Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3676/19.1T8GMR.G1
Relator: EVA ALMEIDA
Descritores: INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
NOVA PETIÇÃO
ABUSO DE DIREITO
RECONHECIMENTO IMPEDITIVO DA CADUCIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/15/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- A doutrina e a jurisprudência consideram que a absolvição da instância por vício de ineptidão da Petição Inicial é imputável ao autor (titular do direito), impedindo-o de beneficiar do prazo previsto no art.º 327º n.º 2 ex vi art.º 332º n.º 1, ambos do Código Civil.
II- Contudo, quando a conduta negocial do réu, pela forma como engendrou o negócio, para benefício próprio, nomeadamente, induzindo o autor em erro quanto à intervenção de uma sociedade que deteria com o 2º réu e indicando a conta bancária deste para depósito de parte do preço, contribuiu manifestamente para tal absolvição da instância, entendemos que esta não é apenas imputável ao autor, titular do direito, que assim poderia aproveitar do referido prazo.
III- Por outro lado, mesmo que assim não fosse, face à conduta negocial e processual do 1º réu, que não cumpriu as obrigações decorrentes do princípio da boa fé negocial (arts. 227º e 762º n.º 2 do CC), nem da boa fé processual (arts. 8º e 542º do CPC), está-lhe vedado neste caso invocar a exceção da caducidade, por traduzir um manifesto abuso de direito (art.º 334º do CC).
IV- Acrescendo que, tendo o réu reconhecido a existência dos defeitos e o direito do autor resolver o negócio (“cancelamento do negócio”, nas palavras do réu), esse reconhecimento impede a caducidade.
V- Pois, tratando-se de um prazo de caducidade relativo a direito disponível, o reconhecimento do direito por parte daquele contra quem deva ser exercido, não tem por efeito interromper-se o prazo em curso, iniciando-se um novo prazo, como sucede na prescrição, mas sim, o de impedir definitivamente a caducidade.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I – RELATÓRIO

T. F. instaurou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra J. S. e P. F., pedindo, que seja declarado anulado o contrato de compra e venda celebrado entre autor e réus e, consequentemente, serem os réus condenados solidariamente na restituição ao autor do montante de €9.000,00 (nove mil euros), bem como, solidariamente, a indemnizarem o autor em montante nunca inferior a €4.000,00 (quatro mil euros), ou, caso assim não se entenda, ser o 2.º réu condenado a restituir ao autor a quantia de €9.000,00 (nove mil euros) bem como a indemnizar o autor em montante nunca inferior a €4.000,00 (quatro mil euros).

Para tanto alegou, em suma, que necessitava de um veículo automóvel e tendo sido informado de que o 1.º réu importava veículos directamente, o que ficava mais barato, recorreu aos seus serviços em Novembro de 2016. Depois de encontrar um veículo, que o 1º réu lhe garantiu estar em óptimas condições, o autor aceitou pagar por ele a quantia de €12.500, adiantando a quantia de €9.000 para que o 1.º réu o fosse buscar ao estrangeiro. O 1.º réu havia-lhe exigido a entrega dessa quantia em numerário, mas como o autor se negou a fazê-lo, o 1º réu forneceu-lhe o IBAN do 2.º réu, que identificou como seu sócio, a fim de o autor transferir a referida quantia para a respectiva conta, o que fez em Fevereiro de 2017.
Aquando da entrega do veículo, o autor verificou que o mesmo não apresentava as condições acordadas, pois estava amolgado e com os interiores degradados. Uma vez que não foi possível repará-lo convenientemente, autor e 1º réu acordaram dar sem efeito o negócio. Contudo os réus recusam-se a devolver-lhe a quantia que transferiu para a conta do 2º réu, que é quem agora circula com o veículo. Por seu turno o autor ficou sem o veículo e sem o dinheiro, tendo de recorrer a empréstimo de terceiros para poder adquirir um veículo.
Subsidiariamente invoca o enriquecimento sem causa porquanto o montante de €9.000,00 saiu do seu património, que assim se viu empobrecido, enriquecendo nessa exacta medida o património do 2º réu, em cuja conta bancária deu entrada.
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Os réus contestaram, arguindo a nulidade de todo o processado por ineptidão da P.I. e excepcionando o caso julgado, relativamente ao 2.º réu, que já tinha sido absolvido da instância numa outra acção, não tendo sido alegados outros factos.
Mais alegam, que, relativamente ao 1.º réu, também não se verificam os pressupostos da anulabilidade por erro e que, de qualquer forma já decorreu o prazo para propor a pertinente acção.
Por último, impugnam a factualidade alegada na P.I., sustentando que o 1.º réu, como combinado, propôs-se entregar ao autor um veículo com as condições pretendidas, mas que este se arrependeu, tendo recusado receber a viatura e a entregar o complemento do valor correspondente à totalidade do preço do veículo, que se cifrou em €12.750,00.
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O autor respondeu à matéria das excepções.
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Realizada audiência prévia, foi proferido despacho saneador, em que se decidiu pela validade da instância e do processado, julgando-se improcedentes as invocadas excepções dilatórias. Identificou-se o objecto do litígio e elencaram-se os temas da prova.
Foi junta aos autos a informação de que o veículo se encontra registado em nome do 2.º réu desde 02-10-2018, com reserva de propriedade a favor do Banco ..., S.A.
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Realizou-se audiência de discussão e julgamento e proferiu-se sentença em que se decidiu:

«Face ao exposto, julgo a presente ação intentada por T. F. parcialmente procedente, por provada, e condeno os Réus J. S. e P. F., solidariamente, na restituição ao Autor do montante de €9.000,00 (nove mil euros).
Condeno ainda o Réu J. S. no pagamento ao Autor T. F., da quantia de € 1.000 (mil Euros).
Custas pelos Réus, que deram causa à ação (artigo 527.º, n.º1 do Código de Processo Civil).»
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Inconformados, os réus interpuseram o presente recurso, que instruíram com as pertinentes alegações, em que formulam as seguintes conclusões:

