Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2685/19.5T8BCL-E.G1
Relator: ROSÁLIA CUNHA
Descritores: NULIDADE DA DECISÃO
DILIGÊNCIA PROBATÓRIA
TEMPESTIVIDADE DO REQUERIMENTO
PODER JURISDICIONAL ESGOTADO
PRINCÍPIO INQUISITÓRIO
RESERVA À INTIMIDADE DA VIDA PRIVADA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
SUMÁRIO (da responsabilidade da relatora, conforme art. 663º, nº 7, do CPC)

I - Só a falta absoluta da indicação dos fundamentos de facto ou de direito da decisão é geradora da nulidade prevista no art. 615º, nº 1, al. b), do CPC, não ocorrendo tal vício nas situações de mera deficiência, insuficiência ou mediocridade de fundamentação.
II - Quando o juiz, invocando expressamente o princípio do inquisitório consagrado no art. 411º, do CPC, ordena a realização de uma diligência probatória porque a considera necessária para apurar um dado facto, fá-lo para além ou independentemente de qualquer requerimento apresentado pela parte nesse sentido, pelo que, ainda que a parte tenha sugerido a sua realização, é irrelevante que essa sugestão não tenha sido apresentada no momento processual adequado e tempestivo.
III - Da “extinção do poder jurisdicional consequente ao proferimento da decisão decorrem dois efeitos: um positivo, que se traduz na vinculação do tribunal à decisão que proferiu; outro negativo, consistente na insusceptibilidade de o tribunal que proferiu a decisão tomar a iniciativa de a modificar ou revogar”.
A intangibilidade da decisão proferida é, naturalmente, limitada pelo respetivo objeto no sentido de que a extinção do poder jurisdicional só se verifica relativamente às concretas questões sobre que incidiu a decisão.
IV - No direito processual civil vigoram, desde há muito, os princípios do dispositivo e do inquisitório. Todavia, o equilíbrio entre ambos tem vindo a alterar-se ao longo do tempo e o legislador tem conferido sucessivamente maior prevalência ao princípio do inquisitório, com a consequente compressão do princípio do dispositivo.
O princípio do inquisitório adquire especial aquidade e relevância na fase da instrução do processo, uma vez que o tribunal não está limitado aos elementos probatórios apresentados pelas partes, tendo o poder-dever de procura da verdade material, correspondendo esta àquilo que efetivamente ocorreu na realidade, impendendo sobre o juiz a obrigação de reunir toda a prova que seja necessária à formação completa e esclarecida da sua convicção.
Esta regra é transversal a toda a fase de instrução da ação, valendo para qualquer um dos meios de prova legalmente admissíveis.
V - Pese embora o primado da prevalência da substância sobre a forma e as finalidades de busca da verdade material e justa composição do litígio, importa não esquecer que no processo civil vigoram outros princípios que não podem ser postergados e que com aqueles têm de conviver de forma equilibrada, designadamente, os princípios do dispositivo, da preclusão e da autorresponsabilização das partes.
Este ponto de equilíbrio há-se procurar-se e encontrar-se sopesando o confronto dos aludidos princípios no caso concreto, considerando-os com as suas particulares especificidades, e não esquecendo que o exercício do poder-dever conferido pelo princípio do inquisitório não pode ser uma forma de suprimento oficioso de comportamentos groseira e indesculpavelmente negligentes em violação do princípio da autorresponsabilidade das partes.
VI - No confronto entre os interesses públicos e preponderantes de boa administração da justiça e de efetiva realização dos fins da atividade judicial, nos quais se integra a justa composição do litígio e a busca da verdade material, com o interesse de reserva da intimidade da vida privada no sentido de não divulgação de informações bancárias, este último tem de ceder e ser comprimido na medida necessária e proporcional para possibilitar a satisfação do primeiro, considerando-se que a diligência de junção de extratos bancários que foi ordenada, com a sua concreta extensão e depois de esgotadas todas as restantes diligências probatórias e sendo ainda certo que se está perante uma situação de alegada simulação em que é muito difícil obter uma prova direta, sendo necessário recorrer a indícios e presunções para conseguir demonstrar a sua ocorrência, é uma diligência que respeita os aludidos princípios da adequação, da exigibilidade e da justa medida.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

RELATÓRIO

Banco 1..., CRL. veio propor contra AA e BB ação declarativa de processo comum pedindo que se declare nulo, por vício de simulação, o reconhecimento de dívida e, consequentemente, se declare igualmente nula a letra de câmbio que visava garantir os supostos valores mutuados pelo 2º réu.

