Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2009/08.7TBFAF-D.G1
Relator: MARGARIDA SOUSA
Descritores: DOCUMENTO
ADMISSIBILIDADE DA JUNÇÃO
APRECIAÇÃO DOS DOCUMENTOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/23/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Verificados os requisitos de admissibilidade dos documentos - não serem os mesmos impertinentes ou desnecessários para a decisão da causa -, tem de aceitar-se a sua junção aos autos, independentemente de qualquer juízo sobre a sua aptidão para demonstrar o facto ou os factos cuja prova visam;

II - Subjacente a esta regra está a noção de que essa aptidão pode não ser imediatamente percetível e só deve ser avaliada na fase de formação da convicção sobre a matéria de facto.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO:

Inconformados com o despacho que não admitiu a junção aos autos de um documento no decurso da audiência de julgamento, os Executados/Opoentes interpuseram o presente recurso, em cuja alegação formularam as seguintes conclusões:

1. Ao abrigo do disposto no art.º 644.º, n.º 2, al. d), do NCPC, vem o presente recurso interposto do douto despacho de 23/01/2017, proferido na audiência de discussão e julgamento, que indeferiu a junção de um documento pelos Opoentes;
2. O Oponido afirmou, em depoimento de parte, que a letra de câmbio oferecida à execução lhe foi entregue pelo Opoente FJ, estando assinada por ele e pela Opoente JG e estando preenchida nos espaços reservados à data de vencimento, ao valor e data de emissão, tendo ele [Oponido] preenchido todos os demais dizeres apostos na letra, designadamente, "a parte de baixo da letra», "o nome e morada deles», isto é, o nome e a morada do sacado, sempre tendo inscrito o valor de €84.400,00;
3. Acto contínuo, os Opoentes requereram, ao abrigo do art. º 523.º, n.º 2 do CPC1961, aplicável por força do disposto no art.º 6.º, n.º 4 da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, a junção aos Autos de fotocópia da letra de câmbio oferecida à execução, junta a fls. 38 dos Autos principais, com o n.º 50079288704688…, com o valor aposto em algarismos de €24.400,00, estando assinada nos locais do aceite e do sacador, e preenchida nos locais destinados ao local e data de emissão, vencimento, importância em algarismos, nome e morada do sacador, número de identificação bancária, número de contribuinte do sacado e nome e morada do sacado;
4. Como tal, o documento cuja junção foi requerida contraria cabalmente o depoimento de parte prestado pelo Oponido, mormente, na parte em que afirmou que a letra lhe foi entregue com o valor de €84. 400, 00, tendo depois preenchido, entre outros espaços, "a parte de baixo da letra», "o nome e morada deles», isto é, o nome e a morada dos aceitantes.
5. Tal documento, atento o seu teor, reveste pertinência e interesse para a boa decisão da causa, designadamente, dos quesitos 1.º, 2.º e 3.º da Base Instrutória, na medida em que é demonstrativo de que, quando os aceitantes e o sacador assinaram a letra de câmbio oferecida à execução, e quando o Oponido preencheu o nome e morada dos aceitantes e, designadamente, a entidade bancária, aquela tinha de facto o valor, em numerário, de €24.400,00 e não €84.400,00;
6. Mais indicia fortemente, no confronto com o depoimento do Oponido, que este, na posse da letra de câmbio com os dizeres apostos pelo Opoentes FJ (data de vencimento, ao valor e data de emissão), foi o autor da adulteração do algarismo “2” para o algarismo "8”;
7. Perante a afirmação do Oponido de que a letra lhe foi entregue pelo Opoente FJ nos termos supra descritos na conclusão 2.ª, a fotocopia da letra oferecida à execução tem necessariamente de ter sido efectuada depois de o Oponido manuscrever, pelo seu punho o nome e morada dos sacados, a entidade bancária e o número de contribuinte do sacado.
a. A relevância do documento cuja junção foi requerida pelos Opoentes sempre se justificaria em face das conclusões do relatório pericial;
9. E também em face do douto acórdão proferido nos Autos de Processo Comum (Tribunal Singular) n.º 510/12.7TAFAF, que correu termos pela Instância Local, Secção Criminal de Fafe, na medida em que tem o condão de solucionar a dúvida sobre o momento da adulteração do algarismo "2n para "an e, consequentemente, o respectivo autor;
10. Mesmo por si só considerado, o documento cuja junção foi requerida pelos Opoentes sempre permite concluir que a letra de câmbio oferecida à execução foi fotocopiada depois da intervenção do Opoente FJ e do Oponido (que nela manuscreveram dizeres distintos), o que afasta a hipótese de a alteração do "2” para "8" ter resultado de mero lapso ou ter sido efectuada com o acordo de Opoentes e Oponido.
11. Ao indeferir a junção com fundamento na impertinência do documento, o Tribunal a quo violou as disposições conjugadas dos art. os 523.º, n.º 2 e 265.º, n.º 3, ambos do CPC1961, aplicáveis por força do disposto no art.º 6.º, n.º 4 da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho.
Concluíram requerendo a revogação do despacho recorrido e a admissão da junção do documento requerida pelos Opoentes na audiência de julgamento de 23/01/2017, com as legais consequências.
O Recorrido não contra-alegou.
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II. OBJETO DO RECURSO:

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal.
No caso vertente, a única questão a decidir que releva das conclusões do recurso consiste em saber se o documento cuja junção foi requerida é ou não impertinente/desnecessário para a decisão da causa.
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III. FUNDAMENTOS:

Os factos

1. Na sequência das declarações prestadas pelo Exequente/Oponido, os Opoentes formularam o seguinte requerimento:
Em face da descrição dos factos agora narrados pelo exequente JF, que refere que a letra de câmbio oferecida à execução teve sempre o valor de 84.000 Euros e que quando lhe foi entregue estavam já preenchidos os campos relativos ao vencimento, valor e emissão, tendo exequente preenchido o demais, os embargantes requerem a V.ª Exc.ª ao abrigo do art.º 523º n.º 2 do C.P.C. de pretérito, aplicável por força do disposto no art.º 6º n.º 4 da Lei 41/2013, a junção aos autos de uma fotocópia da letra oferecida à execução antes de ser entregue ao exequente e antes de este preencher os dizeres que não foram apostos pelos executados, a qual tem como importância a quantia de 24.400 Euros.
Este documento só muito recentemente e já depois do processo crime que correu termos no Tribunal Judicial de Fafe, veio a ser localizado pelos executados e daí que só neste momento procedo à junção nos presentes autos, sem prejuízo de ser também sua intenção proceder à sua junção nos autos de processo crime supramencionados com vista a eventual recurso de revisão.
Entendem os executados, salvo o devido respeito por melhor opinião que tal documento reveste interesse para a boa decisão da causa, na medida em que permite concluir que a letra de câmbio oferecida à execução, depois de assinada pelos executados e antes de ser entregue ao exequente tinha efectivamente o valor, em algarismos de 24.400 Euros.
Pede deferimento.
2. É o seguinte o teor do despacho recorrido que sobre tal pretensão recaiu:
Do documento que agora se pretende juntar não consta a data em que o mesmo foi alegadamente fotocopiado, sendo certo que resulta já dos autos à saciedade que a letra dada à execução foi adulterada quanto ao quantitativo numérico e (o) que se visa apurar é se essa adulteração resulta da actuação do exequente para o que o documento agora apresentado em nada contribui.
Pelo exposto, por se revelar irrelevante para a boa decisão da causa, indefiro a sua junção aos autos.
3. A Base Instrutória contém as seguintes questões de facto:

"1. Na altura em que os executados entregaram a Letra de câmbio dada à execução assinada pelos mesmos nos termos referidos em C) à sociedade JF, Unipessoal., encontrava-se aposta, no Local destinado à inscrição do respectivo valor em numerário, a quantia de €24.400,00?"
"2. Após o referido em 1.º, o Exequente escreveu, pelo seu próprio punho, o algarismo 8 sobre o algarismo 2 constante do Local da Letra de câmbio destinado à inscrição do respectiva valor em numerário, de forma a passar a constar da mesma o montante de €84.400,00?
"3. Após, o exequente preencheu, pelo seu próprio punho ou por alguém a seu mando, a Letra de câmbio em todos os demais espaços referidos em D)?”
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- Da subsunção jurídica dos factos