«PRIMEIRA: Dando-se por reproduzidas as considerações vertidas no corpo destas alegações, e tendo o tribunal de 1ª Instância julgado procedente o pedido formulado a título principal, não poderia ter conhecido e decidido do pedido subsidiário formulado pelo autor.
SEGUNDA: Ainda que assim não fosse, sempre se haveria de constatar que a sentença proferida incorre em manifesta e gritante contradição e erro de raciocínio lógico, que poderá consubstanciar a nulidade da sentença, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 615º do CPC, o que, por dever de patrocínio, se invoca.
TERCEIRA: Isto porque não pode o 1º Réu ser condenado a restituir a quantia de 9.000,00€ que lhe foi entregue pelo autor, ainda que por depósito na conta do 2º Réu; e, ao mesmo tempo, o 2ª Réu ser condenado a restituir os mesmos 9.000,00€ por, afinal, não haver prova de que este valor tivesse saído da sua conta bancária.
QUARTA: Sem prescindir, a verdade é que em nenhum passo da petição inicial se indicia ou se suscita a hipótese do valor depositado pelo autor na conta do 2º réu – a pedido e solicitação do 1º réu – e sem que aquele 2º réu tivesse tido qualquer intervenção no negócio em questão – não ter sido utilizado pelo 1º réu para a aquisição, no estrangeiro, do veículo que este trouxe para o autor; ou se quisermos, que tivesse sido o 2º réu quem tivesse beneficiado ou enriquecido com este quantitativo.
QUINTA: E não se extrai isto, nem na petição inicial que deu origem aos presentes autos, nem na petição inicial que tinha dado origem ao processo que antecedeu a este, conforme decorre da análise daquela petição inicial que os réus juntaram a estes autos com a sua contestação, no qual viria o Tribunal Judicial de Santo Tirso a concluir pela ineptidão da petição inicial.
SEXTA: Pelo contrário, o que resulta alegado pelo autor é que o 1º Réu lhe terá dado o número da conta bancária do 2º Réu para fazer o pagamento (agora sob a forma de adiantamento e não já de sinal) do negócio; que procedeu à transferência bancária dessa quantia para a conta indicada pelo 1º réu e que, após isso, convencionou com o primeiro réu a entrega do veículo, que este 1º réu viria a trazer para a oficina. – sic. artigos 64º a 70º da petição inicial.
SÉTIMA: Mais refere o autor, por diversas vezes, que aquela quantia de 9.000,00€ destinou-se à aquisição do veículo – para ir buscar o carro -, agora sob a forma de adiantamento e antes sob a forma de sinal e que o remanescente do preço seria pago com a entrega do veículo. – sic. artigos 47º e 48º da petição inicial.
OITAVA: Tanto assim que, nos dizeres do autor, acertou com o 1º Réu o cancelamento do negócio e que este se prontificou a restituir tal montante ao autor num prazo máximo de 03 (três dias). – sic. artigos 89º a 92º da petição inicial.
NONA: Logo, não subsistiram dúvidas de que, não obstante ter sido depositada na conta do 2º réu, por indicação do 1º réu, aquele quantitativo destinou-se a este último, tendo sido ele quem se terá locupletado ou enriquecido em tal montante.
DÉCIMA: Pelo que, também por inexistir causa de pedir quanto ao segundo réu também quanto ao pedido subsidiário formulado, deverá reconhecer-se a ineptidão da petição inicial, que expressamente se invoca e se requer venha a ser reconhecida, com o que deverá ser revogada a decisão que, em sede de saneador, julgou não verificada esta exceção.
DÉCIMA PRIMEIRA: Sem prescindir, e como acima se deixou dito, sempre o 2º réu teria de ter sido absolvido do pedido subsidiário que o autor formulou, por não ter ficado demonstrado que o 2º Réu se enriqueceu com qualquer quantitativo pelo simples facto do autor ter depositado o montante de 9.000,00€ numa conta da sua titularidade.
DÉCIMA SEGUNDA: Pelo contrário, o que ficou abundantemente demonstrado da prova testemunhal produzida e das declarações prestadas pelas partes foi que este valor serviu para o 1º réu adquirir o carro no estrangeiro que depois trouxe para Portugal para o entregar ao autor:
DÉCIMA TERCEIRA: Aliás, é isso mesmos que também decorre do segmento factual dado como provado pelo Tribunal de 1ª Instância e vertido nos pontos 13 a 18 dos Factos Provados.
DÉCIMA QUARTA: Não pode, por isso, concordar-se com a afirmação vertida na sentença de que Não foi feita qualquer prova do dinheiro a sair da conta do 2º Réu, nomeadamente para ser utilizado na compra do veículo, nem nas despesas, o que impõe seja expressamente impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto e relacionada com esta concreta questão.
