Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1258/19.7T8VCT-H.G1
Relator: JOSÉ FLORES
Descritores: PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
EFICÁCIA DA VENDA
EXERCÍCIO DO DIREITO DE REMIÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/17/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (1):

- Os executados ou, no caso da insolvência, os insolventes/devedores, não têm, ab initio, legitimidade substantiva para exercerem o direito de remição previsto no art. 842º, do Código de Processo Civil, seja em nome próprio, seja em nome dos familiares que, de acordo com essa mesma norma, detêm, potencialmente e pela ordem aí estabelecida, a titularidade desse direito.
- A mera violação do preceituado no art. 161º, do CIRE, não afecta a eficácia da venda realizada pelo administrador da insolvência, excepto se as obrigações por ele assumidas excederem manifestamente as da contraparte, como estipula o art. 163º, do mesmo Código.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES NA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:

I – Relatório

Recorrente(s): A. R. e M. C.

- Recorrido/a(s): CAIXA ..., S.A. e demais Credores dos insolventes
*
No apenso F, de Liquidação da insolvência em que foram declarados insolventes os aqui Recorrentes, foi em 15.9.2020 proferido despacho que apreciou os Requerimentos de 31.08.2020 [36338197], de 08.09.2020 [36407940] e de 14.09.2020 [36466364], apresentados no mesmo.
Nesse primeiro requerimento, os Recorrentes, acompanhados da sua alegada filha A. C., que só nesse acto se fez representar nestes autos através de mandatário forense, vieram pedir que o Tribunal se dignasse: a) anular a venda à CAIXA ... S.A. do prédio urbano destinado a habitação, composto de rés-do-chão, 1º e 2º andares, dependência, terreno de logradouro e cultivo, sito na freguesia de ..., Viana do Castelo, descrito no registo predial sob o nº .., por violação do artigo 161º, n.º 1 e 4 do CIRE, e ainda por inobservância do direito de remição previsto nos artigos 842º e seguintes do CPC; b) Aceitar o exercício do direito de remissão da A. C..
Foi então determinada a notificação da A.I. e da Recorrida a fim de se pronunciar.
A Recorrida Caixa ... emitiu a sua posição em 8.9.2020, terminando com pedido de indeferimento do requerido, declarando-se plenamente válida a venda já concretizada e não aceitando o exercício do direito de remição da A. C., por extemporâneo.
A Srª. A.I. pronunciou-se em 14.9.2020, concluindo que, sic: deve o requerimento ora em resposta ser indeferido: a) Por não haver fundamento para anular a venda realizada à Caixa ..., SA, nem violação do artigo 161º, números 1 e 4, do CIRE; b) Por não constituir exercício do direito de remição, nos termos do artigo 842 e 843º do CPC, o qual nunca foi exercido anteriormente no processo por A. C..

Foi proferido novo despacho que conheceu deste incidente e que culminou com o seguinte dispositivo:

“Por tudo quanto vem de se expor, julga-se improcedente a pretendida nulidade da venda à Caixa ... S.A. do prédio urbano destinado a habitação, composto de rés-do-chão, 1º e 2º andares, dependência, terreno de logradouro e cultivo, sito na freguesia de ..., Viana do Castelo, descrito no registo predial sob o nº .., quer por alegada violação do artigo 161º, n.º 1 e 4 do CIRE, quer ainda por eventual inobservância do direito de remição previsto nos artigos 842º e seguintes do CPC.
Custas pelos requerentes, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal.”
*
Inconformados com tal decisão, dela interpuseram os Insolventes/Devedores o presente recurso de apelação, em cujas alegações formulam as seguintes
conclusões:

A. O recurso vem interposto do despacho, datado de 15 de Setembro de 2020, em que foi indeferido o requerimento dos recorrentes em que estes solicitavam ao tribunal a quo a anulação da venda à Caixa ..., SA (Caixa …) do prédio urbano destinado a habitação, sito na freguesia de ..., em Viana do Castelo, casa de morada de família apreendida a favor da massa insolvente; bem como requeriam a admissão do exercício do direito de remição da filha do casal insolvente, A. C..
B. Os recorrentes não podem, de modo algum, concordar com esse indeferimento, entendendo que o mesmo viola tanto o dever de informação da titular do direito de remição, como viola o dever de informação dos próprios insolventes.
C. Pois, apesar de não expressamente previsto na lei, muita jurisprudência tem entendido que tal dever de informação se impõe, não só quanto ao devedor como também quanto ao titular do direito de remissão, uma vez que esse direito não pode ser exercido se o titular do direito não for informado.
D. O direito de remição é um direito sujeito a prazo de caducidade estabelecido no artigo 843º n.º 1, al. b) do CPC, sendo que o mesmo poderia ter sido exercido até a data da assinatura da escritura pública.
E. Sendo condicio sine qua non para que tal aconteça que a titular do direito tenha conhecimento efectivo dessa data.
F. Assim entende parte da jurisprudência, tendo sido referenciado o Acórdão do tribunal da Relação de Coimbra de 07/11/2006 e o Acórdão do tribunal da Relação de Guimarães de 06/10/2004 em que, neste último, relatou Carvalho Martins o seguinte: “I. O direito de remição inspira-se no propósito de defender o património familiar, de obstar a que os bens saiam da família do executado para as mãos de pessoas estranhas.
II. Para que tal aconteça, no entanto, torna-se necessário que o remidor de tal tenha conhecimento efectivo para procedimento em conformidade.
III. E para que haja o conhecimento da venda a que se refere o art. 913°, alínea b), do Cód. Proc. Civil, é necessário, tratando-se de imóveis, que o remidor esteja informado não só do ajuste, como da data e local da celebração da escritura”.
G. O tribunal bem como a Administradora de insolvência foram informados do interesse da filha dos insolventes em exercer o seu direito de remição.
H. Nenhum dos recorrentes recebeu qualquer informação sobre as diligências do processo entre 27/03/2020 e agosto 2020.
I. Altura em que tomaram conhecimento que já se tinha efectivado a escritura pública de compra e venda do imóvel.
J. Uma vez que a filha dos insolventes não teve conhecimento da data marcada para a celebração da escritura pública, não podia saber qual o prazo para exercer o seu direito, o qual se frustrou por falta do dever de informação.
K. Ora, adoptando a tese seguida pela jurisprudência citada, deverá o despacho recorrido ser substituído por outro que anule a venda por violação do dever de informação da A. C., impedindo assim o exercício do seu direito de remição, o qual deverá, por conseguinte ser admitido.
L. Contudo, caso se entenda que não existia obrigação de informação da A. C. enquanto titular do direito de remição (o que meramente se pondera mas não se aceita), não se pode negar a obrigatoriedade de informar os insolventes, ora recorrentes.
M. Pois, o legislador parte do princípio de que o insolvente deu ao remidor a informação necessária sobre a venda e ser suficiente esse meio de conhecimento.
N. No entender do acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 18 de Outubro de 2018: “ao não ter tido conhecimento da data e do local para a celebração da escritura pública ou de ato notarial equivalente, o remidor ficou privado de perfectibilizar a preferência qualificada na compra do imóvel e, assim sendo, o exercício pontual do direito de remição ficou irremediavelmente prejudicado, o que constitui uma nulidade processual com influência na decisão da causa.”
O. Os insolventes deveriam ter sido notificados para que estes pudessem informar a filha.
P. Assim sendo, e também por esta via, deverá o despacho recorrido ser substituído por outro que anule a venda, por violação do dever de informação dos insolventes e que admita o exercício do direito de remição da filha dos insolventes.
Q. Posto isto, convém ainda acrescentar que o direito de remição (que encontra a sua origem na ideia de protecção do património familiar) pressupõe, sempre, uma venda coactiva ou forçada de bens do devedor, com a finalidade de com o produto da sua venda se dar satisfação aos credores.
R. Para os quais é de todo indiferente a origem do dinheiro com que vão ser pagos os seus créditos.
S. Ou seja, o direito de remição que em nada importa aos credores é da máxima importância para o devedor e os seus familiares, principalmente quando o bem em causa é a casa de morada de família, procurando evitar a dissipação do património familiar para mãos estranhas.
T. Defende Alberto dos Reis in Processo de Execução, vol. II, pgs. 477, 478 que: “O direito de remição é nitidamente um benefício de carácter familiar. Dá-se ao cônjuge do executado e aos descendentes e ascendentes deste o direito de adquirir para si os bens adjudicados ou vendidos, pelo preço da adjudicação ou da venda.
Na sua actuação prática o direito de remição funciona como um direito de preferência: tanto por tanto os titulares desse direito são preferidos aos compradores ou adjudicatários. A família prefere aos estranhos. Porque admitiu a lei esta preferência a favor da família? A razão é clara. Quis-se proteger o património familiar; quis-se evitar que os bens saíssem para fora da família.”
U. Daí que todos os intervenientes no processo se devam pautar pela necessidade de coadjuvar a eficácia do instituto, tentando sempre que possível (como o é no caso) e em nome da justiça evitar a perda do património familiar para terceiros.

