Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
73/15.1T8VNF-G.G2
Relator: LÍGIA VENADE
Descritores: DEPÓSITO VALOR
CONTA DA MASSA INSOLVENTE
AÇÃO APROPRIADA
RESTITUIÇÃO E SEPARAÇÃO DE BENS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/13/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (da relatora):

Alegando a requerente que é titular de determinado valor depositado na conta da massa insolvente (resultado de auto de arrolamento), a ação apropriada para fazer valer o seu direito é a de restituição e separação de bens prevista nos artºs. 141º e segs. do CIRE.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES
*
I RELATÓRIO.

Nos presentes autos foi declarado insolvente por decisão transitada em julgado X Investimentos, Lda veio Y, LDA., sociedade por quotas, NIPC ………, com sede no Parque Industrial de …, Braga intentar acção para verificação ulterior de direito à separação e efectiva restituição de bens contra X Investimentos, Lda, seus credores e sua Massa Insolvente, formulando o seguinte pedido:

a) ser verificado o direito de propriedade da Requerente relativamente ao saldo bancário no valor que existe na conta bancaria da Massa Insolvente decorrente do reembolso operado pela Administração Tributária e a sua insusceptibilidade de apreensão para a massa.
b) Ser ordenada a restituição da referida quantia à Requerente, mediante ordem de transferência directa ordenada pelo Exmo. Senhor Administrador de Insolvência nomeado nos autos da conta da massa insolvente para a conta bancaria da Requerente.
Apresentou contestação Massa Insolvente da Sociedade X Investimentos, Lda, suscitando a intervenção principal provocada da W – Investimentos Imobiliários, S.A., invocando erro na forma de processo, a extemporaneidade da ação, a nulidade dos contratos celebrados, impugnando a factualidade alegada, e formulando pedido reconvencional, bem como defendendo a improcedência do pedido.
*
A 9/9/2020 foi proferida decisão reconhecendo um erro na forma do processo utilizado pela A. e determinando a alteração do tipo de ação para Ação de Verificação Ulterior de Créditos, mantendo-se o processado válido, atenta a sua semelhança prevista na lei, decisão que veio a ser revogada por douto acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 18/2/2021.
*
Recebidos os autos, o Tribunal “a quo” proferiu decisão que julgou a causa totalmente improcedente e absolveu os RR. da instância. Mais atribuiu as custas à requerente.
*
Inconformada, veio a requerente interpor recurso apresentando alegações com as seguintes
-CONCLUSÕES-(que se reproduzem)

