Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1642/20.3T8GMR.G1
Relator: ANTÓNIO BARROCA PENHA
Descritores: ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
AUSÊNCIA DE CAUSA JUSTIFICATIVA
CONTRATO DE ABERTURA DE CONTA
DESCOBERTO EM CONTA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/22/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (do relator):

I. A obrigação de restituir fundada no “enriquecimento sem causa” pressupõe a verificação cumulativa de três requisitos, a saber: a) que alguém obtenha um enriquecimento; b) que o obtenha à custa de outrem; c) e que o enriquecimento não tenha causa justificativa.
II. A ausência de causa justificativa do enriquecimento a partir da frustração do fim da prestação obrigacional já realizada (e com a qual se enriqueceu outrem) não pode reportar-se, pura e simplesmente, ao incumprimento do enriquecido (por não realizar a sua contraprestação).
III. A falta de causa da atribuição patrimonial terá necessariamente que ser alegada e provada por quem pede a restituição (art. 342º, n.º 1, do C. Civil); não bastando, para esse efeito, que não se prove a existência de uma causa de atribuição; é preciso convencer o tribunal da falta de causa.
IV. Se a situação de facto preenche os pressupostos do enriquecimento sem causa e de mais outro instituto, o disposto no artigo 474º do C. Civil, impede, nestes casos, o recurso às normas do enriquecimento sem causa.
V. O “contrato de abertura de conta” trata-se de um negócio jurídico complexo e duradouro, celebrado entre o banqueiro e o seu cliente, pelo qual ambos assumem deveres recíprocos relativos a diversas práticas, constituindo ato nuclear comum dos diversos atos bancários, sejam eventuais, como o “depósito bancário”, ou necessários, como a “conta corrente”.
VI. Se o Banco voluntariamente e no âmbito daquele contrato de abertura de conta, proceder a pagamentos e movimentos a crédito na conta-corrente do seu cliente, sem que para tal existam fundos suficientes, o Banco passará de devedor do depositante (mercê do aludido contrato de depósito bancário inicialmente celebrado) a credor do depositante, porquanto o está a financiar com valores que o mesmo não possui naquela conta.
VII. Assim, se o cliente viu o seu anterior “descoberto em conta” compensado com fundos que não eram seus, mas que foram adiantados pelo Banco, assiste direito a este em vir pedir do seu cliente a restituição dos valores adiantados, em face do contrato de mútuo então gerado entre as partes (art. 1142º, do C. Civil).
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

Caixa ..., Caixa A ..., S.A. veio intentar a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra B. L. e N. M., pedindo, a final, a condenação dos réus no pagamento à autora da quantia de € 19.900,00, a título de enriquecimento sem causa, acrescido de juros legais, até efetivo e integral pagamento, e que totalizam à data € 1.225,62.

Para tanto alega, em síntese, que, em 10.09.2018, foram depositadas na conta do réu, e que a ré normalmente movimentava, a pedido desta e por força da relação de confiança com o funcionário bancário, as quantias de € 6.700 e € 19.100. Apesar de a ré garantir a regularização até ao final do dia, o réu entregou aí e até aos dias de hoje apenas € 5.900,00. A quantia foi utilizada para compensação de descobertos em conta, resultantes de levantamento em dinheiro, pagamento de encargos e cheques, enriquecendo os réus sem qualquer causa justificativa.

A ré B. L. contestou, admitindo que não entregou a quantia peticionada, afirmando que utilizou a conta em nome do réu, com conhecimento do colaborador do Banco autor, uma vez que tinha sido declarada insolvente, e que como era habitual, solicitou o referido depósito para cobrir os cheques apresentados a pagamento, não tendo sido possível o pagamento por incumprimento de terceiros.
Acrescenta que o réu não tinha qualquer outra ligação com a conta, uma vez que era gerida e movimentada apenas por si.

O Réu N. M. apresentou igualmente contestação, admitindo que abriu a referida conta no Banco autor e que deixou que a ré a utilizasse e movimentasse em exclusivo, tendo assinado cheques e entregas em numerário, mas não beneficiou com a quantia depositada, pelo que deve a ação ser julgada improcedente.

Foi proferido despacho de saneamento do processo, fixando-se, de seguida, o objeto do litígio e enunciando-se o tema de prova.

Procedeu-se à realização da audiência final.

Na sequência, por sentença de 4 de Janeiro de 2021, veio a julgar-se procedente a presente ação e, em consequência, decidiu-se condenaros réus B. L. e N. M., no pagamento à Autora Caixa ..., Caixa A ..., S.A., da quantia de € 19.900,00 (Dezanove mil e novecentos euros), acrescida de juros de mora legais desde 10 de Setembro de 2018, até efetivo e integral pagamento.

Inconformado com o assim decidido, veio o réu N. M. interpor recurso de apelação, nele formulando as seguintes