DÉCIMA QUINTA: Pois que, como acima se viu, a prova testemunhal produzida foi inequívoca na demonstração de que o dinheiro que o autor depositou na conta do 2º Réu foi por este entregue ao 1º Réu, tendo sido com este valor que o 1º Réu adquiriu o carro no estrangeiro e o trouxe para Portugal para o entregar ao autor.
DÉCIMA SEXTA: Impõe-se, pois, que esta concreta factualidade seja levada à matéria dos Factos Provados, aditando-se o seguinte:
36. A quantia de €9.000,00 (nove mil euros) que o autor depositou na conta do 2º Réu foi por este entregue ao 1º Réu, tendo este último com este quantitativo adquirido o carro no estrangeiro e trazido o carro para Portugal para o entregar ao autor.
DÉCIMA SÉTIMA: Não obstante, e em todo o caso, não era ao 2º Réu que incumbia fazer a prova de que a quantia de 9.000,00€ saiu da sua conta para ser utilizada pelo 1º réu na compra do veículo ou nas despesas, mas antes ao autor, por força do consignado no artigo 342º, n.º 1 do C.C., o que este não logrou demonstrar.
DÉCIMA OITAVA: Ainda sem prescindir, subentende-se da sentença proferida que o Tribunal fundou a decisão da figura do enriquecimento sem causa na circunstância do 2º Réu ter ainda registado em seu nome a viatura, que o 1º Réu e família utilizam.
DÉCIMA NONA: E aqui reside também uma outra crítica a fazer à decisão proferida a respeito da matéria de facto, porquanto ficou suficientemente demonstrado que o 2º Réu adquiriu, mais tarde, o veículo em causa nos autos, por recurso a crédito bancário, estando o mesmo a liquidar as prestações do empréstimo, pois que é isso que inquestionavelmente resulta do contrato de crédito que foi junto na sessão de julgamento e bem assim das declarações de parte prestadas pelo 2º Réu, sem que sua versão fosse infirmada por outro qualquer elemento de prova.
VIGÉSIMA: Assim, considera-se que o Tribunal decidiu mal esta concreta factualidade, ao não levar à matéria dos factos provados que o 2º Réu adquiriu, mais tarde, o veículo em causa nos autos, por recurso a crédito bancário, estando o mesmo a liquidar as prestações do empréstimo.
VIGÉSIMA PRIMEIRA: Daí que se impõe, em consequência da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, que seja aditado um novo ponto à matéria do Factos Provados: 30-A. Este veículo foi adquirido pelo 2º Réu, com recurso a crédito bancário, estando este a liquidar as prestações do empréstimo.
VIGÉSIMA SEGUNDA: Com o que ficará definitivamente sanada a errada decisão proferida pelo Tribunal de 1ª Instância no que se refere ao enriquecimento do 2º Réu.
VIGÉSIMA TERCEIRA: Sem prejuízo de se considerar que o Tribunal errou, uma vez mais, a respeito da decisão proferida sobre a matéria de facto, mormente a vertida nos pontos 19 e 20 dos Factos Provados e bem assim no teor das mensagens da autoria do próprio autor, por si juntas com a petição inicial,
VIGÉSIMA QUARTA: Entende, no entanto, o 2º Réu que, tal como por si oportunamente alegado a respeito do prazo para arguição da anulabilidade do negócio
– como assim a presente ação foi configurada pelo autor, em consequência do entendimento reproduzido no saneador-sentença do primitivo processo judicial
– verifica-se igualmente que já havia caducado o direito do autor em propor esta ação, ainda que o prazo para o efeito fosse de dois anos, como assim veio a decidir o Tribunal de 1ª Instância.
VIGÉSIMA QUINTA: É que, ao contrário do que erradamente decidiu o Tribunal de 1ª Instância, a primitiva ação intentada em fevereiro de 2018 não produziu o efeito interruptivo que se refere na sentença recorrida.
VIGÉSIMA SEXTA: Como assim foi o entendimento deste Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, por douto Acórdão datado de 24-10-2019, no processo n.º 105/17.9T8VPA.G1, cujos fundamentos aqui se deixam por integralmente reproduzidos.
VIGÉSIMA SÉTIMA: Nomeadamente por resultar dos presentes autos que o autor não intentou a presente ação no prazo de 30 dias a que alude o 279º, n.º 2 – o que ainda assim seria irrelevante – e não pode o autor aproveitar o prazo de dois meses estabelecido nos artigos 332º e 327º do Código Civil, por lhe ser imputável a decisão de absolvição da instância proferida na primitiva ação.
VIGÉSIMA OITAVA: Logo, sem necessidade de outras considerações, também se impõe seja revogada a sentença que condenou o 1º Réu nos pedidos contra este formulados pelo autor, reconhecendo-se a caducidade do direito à presente ação.