Termos em que, e nos que V.ªs Ex.ªs doutamente suprirão, deve ser concedido provimento ao presente recurso, e em consequência ser o despacho recorrido substituído por outro que:
a) Anule a venda do prédio urbano destinado a habitação, sito na freguesia de ..., viana do castelo, descrito no registo predial sob o nº 30, por violação do dever de informação da A. C., ou caso assim não se entenda, dos próprios insolventes A. R. e esposa M. C.;
b) Admita o exercício do direito de remição por parte da A. C., filha dos insolventes.

Os Recorridos não apresentaram contra-alegações.

II – Delimitação do objecto do recurso e questões prévias a apreciar:

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, nos termos do artº 639º, do Código de Processo Civil (doravante C.P.C.).

As questões enunciadas pelos recorrentes podem ser sintetizadas da seguinte forma:

· A anulação da venda do imóvel em causa;
· A admissão do exercício do direito de remição por parte da A. C., filha dos Recorrentes.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

III – Fundamentos

1. Factos (cf. art. 662º, do Código de Processo Civil)
Os tidos em conta pela decisão recorrida:
a) Teve lugar a realização de um leilão electrónico que decorreu com a notificação e pleno conhecimento dos devedores, conforme correio electrónico de 10/09/2019 aos mesmos enviado;
b) No decurso do leilão electrónico, que terminou em 24/09/2019 que foi feita uma proposta em nome de L. P. e A. C., pelo valor de € 150.00,00, sem que tivesse sido, na altura, feita menção de que esta última era filha dos insolventes e que, como tal, pretendia exercer o direito de remição;
c) Entretanto, tendo sido notificado o credor hipotecário, Caixa ... S.A., este propôs a alienação do bem por preço superior à proposta recebida, qual seja o valor de € 165.000,00;
d) Por requerimento apresentado nos autos principais e datado de 22/11/2019, os insolventes informaram que a filha A. C. aguardava aprovação iminente de crédito e que pretendia exercer o seu direito de remissão, pedindo ao tribunal o adiamento da entrega do imóvel;
e) Por sua vez, a aceitação da proposta da Caixa ... S.A pela Administradora de insolvência foi posta em causa em recurso de apelação interposto pela Caixa …, também credora no processo
f) O recurso em sujeito foi decidido em 26/03/2020, tendo sido julgado improcedente, mantendo a decisão da Administradora de Insolvência;
g) Do acórdão naqueles termos proferidos foram os insolventes notificados, por expediente datado de 27/03/2020, na pessoa do respectivo mandatário judicial;
h) Entretanto, foi outorgada a escritura de compra e venda do imóvel apreendido nos autos aos 10/07/2020.
i) Em sede de assembleia de credores para o efeito convocada, foi aprovada a proposta apresentada no relatório elaborado pela Srª. Administradora, no sentido de os autos prosseguirem para liquidação dos bens apreendidos, entre os autos figurava o imóvel em sujeito.