CONCLUSÕES

1º. Vem o presente recurso interposto da Sentença de fls… dos autos que condenou o réu no pagamento à autora Caixa ..., S.A. da quantia de € 19.900,00 (dezanove mil e novecentos euros), acrescidos de juros de mora legais desde 10 de Setembro de 2018, até efetivo e integral pagamento, porquanto, com esta não se conforma o recorrente, por padecer de erro na aplicação do Direito.
2º. O Tribunal a quo procedeu à subsunção dos factos dados como provados ao direito e considerou estarem verificados todos os requisitos do instituto do enriquecimento sem causa, argumentando em síntese: que o dinheiro entregue pelo autor permitiu ao réu não ter de responder pelo descoberto, decorrente dos cheques e das quantias levantadas nos dias anteriores, pelo que responderá a um efetivo enriquecimento do réu, de cobertura das dívidas, que assumiu em nome próprio, à custa do dinheiro do banco autor, não existindo qualquer facto que justifique a deslocação patrimonial verificada.
3º. Salvo o devido respeito, mal andou o Tribunal a quo ao assim decidir.
Vejamos,
4º. Nos termos do disposto no Art. 473º e 474º do CC, a obrigação de restituir fundada no instituto do enriquecimento sem causa pressupõe a verificação cumulativa de quatro requisitos: a existência de um enriquecimento; que este careça de causa justificativa; que tenha sido obtido à custa do empobrecimento daquele que pede a restituição e finalmente, que a lei não faculte ao empobrecido outro meio de ser restituído.
5º. Quanto ao requisito do enriquecimento consideramos não se ter verificado um enriquecimento do réu, aqui recorrente.
6º. A conta bancária nº ............-5 era titulada pelo recorrente, mas quem a movimentava era a ré, para exercício da sua atividade profissional, permitindo-lhe escapar ao controlo decorrente do seu processo de insolvência pessoal (pontos 4, 5, 7, 8, 9, 10, 11 e 12 dos facto dos como provados). A quantia em dinheiro entregue na conta do réu foi apenas pedida pela ré e a esta beneficiou, tendo sido utilizada nos seus negócios, permitindo-lhe ter uma disponibilidade financeira que, de outro modo, não teria (pontos 10, 12, 13, 14, 16 e 24 dos factos dados como provados).
7º. Quanta à falta de causa justificativa consideramos que este requisito também não se verifica existindo uma causa justificativa, a saber, o acordo celebrado entre a ré e o funcionário da autora.
8º. A autora, a pedido da ré, assente numa relação de confiança, efetuou um depósito de uma quantia que não teve a correspondência total da quantia efetivamente entregue, tendo sido apurado ao fim do dia uma falha de caixa no valor de € 19.000,00 (pontos 14, 15, 16, 17, 20 e 21 dos factos dados como provados). Existe assim uma relação ou um facto que, de acordo com as regras ou princípios do nosso sistema jurídico, justifica a deslocação patrimonial. Não se tratou de um erro, de uma falha de comunicação ou de um lapso, mas sim, de um acordo celebrado entre a ré e a autora, ambas conscientes dos riscos e responsabilidades que tal acordo implicava.
9º. Quanto ao requisito do empobrecimento da autora este verifica-se.
10º. Efetivamente houve um empobrecimento/prejuízo da autora no valor de € 19.900,00 resultante do não cumprimento pela ré do acordo celebrado com o funcionário da autora (pontos 20, 21 e 22 dos factos dados como provados). Mas, deve ter-se em atenção e consideração que tal prejuízo aconteceu com a intervenção e consentimento diretos da autora, que autorizou um levantamento em numerário para o qual a conta bancária não tinha saldo, ficando a descoberto, e que creditou na conta bancária valores em numerário sem a sua efetiva entrega pela ré, tendo posteriormente creditado em conta os cheques que foram apresentados a pagamento sabendo que a conta bancária não tinha, no concreto, saldo suficiente para assim proceder (pontos 11, 13, 14, 16, 17 e 18 dos factos dados como provados).
11º. Por último, quanto ao requisito da subsidiariedade do instituto do enriquecimento sem causa como meio para a autora ser ressarcida do seu prejuízo, consideramos que este também não se verifica.
12º. Se, tal como sustentado, e bem, pelo Tribunal a quo entre autora e réu foi celebrado um contrato de abertura de conta bancária, mediante o qual ambos assumem deveres recíprocos no que concerne a diversas práticas bancárias e a deveres gerais de conduta decorrentes da boa-fé, então, foi no âmbito daquele contrato bancário que houve uma autorização da autora para levantamento a crédito em numerário de € 4.000,00 ficando a conta a descoberto, bem como, foi nesse mesmo âmbito que o funcionário da autora procedeu, acedendo ao pedido pela ré, a duas operação bancárias de entrega em numerário no valor total de € 25.800,00, sem a efetiva entrega desse valor na sua totalidade (pontos 11, 12, 14 e 17 dos factos dados como provados).
13º. Assim, teria a autora à sua disposição, no que ao réu, aqui recorrente diz respeito, outro meio de ser ressarcida do seu prejuízo, lançando mão de ação de condenação com fundamento na responsabilidade contratual., ou, caso assim não o entendesse, sempre poderia a autora intentar ação de condenação com fundamento na violação pela ré do acordo celebrado com a autora em 10/09/2018, dispondo, assim a autora, de outros meios legais para ser ressarcida pelos prejuízos verificados, não sendo assim o instituto do enriquecimento sem causa o único meio à sua disposição.
14º. Ao decidir como decidiu, a sentença vem ferida dos apontados vícios de aplicação do direito, nomeadamente, por violação, entre outras disposições, das normas contidas os Art. 473º e 474º ambos do CC, pelo que não poderá manter-se, devendo ser revogada e substituída por outra que julgando não verificados os pressupostos cumulativos do enriquecimento sem causa, absolva o réu.
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O Banco autor apresentou resposta/contra-alegações, tendo concluído pela improcedência do recurso, confirmando-se a sentença recorrida.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II. DO OBJETO DO RECURSO:

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (arts. 635º, n.º 4, 637º, n.º 2 e 639º, nºs 1 e 2, do C. P. Civil), não podendo o Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art. 663º, n.º 2, in fine, ambos do C. P. Civil).

No seguimento desta orientação, cumpre fixar o objeto do presente recurso.