Na p.i. requereu, entre outras provas:
c - a notificação do réu AA para que junte aos autos os seguintes documentos:
- comprovativos do recebimento da importância de € 34 750,00, provenientes do depósito do cheque emitido pelo 2.º réu,
- extratos das suas contas bancárias entre 1 de janeiro de 2019 a 1 de setembro de 2019.
Estes documentos destinam-se à prova dos pontos 47.º a 128.º desta petição.

d - a notificação do réu BB para que junte aos autos os seguintes documentos:
- comprovativos de transferência da quantia de € 34 750,00 a favor do 1.º réu
- extratos das suas contas bancárias entre 1 de janeiro de 2018 a 1 de setembro de 2019
Estes documentos destinam-se à prova dos pontos 47.º a 128.º desta petição.
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Ambos os réus apresentaram contestação.
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Findos os articulados, foi proferido despacho, em 27.7.2020, que, na parte que aqui releva, e após ter dispensado a realização da audiência prévia:

a) fixou à causa o valor de € 40 017,02;
b) identificou como objeto do litígio aferir “se o mútuo de € 34 750,00 realizado pelo réu BB ao réu AA, em Junho de 2019, e se a emissão da letra de câmbio no valor de € 39.962,00 e com vencimento em 25.7.2019, pelo réu AA e a sua entrega ao réu BB, foram simulados (art. 240º do Código Civil)”;
c) enunciou os temas da prova, constituindo o tema da prova nº 7 apurar “se o réu BB nunca entregou ao réu AA, que também não recebeu, a quantia de € 34 750 em junho de 2019”;
d) determinou a notificação dos “réus para, em 10 dias, juntarem os documentos pedidos pela autora nos pontos c. e d. do requerimento probatório”.
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Na sessão da audiência final que teve lugar em 5.5.2022, o réu AA prestou depoimento.
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Em 6.5.2022, a autora apresentou requerimento (ref. ...20) no qual pediu que “se notifique o réu AA para juntar aos autos os extratos da conta bancária titulada pela sua falecida esposa relativos aos meses de .../.../2023 a dezembro de 2019 para a qual transferiu, em 7.8.2019, a quantia de € 34 750,00”.
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O réu AA exerceu o contraditório quanto a esta pretensão nos termos constantes do requerimento que apresentou em 19.5.2022 (ref. ...88).
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A apreciação do requerimento apresentado pela autora em 6.5.2022 foi relegada para momento posterior à prestação do depoimento de parte do réu BB (cf. despacho de 26.5.2022).
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Na sessão da audiência final que teve lugar em 6.7.2022, o réu BB prestou depoimento.
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Terminado o depoimento do réu BB, foi proferido o seguinte despacho:

“Quanto ao requerido pela autora no seu requerimento apresentado nos autos em 06/05/2022:
Face à prova entretanto produzida nos autos, importa ainda apurar cabalmente, designadamente para efeitos do ponto 7) dos temas de prova enunciados, o destino do montante de € 34.750,00 que foi entregue por cheque do réu BB ao réu AA, sendo certo que, dos depoimentos de parte prestados, não resultou qualquer confissão da alegada matéria.
Face ao exposto, e com vista a apurar cabalmente o destino dado a tal quantia e, tendo em consideração o referido pelo réu AA no seu depoimento de parte quanto a esse destino, ao abrigo do disposto no artigo 411º do C.P.C., determino que se notifique o réu AA nos exatos termos requeridos pela autora no seu requerimento de 06.05.2022.
Notifique.”
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Notificado deste despacho, o mandatário do réu AA invocando o “cumprimento do seu dever de cooperação processual, requereu que se consignasse que o próprio réu AA já diligenciou junto do banco pela obtenção dos elementos ora solicitados, o que lhe foi negado.
Em face do exposto mostra-se impossibilitado de cumprir o ora determinado.”
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Na sequência desta declaração, foi proferido despacho com o seguinte teor:
“Em face do ora comunicado pelo Il. Mandatário do 1º réu, determino que se oficie diretamente ao banco em causa para que preste a informação solicitada no referido requerimento de 06.05.2022, ou seja, a junção aos autos dos extratos bancários da conta titulada pela ex-cônjuge do réu AA, relativos aos meses de .../.../2023 a dezembro de 2019, para a qual foi transferida, em 07.08.2019, a quantia de € 34.750,00.”
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O réu AA não se conformou com este último despacho e interpôs o presente recurso de apelação, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:
“1. A diligência probatória inserta no despacho de fls., vertido na acta de fls., afigura-se inadmissível, infundada e extemporânea, assim como violadora dos direitos de reserva da vida privada de terceiro que sequer é parte nos Autos;
2. O despacho em crise o mesmo objecto, facto ou questão, ignora despachos proferidos nos autos, a saber em 16.04.2021, 12.05.2021, 25.05.2021, que por terem transitado em julgado, impedem que o Tribunal “ a quo”, se debruce novamente sobre a referente matéria ordenando a diligência em crise;
3. Uma vez proferido despacho de fls. datado de 25.05.2021, afirmando que o R., aqui Recorrente, não está obrigado a informar as razões de ter entregue a quantia de €34.500,00 à dita CC (decesa, e que não é parte nos autos, testemunha, sequer interveniente acidental), nem qual a relação que tem com a mesma, encontra-se esgotado o poder jurisdicional quanto a posteriores requerimentos, incidentes sobre a referente matéria, que transitou em julgado, sem o que se mostra violado o constante dos artigos 628.º e 613.º, n.º 1, ambos, do C.P.C.;
4. Não tendo ocorrido nos autos, qualquer alegação, pronuncia ou fundamentação nesse sentido, o que sempre se afiguraria exigível, caso o Tribunal “a quo” considerasse a existência de motivo inovador, legítimo e relevante, passível de justificar nova pronúncia, por parte do mesmo, e estando esgotado o poder jurisdicional, qualquer despacho proferido em sentido contrário, padece de invalidade stricto sensu ou ineficácia processual, que expressamente se invoca, por violação do princípio da intangibilidade da decisão;
