvente é diabética): € 51,00 (Doc. 9 - Despesas Dedutíveis);
Ginásio: € 20,00
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Sendo estes os factos objectivamente apurados, não se pode ainda deixar de atender a que a Insolvente, além de ter as despesas mensais habituais que qualquer pessoa tem, apresenta um acréscimo de despesas relativas à doença de que padece (diabetes) que, na sua própria alegação, lhe impõe um acréscimo mensal objectivo de cerca de 70 € (despesas de saúde e ginásio), admitindo-se ainda que, em função dessa sua condição, a alimentação possa implicar um acréscimo de despesas (ainda que não significativo), já que, como é do conhecimento geral, a diabetes o que impõe é que essa alimentação seja efectuada de uma forma regrada, por forma a manter os níveis de glicose no sangue e manter um peso adequado.

Assim, se é certo que faz parte do tratamento das pessoas com diabetes a alimentação saudável e equilibrada (em conjunto com a actividade física e a medicação - antidiabéticos orais ou insulina) - pois que os objectivos principais daquele tratamento são obter um bom controlo da glicemia, colesterol, triglicéridos, pressão arterial e atingir e manter um peso saudável, de forma a prevenir o aparecimento das complicações da diabetes –, a verdade é que a alimentação da pessoa com diabetes deve basear-se numa alimentação saudável, que não deverá diferir grandemente da alimentação recomendada para a população em geral, assentando nos princípios do padrão alimentar mediterrânico.

Nessa medida, embora a alimentação saudável para uma pessoa com diabetes faça parte do seu tratamento, “na verdade não difere muito da alimentação que qualquer pessoa deve fazer” - como se refere no sítio da Associação Protectora dos Diabéticos de Portugal (APDP), disponível na internet.

Ora, tudo visto e ponderado, entende-se que o valor fixado pelo Tribunal Recorrido, atento o exposto, se deve manter inalterado, por corresponder aquele que mais adequadamente satisfaz, dentro das circunstâncias do caso concreto, o preenchimento do critério legal correspondente ao valor necessário ao sustento minimamente digno da devedora.

Com efeito, fixando-se o rendimento mensal indisponível da devedora, no montante de um salário mínimo nacional, que em cada momento vigorar (7), acrescido de 1/5 do seu valor, não há dúvidas que se trata de um montante que se entende que assegurará à Recorrente uma existência com o mínimo de dignidade e a satisfação da inalienável obrigação de prover ao seu sustento, tendo em conta os interesses em jogo atrás explicitados.

Na verdade, não se pode esquecer que, por força da submissão do devedor ao instituto da exoneração do passivo restante, aquilo a que Recorrente tem direito é apenas a um montante que lhe proporcione um sustento minimamente condigno – por respeito para com os seus credores.

Este sacrifício imposto à Recorrente tem, no entanto, o reverso (que deve por ela ser aceite e compreendido) que é de a libertar das suas dívidas, decorrido o período de cessão dos rendimentos, permitindo-lhe recomeçar de novo, totalmente desonerada das suas dívidas. Ou seja, trata-se de um sacrifício que lhe é imposto durante aquele período, mas que tem como fim uma causa justa e equilibrada, tendo em conta os interesses em jogo.

Assim, no período da cessão, a insolvente tem também de ter contenção nos seus gastos, o que poderá implicar alguns sacrifícios, pois de outro modo nada sobra para pagar aos credores.

Estaríamos então perante um verdadeiro perdão de dívida, em que os credores ficariam prejudicados e a insolvente continuaria a fazer a sua vida normal, como se nada se tivesse passado (veja-se que se atendêssemos ao valor defendido pela Recorrente, a mesma apenas prescindiria do valor mensal de 71 €, obtendo o benefício final de ficar desonerada do montante global de € 87.948,88 correspondente ao seu passivo).

Por outro lado, a lei não impõe que haja uma correspondência directa entre o valor a retirar do rendimento disponível para garantir o sustento do insolvente e o montante global das despesas por ele indicadas.