Neste âmbito, a única questão decidenda traduz-se na seguinte:

- Saber se houve erro de interpretação e de aplicação do Direito por parte do tribunal ao condenar o réu recorrente na quantia peticionada pelo Banco autor, com fundamento em enriquecimento sem causa.
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

FACTOS PROVADOS

O tribunal da 1ª instância julgou provados os seguintes factos:

1. A Autora é uma Caixa A ..., cuja atividade consiste na prática de todos os atos por lei permitidos aos bancos, genericamente definidos como o recebimento de depósitos e a concessão de empréstimos.
2. A Ré B. L. é cliente do Banco Autor desde 26/11/1994, realizando habitualmente várias operações de caixa, mantendo uma relação profissional de confiança com o administrativo/caixa da Autora, R. G., que exercia funções na agência de Pevidém.
3. Desde 2004 que a Ré se dedica à comercialização de veículos automóveis importados, tendo constituído a sociedade X Unipessoal Lda., N.I.P.C. ……… da qual é a única sócia/gerente, em 2016.
4. A Ré foi declarada insolvente por sentença datada de 06.10.2017, no processo que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo de Comércio de Guimarães, Juiz 2, sob o n.º 2852/17.6T8GMR.
5. Em virtude da sua situação de Insolvência, a Ré pediu ao Réu, à data dos factos namorado da sua filha, que abrisse junto da Autora uma conta bancária que seria, em exclusivo, movimentada por aquela.
6. O réu, dada a boa e próxima relação com a ré, acedeu ao pedido, no único intuito de a ajudar.
7. O Réu N. M. abriu na Autora, na agência de Vila das Aves, conta à ordem com o n.º ............-5, em dezembro de 2017, sendo o único titular.
8. A Ré, nesta altura, apresentou o Réu ao referido R. G., como sendo namorado da sua filha, acrescentando que este também passaria por lá para tratar de negócios em seu nome na referida conta.
9. A Ré habitualmente realizava depósitos e levantamentos na conta à ordem do Réu.
10. O Réu assinava os cheques, entregando-os à Ré, em branco, a pedido desta, que os usava a título pessoal.
11. O Réu deslocou-se ao balcão da autora em Pevidém em 05-09-2018, para fazer um levantamento a crédito em numerário de 4.000 €, ficando a conta a descoberto.
12. O Réu assinou os cheques n.º ……. e n.º ……., e entregou-os à Ré que, preencheu e datou de 07.09.2018, outorgando-os a favor de J. M., nas quantias, respetivamente de 11.500 € e 10.000 €.
13. Os cheques foram apresentados a pagamento no dia 10.09.2018, tendo sido creditados em conta.
14. Na manhã de 10/09/2018, cerca das 9:30 horas, a Ré ligou ao referido R. G., solicitando que este procedesse a uma operação bancária de entrega em numerário da quantia de € 6.700,00 (seis mil e setecentos euros) na conta à ordem n.º ............-5 sem a correspondente entrega de dinheiro, alegando que mais tarde, nesse dia, voltaria ao balcão para regularizar o seu depósito.
15. Perante a insistência da Ré, e à relação de confiança profissional que existia entre ambos, o funcionário acedeu a tal pedido, tendo processado este depósito em numerário pelas 9:34 horas.
16. Decorrida uma hora, a Ré voltou a ligar ao funcionário R. G., solicitando que procedesse a uma segunda entrega, em numerário, pelo valor de € 19.100,00 (dezanove mil e cem euros),
17. Acedendo ao pedido da Ré, o funcionário do Banco ... pelas 10:41 horas processou o referido depósito em numerário na conta n.º ............-5 titulada pelo Réu, sem a entrega efetiva de qualquer quantia.
18. Após a hora de almoço e antes das 15:00 horas, o Réu dirigiu-se ao balcão do Banco ... e entregou a R. G. um envelope com a quantia de € 5.900,00 (cinco mil e novecentos euros).
19. Quando questionado pela entrega do remanescente o Réu afirmou que esse assunto tinha de ser tratado com a Sra. B. L..
20. No final do horário de atendimento, sem que a Ré se tivesse deslocado ao balcão para entregar a quantia em falta, nomeadamente € 19.900,00 (dezanove mil, e novecentos euros), o colaborador da Autora contactou-a telefonicamente, tendo esta alegado que na manhã seguinte iria ao balcão para entregar o montante em falta.
21. Este facto levou os responsáveis pelo referido balcão a processar um fecho de caixa com uma falha de € 19.900,00.
22. Este montante ainda não foi entregue até à presente data, pese embora as inúmeras tentativas por parte da Autora de recuperar as verbas em falta.
23. A Autora apresentou queixa crime contra o Réus, que correu termos no DIAP – 2.ª Secção de Guimarães, com o número 2370/19.8T9GMR, tendo sido proferido despacho de arquivamento, por se ter considerado não estar perante matéria criminal, devendo “os interesses do ofendido deverão ser tutelados necessariamente pelo direito civil”.
24. As quantias depositadas foram utilizadas para compensação de descobertos em conta, resultantes dos referidos levantamentos em dinheiro, pagamento de encargos, cartões e cheques.
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FACTOS NÃO PROVADOS

Mais se decidiu que: “Com interesse para a boa decisão da causa não se provaram quaisquer outros factos acima não descritos ou com estes em contradição, com exclusão sobre considerações jurídicas, conclusões ou juízos de valor e factos não essenciais à decisão da causa, designadamente não resultou provado que o Réu se dedicasse com a Ré à comercialização de veículos automóveis importados e que o Réu nunca utilizou a conta a título pessoal.” (nosso sublinhado)
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IV) FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Do enriquecimento sem causa

Dispõe o art. 473º, do C. Civil, que: “Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou” (n.º 1); sendo que a obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, de modo especial, tem por objeto “o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou” (n.º 2).