TERMOS EM DEVERÁ PROCEDER O PRESENTE RECURSO DE APELAÇÃO, REVOGANDO-SE A SENTENÇA PROFERIDA E SUBSTITUINDO-A POR DOUTO ACÓRDÃO QUE ABSOLVA AMBOS OS RÉUS DOS PEDIDOS FORMULADOS PELO AUTOR..»
*
O autor apresentou contra-alegações.
*
O processo foi remetido a este Tribunal da Relação, onde o recurso foi admitido nos termos em que o fora na 1ª instância.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A DECIDIR.

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações dos apelantes, tal como decorre das disposições legais dos artºs 635º nº4 e 639º do CPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art.º 608º nº2 do CPC).

As questões a resolver são as que constam das conclusões da apelação, acima reproduzidas e que assim se sintetizam:

a) Nulidade da sentença.
b) Ineptidão da petição inicial.
c) Impugnação da decisão da matéria de facto
d) Caducidade

III - FUNDAMENTOS DE FACTO

A) Factos julgados provados na sentença recorrida:

«1. O Autor necessitava de substituir o veículo que utilizava, dos seus pais, por um mais recente, para as suas deslocações diárias.
2. Em novembro de 2016 encontrou num stand um veículo Citröen C4 por 12.500 € (doze mil e quinhentos euros) e solicitou ao seu mecânico, M. S., uma avaliação mecânica.
3. O mecânico disse-lhe que tinha um amigo – o aqui 1º Réu – que era importador de carros e que o mesmo lhe conseguiria um negócio melhor, idêntico em características, mas por um preço inferior em cerca de €1.000,00 (mil euros) e já incluindo uma revisão na sua oficina.
4. O Autor confirmou pela página de Facebook que o 1.º Réu tinha à venda veículos, tendo este confirmado que importava veículos, e que conseguiria um veículo com as características pretendidas pelo Autor, com preço final mais barato, com legalização e revisão do mecânico.
5. A 16 de novembro enviou fotografias de um carro da marca e modelo pretendidos, na cor branca, tendo o Autor dito àquele que preferia adquirir um veículo na cor prateada ou, alternativamente, pérola.
6. A 23 de novembro de 2016, o 1.º Réu procedeu ao envio de fotos de um outro veículo da marca Citröen, modelo C4, mas alertou o Autor que o valor final daquele veículo ascendia ao montante de €12.000,00 (doze mil euros).
7. Foram sendo enviadas fotografias de veículos, que o Autor foi afastando por não terem as características solicitadas ou pelo preço superior aos indicados 11.000 € (onze mil euros).
8. Por sugestão do 1.º Réu, esperaram pelo início do ano de 2017, pelas renovações das frotas, existindo melhores negócios.
9. A 2 de janeiro de 2017, o Autor voltou a contactar o 1.º Réu para lhe dizer que, atenta a urgência de adquirir um veículo, caso surgisse uma oportunidade de negócio, estaria disposto a pagar até €12.000,00 (doze mil euros) por um Peugeot 308 e €11,000.00 (onze mil euros) por um Citröen C4.
10. A 04 de fevereiro de 2017, o Autor voltou a contactar o 1.º Réu, desta feita para o informar que, caso o veículo se encontrasse em condições, “mesmo nos trinques”, estaria disposto a aumentar o orçamento até aos €12.000,00 (doze mil euros), €12.500,00 (doze mil e quinhentos euros), por não querer adiar mais a compra.
11. A 07 de fevereiro de 2017, o 1.º Réu enviou ao Autor fotos de um Citröen C4, branco, com 130.000 Km’s, de junho de 2013, à venda por €13.000,00 (treze mil euros).
12. Perante o descontentamento do Autor pelo preço e demora, o 1.º Réu garantiu que se encontrava em perfeitas condições, e que teria as revisões feitas, de confiança, como ele queria, e que conseguia baixar o valor daquele veículo para os €12.500,00 (doze mil e quinhentos euros), caso o pagamento do mesmo fosse realizado em dinheiro.
13. A 12 de Fevereiro de 2017, o 1.º Réu informou o Autor que necessitaria de €9.000,00 (nove mil euros) para ir buscar o carro, sendo o remanescente pago com a entrega do veículo.
14. O 1.º Réu contactou o Autor informando que pretendia que o pagamento fosse feito em numerário, dado que se encontrava desempregado e não pretendia deixar qualquer tipo de rasto financeiro.
15. Perante a recusa do Autor em entregar os €9.000,00 (nove mil euros) em numerário ao 1.º Réu, este, a 15 de fevereiro de 2017, enviou ao Autor um talão de consulta de IBAN para a transferência.
16. O 1.º Réu informou o Autor que a conta pertencia a P. F., aqui 2.º Réu, indicando tratar-se de um sócio de negócios seu, tendo o Autor confirmado na página de Facebook que este tinha uma oficina de pneus e escapes, e trabalhava também com carros importados.
17. A 15 de fevereiro o Autor procedeu à transferência para a conta do 2.º Réu e mandou o comprovativo ao 1.º Réu.
18. No dia de aniversário do Autor, e para lhe fazer uma surpresa, o 1.º Réu chamou-o à oficina do mecânico para lhe mostrar o veículo.
19. Chegado à oficina, o Autor constatou que, contrariamente ao que lhe havia sido transmitido pelo 1.º Réu, o carro não se apresentava em bom estado, apresentando diversos arranhões e amolgadelas por toda a carroceria, não possuía jantes especiais, antes tendo jantes em ferro com tampões arranhados e partidos.
20. Os interiores apresentavam-se degradados, com os painéis interiores e os encaixes dos cintos de segurança com múltiplos arranhões, bem como os estofos, o forro do tejadilho apresentava buracos e a mala destruída com diversos plásticos partidos e arranhados.
21. Ao constatar as condições que o veículo apresentava, o Autor demonstrou ao 1.º Réu o seu descontentamento, relembrando a este que aquele carro não correspondia ao acordado.
22. O 1.º Réu informou o Autor que todos os problemas seriam corrigidos e que o veículo ia ser legalizado e lhe seria entregue direito, depois de pintado, inspecionado e revisto.
23. Acrescentou que se o Autor “não o quiser eu desfaço me não vai faltar quem quer este”, tendo este informado que mais valia aguardar que o carro tivesse pronto.
24. No dia 08 de março de 2017, o Autor foi a casa do 1.º Réu para ver o veículo, que se encontrava agora com os para-choques pintados, mas apresentava amolgadelas e arranhões “frescos” no capot.
25. Os interiores, estofos, tampões das rodas, forro do teto e interior da mala apresentavam-se nas mesmas condições, não tendo sido reparados ou substituídos.
26. Perante a manifestada insatisfação do Autor, o 1.º Réu sugeriu o cancelamento do negócio, declarando ter outros interessados no veículo e que devolveria os €9.000,00 (nove mil euros) em três dias.
27. Esgotado este prazo, o 1.º Réu respondeu que estava à espera de receber o preço da venda já feita, tendo referido que estava à espera da aprovação do crédito.
28. Foram feitas várias tentativas de contacto, não tendo o Autor obtido qualquer resposta ou solução, continuando o veículo a ser utilizado por ambos os Réus.
29. O 2.º Réu, contactado para resolver a questão, referiu que apenas aceitariam entregar o veículo ao Autor por €14.500,00 (catorze mil e quinhentos euros).
30. O veículo encontra-se registado em nome do 2.º Réu desde 02/10/2018 (1), com reserva de propriedade a favor do Banco ..., S.A..
31. Ambos os Réus continuam a circular com o veículo.
32. O arrastar da situação provoca angústia e tristeza, por ter sido enganado e ter ficado privado do veículo pretendido e de ter ficado sem as suas poupanças.
33. O Autor necessitou de recorrer a ajuda dos seus pais para adquirir um outro veículo automóvel.
34. Em fevereiro de 2018, o Autor intentou ação contra os aqui Réus e contra a sociedade P. F., P. C., Lda., que correu termos no Juízo Local Cível de Santo Tirso, com o n.º 1018/18.2T8GMR, tendo os Réus sido absolvidos da instância por ineptidão da petição inicial, por despacho proferido a 27 de março de 2019.
35. A presente ação deu entrada a 18 de junho de 2019.».