5.O requestado pela Recorrida, em 06.05.2022, e que determinou o despacho em cotejo, perene de justificação com a respectiva necessidade superveniente, fundamentada em factos, devidamente alegados e demonstrando a sua essencialidade face aos temas de prova, é manifestamente infundado e extemporâneo.
6.E assim, o ordenado, viola o disposto o princípio do dispositivo (art.º 3.º e 5.º, do C.P.C.), o princípio da autorresponsabilidade das partes, o princípio da eventualidade ou da preclusão e o princípio da igualdade das partes (art.º 4.º do C.P.C.);
7. Compulsados os autos, o despacho em crise, sem ignorar em particular o despacho datado de 25.05.2021, evidencia a não verificação dos necessários pressupostos para efeitos do disposto no artigo 411.º, do C.P.C.;
8. Não sendo a titular da conta bancária em apreço parte nos presentes Autos, nem tendo sido alegada matéria de facto ou constando dos temas de prova factos que possam ser comprovados pela prova ordenada, a mesma é impertinente e inoportuna, e por conseguinte, inadmissível, e, aliás, por maioria de razão, não se alcança qual o iter lógico-dedutivo e cogitante percorrido pelo Tribunal “a quo” para, depois de declarar por despacho de fls., datado 25/05/2021, transitado em julgado, que “Não é objecto destes autos saber qual foi o destino que o réu AA deu ao dinheiro que recebeu do réu BB”), agora venha com surpresa – configurando decisão surpresa que se invoca- ordenar uma diligência probatória destinada deduz-se, indagar o destino que um terceiro, CC lhe possa ter dado, e
9. Padece de nulidade por falta de fundamentação, nos termos previstos no artigo 615.º, n.º1, al. b), do C.P.C., uma vez que a simples menção da necessidade de esclarecer cabalmente, designadamente para efeitos do ponto 7), não cumpre tais exigência, sobretudo quando estamos perante direitos conflituantes;
10. A quebra do sigilo bancário encorpa características de excepcionalidade, devendo ser aferida com base na estrita necessidade, numa lógica de indispensabilidade e limitar-se ao mínimo imprescindível à concretização dos valores pretendidos alcançar, e não como no caso sub-judice alimentar a pura alcoviteirice da Recorrida e acólitos;
11. O ordenado, em crise, e nos termos vertidos, sem prescindir do anteriormente invocado, ordenando a junção de extratos bancários de um terceiro que não é parte nos Autos, afigura-se manifestamente excessivo e desproporcional, acrescidamente quando se pretende a junção integral de extratos relativos a um hiato temporal também, por si, injustificado, pois, admitindo por mera hipótese que é relevante o destinado dado a uma determinada quantia, por uma terceiro, deceso, e que não é parte nos autos, bastará aceder a informação bancária que declare se entre a dita CC e o Co-R. BB, no período solicitado aconteceu algum movimento a débito para crédito deste último, na identificada conta bancária.
12. Na dialética entre interesses conflituantes, seja o direito à reserva da vida privada e o direito à descoberta da verdade material, sempre se impunha restringir o âmbito e alcance da diligência probatória em causa, ao estritamente necessário e imprescindível, nomeadamente ordenando-se que a entidade bancária informasse os Autos da eventual transferência de valores da CC para o Co-R. BB, quais as datas e montantes, e nada mais do que isso, aliás como pronta e prioritariamente se disponibilizou o Recorrente;
13. Actuando de forma diversa, o Tribunal “ a quo”, através da decisãoproferida, cotejda, s.d.r., incorre na violação do estatuído nos artigos 130.º, 410.º, 411.º, 417.º, 429.º e 436.º, do C.P.C. e art.º 26.º, n.º 1, da C.R.P.;”
*
A autora contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida, tendo formulado as seguintes conclusões:

1.ª - O recorrente perdeu o direito a recorrer do despacho impugnado no momento em que referiu já ter, por sua própria iniciativa, tentado a diligência probatória ordenada pelo Tribunal a quo, pois que ao fazê-lo manifestou a sua concordância com a decisão, por isso certamente reputando a mesma como relevante à descoberta da verdade e à boa decisão de causa - vd. n.ºs 2 e 3 do art. 632.º do CPC
2.ª - Não obstante e com o devido respeito, não assiste razão ao recorrente quando alega a inadmissibilidade legal do despacho impugnado por contradição de julgados entre este despacho proferido em 06.07.2022 e o despacho proferido em 21.05.2021
Por um lado, porque não existiu qualquer contradição de julgados, considerando que o objeto dos despachos é manifestamente distinto: no despacho de 25.05.2021 o Tribunal a quo indeferiu os pedidos da recorrida para que AA explicasse a sua relação com CC e que esta fosse arrolada como testemunha; enquanto no despacho de 06.07.2022 o Tribunal a quo ordenou a junção aos autos dos extratos da conta bancária titulada por CC.
Por outro lado, porque se é certo que nesse despacho de 25.05.2021 o Tribunal a quo afirmou não ser objeto dos autos o destino que AA deu ao dinheiro que recebeu de BB, tal afirmação conheceu uma exclusão na parte em que o mesmo Tribunal referiu precisamente “a menos que o dinheiro tivesse regressado à conta deste réu, ou que AA tivesse transferido o dinheiro para BB, para depois este devolver/emprestar o dinheiro aquele” e essa foi a situação que se verificou no caso em apreço.
Acresce que na apreciação que este TRG fez desse despacho em sede de recurso foi bem destacado que essa decisão poderia vir a ser revista em face da prova que, entretanto, fosse produzida e do (não) esclarecimento das dúvidas existentes.
2.ª - Também merece frontal oposição, ainda neste ponto, a tese do recorrente de que o despacho impugnado teria sido proferido já depois de esgotado o poder jurisdicional do Tribunal a quo com a prolação do despacho de 25.05.2021 porque o poder jurisdicional só se esgota com a prolação de sentença (o que não sucedeu) e porque o Tribunal nesse despacho excluiu do âmbito da sua decisão precisamente a situação em apreço, relativamente à qual reconheceu que posteriormente poderia vir a ser reapreciada - vd. n.º 1 do art. 613.º do CPC
3.ª - A recorrida discorda ainda que a diligência tenha sido requerida e ordenada intempestivamente. Assim defende porque o pedido dessa diligência, formulado pela recorrida em 06.05.2022, foi formulado por consideração à necessidade de prova que se verificou na decorrência de facto ocorrido no dia anterior (05.05.2022).
E também o defende porque, independentemente disso, o Tribunal a quo pode/deve, ao abrigo do poder-dever de investigação que sobre si recai, ordenar, em qualquer momento, a produção de todas as provas que repute como pertinentes à descoberta da verdade (e os extratos bancários cuja junção foi ordenada é meio de prova pertinente e necessário à descoberta da verdade e boa decisão da causa)
- vd. arts. 411.º, 417.º, n.º 1 e 436.º do CPC
- vd. Ac. TRP de 11.01.2021, proc. n.º 549/19....
4.ª - Igualmente a recorrida não concorda que o despacho impugnado padeça de nulidade por falta de fundamentação por não se mostrarem preenchidos os requisitos do art. 411.º do CPC para que fosse ordenada a diligência probatória em causa
Desde logo porque a falta de motivação a que alude a alínea b) do n.º 1 do art. 668.º do CPC como motivo de nulidade da decisão é a total e absoluta omissão dos fundamentos de facto ou de direito em que assenta a decisão e isso não se verifica no caso em apreço, já que o Tribunal a quo justificou a pertinência da diligência probatória em virtude da falta de esclarecimento nos depoimentos dos réus do conjunto de questões que carecem de explicação, reputando-a ainda como necessária ao tema 7 dos temas de prova.
5.º - Ademais, de outra forma não poderia ser porque os depoimentos dos réus não lograram dar resposta às diferentes questões que, com pertinência, se colocam:
- se o produto do alegado mútuo solicitado se destinava a fazer face a “compromissos inadiáveis”, por que razão, em vez de o encaminhar para as pessoas com quem estava “comprometido”, o colocou na conta da sua esposa?
- porque razão não entregou DD, mãe do recorrente, diretamente ao seu filho o valor de 25.000,00€, se este lhe pertencia e lhe cabia destiná-lo, e antes os depositou na conta de BB?
- porque transferiu o BB os € 12.500,00 para a sua própria conta e, só após requisitar cheques emitiu um a favor do recorrente, em vez de também logo fazer a entrega ou transferência direta daquele montante para a conta deste?
Ora, considerando que estamos perante uma ação de simulação em que há suspeitas fundadas de que AA, depois de ter recebido de BB a importância de € 34 750,00, a restituiu, então é necessário saber qual foi, efetivamente, o destino dado a essa importância pelo recorrente e daí a necessidade da junção aos autos dos extratos bancários da conta titulada pela sua falecida mulher, para a qual o recorrente transferiu essa importância - vd. arts. 411.º, 417.º, n.º 1 e 436.º do CPC
6.ª - A recorrida não concorda com a substituição dos extratos bancários da conta titulada por CC pela mera indicação das datas e movimentos entre as contas bancárias de CC e BB: em primeiro lugar porque entende que o período temporal está já comprimido ao máximo considerando a situação de simulação e os cuidados em escamotear o “giro de dinheiro”; em segundo lugar porque entende que é necessária a junção dos extratos, com o registo de todas as movimentações, não sendo suficiente indicação de transferências de/para BB porque com essa informação ficará sempre por saber se existiram outros movimentos, realizados através de interposta pessoa ou para outra bancária de BB que se desconhece (e assim tornando inútil a diligência).”
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O recurso foi admitido na 1ª instância como de apelação, a subir imediatamente, em separado, com efeito devolutivo, não tendo sido objeto de alteração neste Tribunal da Relação.
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O tribunal a quo pronunciou-se sobre a invocada nulidade da decisão recorrida, tendo considerado que a mesma não se verifica por o despacho especificar, de forma suficiente, os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
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Foi proferido despacho pela relatora que concluiu que a autora/recorrida não tem razão quanto à questão que veio invocar nas contra-alegações, não tendo o réu AA perdido o direito de recorrer, face ao disposto no art. 632º, nºs 2 e 3, do CPC, pois não aceitou a decisão depois de ela ter sido proferida.
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Foram colhidos os vistos legais.