Logo, a obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa (ou locupletamento à custa alheia) pressupõe a verificação cumulativa de três requisitos, a saber: a) que alguém obtenha um enriquecimento; b) que o obtenha à custa de outrem; c) e que o enriquecimento não tenha causa justificativa. (1)
Nas palavras de Pires de Lima e Antunes (2), o enriquecimentoconsiste na obtenção de uma vantagem de carácter patrimonial, seja qual for a forma que essa vantagem revista. Umas vezes a vantagem traduzir-se-á num aumento do activo patrimonial (...); outras, numa diminuição do passivo (...); outras, no uso ou consumo de coisa alheia ou no exercício de direito alheio, quando estes actos sejam susceptíveis de avaliação pecuniária; outras, ainda, na poupança de despesas (...) ” (3)

Diz-se que o enriquecimento é obtido à custa de outrem, quando ao enriquecimento de um dos sujeitos corresponde o empobrecimento do outro; por assim dizer, o mesmo facto ou conjunto de facto que originaram a valorização ou não desvalorização de um património determinam a desvalorização ou não valorização de outro.
Outrossim, diremos que a vantagem patrimonial do beneficiário foi obtida à custa de outrem, “por ser obtida com meios ou bens pertencentes a outrem”, pelo que a “pessoa que, intrometendo-se na utilização de bens alheios, consegue uma vantagem patrimonial, obtém-na à custa do titular do respetivo direito, mesmo que este não estivesse disposto a realizar os actos de onde a vantagem procede.” (4)

A obrigação de restituir pressupõe ainda a necessidade de o enriquecimento não possuir causa justificativa, mormente porque nunca a tenha tido ou porque, tendo-a inicialmente, entretanto a haja perdido.
Pires de Lima e Antunes Varela explicitam que “o conceito de causa do enriquecimento é muito controvertido e o artigo 473º, intencionalmente, não o define, limitando-se cautelosamente a facultar ao intérprete algumas indicações capazes de, como meros subsídios, auxiliarem a sua formulação”; sendo de atentar, neste particular, o critério de orientação facultado pelo n.º 2 do art. 473º, do C. Civil, onde se lê que a “obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objeto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou.” (5)

Logo, saber se um enriquecimento carece de causa justificativa é “um puro problema de interpretação e integração da lei, tendente a fixar a correcta ordenação jurídica dos bens. Quando o enriquecimento criado está de harmonia com a ordenação jurídica dos bens aceite pelo sistema, pode asseverar-se que a deslocação patrimonial tem causa justificativa; se, pelo contrário, por força dessa ordenação positiva, ele houver de pertencer a outrem, o enriquecimento carece de causa.
(…) Com vista a abranger todas as situações de enriquecimento injusto, poderá dizer-se que a falta de causa justificativa se traduz na inexistência de uma relação ou de um facto que, à luz dos princípios aceites no sistema, legitime o enriquecimento (cfr. o acórdão do STJ, de 14 de Janeiro de 1972, no B.M.J., nº 213, p. 214 e segs.).” (6)
Também Galvão Telles, neste conspecto, afirma que: “Parece que tudo se reconduz à interpretação da lei, à determinação da vontade legislativa, isto é, saber se o ordenamento jurídico considera ou não justificado o enriquecimento e se portanto acha ou não legítimo que o beneficiado o conserve. O enriquecimento tem ou não causa justificativa consoante, segundo os princípios legais, há ou não razão de ser para ele. Cumpre ver em cada hipótese, no âmbito do instituto jurídico aplicável, se o enriquecimento corresponde à vontade profunda da lei.” (7)

A causa do enriquecimento varia consoante a natureza jurídica do ato que lhe serve de fonte.
Precisando, e relativamente às situações de enriquecimento resultantes de uma prestação, dir-se-á que “a sua causa é a relação jurídica que a prestação visa satisfazer.” (8)
Por assim dizer, se “a obrigação tem carácter negocial (porque procede de uma venda, um arrendamento, um empréstimo ou uma troca), a causa dela consiste no fim típico do negócio em que se integra. Quando esse fim falha por qualquer razão, as obrigações resultantes do negócio em causa ficam sem causa. Se a venda é nula por falta de forma, ambas as obrigações (a do vendedor e a do comprador) carecem e causa; se é anulada por incapacidade do vendedor, é a obrigação (de entrega do preço) do comprador que não tem causa.” (9)

Por conseguinte, a referida deslocação patrimonial, quando realizada, sem causa justificativa, obriga à restituição que tem por objeto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido, por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou (artigo 473º, n.º 2, do C. Civil). Neste normativo legal, prevêem-se, numa enumeração exemplificativa destinada a dar uma linha de rumo interpretativa, três situações especiais de enriquecimento desprovido de causa: condictio indebiti (repetição do indevido), condictio ob causam finitam (enriquecimento por virtude de causa que deixou de existir) e condictio ob rem (enriquecimento derivado da falta de resultado previsto). (10)

Conclui-se, assim, que a ausência de causa justificativa do enriquecimento a partir da frustração do fim da prestação obrigacional já realizada (e com a qual se enriqueceu outrem) não pode reportar-se, pura e simplesmente, ao incumprimento do enriquecido (por não realizar a sua contraprestação). É que aqui a causa da prestação enriquecedora subsiste (a relação jurídica de onde proveio mantém-se válida e eficaz no ordenamento jurídico); e pode, por isso mesmo, ser coercivamente exigida a realização da contraprestação que pressupunha.

De qualquer modo, a falta de causa da atribuição patrimonial terá necessariamente que ser alegada e provada, de harmonia com o princípio geral estabelecido no art. 342º, n.º 1, do C. Civil, por quem pede a restituição. Assim, “não bastará para esse efeito, segundo as regras gerais do ónus probandi, que não se prove a existência de uma causa de atribuição; é preciso convencer o tribunal da falta de causa.” (11)

Mais se lê, no art. 474º do C. Civil, que: “Não há lugar à restituição, por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento.
Daqui se conclui que a ação baseada nas regras do enriquecimento sem causa tem natureza subsidiária, só podendo recorrer-se à mesma quando a lei não faculte ao empobrecido outros meios de reação. Compreende-se, por isso, que se afirme que “se a situação de facto preenche os pressupostos do enriquecimento sem causa e de mais outro instituto, o disposto no artigo 474º do Código Civil, impede, nestes casos, o recurso às normas do enriquecimento sem causa.” (12)