B) Factos julgados não provados

«Não resultou provado que o 2.º Réu fosse sócio do 1.º Réu, com poder de decisão no negócio e que a negociação tenha passado pelo crivo do 2.º Réu; que o 2.º Réu só tomou conhecimento dos contornos do negócio, quando recebeu uma comunicação do Ilustre Mandatário do autor; que o veículo continuou à disposição do Autor, desde que pagasse a quantia acordada; que o preço do veículo, acrescido das despesas que o 1.º réu teve de suportar com a deslocação, alojamento, revisão, reparação, inspeção, obtenção de matrículas e legalização do veículo ascendia a 12.750 €.»

IV – FUNDAMENTOS DE DIREITO

A) Nulidade da sentença

Alegam os recorrentes que a sentença proferida incorre em manifesta e gritante contradição e erro de raciocínio lógico, que poderá consubstanciar a nulidade da sentença, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 615º do CPC, o que, por dever de patrocínio, se invoca. Isto porque não pode o 1º réu ser condenado a restituir a quantia de 9.000,00€ que lhe foi entregue pelo autor, ainda que por depósito na conta do 2º Réu; e, ao mesmo tempo, o 2ª Réu ser condenado a restituir os mesmos 9.000,00€ por, afinal, não haver prova de que este valor tivesse saído da sua conta bancária.
Apreciando.
As nulidades da sentença (art.º 615º do CPC), como seus vícios intrínsecos, são apreciadas em função do texto e discurso lógico nela desenvolvidos, não se confundindo com erros na apreciação da prova ou na aplicação das normas jurídicas aos factos dados como apurados, que constituem erros de julgamento, a sindicar noutro âmbito.
A al. c) do citado normativo remete-nos para o princípio da coerência lógica da sentença (ou acórdão), pois que entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica .
Contradição que ocorre quando a decisão proferida seguiu um caminho diverso daquele que apontavam os fundamentos.
A ambiguidade da sentença exprime a existência de uma plurissignificação ou de uma polissemia de sentidos (dois ou mais) de algum trecho, e a obscuridade traduz os casos de ininteligibilidade – Ac. do TRE de 3.11.2016 (1774/13.4TBLLE.E1) in www.dgsi.pt.
No caso em apreço a contradição invocada é só aparente.
Efectivamente, como resulta da fundamentação da sentença, quer se configure a realidade negocial que existiu entre as partes (autor e 1º réu), como um contrato de compra e venda ou como um mandato, a responsabilidade do 1º réu, no que tange à restituição da quantia que o autor transferiu para a conta do 2º réu, funda-se na resolução do contrato de compra e venda ou na inexecução do mandato.
De acordo com a sentença, o 1º réu está obrigado a restituir a quantia que se considera que recebeu – i. é, a quantia transferida para a conta da pessoa por si indicada, ainda que ela não lha entregue.
Ora, como a prestação feita pelo devedor a terceiro, por indicação do credor, libera o devedor – cfr. art.º 770º al. a) do CC – considerando-se para todos os efeitos que o credor a recebeu, não se nos afigura existir a assinalada contradição.
Ainda de acordo com a fundamentação da sentença, tal como a interpretamos, como o 1º réu não devolveu ao autor a quantia que este, cumprindo as suas instruções, transferiu para a conta do 2º réu, tem o autor o direito de exigir, também deste 2º réu, a devolução de tal quantia, que depositou na conta deste, com vista a um efeito que não se verificou, na medida em que enriqueceu o seu património.
Como, na sentença se considerou que este 2º réu não provou que entregou tal quantia ao 1º réu, ou seja, que apesar de aparentemente enriquecido na verdade não o foi, concluiu-se que, com base no enriquecimento sem causa, o 2º réu é também responsável pela restituição ao autor da quantia peticionada.
O autor não receberá duas vezes a mesma quantia. Os réus é que, estão obrigados, com base em diferentes institutos jurídicos (um, no da responsabilidade contratual, outro, no do enriquecimento sem causa) a devolver-lhe aquela quantia.
Em face do exposto, não se curando nesta sede de decidir se se fez uma correcta aplicação do direito aos factos, concluímos que não existe contradição entre a fundamentação e a decisão, improcedendo a arguida nulidade.

B) Ineptidão da P.I.

Nas conclusões e no corpo das alegações, sem a necessária sistematização e especificação, são levantadas várias questões, entre as quais, segundo cremos, a da ineptidão da P.I.
Sucede que essa questão foi decidida no saneador e, embora, relativamente a esta decisão, os réus não pudessem interpor apelação autónoma, podiam, ao interpor recurso da sentença, impugnar o que a esse respeito foi decidido no saneador (cfr. art.º 644º nº 3 do CPC).
Ora, apesar do que referem na conclusão 10ª, a final pugnam os réus, apenas, pela revogação da sentença e respectiva absolvição dos pedidos e não, em primeira linha, como se imporia, pela procedência da excepção da ineptidão da P.I., revogação do despacho saneador e respectiva absolvição da instância.
Consequentemente o despacho saneador transitou em julgado, estando-nos vedada a sua apreciação.
De qualquer forma, sempre diremos que, relativamente ao pedido formulado subsidiariamente contra o 2º réu – al. b) – existe causa de pedir (factos alegados, nomeadamente, sob os nºs. 171º a 173º da P.I.)