OBJETO DO RECURSO

Nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC, o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações do recorrente, estando vedado ao Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso, sendo que o Tribunal apenas está adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para o conhecimento do objeto do recurso.
Nessa apreciação o Tribunal de recurso não tem que responder ou rebater todos os argumentos invocados, tendo apenas de analisar as “questões” suscitadas que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Por outro lado, o Tribunal não pode conhecer de questões novas, uma vez que os recursos visam reapreciar decisões proferidas e não analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes.

Neste enquadramento, as questões relevantes a decidir, elencadas por ordem de precedência lógico-jurídica, são as seguintes:
I - saber se o despacho recorrido padece de nulidade por falta de fundamentação;
II - saber se a diligência probatória ordenada no despacho recorrido deveria ter sido indeferida por o requerimento a pedir a sua realização ter sido apresentado extemporaneamente;
III - saber se o despacho recorrido é legalmente inadmissível por incidir sobre matéria relativamente à qual se encontra esgotado o poder jurisdicional;
IV - saber se se verificam os pressupostos legais previstos no art. 411º do CPC para que seja ordenada a diligência probatória;
V - saber se o despacho recorrido viola o direito de reserva à intimidade da vida privada.

FUNDAMENTAÇÃO

FUNDAMENTOS DE FACTO

Os factos relevantes para a decisão a proferir são os que se encontram descritos no relatório, os quais resultam da consulta dos atos processuais praticados.

I - Nulidade do despacho recorrido

O recorrente considera que o despacho recorrido é nulo, por falta de fundamentação.

Dispõe o art. 615º, nº 1, do CPC, que é nula a sentença quando:

a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.