Neste conspecto, Pires de Lima e Antunes Varela concluem que: “Não há que averiguar, portanto, nos casos citados, se há um enriquecimento sem causa, o que por vezes levanta problemas difíceis de resolver; a acção de enriquecimento é afastada para dar lugar a outros efeitos legais. Sublinhe-se ainda, relativamente aos exemplos apontados (acção de declaração de nulidade, de anulação, de indemnização, etc.), que o instituto do enriquecimento sem causa não será aplicável, por maioria de razão, se o enriquecimento puder e dever ser destruído mediante simples acção (contratual) destinada a exigir o cumprimento do contrato ou por meio da acção de reivindicação (vide, a este respeito, Vaz Serra, na Rev. de Leg. e de Jur., ano 102º, pág. 374).” (13)

Assim também Luís Menezes Leitão (14) afirma que: “Relativamente ao enriquecimento por prestação, a aplicação do art. 473º é naturalmente excluída sempre que exista uma pretensão fundada num negócio jurídico. Os negócios constituem causas justificativas da aquisição enquanto que a acção de enriquecimento pressupõe a ausência de causa justificativa.
Nas palavras de Mário J. de Almeida Costa (15) “sempre que exista uma acção normal (de declaração de nulidade ou anulação, de resolução, de cumprimento, de reivindicação, etc.) que possa ser exercida, o empobrecido deve dar-lhe preferência: não se levantará, pois, questão de averiguar se há locupletamento injustificado. E, então, só apurando-se, por interpretação da lei, que essas normas directamente predispostas não esgotam a tutela jurídica da situação, é que se justifica o recurso complementar ao instituto do enriquecimento sem causa (ex.: em hipóteses de responsabilidade civil).

No Ac. STJ de 26.05.2015 (16), também se conclui que “sempre que outro meio judicial for suficiente para restabelecer o equilíbrio da situação não haverá lugar, por não verificada a subsidiariedade, à acção de enriquecimento sem causa, sob pena de ela ser admitida em praticamente todas as hipóteses de pedido condenatório, como verdadeira panaceia para decisões judiciais transitadas em julgado (e eventualmente, injustas ou apenas incompreendidas) ou até para eventuais negligências das partes na condução das respectivas posições jurídicas no processo.”
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Aqui chegados, na sentença recorrida, o tribunal a quo, começou por considerar – e bem – que entre o Banco autor e o réu foi celebrado um “contrato de abertura de conta bancária”, assumindo Banco autor e o réu deveres recíprocos no que concerne a diversas práticas bancárias e a deveres gerais de conduta decorrentes da boa fé. Mais se afirmou no que se refere à quantia que lhe veio a ser creditada na sua conta bancária, que “o Réu não é efetivamente credor desta quantia, não ocorrendo efetivamente nenhum depósito de numerário, pelo que esta deslocação patrimonial não teve qualquer outra sustentação.
No entanto, o Réu não é um terceiro alheio ao negócio. O Réu acedeu a dar os seus dados para abertura da conta e realizou negócios jurídicos, assinando levantamentos de conta a descoberto e cheques, agindo como testa de ferro da Ré, mediante uma interposição real no negócio.
Dos factos provados conclui-se que o Réu agiu, ainda que no interesse da Ré, em nome próprio, adquirindo direitos e assumindo obrigações, para si e em seu nome próprio.
Assim, o Réu assumiu pessoalmente o levantamento da quantia de 4.000 € a descoberto, no dia 05 de setembro, se não fosse efetuada a operação a crédito, sempre seria responsável pelo pagamento desta quantia.
Por outro lado, entregou à Ré cheques assinados em branco, que foram por esta emitidos e entregues a um terceiro, tendo sido dado pagamento, uma vez que a conta tinha sido creditada com a referida operação.
Caso não tivesse sido creditada, o Réu ficaria sujeito à responsabilidade decorrente da sua emissão, em virtude do descoberto da conta ou perante o portador do cheque.

Na sequência, o tribunal recorrido concluiu do seguinte modo:

O dinheiro entregue pelo Autor permitiu ao Réu não ter de responder pelo descoberto, decorrente dos cheques e das quantias levantadas nos dias anteriores, pelo que corresponderá a um efetivo enriquecimento do Réu, de cobertura das dívidas, que assumiu em nome próprio, à custa do dinheiro do banco Autor.
Inexistindo qualquer outro facto que justifique esta deslocação patrimonial e verificado o efetivo enriquecimento dos Réus, terão estes que responder por esta quantia, que indevidamente e sem qualquer causa que o legitimasse entrou nos seus patrimónios.
Face ao exposto, é de concluir, assim, mostrarem preenchidos todos os requisitos ou pressupostos legais que permitem ao Banco Autor obter dos Réus, com base no instituto do enriquecimento sem causa, a restituição da sobredita quantia de € 19.900,00 (dez mil e novecentos euros).

Nas suas alegações de recurso, o réu apelante não põe em causa que, de facto, existiu um empobrecimento no património do Banco réu, tanto quanto é certo que este sofreu um prejuízo no valor de € 19.999,00, resultante do não cumprimento pela ré do acordo que esta estabeleceu com o funcionário da autora.
Invoca, porém, que não houve qualquer “enriquecimento” por parte do réu recorrente, tanto quanto é certo que a aludida conta bancária n.º ............-5 era titulada pelo recorrente, mas quem a movimentava era a ré, para exercício da sua atividade profissional, permitindo-lhe escapar ao controlo decorrente do seu processo de insolvência pessoal; assim, a quantia em dinheiro entregue na conta do réu foi apenas pedida pela ré e a esta beneficiou, tendo sido utilizada nos seus negócios, permitindo-lhe ter uma disponibilidade financeira que, de outro modo, não teria.
Afigura-se-nos, porém, que sem razão.