C) Impugnação da decisão da matéria de facto

Embora de forma deficiente, atentos os ónus que lhes são impostos pelo art.º 640.º do CPC, os apelantes impugnam a decisão da matéria de facto na parte em que não julgou provada a seguinte matéria, que pretendem ver aditada:
36. A quantia de €9.000,00 (nove mil euros) que o autor depositou na conta do 2º Réu foi por este entregue ao 1º Réu, tendo este último com este quantitativo adquirido o carro no estrangeiro e trazido o carro para Portugal para o entregar ao autor.
Para tanto referem o depoimento de M. S., mecânico a quem os réus recorreram.
Sucede, que o facto, na versão que os apelantes agora pretendem aditar e ver provado, não foi alegado pelo autor, em cuja P.I. – artºs. 54º a 59º – dá uma versão diferente da pretendida pelos apelantes (“transferiu para a conta que lhe foi indicada pelo 1º réu e que pertencia ao 2º réu, pessoa que aquele lhe disse trabalhar consigo neste negócio de importação de carros”, nada acrescentando quanto ao que terá ocorrido entre o 1º e o 2º réu, no tocante ao dinheiro), nem pelos réus na respectiva contestação.
Ora, a impugnação da decisão matéria de facto versa sobre os factos que aí foram julgados provados ou não provados e sobre aqueles, que, tendo sido oportunamente alegados pelas partes, foram omitidos na decisão. O que, como acabamos de referir, não sucede no presente caso.
Acresce, que a testemunha M. S. nada sabia sobre este assunto (Dr. G. (18:50) – Mas sabe qual foi o destino que foi dado a esse dinheiro que passou na conta do PeP. F.? MS (18:57) – Não faço ideia).
Nas suas declarações de parte, o autor manteve a versão que consta da P.I., apenas sabendo que efectuou a transferência para o NIB que o 1º réu indicou como sendo do seu sócio (sociedade de facto ou informal) e que, na sequência, o 1º réu lhe disse que ia buscar o veículo automóvel ao estrangeiro.
As declarações de parte do 2º réu, como é óbvio, só por si, não são suficientes para a prova de facto que lhe é favorável, acrescendo o facto de o veículo ter acabado por ser registado em nome do 2º réu e estar a ser utilizado por ambos os réus (factos nºs 29º, 30º e 31ª).
Em suma e como se conclui na motivação da decisão de facto: “Não foi feita qualquer prova do dinheiro a sair da conta do 2.º Réu, nomeadamente para ser utilizado na compra do veículo, nem nas despesas”.
Nem, contrariamente ao alegado pelos recorrentes, tal se infere da factualidade assente sob os nºs 13 a 18 dos Factos Provados.
Por todas as razões acima expostas, ainda que se concedesse que a presente impugnação cumpre os ónus impostos pelo art.º 640º do CPC, sempre seria julgada improcedente, por ausência de prova do facto em questão.
Pretendem ainda os apelantes que se adite um novo ponto à matéria dos Factos Provados, com o seguinte teor:
30-A. Este veículo foi adquirido pelo 2º Réu, com recurso a crédito bancário, estando este a liquidar as prestações do empréstimo.
Mais uma vez, não se trata de matéria alegada pelas partes, nem indicam os apelantes os meios de prova (montante, prestações e se ainda está a ser liquidado), sendo que o que o documento junto aos autos apenas permite dar como provado o que já consta sob o nº 30 (reserva de propriedade a favor do Banco ...).
Consequentemente, quer por se tratar de factualidade não alegada, quer por evidente incumprimento dos ónus impostos pelo art.º 640º do CPC, não se conhece, nesta parte, da impugnação.
Por último, na conclusão 23ª, referem os apelantes: ”Sem prejuízo de se considerar que o Tribunal errou, uma vez mais, a respeito da decisão proferida sobre a matéria de facto, mormente a vertida nos pontos 19 e 20 dos Factos Provados e bem assim no teor das mensagens da autoria do próprio autor, por si juntas com a petição inicial”.
Os apelantes limitam-se a referir a discordância, não indicam as razões dessa discordância, nem a decisão que deveria ter sido proferida e meios de prova que sustentariam a respectiva pretensão.
Também neste caso se consideram incumpridos os já referidos ónus que impendem sobre os apelantes (art.º 640º do CPC) pelo que, a ser essa a pretensão dos apelantes, não se conhece da impugnação destes pontos da matéria de facto.
*
Pelo exposto mantém-se nos seus exactos termos a factualidade provada na sentença, que ora se julga assente.

D) Caducidade

Na sentença recorrida considerou-se não ocorrer a caducidade do direito do autor pois: “Neste caso, o veículo nem foi efetivamente entregue ao Autor, tendo sido logo efetuada a denúncia, contando-se, a partir desta, dois anos para ser intentada a acção judicial. Não se verifica, assim, a alegada caducidade do direito do Autor, que foram desde logo denunciados, tendo sido instaurada uma ação com efeito interruptivo em fevereiro de 2018 (artigo 279.º, n.º 2 do Código de Processo Civil)”.
Os recorrentes insurgem-se contra o assim decidido por, em seu entender, a primitiva acção, intentada em Fevereiro de 2018, não ter produzido efeito interruptivo do prazo de caducidade, “nomeadamente por resultar dos presentes autos que o autor não intentou a presente acção no prazo de 30 dias a que alude o 279º, n.º 2 – o que ainda assim seria irrelevante – e não pode o autor aproveitar o prazo de dois meses estabelecido nos artigos 332º e 327º do Código Civil, por lhe ser imputável a decisão de absolvição da instância proferida na primitiva acção”.
Cumpre desde já deixar claro que esta questão da caducidade do direito do autor apenas aproveita ao 1º réu, pois se refere à causa pedir que fundamenta a respectiva condenação nos pedidos.
No tocante ao 2º réu não há prazo de propositura da acção, ou seja, o direito de propor acção com base no enriquecimento sem causa não caduca. O direito a obter a restituição do indevido é que prescreve, mas o prazo é de 3 anos e ainda não se mostrava decorrido (cfr. art.º 482º do CC). Nem a prescrição foi invocada.