As nulidades da sentença são vícios formais e intrínsecos de tal peça processual e encontram-se taxativamente previstos no normativo legal supra citado.
Os referidos vícios, designados como error in procedendo, respeitam unicamente à estrutura ou aos limites da sentença.
As nulidades da sentença, como seus vícios intrínsecos, são apreciadas em função do texto e do discurso lógico nela desenvolvidos, não se confundindo com erros de julgamento (error in judicando), que são erros quanto à decisão de mérito explanada na sentença, decorrentes de má perceção da realidade factual (error facti) e/ou na aplicação do direito (error juris), de forma que o decidido não corresponde à realidade ontológica ou normativa, com a errada aplicação das normas jurídicas aos factos, erros de julgamento estes a sindicar noutro âmbito (cf. Acórdão desta Relação de 4.10.2018, Relatora Eugénia Cunha, in www.dgsi.pt).
O vício da sentença decorrente da não especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, abreviadamente designado como vício de falta de fundamentação, encontra-se diretamente relacionado com a obrigação de o juiz fundamentar as suas decisões que não sejam de mero expediente, obrigação essa que lhe é imposta pelos arts. 154º e 607º, nºs 3 e 4, do CPC, e pelo art. 205º, nº 1, da CRP.
A exigência de fundamentação exerce a dupla função de facilitar o reexame da causa pelo tribunal superior e de reforçar o autocontrolo do julgador, sendo um elemento fundamental na transparência da justiça, inerente ao ato jurisdicional (José Lebre de Freitas, in A Ação Declarativa Comum À Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª edição, pág. 317).
Impõe-se ao juiz não só que explicite o que decidiu, mas também que indique os motivos que determinaram tal decisão, esclarecendo porque assim decidiu.
Na verdade, só sabendo os concretos fundamentos que justificaram a prolação da decisão as partes terão a possibilidade real e efetiva de proceder à sua impugnação e suscitar a sua sindicância por um tribunal superior.
Todavia, é entendimento pacífico e consolidado quer da doutrina, quer da jurisprudência que só a falta absoluta da indicação dos fundamentos de facto ou de direito será geradora da nulidade em causa, não ocorrendo tal vício nas situações de mera deficiência, insuficiência ou mediocridade de fundamentação.
Assim, como já afirmava o Prof. Alberto dos Reis, (in Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 140) “há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeitando-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto. Se a sentença especificar os fundamentos de direito, mas não especificar os fundamentos de facto, ou vice-versa, verifica-se a nulidade”.
Em idêntico sentido, referem Antunes Varela e outros (in Manual de Processo Civil, 2ª edição, p. 687), que, “para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente e incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito”.
Estas considerações são aplicáveis aos despachos, com as necessárias adaptações (art. 613º, nº 3, do CPC).

Assentes nestas premissas, e revertendo ao caso concreto, verificamos que foi proferido um primeiro despacho com o seguinte teor:

“Quanto ao requerido pela autora no seu requerimento apresentado nos autos em 06/05/2022:
Face à prova entretanto produzida nos autos, importa ainda apurar cabalmente, designadamente para efeitos do ponto 7) dos temas de prova enunciados, o destino do montante de € 34.750,00 que foi entregue por cheque do réu BB ao réu AA, sendo certo que, dos depoimentos de parte prestados, não resultou qualquer confissão da alegada matéria.
Face ao exposto, e com vista a apurar cabalmente o destino dado a tal quantia e, tendo em consideração o referido pelo réu AA no seu depoimento de parte quanto a esse destino, ao abrigo do disposto no artigo 411º do C.P.C., determino que se notifique o réu AA nos exatos termos requeridos pela autora no seu requerimento de 06.05.2022.”

Perante a declaração prestada pelo réu AA de estar impedido de cumprir o determinado nesse despacho, é proferido então um segundo despacho, que é o despacho recorrido, o qual tem o seguinte teor:
Em face do ora comunicado pelo Il. Mandatário do 1º réu, determino que se oficie diretamente ao banco em causa para que preste a informação solicitada no referido requerimento de 06.05.2022, ou seja, a junção aos autos dos extratos bancários da conta titulada pela ex-cônjuge do réu AA, relativos aos meses de .../.../2023 a dezembro de 2019, para a qual foi transferida, em 07.08.2019, a quantia de € 34.750,00.”
Daqui decorre que a fundamentação não consta do despacho recorrido, mas sim do primeiro despacho proferido, não tendo o despacho recorrido autonomia a esse nível, pois limitou-se a determinar que a junção de elementos ordenada no primeiro despacho e com base nos fundamentos nele elencados seja feita diretamente pelo banco, e não pelo réu AA, como havia sido inicialmente determinado, visto este ter declarado estar impedido de cumprir o que lhe foi ordenado nesse primeiro despacho.
Lendo o primeiro despacho, o qual supra se transcreveu, verifica-se que o mesmo contêm a respetiva fundamentação.
Ora, só ocorre nulidade da decisão se a mesma for absolutamente omissa quanto à fundamentação, o que não ocorre no caso dos autos posto que o despacho está fundamentado.
Por conseguinte, conclui-se que o despacho recorrido não padece do vício de nulidade que o recorrente lhe imputa, improcedendo esta questão recursória.