De facto, temos como demonstrado que o réu procedeu à abertura de uma conta bancária por si titulada junto Banco réu, operando esta abertura de conta – negócio jurídico complexo e duradouro – como ato nuclear comum dos diversos atos bancários, sejam eventuais, como o “depósito bancário”, ou necessários, como a “conta corrente”. (17)
A “abertura de conta” na definição de Menezes Cordeiro trata-se- de “um contrato celebrado entre o banqueiro e o seu cliente, pelo qual ambos assumem deveres recíprocos relativos a diversas práticas bancárias.
(…) Ela marca o início duma relação bancária complexa entre banqueiro e o seu cliente e traça o quadro básico do relacionamento entre essas duas entidades.” (18)

Mais esclarece o mesmo Autor (19) que “a abertura de conta prevê um quadro para a constituição de depósitos bancários que o banqueiro se obriga, desde logo, a receber. Além disso, ela regula dois aspectos da maior importância prática:

- a conta-corrente bancária;
- o giro bancário.

Quanto à conta-corrente ficam assentes os termos em que a conta, em termos de crédito e de débito, é movimentada (…). No que toca ao giro; ela prevê regras sobre os seus movimentos, incluindo juros, comissões e despesas que o banqueiro poderá debitar e sobre os extractos. Implicitamente, temos aqui uma assunção pelo banqueiro, de todo o serviço de caixa, relacionado com a conta aberta.

Assim, como integrante desde contrato de abertura de conta junto do Banco autor, e incluído na sua execução, podemos ainda dizer que o réu recorrente constituiu com aquele, para além da constituição de uma “conta-corrente bancária”, um contrato de “depósito bancário”, o qual se entende, dominantemente, como sendo um depósito irregular (cfr. art. 1205º, do C. Civil e art. 407º, do C. Comercial), aplicando-se-lhe, na medida do possível, as normas relativas ao mútuo, conforme decorre do disposto no art. 1206º, do C. Civil, nomeadamente a norma prevista no art. 1144º, do C. Civil, de acordo com a qual a coisa mutuada (mais propriamente depositada) se integra desde logo na propriedade do mutuário, o que importa para o depositário a obrigação de restituir “outro tanto do mesmo género e qualidade” (art. 1142º do C. Civil), ou seja, in casu, restituir numerário em quantitativo igual ao depositado. (20) (21)

Por outro lado, seguindo de perto a opinião de Calvão da Silva (22), no âmbito de, entre outros, um contrato de abertura de conta de depósito ou de conta corrente estabelece-se entre a instituição financeira e o cliente uma relação de clientela, que se traduz numa relação obrigacional complexa e duradoura, baseada na estreita confiança pessoal entre as partes (uberrima fides), desenvolvida continuamente por subsequentes e repetidas ou renovadas operações de negócios firmadas pelas partes e assente numa “ligação especial de confiança e lealdade mútua das partes, cuja violação, na negociação, conclusão, execução ou pós-extinção de uma operação financeira acarreta a responsabilidade contratual perante o credor.

Da factualidade provada nos autos, temos então como assente que o réu recorrente procedeu à abertura de uma conta bancária junto de uma das agências do Banco autor, com o n.º ............-5, em Dezembro de 2017, sendo o único titular desta mesma conta; sendo certo, porém, que a ré, habitualmente, realizava depósitos e levantamentos na conta à ordem do réu.
Por sua vez, o réu assinava os cheques, entregando-os à ré, em branco, a pedido desta, que os usava a título pessoal.
Assim, em 05.09.2018, o réu procedeu ao levantamento a crédito de € 4.000,00 em numerário, ficando então a conta em causa “a descoberto”, ou seja, com saldo negativo.
De igual modo, o mesmo réu assinou dois cheques, após o que os entregou à ré, que os preencheu e datou de 07.09.2018, outorgando-os a favor de J. M., nos valores de, respetivamente € 11.500,00 e € 10.000,00. Tais cheques foram apresentados a pagamento no dia 10.09.2018, tendo sido creditados em conta, o que necessariamente representou um aumento daquele saldo negativo antes existente com o levantamento a crédito em numerário daqueles € 4.000,00 por parte do réu recorrente.
Foi então que, na manhã de 10.09.2018, a ré ligou ao referido R. G., solicitando que este procedesse a uma operação bancária de entrega em numerário da quantia de € 6.700,00 na dita conta à ordem n.º ............-5, sem a correspondente entrega de dinheiro, alegando que mais tarde, nesse dia, voltaria ao balcão para regularizar o seu depósito.
Perante a insistência da ré, e à relação de confiança profissional que existia entre ambos, o funcionário acedeu a tal pedido, tendo processado este depósito em numerário pelas 9:34 horas.
Decorrida uma hora, a ré voltou a ligar ao funcionário R. G., solicitando que procedesse a uma segunda entrega, em numerário, pelo valor de € 19.100,00.
Acedendo ao pedido da ré, o funcionário do Banco ... pelas 10:41 horas processou o referido depósito em numerário na conta n.º ............-5 titulada pelo réu, sem a entrega efetiva de qualquer quantia.
Após a hora de almoço, e antes das 15:00 horas, o réu dirigiu-se ao balcão do Banco ... e entregou a R. G. um envelope com a quantia de € 5.900,00.
No final do horário de atendimento, sem que a ré se tivesse deslocado ao balcão para entregar a quantia em falta, nomeadamente € 19.900,00 (correspondente à falha de caixa verificada nesse dia), o colaborador da autora contactou-a telefonicamente, tendo esta alegado que na manhã seguinte iria ao balcão para entregar o montante em falta, o que, porém, não veio a suceder, ficando, assim, o Banco autor com um saldo credor, mercê das descritas operações bancárias, operadas na conta bancária titulada pelo réu recorrente, no valor de € 19.900,00.
Por sua vez, as quantias “depositadas” pelo mencionado funcionário do Banco autor foram então utilizadas para compensação de descobertos em conta, resultantes dos referidos levantamentos em dinheiro, pagamento de encargos, cartões e cheques.
Sendo assim, tal como consta da decisão recorrida, por via das mesmas quantias em dinheiro creditadas na conta bancária em causa – ainda que a pedido da ré –, o réu, enquanto titular da conta em causa e responsável pelos lançamentos a descoberto anteriores, designadamente proveniente do levantamento pelo réu da aludida quantia de € 4.000,00 em numerário e do pagamento dos dois cheques assinados por si, no valor global de € 21.500,00, acabou por beneficiar da totalidade daquelas quantias creditadas em conta no pagamento/compensação do descoberto por si originado, porquanto ficou desobrigado, no âmbito do configurado contrato de abertura de conta bancária celebrado com o Banco autor, de ter que liquidar o mencionado descoberto em conta, sendo, como é óbvio, irrelevante que os valores gerados com tal descoberto se destinaram a cumprir obrigações alheias ao titular da conta.
Poderemos, pois, concluir que houve, de facto, um enriquecimento no património do autor, traduzido na diminuição da dívida (saldo negativo a descoberto) então gerada pelo réu na dita conta bancária, neste caso equivalente ao montante em caixa em falta de € 19.900,00, já que do valor global € 25.800,00 lançados a crédito em numerário na conta bancária do réu (sem qualquer suporte numerário), este apenas logrou entregar efetivamente em numerário o valor de € 5.900,00.
Improcedem, pois, neste segmento, os fundamentos de recurso do apelante.
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Insurge-se, ainda, o réu recorrente no que se refere à verificação in casu do instituto do enriquecimento sem causa, pois que na sua opinião, existe uma causa justificativa para tal enriquecimento do réu (e concomitante empobrecimento do Banco autor), traduzida no descrito acordo celebrado entre o funcionário do Banco autor e a ré.
Assim, conclui que existe uma relação ou um facto que, de acordo com as regras ou princípios do nosso sistema jurídico, justificou a deslocação patrimonial em causa.
De igual modo, considera que não se verifica o requisito da subsidiariedade do instituto do enriquecimento sem causa como meio para a autora ser ressarcida do seu prejuízo, pois que é certo que o Banco autor poderia ter lançado mão da ação de condenação com fundamento na responsabilidade contratual ou, caso assim, não o entendesse, sempre poderia a autora intentar ação de condenação com fundamento na violação pela ré do acordo celebrado com o Banco autor em 10.09.2018, dispondo assim de outros meios legais para ser ressarcida pelos prejuízos verificados.
Desde já se adianta, que, neste particular, já assiste razão ao réu recorrente.