Nesta conformidade, exigindo-se sacrifícios ao devedor, como contrapartida à medida da “exoneração do passivo restante”, esses sacrifícios têm de ser efectivos; só há justificação para se aceder a este benefício se houver uma contrapartida meritória, sendo esta constituída pela assunção de uma vida pautada pela privação e poupança possíveis a favor dos credores durante cinco anos.

O sacrifício financeiro dos credores justifica, assim, proporcional sacrifício do insolvente, tendo como limite a respectiva vivência minimamente condigna.

Ora, consideramos que essa vivência minimamente digna se obtém, no caso dos autos, justamente com o montante que o Tribunal Recorrido fixou.

Nada há assim a censurar à decisão recorrida, improcedendo, na totalidade, as conclusões das alegações da Recorrente quanto a este ponto.
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Importa, ainda, que o presente Tribunal se pronuncie sobre a questionada exclusão dos subsídios de férias e de natal, dos rendimentos (in) disponíveis.

Pretende também a Recorrente que sejam excluídos da cessão ao fiduciário, as prestações por si auferidas, a título de subsídio de férias e de natal.

Trata-se de prestações, legalmente consagradas, destinadas aos trabalhadores por conta doutrem (e aos beneficiários de pensões de reforma) que visam proporcionar aos seus titulares um acréscimo de rendimento (equivalente ao valor da retribuição), duas vezes no ano – no período de férias e no natal – a fim de que se usufrua de forma plena esses dois períodos festivos (de férias e de natal).

Visam tais subsídios ser um “plus”, um aumento de rendimento, que vai proporcionar a quem os usufrui - no caso do subsídio de férias -, o seu gozo efectivo, com um melhor aproveitamento do tempo livre sem trabalhar, proporcionando-lhe o descanso merecido no final de um ano de trabalho.

No caso do subsídio de natal, visa o mesmo proporcionar ao seu titular o usufruto pleno da época natalícia, com os inerentes gastos da época em questão.

Trata-se, como se disse, em ambos os casos, de um “extra”, de um acréscimo de rendimento que visa proporcionar ao seu titular um acréscimo de bem-estar, com as inerentes despesas nos períodos de férias e de natal.

Ora, não se pode olvidar que, por força da submissão do devedor ao instituto da exoneração do passivo restante, aquilo a que ele tem direito, como já se referiu, é apenas a um montante que lhe proporcione um sustento minimamente condigno – por respeito para com os seus credores - e os subsídios em causa não são imprescindíveis para o sustento minimamente condigno do requerente, pelo que os mesmos têm que ser incluídos no rendimento a disponibilizar ao fiduciário para os fins da insolvência (8).

Este sacrifício imposto ao devedor, como também já referimos, tem, no entanto, o reverso que é de o libertar das suas dívidas, decorrido esse período, permitindo-lhe recomeçar de novo, totalmente desonerado.

Não está em causa, por outro lado, o direito da Recorrente, enquanto trabalhadora, a gozar férias e a festejar o natal; a questão que se coloca é apenas a imposição de que adeqúe os seus gastos aos seus recursos económicos em função da realidade falimentar em que se encontra.

Nesta medida, não tem a Recorrente razão quando se insurge contra a circunstância de ter sido determinado que o rendimento a disponibilizar ao fiduciário dever abranger a totalidade dos subsídios de férias e natal.

Com efeito, e conforme se referiu, o que a Insolvente/recorrente tem direito neste âmbito (art. 239º do CIRE), é apenas a um montante que lhe proporcione um sustento minimamente condigno, e já se viu que a quantia de um salário mínimo, acrescida de 1/5 do seu valor, a tal título reservada, satisfaz plenamente esse parâmetro.

Uma vez que se pode chegar a essa conclusão, então pode-se também concluir que os subsídios em causa não são necessários para aquele sustento minimamente condigno da Apelante, pelo que, como bem decidiu o Tribunal Recorrido, têm que ser incluídos no rendimento a disponibilizar ao fiduciário para os fins da insolvência.