“A. Na douta sentença de que se recorre entendeu o Tribunal a quo, mais uma vez, que, se está perante um direito de crédito e não um direito de propriedade, e que portanto, não se verifica o pressuposto essencial para o procedimento do pedido formulado pela Recorrente, pelo que, decidiu pela improcedência do pedido, e consecutiva absolvição dos Réus da instância.
B. Além do mais, tal como no primeiro despacho recorrido, voltou o Exmo. Juiz de Direito a referir a ação adequada seria a verificação ulterior de créditos mesmo após o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães de 18 de janeiro de 2021, que decidiu pela revogação daquela primeira decisão.
C. Como decidido nesse Acórdão, estamos perante uma questão de mérito, questão esta que deve ser estudada pelo Tribunal a quo, devem as partes serem ouvidas e deve produzir-se prova, já que, pelos vistos, nada do alegado da Petição da Autora/Recorrente foi tido em conta pelo Exmo. Juiz de Direito, não tendo o mesmo alterado nada nesta nova decisão.
D. Salvo o devido respeito, que é muito, não fez o Tribunal a quo uma adequada aplicação das normas de direito aplicáveis ao caso sub judice, nem uma correta interpretação da prova feita, indo mais além, e dizendo mesmo que nem uma tentativa de interpretação de tal prova foi feita, pois tal pedido foi indeferido em sede de despacho saneador. Senão, vejamos,
E. O Tribunal a quo diz que por parte do senhor Administrador de Insolvência não foi apreendido qualquer bem, mas sim um direito de crédito. Porém, tal explicação, argumentação (ou falta dela), base legal e qualificação não faz qualquer tipo de sentido
F. A situação em análise trata do montante de 3.883.225,08 (três milhões oitocentos e oitenta e três mil duzentos e vinte e cinco euros e oito cêntimos) que foi prestado a título de caução no âmbito do processo nº 606/13.8BEBRG no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga – tendo sido considerado que o Administrador de Insolvência apreendeu um direito de crédito e não um bem.
G. A única questão suscetível de levantar interrogações, à data, era saber se o dinheiro prestado como caução iria ou não ser devolvido ao Insolvente, consoante a decisão daquela causa lhe fosse ou não favorável, pois, em momento algum quer a Insolvente quer a entidade Cessionária tiveram a faculdade de exigir ao TAF de Braga a realização do pagamento daquele valor, a exigência de uma prestação, impossibilitando desde logo que tal fosse qualificado como direito de crédito.
H. Se dúvidas já não restariam no que tange ao facto de o Administrador de Insolvência ter apreendido um bem, à altura, impossível será, à data desta apelação e à data do Despacho Recorrido, qualificar este bem como um direito de crédito após a caução ter sido devolvida à sociedade insolvente.
I. Sem prescindir que, basta ter em conta a inserção sistemática que o Administrador de Insolvência utilizou naquele aditamento ao Auto de Arrolamento que enquadrou o bem aqui em causa na categoria “BENS MÓVEIS” – referindo-se de forma clara, expressa e inequívoca aquela verba em questão como um bem e não como um direito de crédito, não tendo inserido na categoria “Direitos de Crédito”.
J. Portanto, de forma afirmativa, e contrariando a opinião vertida no despacho, sim o senhor Administrador apreendeu para amassa insolvente as notas e as moedas que foram transferidas pela Administração Tributária para a insolvente, apenas à data em que o fez ainda não era certo que este montante iria ser efectivamente transferido pois estava pendente de decisão judicial
K. Além do mais, não se trata de uma situação em que o Insolvente ou a Massa Insolvente se encontrem numa posição de dívida de um crédito perante a Autora, trata-se de um bem, que é propriedade da Recorrente e que com a interposição desta ação de separação e restituição de bens pretende ver o seu restituído na sua esfera jurídica.
L. O que se trata é o facto de o Insolvente ou a Massa insolvente se encontrarem neste momento a cativar um montante, que por direito, pertence à Autora, e que foi erradamente transferido para o primeiro.
M. Diz também o mesmo Tribunal que não existe direito de propriedade sobre aquele dinheiro em questão, mas sim um direito de crédito, pelo que deixa de haver pressuposto processual para a procedência do pedido.
N. Tal afirmação é totalmente errada, pois efetivamente existe um direito de propriedade sobre aquele montante especifico que foi transferido para a pessoa errada, e como citado no ponto 35, este dinheiro é considerado coisa determinada e fungível e não um direito de crédito.
O. Nos termos do artigo 141º do CIRE e conforme o Acórdão da Relação de Lisboa 17-03-2016, “A restituição de bens é o meio próprio de o titular de um direito real de gozo fazer valer o seu direito e reagir contra uma apreensão deque, com ofensa do direito do reivindicante, resultou uma posse indevida pela massa do bem que estava em seu poder aquando da declaração de insolvência.”.
P. A autora é titular de um direito de propriedade sobre o respetivo dinheiro.
Q. A massa insolvente apreendeu o seu bem, o dinheiro transferido pela autoridade tributária, bem considerado alheio, ofendendo assim o direito da Autora.
R. A Autora quer reagir contra esta apreensão indevida e fazer valer o seu direito.
S. Para tal, intentou uma Ação para a Restituição e Separação de bens.
T. Utilizou, deste modo, a forma de processo adequada para alcançar o seu fim, ver realizado o seu direito e reagir contra a impugnação indevida.
U. Concluindo-se assim, que de facto estamos perante um verdadeiro bem que dá causa a esta ação e NUNCA perante um direito de crédito, como também se comprova a efetiva propriedade daquele bem certo e determinado pela Autora, pelo que o argumento utilizado pelo Juiz de Direito, em 1ª Instância, de que há falta de pressuposto processual para a ação proceder não encontra justificação legal.
V. Pelo que se recorre desta decisão para que uma melhor averiguação dos factos e aplicação do Direito seja feita.
W. De certo modo, nem as alegações feitas pela Autora, em articulado inicial, foram corretamente apreciadas, estudadas e valoradas pelo Tribunal a quo, que decidiu em despacho saneador, não se dignou a produzir prova nem a ouvir as partes pois decidiu a causa sem se realizar quer audiência prévia quer audiência de julgamento.
X. Decisão esta que se contesta na presente apelação.
Y. Assim, encontra-se a Apelante em condições de afirmar que não fez o Tribunal a quo uma adequada aplicação das normas de direito aplicáveis ao caso sub judice, como também uma correta averiguação dos factos alegados pela Autora, pois decidiu o mérito da causa definitivamente antes mesmo de haver lugar à audiência de julgamento e produção das respetivas provas.
Z. Assim, o fundamento constante no douto despacho ora em crise para considerar que a estamos perante a falta de um pressuposto essencial para a procedência daquela ação não tem fundamento jurídico pelo que forçosamente terá o douto despacho que ser revogado com as demais consequências legais.”