2. Direito

Na apelação em apreço os insolventes colocam duas questões distintas que, porém, no seu discurso recursivo estão intimamente ligadas ou interdependentes.
Sucede que o seu silogismo ignora dados determinantes para o sucesso de qualquer uma dessas pretensões.
Com efeito, sem prejuízo de aceitarmos que o direito de remição discutido tem lugar, em tese, também na venda coactiva realizada em sede de liquidação do património dos insolventes, é preciso, desde logo, estar ciente da sua titularidade para correctamente se analisarem as questões que, a propósito, se colocam nesta apelação.
Na verdade, o art. 17º, do CIRE, dita que os processos regulados por si se regem pelo Código de Processo Civil, em tudo que não contrarie as disposições daquele e esta é uma regra que teremos presente nas citações infra operadas.
Nesse Código de Processo Civil (doravante CPC), no seu art. 842º, na Secção sobre essa Remição e sob o título “A quem compete”, estabelece-se que ao cônjuge que não esteja separado judicialmente de pessoas e bens e aos descendentes ou ascendentes do executado é reconhecido o direito de remir todos os bens adjudicados ou vendidos, ou parte deles, pelo preço por que tiver sido feita a adjudicação ou a venda.
Perante essa norma e o direito que nela se confere, os Apelantes desenvolvem todo um raciocínio jurídico assente na pressuposição de que estamos perante um direito colectivo, a exercer, a final, por um conjunto de pessoas, no caso eles e a filha (que alegam ser sua descendente mas até agora não demonstraram através da devida prova autêntica (cf. arts. 342º, nº 1, do Código Civil, e 293º, do C.P.C.)).
Contudo, com as devidas ressalvas, essa posição não tem assento na norma em apreço, nem em qualquer interpretação que possa exceder os limites da sua letra (a do citado art. 842º, do C.P.C.).
Na verdade, como escreveu, Lopes do Rego no Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 9.3.3017 (2), O direito de remição – que “consiste essencialmente em se reconhecer à família do executado a faculdade de adquirir, tanto por tanto, os bens vendidos ou adjudicados no processo de execução” (José Alberto dos Reis, Processo de Execução, vol. 2.º, reimpressão, Coimbra, 1982, p. 476) – “tem raízes profundas no nosso sistema jurídico”, que remontam às Ordenações e que, com ligeiras variações quanto ao leque dos familiares em que era encabeçado e à natureza dos bens sobre que podia ser exercitado, foi mantido desde o Decreto n.º 24, de 16 de Maio de 1832 (artigo 153.º), passando pela Reforma Judiciária de 1837 (artigo 248.º), pela Novíssima Reforma Judiciária (artigo 602.º), pela Lei de 16 de Junho de 1855 (artigo 16.º), até aos Códigos de Processo Civil de 1876 (artigo 888.º), de 1939 (artigo 912.º) e de 1967 (artigo 912.º) – cf. autor e obra citados, p. 477, e Eurico Lopes-Cardoso, Manual da Acção Executiva, Lisboa, 1987, pp. 660-662.
(…) A protecção da família, através da preservação do património familiar, evitando a saída dos bens penhorados do âmbito da família do executado, é, deste modo, o objectivo da consagração legal do direito de remição.
Sem embargo desse desígnio fundador, esse direito não é atribuído pelo legislador ao conjunto de pessoas que constitui o núcleo familiar pressuposto no citado art. 842º mas sim, de acordo com a ordem aí estabelecida aos familiares do ou dos executados o que significa que esse objectivo de protecção do património familiar não envolve ou não atribui aos próprios executados, enquanto integrantes do núcleo familiar em causa, legitimidade substantiva ou adjectiva para, por si, exercerem esse direito.
Como já E. Lopes Cardoso (3) lembrava a propósito de norma similar do Código de Processo Civil então vigente - Bem ou mal, o legislador entendeu que não era conveniente manter ao executado o direito de remição de bens.
Aliás, como escreve Marco C. Gonçalves (4), pressupostas as razões subjacentes à consagração do direito de remição, este direito não pode sequer ser cedido a um terceiro (5).
Assim, pressuposto essencial para que o exercício do direito de remição – para além da qualidade de familiar próximo do executado e com as ligações indicadas no artigo 842º é que o remidor não seja parte na execução. Se o for já não há lugar a remição, visto que essa figura implica que o mesmo seja um terceiro relativamente à execução (6).
É ainda isso que defende também M. Teixeira de Sousa (7) quando discute o alargamento do âmbito subjectivo desse direito: Sendo assim, o exercício do direito de remição pelo executado só está excluído quando a dívida for do próprio executado, dado que seria estranho que se admitisse que o executado que não pagou a dívida exequenda pudesse adquirir o bem cuja venda se destina a pagar essa mesma dívida. Se o executado possui liquidez para comprar o bem vendido na execução, o que se pode esperar é que essa liquidez seja utilizada para pagar, pelo menos parcialmente, a dívida exequenda, o que, aliás, até pode deixar sem justificação, atendendo ao princípio da instrumentalidade da venda executiva (cf. art. 813.º, n.º 1, CPC), a própria venda do bem que tinha sido penhorado.
De acordo com o critério enunciado, o herdeiro que se torna executado por habilitação pode exercer o direito de remição na venda do bem da herança que se encontra penhorado, mas já não o pode fazer o cônjuge executado quanto a um bem comum ou a um bem próprio do outro cônjuge que responde por uma dívida comum. Dado que o que releva para o reconhecimento do direito de remição é que o executado não seja o devedor da dívida exequenda, o mesmo há que concluir no caso da pluralidade de executados, designadamente por haver uma pluralidade de devedores, uma pluralidade constituída pelo devedor e pelo fiador e ainda uma pluralidade integrada pelo devedor e pelo terceiro que é titular do bem sobre o qual recai a garantia real (cf. art. 54.º, n.º 2, CPC).
Posto isto e sem prejuízo da discussão do direito à informação processual relevante que os executados ou, no caso, os insolventes, tenham no processo de venda para puderem, por sua vez, promover junto dos referidos familiares o exercício desse direito de remição, certo é que, em primeiro lugar, inexiste na esfera jurídica dos mesmos legitimidade substantiva para o exercerem, razão pela qual todo o seu argumentário carece de sustento ou viabilidade prática.