Na realidade, se houve, de facto, lançamento de numerário a crédito na conta bancária do réu, no montante global de € 25.800,00, no dia 10.09.2018, sem qualquer suporte de entregas efetivas em numerário – com exceção do aludido montante de € 5.900,00, entregue pelo réu –, tal deveu-se a um acordo então celebrado e existente entre o aludido funcionário do Banco autor e a ré, mediante o qual, em resultado da relação de confiança existente entre ambos, aquele acedeu ao pedido então efetuado pela ré, procedendo aos mencionados lançamentos em numerário, aceitando que a situação fosse regularizada mais tarde, nesse dia, pela ré.
Tal como afirma o recorrente, não estamos, pois, perante um erro, uma falha de comunicação ou lapso cometido pelo funcionário do Banco autor, mas sim perante uma atuação voluntária e intencional por parte do funcionário do Banco autor emergente daquele acordo.
Acordo esse que não foi cumprido (culposamente) pela ré; mas sendo, tudo se passaria da forma como inicialmente havia sido acordada, repondo-se o valor adiantado pelo Banco autor, no âmbito dos mencionados lançamentos de numerário a crédito na dita conta bancária.
Sem prejuízo da conduta demasiado temerária levada a cabo pelo funcionário do Banco autor, o qual, sem quaisquer garantias, aceitou proceder a lançamentos em numerário fictícios (sem qualquer suporte de entrega em dinheiro) na conta bancária titulada pelo réu, não poderemos deixar de concluir que existiu uma relação jurídica ou facto que, no âmbito do giro bancário então gerado, assentou a deslocação patrimonial em apreço.

Conforme se salienta no sumário do citado Ac. STJ de 24.03.2017 (relator António Joaquim Piçarra), “para que se constitua uma obrigação de restituir, fundada no enriquecimento, não basta que uma pessoa obtenha uma vantagem patrimonial, à custa de outrem.”
É ainda necessário que não exista uma causa justificativa para essa deslocação patrimonial, quer porque nunca houve, por não se ter verificado o escopo pretendido, ou, porque, entretanto, deixou de existir, devido à supressão posterior desse fundamento.
Outrossim, se atentarmos ao descrito modo como ocorreu a deslocação patrimonial em causa, não poderemos concluir que exista falta de causa, porque enquadrável em alguma das situações a que se refere o disposto no n.º 2 do art. 473º, do C. Civil.
Conforme já aludimos supra, cabe ao autor do pedido de restituição, com fundamento no enriquecimento sem causa, o ónus da prova (art. 342º, n.º 1, do C. Civil) de todos os factos integradores ou constitutivos de tal pedido, nos quais se inclui a ausência de causa justificativa desse enriquecimento, o que, porém, o Banco autor não logrou fazer.
Na falta de tal requisito, não pode o Banco autor vir pedir do réu recorrente a restituição do montante peticionado, com base no enriquecimento sem causa.