Pede que o recurso seja declarado totalmente procedente e, consequentemente:

“a) Ser o despacho considerado nulo, mormente no que diz respeito à não verificação de pressuposto essencial para o procedimento do pedido formulado e consequente decisão de improcedência e absolvição dos réus da instância.
b) Ser a Ação de Restituição e Separação de bens julgada procedente.
c) Ser a massa insolvente condenada à restituição do respetivo valor à Autora.”
*
A X Investimentos, Lda, apresentou contra-alegações com as seguintes
-CONCLUSÕES-

1. O douto recurso interposto parte de um princípio erróneo – o de que o douto Tribunal Recorrido terá ignorado o douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães.
2. O despacho onde se insere a douta sentença recorrida inicia referindo que “Vi o douto acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães que antecede”.
3. Como se não bastasse, e cumprindo com o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, foi consignado na douta sentença recorrida “que a forma de processo é a adequada, em obediência ao princípio da adequação formal previsto no art. 547º do mesmo diploma legal”.
4. Pelo que não corresponde à verdade que a douta sentença recorrida não tenha tido em consideração que foi anteriormente decidido por Tribunal superior.
5. Ademais, contrariamente ao que vem explanado no douto Recurso agora interposto, o douto Tribunal Recorrido, respeitando a forma de processo definida pelo douto Tribunal da Relação, decidiu que “Não se verifica que o pressuposto essencial para o procedimento do pedido formulado pela A. de ocorrência de uma apreensão de um bem em processo de insolvência pelo senhor Administrador da Insolvência que lese a posse ou propriedade da A. quanto ao mesmo”, decidindo que “Na verdade, não foi apreendido qualquer bem, mas um direito de crédito”.
6. Concluindo depois que “Na ausência da verificação deste pressuposto essencial, improcede o pedido formulado pela A”.
7. A Recorrida adere na íntegra a este douto entendimento do Tribunal a quo, o qual sufragou a posição manifestada pela aqui Recorrida em sede de contestação.
8. De resto, não podemos deixar de aderir igualmente ao douto alerta efetuado na Sentença Recorrida, quando nela se refere que “a aceitar-se a possibilidade de instauração de uma acção de separação e efectiva restituição de bens relativamente a um direito de crédito, permitir-se-ia a um credor reclamar um crédito a todo o tempo (uma vez que o direito à separação ou restituição de bens pode ser exercido a todo o tempo cfr. art. 146º, 2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas), esvaziando-se de conteúdo o limite temporal imposto pelo art. 146º, 2, als. a) e b) do mesmo diploma para a reclamação ulterior de créditos”.

Sem prescindir,
9. O contrato de cessão de créditos celebrado entre a Insolvente e a sociedade W, dispõe na sua cláusula sétima que “Se por algum motivo e não obstante a comunicação referida na cláusula anterior a Primeira Outorgante receber algum montante da Autoridade Tributária Direção Geral de Finanças de Braga a este título, obriga-se, no prazo máximo de cinco dias, a proceder à imediata entrega do mesmo à Segunda Outorgante”.
10. Assim, em face do contratualmente estabelecido, no limite, estaríamos perante um incumprimento contratual, que constituiria a Recorrente na titularidade de um direito de crédito sobre a Insolvente.
11. Direito de crédito este que estaria sempre sujeito à verificação de uma condição, mas que, mesmo assim, careceria sempre de ser reclamado no âmbito dos presentes autos.