Averiguemos, agora, se merece censura o juízo sobre a impertinência/desnecessidade do documento fundamentador da recusa da sua junção.
Nos termos do artigo 543º, nº 1, do Código de Processo Civil, aplicável aos presentes autos por força do disposto no art. 6.º, n.º 4, da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, apresentados os documentos e assegurado o contraditório, o juiz, se não tiver ordenado a junção e verificar que os documentos são impertinentes ou desnecessários, não os admitirá no processo, recusando a sua junção ou mandando retirá-los do mesmo se tiverem sido juntos, e ordenará a sua entrega ao apresentante.
Ao juiz é, pois, atribuído o poder de recusar ou mandar retirar do processo os documentos impertinentes ou desnecessários, evitando que o processo se transforme, como refere Alberto dos Reis, numa espécie de “barril de lixo” (In Código Processo Civil Anotado, IV, pág. 58).
São desnecessários os documentos que digam respeito a factos da causa já assentes, ou seja, relativos a factos da causa, mas que não importa apurar para o julgamento da ação, sendo impertinentes os documentos relativos a factos cuja prova seja irrelevante para a sorte desta.
O que importa, pois, para aferir da apontada admissibilidade, é averiguar se o facto que se indica como aquele que se pretende provar com o documento está já assente ou se é totalmente estranho à matéria que se discute na ação.
O enfoque deve, pois, estar nos factos e na relação dos documentos com os factos e não no valor probatório intrínseco dos documentos.
Como se escreveu no Acórdão da Relação de Lisboa de 27.04.2006:
“O juízo acerca da força probatória dos documentos não deve nem pode ser feito no momento em que se decide sobre a admissibilidade da sua junção ao processo. Nesse momento relevam apenas a oportunidade da sua apresentação e que os mesmos não se mostrem impertinentes ou desnecessários, à luz do disposto nos artigos 523º e 543º do Código de Processo Civil. E, verificados esses requisitos de admissibilidade dos documentos, tem de aceitar-se a sua junção aos autos, independentemente de qualquer juízo sobre a sua aptidão para demonstrar o facto ou os factos cuja prova visam.
O valor probatório dos documentos é apreciado numa fase processual posterior, quando se procede ao julgamento da matéria de facto, altura em que o juiz aprecia livremente todas as provas no seu conjunto e decide segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto (artigos 655º do Código de Processo Civil). Qualquer juízo antecipado sobre a força probatória dos documentos (ou outros meios de prova) é prematuro.”
E, se bem pensarmos, este é o único método que acautela a hipótese de, só depois de produzidos e devidamente concatenados todos os meios de prova, à luz das máximas da experiência e da lógica, se vir a surpreender o valor probatório - que pode ser indiciário e não direto - do documento cuja junção foi requerida.
No âmbito da Oposição à Execução ora em causa, os Opoentes, face às declarações prestadas pelo Exequente/Opoente, apresentaram uma fotocópia da letra dada à execução, parcialmente preenchida e com teor diverso daquele que a letra atualmente apresenta, pretendendo, com a sua junção, provar que “a letra de câmbio oferecida à execução, depois de assinada pelos executados e antes de ser entregue ao exequente tinha efectivamente o valor, em algarismos de 24.400 Euros”.
A julgadora, perante o documento, considerou que o mesmo era irrelevante para a boa decisão da causa porquanto, no seu entender, o mesmo em nada contribuiria para apurar se a adulteração da letra dada à execução resulta da atuação do exequente.
Este documento está inequivocamente relacionado com os três factos incluídos na base instrutória acima elencados e para os quais remete o que os Oponentes referiram (numa formulação não muito feliz, é certo) ao requererem a sua junção, factos esses que, como resulta do próprio despacho, onde se diz que o “que se visa apurar é se essa adulteração resulta da actuação do exequente”, ainda se encontravam carentes de prova.
Assim sendo, não podia indeferir-se a requerida junção com fundamento em que o documento apresentado pelos Opoentes em nada contribuía para o apuramento da autoria da adulteração da letra, porque tal contende já com a apreciação do valor probatório do aludido documento, juízo que só numa fase ulterior podia ser formulado.
Deve, aliás, dizer-se que, se de tal dependesse a junção de um documento aos autos, na formulação de um juízo antecipado sobre o respetivo valor probatório sempre seria de ter presente que, como já se frisou, um documento pode não provar por si só o facto controvertido, nem integrar uma prova direta do mesmo, mas servir como um dos elementos de prova à base factual de uma presunção a ele conducente, não, sendo, por isso, determinante da exclusão da sua relevância para prova da autoria da adulteração da letra o facto de no documento apresentado não constar a data “em que o mesmo foi alegadamente fotocopiado”, por não ser essa a única forma de se alcançar o momento em que tal sucedeu (nomeadamente, mediante o confronto com as declarações prestadas pelo Exequente/Oponido em sede de audiência de julgamento) e, por essa via, eventualmente, quem produziu tal alteração.
Em suma, visando a junção do documento em apreço demonstrar factos controvertidos incluídos na base instrutória e, por conseguinte, considerados relevantes para a boa decisão da causa segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito (artigo 511º, nº 1, do Código de Processo Civil), não podia a julgadora rejeitar a sua junção com o fundamento invocado.
Face ao exposto, procedem as conclusões da apelação, devendo, nessa medida, revogar-se o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que admita nos autos o documento em causa.
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Sumário:

I - Verificados os requisitos de admissibilidade dos documentos - não serem os mesmos impertinentes ou desnecessários para a decisão da causa -, tem de aceitar-se a sua junção aos autos, independentemente de qualquer juízo sobre a sua aptidão para demonstrar o facto ou os factos cuja prova visam;
II - Subjacente a esta regra está a noção de que essa aptidão pode não ser imediatamente percetível e só deve ser avaliada na fase de formação da convicção sobre a matéria de facto.

IV. DECISÃO:

Pelo exposto, julga-se procedente a apelação e, em consequência, revoga-se o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que admita nos autos o documento em causa.
Custas pelo Recorrido.
Guimarães, 23.11.2017

Relator
1º Adjunto
2º Adjunto