De todo o modo, mesmo que assim não entendêssemos, sempre teríamos que concluir que o Banco autor dispunha de outro meio legal para vir obter a condenação do réu no pagamento da quantia peticionada.
De facto, conforme assentámos supra, entre o réu recorrente e o Banco autor havia sido celebrado um contrato de abertura de conta, o qual pressupõe necessariamente um conjunto de direitos e deveres para ambos os contraentes, não sendo contratualmente legítimo que o titular da conta bancária venha a beneficiar de lançamentos de quantias creditadas na mesma conta bancária, sem o seu respetivo suporte pecuniário ou financeiro, como aconteceu no caso em apreço.
Como já aludimos o “contrato de abertura de conta” trata-se de um negócio jurídico complexo e duradouro, que marca o início de uma relação entre o Banco e o cliente.
Compreendido nessa mesmo contrato de abertura de conta existe necessariamente uma conta-corrente bancária, onde se vai especificando os movimentos que são efetuados nessa mesma conta, a crédito e a débito.
Claro está, que se essa conta-corrente apresentar um saldo negativo – como a maior parte das vezes sucede com o “descoberto em conta” em que o Banco procede a pagamentos e movimentos a crédito na mesma conta, sem que para tal existam fundos suficientes – então o Banco passará de devedor do depositante (mercê do aludido contrato de depósito bancário inicialmente celebrado) a credor do depositante, porquanto o está a financiar com valores que o mesmo não possui naquela conta.
Estamos agora então “perante um novo contrato emergente de um acto que o banco praticou, no qual – e regido que é pelas regras típicas do mútuo – se mudam os termos da relação obrigacional: quem é credor é o próprio banco que financiou o depositante.”; independentemente de não estarmos “perante um acordo bilateral expresso de vontades, no que respeita ao dito financiamento.”; porquanto assente em relações contratuais de facto, onde “as relações entre o banco e o cliente resultam de um comportamento típico de confiança, que não envolve nenhuma declaração de vontade expressa, ficando tal relação sujeita ao regime do contrato de mútuo.” (23)

Se tal acontece nos casos de “descoberto em conta”, por maioria de razão tal sucederia no nosso caso em que, como já vimos, por via da atuação do Banco autor o mesmo viu o seu anterior “descoberto em conta” compensado no montante de € 19.900,00, com fundos que não eram seus, mas que foram adiantados pelo Banco autor, que, assim, também o acabou por financiar, estando então o réu obrigado a restituir tal valor ao Banco autor (art. 1142º, do C. Civil).
Dispunha, pois, o Banco autor de outro meio legal para vir pedir a restituição dos montantes adiantados ao réu, que, neste caso, seria com base no “contrato de mútuo”, resultante do apontado financiamento realizado ao réu apelante.

Termos em que se conclui pela procedência da apelação, neste particular, impondo-se a revogação da sentença recorrida no que se refere à condenação do réu apelante, a título de enriquecimento sem causa, com a consequente absolvição do réu do pedido.
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V. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação apresentada pelo réu recorrente, revogando-se a decisão recorrida em conformidade e, consequentemente, decide-se absolver o réu recorrente do pedido.

Custas pelo apelante (art. 527º, n.º 1, do C. P. Civil).
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Guimarães, 22.04.2021

Este acórdão contém a assinatura digital eletrónica dos Desembargadores:
Relator: António Barroca Penha.
1º Adjunto: José Manuel Flores.
2º Adjunto: Sandra Melo.


1. Neste sentido, cfr., por todos, Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, Coimbra Editora, 7ª edição, págs. 195-201.
2. Código Civil Anotado, Vol. I, Coimbra Editora, 4ª edição, pág. 454.
3. Para Galvão Telles, ob. cit., pág. 195, “o enriquecimento traduz-se na diferença para mais, entre o valor que o património apresenta e o que apresentaria se não ocorrera determinado facto. Graças a esse facto, o património passou a valer mais ou não passou a valer menos; na diferença está o enriquecimento alcançado.” Neste particular, cfr. igualmente Mário J. Almeida Costa, Direito das Obrigações, Almedina, 9ª edição, págs. 450-452, designadamente quanto à diferenciação entre “enriquecimento real” e “enriquecimento patrimonial”.
4. Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 457.
5. Ob. citada, págs. 454-455.
6. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. citada, págs. 455-456.
7. Ob. cit., págs. 199-200.
8. Pires de Lima e Antunes Varela, ibidem, pág. 455.
9. Cfr. João Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, Almedina, 7ª edição, pág. 471.
10. Neste sentido, cfr., por todos, Luís Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. I, Almedina, 2ª edição, pág. 395.opo
11. João Antunes Varela, Das Obrigações …, pág. 475. No mesmo sentido, cfr., por todos, Ac. STJ de 24.03.2017, proc. 1769/12.5TBCTX.E1.S1, relator António Joaquim Piçarra, disponível em www.dgsi.pt.
12. Diogo Leite de Campos, A Subsidiariedade da Obrigação de Restituir o Enriquecimento, Almedina, 2003, pág. 326.
13. Ob. cit., págs. 459-460.
14. O Enriquecimento Sem Causa no Direito Civil, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal (176) Centro de Estudos Fiscais, Lisboa, 1996, págs. 948-949.
15. Direito das Obrigações …, págs. 459-460.
16. Proc. 169/13.4TCGMR.G2.S1, relator João Camilo, acessível em www.dgsi.pt.
17. Neste sentido, cfr. por todos, Ac. STJ de 24.10.2013, proc. 2/11.1TVPRT.P1.S1, relator Granja da Fonseca, acessível em www.dgsi.pt. 18. Manual de Direito Bancário, Almedina, 3ª edição, págs. 411-412.
19. Ibidem, pág. 413.
20. Por todos, vide na doutrina, Antunes Varela, Depósito Bancário, in Revista da Banca, n.º 21, pág. 66; Calvão da Silva, Direito Bancário, Almedina, 2001, pág. 349; e na jurisprudência, Ac. STJ de 27.05.2003, proc. 03B1251, relator Abílio Vasconcelos; e Ac. STJ de 07.05.2009, proc. 195/2000C2.S1, relator Sebastião Póvoas, acessíveis em www.dgsi.pt.
21. Para maiores desenvolvimentos, vide L. Miguel Pestana de Vasconcelos, Direito Bancário, Almedina, 2017, págs. 139 e segs.; sendo da opinião deste Autor que o contrato de depósito bancário à ordem se traduz num contrato atípico, tendo um núcleo misto composto por elementos de depósito irregular e mútuo, sendo que vai para além deles, sendo mais diferente e complexo do que daí resulta.
22. Ob. cit., págs. 334-336.
23. Por todos, cfr. Ac. STJ de 07.10.2010, proc. 283/05.0TBCHV.S1, relator Serra Baptista, acessível em www.dgsi.pt.