Por fim, a título subsidiário,
12. Estabelece o artigo 144.º, nº 1 do CIRE, que “No caso de serem apreendidos bens para a massa, depois de findo o prazo fixado para as reclamações, é ainda permitido exercer o direito de restituição ou separação desses bens nos cinco dias posteriores à apreensão, por meio de requerimento, apensado ao processo principal”.
13. Nos presentes autos, o alegado direito cuja restituição a Recorrente peticiona foi objeto de auto de apreensão datado de 13/03/2019.
14. O artigo 144.º, nº 1, do CIRE estabelece claramente o prazo de 5 dias contados a partir da data da apreensão para que seja requerida a separação ou restituição.
15. Assim, tendo aquela apreensão ocorrido há muito mais de 6 meses após a instauração da ação, claro está que a presente ação é extemporânea, tendo o alegado direito invocado pela Recorrente precludido,
16. Devendo, também por tal motivo, a presente ação ser julgada totalmente improcedente.
17. Em face do exposto, deve o presente recurso ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se na íntegra a douta decisão recorrida.
***
Após os vistos legais, cumpre decidir.
***
II QUESTÕES A DECIDIR.

Decorre da conjugação do disposto nos artºs. 608º, nº. 2, 609º, nº. 1, 635º, nº. 4, e 639º, do Código de Processo Civil (C.P.C.) que são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo. Impõe-se ainda ao Tribunal ad quem apreciar as questões de conhecimento oficioso que se resultem dos autos.

Impõe-se por isso no caso concreto e face às elencadas conclusões decidir se:

-face aos fundamentos alegados e ao estado dos autos o Tribunal podia decidir pela improcedência do pedido e absolvição dos R.R. da instância;
-impõe-se a apreciação de mais questões suscitadas nesta instância de recurso.
***
III MATÉRIA DE FACTO.

Para a decisão do presente recurso importa atentar no teor das peças processuais –requerimento inicial e contestação- bem como no teor do Acórdão desta Relação, elementos referidos no relatório “supra”. Importa em concreto e ainda atender no seguinte (que resulta da consulta eletrónica dos autos e que consta da decisão proferida e sob recurso):

Alega a requerente que:

A. Por contrato denominado contrato de cessão de crédito/ dação em pagamento, outorgado aos 11 de Junho de 2014, entre a sociedade W – Investimentos Imobiliários, S.A. e a ora insolvente, esta última cedeu à referida W um crédito potencial infra melhor discriminado para pagamento de uma dívida que a insolvente tinha para com essa sociedade no valor de 3.360.000,00€ (três milhões, trezentos e sessenta mil euros).
B. Tal dívida resultou de um serviço de intermediação efetuado pela aludida W à sociedade X que culminou com a alienação por parte desta do prédio rústico denominado “Quinta do …”, sito na freguesia de …, concelho de Braga à sociedade C. – Investimento Imobiliário, S.A., pelo valor de 28.000.000,00€ (vinte e oito milhões de euros).
C. Em Março de 2013, a aqui insolvente X intentou processo de impugnação no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, com vista à impugnação de uma dívida fiscal que lhe era imputada pela Autoridade Tributária, o qual foi distribuído sob o processo nº 606/13.8BEBRG.
D. Sendo que por referência a tal processo, a insolvente entregou ou foi penhorada em valor superior ao montante em dívida à sociedade W, pelo menos no que ao capital diz respeito, tendo tal montante ficado na posse da Autoridade Tributária.
E. Da procedência de tal impugnação resultaria uma obrigação de reembolso por parte da Autoridade Tributária de todo o montante indevidamente recebido e/ou retido por esta respeitante à dívida objeto da impugnação supra referida, acrescida de juros à taxa legalmente em vigor.
F. A ação administrativa supra referida foi declarada procedente tendo a Administração Tributária sido condenada a proceder ao reembolso mencionado no contrato.
G. De acordo com o contrato outorgado entre a insolvente e a referida W, esse montante deveria ser entregue à W ou, se assim não fosse e por algum motivo fosse entregue à sociedade ora insolvente esta teria, nos termos do disposto na cláusula sétima, cinco dias para proceder à restituição do montante recebido.
H. Sucede que, no passado dia 16 de Agosto de 2019, por contrato denominado “contrato de cessão de créditos” a aludida W cedeu à aqui Requerente o crédito que detinha sobre a Autoridade Tributária decorrente do contrato por si outorgado aos 11 de Junho de 2014.
I. Pelo valor melhor constante no contrato e já pago.
J. Pelo que e não tendo ocorrido qualquer recebimento por parte desta até essa data, a Requerente subrogou-se no lugar desta em todos os direitos que lhe cabiam por força do contrato junto.
K. Na presente data e de acordo com informações recolhidas junto da cessionária do crédito, a Autoridade Tributária já procedeu ao pagamento do montante, sendo que, de forma indevida, procedeu ao pagamento em questão não à aqui Requerente, nem tão pouco à aludida W, mas sim à Insolvente.
E da consulta do apenso de apreensão de bens constata-se que:
L. Por requerimento apresentado a 12/3/2019 (refª 8368855) no apenso C de Apreensão de Bens, o senhor Administrador da Insolvência juntou ao processo um Aditamento ao Auto de Arrolamento de Bens, consistente no seguinte:
“Bens Móveis:
Verba 3: Caução prestada pela sociedade insolvente no âmbito do processo de impugnação intentado por aquela e que correu termos sob o nº 606/13.8BEBRG pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga.
Valor: Euros 3.883.225,08”.
M. Esta quantia encontra-se depositada em conta bancária da massa insolvente.
*
IV O MÉRITO DO RECURSO.