Relativamente à questão da caducidade do direito do autor obter a resolução do contrato que celebrou com o 1º réu, provou-se:
– Que o autor não aceitou o veículo que o 1º réu lhe pretendia entregar em 8.3.2017, por o mesmo apresentar anomalias, ou seja por não estar conforme ao que fora acordado, não correspondendo assim ao veículo que o autor pretendia adquirir e que o 1º réu se comprometeu a entregar-lhe.
– Que foi o próprio 1º réu quem, nessa data, sugeriu que o negócio ficasse sem efeito, comprometendo-se a devolver ao autor a quantia que este transferira para a conta indicada pelo 1º réu, no prazo de 3 dias.
– Como não o fez, nem então nem posteriormente, o autor, em Fevereiro de 2018, intentou acção contra os aqui réus e contra a sociedade P. F., P. C., Lda., que correu termos no Juízo Local Cível de Santo Tirso, com o n.º 1018/18.2T8GMR, tendo os réus sido absolvidos da instância por ineptidão da petição inicial, por despacho proferido a 27 de Março de 2019. O autor pretendia nessa acção a devolução da referida quantia, pelos mesmos factos.
Ora, considerando o disposto no art.º 5.º-A, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 67/2003 (prazo de dois anos) a 1ª acção foi tempestivamente proposta, sendo indiferente que nela o negócio se configurasse juridicamente como contrato promessa ou compra e venda.
Efectivamente, como referimos nos nossos acórdãos de 31.1.2019 (processo Proc. 1618/17.8T8BRG.G1) e de 26.01.2017 (processo nº 1446/15.5T8CHV.G1), publicados em www.dgsi.pt:
Estando o contrato promessa funcional e instrumentalmente ligado ao contrato prometido, o princípio da equiparação consagrado no n.º 1 do art.º 410.º do Código Civil, ao não distinguir, na sua aplicação, entre os requisitos de formação e os efeitos do negócio, leva-nos a aplicar à promessa de venda as regras atinentes à venda de coisa defeituosa ou não conforme.

No que tange à caducidade estabelece o art.º 332.º do CC:
1. Quando a caducidade se referir ao direito de propor certa acção em juízo e esta tiver sido tempestivamente proposta, é aplicável o disposto no n.º 3 do artigo 327.º; (…).

E o normativo para que remete (n.º 3 do art.º 327º do CC) prescreve:
3. Se, por motivo processual não imputável ao titular do direito, o réu for absolvido da instância ou ficar sem efeito o compromisso arbitral, e o prazo da prescrição tiver entretanto terminado ou terminar nos dois meses imediatos ao trânsito em julgado da decisão ou da verificação do facto que torna ineficaz o compromisso, não se considera completada a prescrição antes de findarem estes dois meses.
Ora a presente acção (segunda) só foi instaurada (18-6-2019), decorridos mais de 2 anos sobre a data em que os defeitos se consideram denunciados (8.3.2017). Embora antes de decorridos dois meses sobre o trânsito em julgado da decisão que absolveu os réus da instância na 1ª acção.
Contudo, tem-se entendido que este prazo não tem aplicação ao caso dos autos, uma vez que, o nº 3 do art.º 327º do CC é claro no sentido de que só dele pode aproveitar o autor, quando a absolvição da instância não decorra de motivo processual a ele imputável. Ora a ineptidão da P.I. é “motivo processual” imputável ao autor, ou seja ao titular do direito.
É certo, que, face ao disposto no art.º 279.º do CPC, os efeitos civis derivados da proposição da primeira causa e da citação do réu mantêm-se, quando seja possível, se a nova acção for intentada ou o réu for citado para ela dentro de 30 dias a contar do trânsito em julgado da sentença de absolvição da instância.
Contudo este normativo também não tem aplicação ao caso dos autos, pois ressalva “o disposto na lei civil relativamente à prescrição e à caducidade dos direitos”, ou seja, o disposto precisamente no citado nº 2 do art.º 327º do CC.
Acrescendo que, de qualquer forma, também esse prazo de 30 dias foi ultrapassado.
Aqui chegados teríamos de concluir que, contrariamente ao decidido na sentença, se tem por verificada a caducidade do direito do autor accionar o 1º réu, com base no contrato celebrado e nos defeitos da coisa.
Contudo não é esse o nosso entendimento, como passaremos a explanar
Em primeiro lugar, no caso em apreço, perante os factos provados, conclui-se que, a existir ou subsistir o direito de excepcionar a caducidade, o seu exercício, por parte do 1º réu, no contexto factual que emerge dos autos, é manifestamente abusivo.

Com efeito, este réu:
– Para fugir ao fisco e poder continuar a receber o subsídio de desemprego (“não pretendia deixar qualquer tipo de rasto financeiro”), exigiu receber a quantia acordada a título de início de pagamento em numerário, e, perante a recusa do autor, que naturalmente queria ter um meio de prova do negócio e da quantia entregue, engendrou um esquema que envolveu terceiros (o aqui 2º réu), que disse ser seu sócio, para cuja conta o autor teve de transferir a quantia exigida (factos nºs 13º a 17º).
– Transferida a quantia (praticamente a ¾ do preço), apresentou ao autor um veículo que não correspondia ao acordado (danificado) e, perante o descontentamento deste, informou-o que todos os problemas seriam corrigidos e que o veículo ia ser legalizado e lhe seria entregue direito, depois de pintado, inspeccionado e revisto (factos 21º e 22º).
– Acrescentou que se o autor não quisesse o veículo, desfaziam o negócio pois não lhe iria faltar quem o quisesse, mas que mais valia aguardar que o carro estivesse pronto (facto nº 23).
– No dia 08 de Março de 2017, quando, como combinado, o autor foi ver o veículo reparado, constatou que continuava a apresentar amolgadelas e arranhões “frescos” no capot, os interiores, estofos, tampões das rodas, forro do tecto e interior da mala apresentavam-se nas mesmas condições, não tendo sido reparados ou substituídos (factos nºs. 24 e 25).
– Perante a insatisfação manifestada pelo autor, sugeriu o cancelamento do negócio, declarando ter outros interessados no veículo e que devolveria os €9.000,00 em três dias (facto nº 26).
– Decorrido esse prazo sem ter devolvido o dinheiro, desculpou-se que estava à espera de receber o preço da venda já feita, aguardando apenas a aprovação do crédito (facto n.º 27).
– Não devolveu o dinheiro. Ele e o 2º réu passaram a usar a viatura, que também não entregaram ao autor, exigindo para esse efeito ainda mais dinheiro do que o que o preço acordado. (facto n.º 29)