Mais, em segundo lugar, e sem prejuízo disso, sucede neste caso concreto que, se existia na esfera jurídica da alegada filha dos apelantes, A. C., e só nessa, esse direito, o mesmo está neste processo definitivamente afastado pela decisão agora impugnada, na medida em que esta se conformou com a mesma e não acompanhou os Recorrentes nesta sua impugnação recursiva, como transparece dos autos (cf. art. 662º, nº 1, do Código de Processo Civil).
Senão vejamos.
A decisão em crise apreciou as pretensões dos Apelantes e da alegada filha que, indistintamente, formularam pedidos que, só aqueles, renovam nesta instância de recurso.
Todavia, entre os mesmos não existe nada mais do que um potencial interesse comum que, no entanto, não se traduz em qualquer litisconsórcio necessário (cf. art. 32º, do C.P.C.) ou se insere em alguma das excepções previstas no art. 634º, nº 2, do mesmo Código.
Ora, em princípio, como escreve Abrantes Geraldes (8), o acto de interposição de recurso apenas aproveita ao recorrente, solução a que preside o princípio da relatividade, por oposição ao princípio da realidade, e que se retira da interpretação dos dispositivos do art. 628º, e, a contrario, da previsão do citado art. 634º, ambos do C.P.C..
Deste modo, quando a mencionada A. C. se conformou com decisão proferida e não a impugnou nos moldes previstos nos arts. 627º, e ss., do C.P.C., mediante recurso ordinário, ficou definitivamente julgado nos autos que não lhe assiste actualmente direito a anular a venda em causa e/ou a exercer direito de remição em relação à venda outorgada pela Caixa ..., tal como decorre com evidência do disposto no art.620º, do C.P.C.: (1) As sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo.
Mais se pode afirmar que, em face desse caso julgado formal, fosse qual fosse a decisão deste recurso sempre a mesma deveria ser preterida (no que diz respeito a esse direito supostamente existente na esfera jurídica dessa “filha” dos Apelantes e que, repete-se, só aquela podia exercitar), por aquela que em primeiro lugar foi proferida sobre essa questão, como está escrito no art. 625º, nº 2, do Código de Processo Civil.

Do exposto decorre que, sem prejuízo do acerto dos argumentos da decisão recorrida, que aqui não precisamos de discutir, a Apelação em apreço, no que diz respeito à decisão que apreciou o direito de remição titulado pela referida A. C., é infundado e deve ser, desde já, julgado improcedente, com prejuízo para os restantes argumentos aduzidos (cf. arts. 5º, nº 3, e 608º, nº 2, do C.P.C.).