Em primeiro lugar e previamente a qualquer outra análise, cumpre verificar se a decisão proferida e sob recurso violou o decidido pelo Acórdão desta Relação de 18/2/2021, tal como é dito nas alegações de recurso.
É verdade que, conforme contra-alegações, na decisão sob recurso se afirma que “O processo é o próprio…”, uma vez que no dito Acórdão, revogando a decisão de 1ª instância que considerou haver erro na forma de processo, decidiu-se que “Procede, pois, o recurso, devendo o despacho recorrido ser substituído por outro que considere não se verificar o invocado erro na forma de processo, determinando-se o prosseguimento dos autos, em conformidade.”
Significa isto que formalmente cumpriu-se o Acórdão proferido.
De facto, o Acórdão diz-nos que o tipo de processo a utilizar tem de ser aferido face ao pedido formulado e conclui que no caso se verifica a exigida conformidade; e que a compatibilidade entre o pedido formulado e os fundamentos alegados determina a procedência ou improcedência da ação. E diz também que face aos pedidos formulado nos autos a forma de processo é a correta -ação de restituição e separação ulterior de bens.
A decisão agora sob recurso só pode basear-se nos fundamentos alegados, dado que sobre os mesmos ainda não foi produzida qualquer prova, e é com base nestes que se entendeu que a requerente não alega o direito de propriedade sobre um bem apreendido para a massa; refere-se que a requerente tinha de alegar, por ser constitutivo do seu direito, facto donde permita concluir pela sua propriedade sobre os bens em causa; mais, diz que a requerente reivindica a propriedade do saldo da conta bancária da massa insolvente decorrente do reembolso operado pela Administração Tributária e a sua insusceptibilidade de apreensão para a massa, mas que na realidade não foi apreendido qualquer bem para a massa mas sim um direito de crédito (…); assim, o direito que figura na esfera jurídica da A. é não o direito de propriedade sobre o saldo bancário (determinadas notas e moedas) mas sim o direito de crédito que resulta do mesmo. Logo, conclui, não se verifica o pressuposto essencial para o procedimento do pedido formulado pela requerente de ocorrência de uma apreensão de um bem que lese a posse ou propriedade da requerente. E conclui que para a reclamação de um direito de crédito a ação adequada é a reclamação de créditos.
Ora, salvo o devido respeito, decidir neste sentido é voltar a dizer que a requerente devia ter lançado mão da ação de reclamação de créditos, embora agora se dê um outro enquadramento á questão que passa supostamente antes pela análise dos fundamentos e não do pedido.
Todavia, a análise dos fundamentos alegados –e não os que o Tribunal entende que deviam ter sido alegados- remete para a titularidade do saldo bancário. Ou seja, a requerente diz que o valor em causa lhe pertence.
Saber se assim é ou não passará pelo enquadramento devido dos contratos celebrados entre as três sociedades envolvidas, aferida a respetiva factualidade, nomeadamente a controvertida -termos da celebração/validade, qualificação e análise dos contratos juntos aos autos, e se perante os mesmos a requerente tem antes e quando muito um direito de crédito por força do seu incumprimento, como defende a recorrida (matéria controvertida face às exceções invocadas pela requerida contestante).
Por outro lado, diz o Tribunal que não foi invocada a propriedade de qualquer bem apreendido para a massa porque o que foi apreendido foi um direito de crédito.
Não podemos concordar com esta afirmação uma vez que o valor em causa já se encontra depositado numa conta titulada pela massa insolvente, já foi devolvido pela Autoridade Tributária (independentemente da correção dos termos usados no auto).
O dinheiro depositado é por isso um bem móvel fungível e como tal suscetível de apreensão como tal.
E o que a requerente alega é que esse bem não podia ter sido apreendido porque não pertence à massa, mas sim à requerente. Alegou por isso a propriedade como facto essencial para a propositura desta ação.