De toda esta trama negocial engendrada pelo 1º réu e a que o 2º réu, seu parceiro de negócios (factos nºs 16, 29º, 30º e 31º) não é alheio, foram naturais as dificuldades em enquadrar do ponto de vista jurídico a causa de pedir e os consequentes pedidos, até porque o 1º réu não estaria colectado pela actividade que exercia, pois não queria “deixar rasto financeiro” dos seus negócios, referiu-se a um sócio (2º réu) que afinal não o era formalmente, mas para cuja conta o autor teve de transferir o dinheiro, levando-o, de certo modo justificadamente, a demandar a sociedade do 2º réu (P. F., P. C., Lda.).
Pelo exposto não se pode afirmar que a nulidade decorrente da ineptidão da P.I. da 1ª acção, que conduziu à absolvição da instância, é apenas imputável ao titular do direito, cujo exercício estava sujeito a prazo de caducidade.
Também o é a quem invoca essa caducidade, num claro “venire contra factum proprio”, fazendo tabula rasa do princípio da boa fé processual.
Por isso, entendemos que neste caso, por um lado, sendo também imputável à conduta do 1º réu a concreta situação que conduziu à absolvição da instância por vício de ineptidão da P.I., o autor, titular do direito, pode aproveitar do prazo de dois meses previsto no art.º 327º nº 2 do CC.
Por outro lado, mesmo que assim não fosse, face à conduta negocial e processual do 1º réu, que não cumpriu as obrigações decorrentes do princípio da boa fé negocial (artºs. 227º e 762º nº 2 do CC), nem da boa fé processual (artºs 8º e 542º do CPC), lhe está vedado neste caso invocar a excepção da caducidade, por traduzir um manifesto abuso de direito (art.º 334º do CC).
Sendo que o abuso de direito pode ser oficiosamente conhecido por este Tribunal, desde que nos autos esteja demonstrado o substrato fáctico em que assenta (Cfr. Acórdão do STJ de 28.11.2013, proc. 161/09.3TBGDM.P2.S1, in www.dgsi.pt.).
Por último – apesar de ser o primacial – decorre dos factos provados sob os nºs 21º, 23º e 26º que o 1º réu reconheceu a existência dos defeitos e o direito do autor a resolver o negócio (“cancelamento do negócio”, como se refere no facto nº 26) e aceitou devolver-lhe a quantia que o autor pagara (transferira para a conta indicada pelo 1º réu e pertencente ao 2º réu).

Ora, como se refere no douto acórdão do STJ de 10.12.2019 (processo n,º 4184/16.8T8VCT.G1.S1), publicado em www.dgsi.pt e assim se sumariou:

III. A lei, na caducidade quer que o direito seja exercido dentro de certo prazo, prescindindo da negligência do titular, por isso, de eventuais causas suspensivas e interruptivas que excluam tal negligência.
IV. Da exegese do n.º 2 do art.º 331º do Código Civil decorre que, estando em causa direitos disponíveis, e estando fixado por disposição legal um prazo de caducidade, impede essa caducidade o reconhecimento do direito por parte daquele contra quem deva ser exercido.
V. O reconhecimento impeditivo da caducidade, ao contrário do interruptivo da prescrição, não tem como efeito abrir-se um novo prazo de caducidade: reconhecido o direito, a caducidade fica definitivamente impedida, tal como se tratasse do exercício da acção judicial.
(realce nosso)
Efectivamente, já Vaz Serra afirmava (2), que: “Se o direito for disponível, e for reconhecido pelo eventual beneficiário da caducidade, não constitui o reconhecimento um meio interruptivo da caducidade, pois a circunstância de esse beneficiário reconhecer o direito da outra parte não tem o efeito de inutilizar o tempo já decorrido e abrir novo prazo de caducidade (como aconteceria na prescrição): o reconhecimento impede a caducidade tal como a impediria a prática de acto sujeito a caducidade. (…) Assim, tratando-se de prazo de caducidade do direito de propor uma acção judicial, não seria razoável que o titular desse direito tivesse de propor a acção no prazo legal apesar de a parte contrária haver já reconhecido o direito”. (sublinhado nosso)

No mesmo sentido se pronunciou o STJ, no acórdão de 9 de Setembro de 2015 (Processo n.º 3137/09.7TBCSC.L1.S1), in www.dgsi.pt, em cujo sumário consta:
“I - Emerge do art. 331.º, n.º 2, do CC, que, estando em causa direitos disponíveis e estando fixado, por disposição legal, um prazo de caducidade, o reconhecimento do direito por parte daquele contra quem deva ser exercido é impeditivo da caducidade. III - A partir desse reconhecimento dos defeitos não corre um novo prazo de caducidade, antes o prazo ordinário de prescrição de 20 anos a que alude o art. 309.º do CC.” (sublinhado nosso)
Logo, traduzindo a dita factualidade o reconhecimento por parte do 1º réu do direito que assiste ao autor, a caducidade tem-se por definitivamente impedida.
*
Relativamente ao 2º réu e como acima referimos, não há prazo de propositura da acção, ou seja, o direito de propor acção com base no enriquecimento sem causa não caduca. O direito a obter a restituição do indevido é que prescreve, mas o prazo é de 3 anos e ainda não se mostrava decorrido (cfr. art.º 482º do CC). Nem a prescrição foi invocada.
Estando prejudicada a apreciação de qualquer outra questão, em sede de aplicação do direito aos factos, uma vez que se manteve intocada a factualidade provada na sentença, concretamente os factos que os apelantes pretendiam ver provados e aditados, e em que assentava a pretensão de ver revogada a sentença quanto a este réu.
*
Pelo exposto, naufragam as doutas conclusões dos apelantes, restando-nos confirmar a sentença recorrida, embora com fundamentação não inteiramente coincidente

V - DELIBERAÇÃO

Nestes termos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o presente recurso, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelos apelantes.
Guimarães, 15-04-2021

Eva Almeida
António Beça Pereira
Ana Cristina Duarte


1. Rectificamos 2008 para 2018 por se tratar de lapso evidente
2. Revista de Legislação e Jurisprudência Ano 107º, n.º 3515, página 24, texto extraído do citado acórdão.