Na verdade, consideramos que essa vivência minimamente digna se obtém, no caso dos autos, com a disponibilidade de cessão ao fiduciário do rendimento da Recorrente no referido montante, não sendo necessário, para o efeito de assegurar a manutenção do aludido seu sustento minimamente condigno, tornar indisponível também os subsídios de férias e de natal que aquela venha a auferir.
Neste ponto, nada há assim a censurar à decisão recorrida, improcedendo, também, as conclusões das alegações da Recorrente.
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Pelo exposto, conclui-se pela improcedência total do Recurso.
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III- DECISÃO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar totalmente improcedente a apelação, mantendo-se inalterada a decisão do Tribunal de Primeira Instância.
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Custas pela Recorrente/Insolvente.
Notifique.
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Guimarães, 17 de Dezembro de 2018

Pedro Alexandre Damião e Cunha
Maria João Marques Pinto de Matos
José Alberto Moreira Dias


1. A título de exemplo: Acórdão da RP de 15-09-2011 (relator: Leonel Serôdio) e de 24.1.2012 (relator: Rodrigues Pires), da RC de 15-07-2009 (relator: Barateiro Martins), e de 12-03-2013 (relator: Sílvia Pires).
2. Cfr., por exemplo, os citados Acs. da RP de 15.09.2011 (sumário: “Na fixação do valor necessário ao sustento mínimo, excluído da cessão de rendimentos, nos termos do art.º 239.º, n.º 3, b), i) do CIRE, tem de atender-se ao número de membros do agregado familiar dependentes do rendimento do insolvente, devendo considerar-se, para tanto, que o salário mínimo nacional é o limite que assegura a subsistência com o mínimo de dignidade”) e de 24.01.2012 (sumário: “Esse limite, que assegura a subsistência com o mínimo de dignidade, corresponde ao salário mínimo nacional.”).
3. Sobre isso, cfr. Ac. TC nº 177/2002, 306/2005 e 275/2010, disponíveis in www.Tribunalconstitucional.pt.
4. José Gonçalves Ferreira, in “ A exoneração do passivo restante”, pág. 93 que, aliás, defende mais à frente “… que não se deverá nunca por nunca, fixar um quantitativo inferior ao SMN mensal que esteja em vigor…” (pág. 94);
5. Ac. da RL, de 12.12.2013 (relator: Vítor Amaral), in dgsi.pt
6. V. Ac. da RG, de 19.03.2013 (relator: António Santos). No mesmo sentido, Ac. da RC, de 25.03.2014, (relator: Catarina Gonçalves) onde se lê que o “que é razoavelmente necessário terá de ser avaliado em função da situação concreta do devedor e não interessa o que o devedor gasta mensalmente”, já que apenas releva “aquilo que é razoável gastar para prover ao seu sustento com o mínimo de dignidade, já que apenas isso lhe pode e deve ser garantido, dada a situação de insolvência em que se encontra”; ou Ac. da RG, de 08.01.2015, (relator: Manuela Fialho) onde se lê que “o devedor não pode almejar, após insolvência, ter um padrão de vida equivalente àquele de que já dispôs”; ou ainda Ac. da RG, de 15.05.2014 (relator: Maria da Purificação Carvalho) e o Ac. da RE de 04.12.2014 (relator: Cristina Cerdeira) da RC de 06.07.2016 (relator: Falcão de Magalhães), todos disponíveis no site Dgsi.pt.
7. Nos termos do art. 2º do Decreto-Lei n.º 156/2017 de 28 de Dezembro “…O valor da retribuição mínima mensal garantida a que se refere o n.º 1 do artigo 273.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, é fixado em (euro) 580”, a partir de 1 de Janeiro de 2018;
8. V. neste sentido, os acórdãos da RG de 14.2.2013 (relator: José Rainho) e de 26.11.2015 (relator: Amália Santos), 25.5.2016 (relator: Fernando Fernandes Freitas) e de 12.7.2016 (Francisca Micaela) in dgsi.pt.