Face a esta alegação, cabia ao Tribunal aferir da realidade contratual, prosseguindo os autos para o efeito. O que não poderá é dizer que, face ao alegado, a ação tem de improceder e absolver os R.R. da instância, o que, além do mais, encerra uma contradição: a improcedência do pedido que refere antes teria de conduzir à absolvição do pedido e não da instância.
No caso dos autos, o crédito cedido foi depositado em conta à ordem da massa insolvente e foi apreendido para a massa. Ora, na versão da requerente este é um direito de crédito por si titulado, e não um direito de crédito sobre a massa insolvente.
Logo estaremos perante uma pretensão de direito real e não perante o exercício de um direito de crédito sobre a massa insolvente.
Contudo, conforme diz Luís Manuel Teles de Menezes Leitão (“Direito da Insolvência”, pag. 254 da 9ª edição), a restituição de bens pode inclusive ser aplicada a casos particulares de direitos de crédito.
Note-se que um saldo bancário envolve sempre um contrato de depósito, pelo que se é essa a perspetiva do Tribunal “a quo”, diremos que não é essa relação que aqui está em causa para definir o objeto da ação; o que interessa não é a relação entre depositante e a entidade bancária (pois sob esse prisma a propriedade do dinheiro é do Banco), mas sim no confronto entre cedente e cessionário quanto à titularidade do valor depositado, e objeto do auto de arrolamento.
São apreendidos para a massa bens e direitos de crédito do insolvente –o seu património –artºs. 46º e 149º CIRE. Assim sendo, quer os bens quer os direitos de crédito apreendidos podem ser objeto de uma ação de restituição/separação de bens se um terceiro vem alegar que lhe pertencem (no caso, podendo cogitar-se o disposto na alínea a), do nº. 1 do artº. 141º, ou a alínea c), conforme matéria que se venha a apurar).
Sempre se dirá por isso que uma coisa é estar apreendido um direito de crédito, cuja titularidade também podia ser discutida, outra coisa seria a requerente ter um direito de crédito sobre a massa. E o que dizemos é que no caso concreto e face ao alegado (única matéria a que nos podemos ater nesta fase) nem uma coisa nem outra se verifica.
As demais questões suscitadas no recurso não foram ainda objeto de apreciação pelo Tribunal recorrido (designadamente o mais referido nas alegações do recurso -ser a ação de restituição e separação de bens julgada procedente b); ser a massa insolvente condenada à restituição do respetivo valor à Autora c); e nas contra-alegações -se ação é tempestiva) e também aqui não podem ser apreciadas uma vez que os autos terão de prosseguir.
Por tudo o exposto, nem se verifica qualquer exceção que conduza à absolvição da instância das R.R., nem se os autos comportam matéria que importe nesta fase a sua improcedência, pelo que a decisão proferida tem de ser revogada e substituída por outra que determine o prosseguimento dos autos de restituição e separação de bens tal como previsto nos artºs. 141º e segs. do CIRE, com a análise das demais questões suscitadas. Verifica-se conformidade entre o alegado e o peticionado, pelo que apenas em sede de apreciação de mérito após produção de prova, caso a ação prossiga até essa fase, se poderá dizer se a pretensão da requerente tem ou não sustento factual.
Procede por isso o requerido na alínea a) da conclusão do recurso, não por força da nulidade do despacho mas por força da sua revogação por não se verificar manifesta improcedência da ação, não contendo os autos elementos necessários para a sua decisão nesta fase.
***
V DISPOSITIVO.

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso parcialmente procedente e, em consequência, dar parcial provimento à apelação e revogar a decisão proferida que julga improcedente a ação e absolve os R.R. da instância, determinando o prosseguimento dos autos com apreciação das questões suscitadas.
Custas do recurso pelas partes na proporção de metade para cada uma (artº. 527º, nºs. 1 e 2, C.P.C.).
*
Guimarães, 13 de julho de 2021.
*
Os Juízes Desembargadores
Relator: Lígia Paula Ferreira Sousa Santos Venade
1º Adjunto: Jorge dos Santos
2º Adjunto: Maria da Conceição Bucho

(A presente peça processual tem assinaturas eletrónicas)