Resta apreciar o alegado direito de anulação da venda em crise.
Neste pondo temos de relembrar o quadro legal de invalidades em que se insere esse acto processual.
Subsidiariamente, como já deixamos dito acima, o regime aplicável é o do Código de Processo Civil mas esse só deve ser atendido na medida em que não contrarie o disposto no CIRE.
E aqui esse regime específico do processo de insolvência prevê uma especial irrelevância de determinadas irregularidades para a eficácia da venda realizada.
Com efeito, os Recorrentes alegam que a venda em causa deve ser anulada porque foi violado o seu direito à informação e a exigência de consentimento por parte da assembleia de credores, previsto no art. 161º, nºs 1 e 4, do CIRE.
Todavia, no art. 163º, do mesmo Código, estipula-se que a violação do disposto nos dois artigos anteriores não prejudica a eficácia dos actos do administrador da insolvência. Dessa regra exceptua-se apenas o caso em que as obrigações por ele assumidas excedam manifestamente as da contraparte.
No caso, sem prejuízo de ser evidente que a venda realizada nos autos ocorreu sob a modalidade de “leilão electrónico”, distinta da negociação particular prevista no citado art. 161º, nº 4 (cf. art. 811º, do C.P.C.), e que, portanto, não lhe é aplicável a exigência aí estabelecida e invocada pelos Recorrentes, está expresso nessa norma que essa violação, ainda que tivesse ocorrido, nunca determinaria a anulação da venda em causa ou seja, nunca poderia, por si só, colocar em causa a sua eficácia.
De qualquer modo e ainda que tivesse ocorrido também a alegada falta de consentimento da comissão de credores (questão de facto que, por ser impertinente, não iremos discutir mas que os Recorrentes também não contrariaram (cf. arts. 640º, do C.P.C.)), como afirma Maria do Rosário Epifânio (9), a violação do disposto no citado art. 161º, em regra, só desencadeia consequências para o administrador da insolvência (cf. ar. 59º, nº 1, do CIRE), em nada afectando a eficácia do acto praticado.
A manutenção da eficácia dos actos do administrador da insolvência representa uma tutela dos terceiros em prejuízo dos credores. (10)
Destarte, como aqui não se verificam, nem foram previamente alegados, factos que consubstanciassem um desequilíbrio manifesto entre as obrigações assumidas pelo administrador da insolvência e a contraparte, insiste-se, nenhuma falta que se reconduza às regras previstas no invocado art. 161º poderia conduzir à anulação pretendida pelos Recorrentes.
De resto, conforme jurisprudência do Tribunal da Relação de Lisboa, de 27.11.2014, citada por Maria do Rosário Epifânio (11), a possibilidade de reacção contra os actos do administrador está hoje dependente não só da sua qualificação ao abrigo do disposto no citado art. 163º, 2ª parte, mas também de uma acção declarativa (e não de um incidente da liquidação) dirigida contra quem pretenda aproveitar ou fazer prevalecer o acto e contra o administrador infractor, para a qual tem legitimidade qualquer credor ou o devedor. (12)
Em face do que fica dito, a apelação deve, portanto, improceder igualmente no tocante à pretendida anulação da venda.

IV. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem esta 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar improcedente a apelação.

Condenam-se nas custas do incidente os Recorrentes (cf. art. 527º, do Código de Processo Civil).
N.
*
Guimarães, 11-01-2021


Relator – Des. José Flores
1ºAdj. - Des. Sandra Melo
2º Adj.- Des. Conceição Sampaio



1. Da responsabilidade do relator – cf. art. 663º, nº 7, do Código de Processo Civil.
2. http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/-/4CE2B2F4CCDA807C802580DF0038328E
3. In Manual da Acção Executiva, 3ª Ed., p. 617
4. In Lições de Processo Civil Executivo, 2ª Ed., p. 472
5. No sentido de que esse não pode ser exercido pelo executado vide Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 1.3.2001, citado por Marco C. Gonçalves, ob. cit., p. 472, nota 1674
6. Assim dizem Virgínio da Costa Ribeiro e Sérgio Rebelo, in A Ação Executiva Anotada e Comentada, 2ª Ed. digital, p. 465
7. In https://blogippc.blogspot.com/2018/05/pode-o-executado-exercer-o-direito-de.html
8. In Recursos no Nono Código de Processo Civil, 4ª Ed., p. 98
9. Ob. cit., p. 324
10. Ana Prata, Jorge M. Carvalho e Rui Simões, in C.I.R.E. Anotado, 2013, p. 462
11. Ob. cit., p. 325, nota 1049
12. Nesse sentido lemos também Ana Prata, Jorge M. Carvalho e Rui Simões, in C.I.R.E. Anotado, 2013, p. 462 e 463