II - Extemporaneidade do requerimento em que foi pedida a diligência probatória ordenada no despacho recorrido

O recorrente considera que a diligência probatória ordenada no despacho recorrido não deveria ter sido deferida por ser extemporânea.
Como fundamento desta sua pretensão alega que “as diligências probatórias deverão ser requeridas nos respectivos articulados ou em sede de audiência prévia (art.º 552.º e 598.º, do C.P.C.), dispondo ainda o artigo 423.º, do C.P.C. que “1 – Os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes” e ainda “3 - Após o limite temporal previsto no número anterior, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior.”.
Ora, as diligências requeridas, pela Recorrida não decorrem de nenhuma necessidade probatória superveniente, designadamente suscitadas pela discussão da causa em curso e muito menos do depoimento de parte do aqui Recorrente.
Tais diligências podiam e deviam ter sido requeridas (se não em momento anterior), aquando do envio das informações bancárias, posto que a Recorrida dispunha então dos elementos a tanto necessários, conhecida que era a versão das partes, expressa nos articulados e demais requerimentos.
(...)
Assim, não tendo a Recorrida justificado o requerido com a respectiva necessidade superveniente, fundamentada em factos, devidamente alegados e demonstrando a sua essencialidade face aos temas de prova, deveria o requerido ter sido considerado manifestamente infundado e extemporâneo.
Esta argumentação jurídica faz todo o sentido para uma situação em que o tribunal se limita a apreciar um requerimento probatório apresentado por uma parte no processo.
Nessas situações, há efetivamente que convocar e aplicar as normas processuais relativas aos momentos adequados para apresentar e requerer os meios de prova, designadamente as normas que o recorrente invoca.
Porém, no caso em apreço, o tribunal não ordenou a diligência probatória por a parte ter apresentado um requerimento nesse sentido, antes ordenou a diligência ao abrigo do princípio do inquisitório consagrado no art. 411º do CPC.
Com efeito, dispõe o citado art. 411º que incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.
Quando o juiz, invocando expressamente o princípio do inquisitório consagrado no art. 411º, ordena a realização de uma diligência probatória porque a considera necessária para apurar um dado facto, fá-lo para além ou independentemente de qualquer requerimento apresentado pela parte nesse sentido. A parte pode ter apresentado um requerimento a pedir ou sugerir a realização da diligência probatória, como, aliás, sucedeu no caso concreto. Porém, o fundamento de determinação da diligência não é o requerimento que a parte apresentou, mas antes o poder-dever que sobre o juiz impende de ordenar, realizar ou ordenar todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio.
O funcionamento do princípio do inquisitório pressupõe precisamente que a parte não apresentou no momento processual adequado o pertinente requerimento probatório, pois, se o tivesse feito, a diligência seria realizada na sequência desse requerimento e não por via do princípio do inquisitório.
Como tal, não tem qualquer pertinência jurídica a argumentação apresentada pelo recorrente no sentido de que a diligência ordenada devia ter sido indeferida por ter sido requerida intempestivamente, visto que a mesma foi ordenada ao abrigo do princípio do inquisitório.
Improcede, assim, esta questão recursória.
*
III - Inadmissibilidade do despacho recorrido por incidir sobre matéria relativamente à qual se encontra esgotado o poder jurisdicional

Dispõe o art. 613º, nº 1, do CPC (diploma ao qual pertencem todas as normas subsequentemente citadas sem menção de diferente proveniência) que, proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.
Esta norma é aplicável aos despachos, com as necessárias adaptações, por força do estatuído no nº 3 do art. 613º.
O princípio do esgotamento do poder jurisdicional justifica-se pela necessidade de evitar a insegurança e incerteza que adviriam da possibilidade de a decisão ser alterada pelo próprio tribunal que a proferiu, funcionando como um obstáculo ou travão à possibilidade de serem proferidas decisões discricionárias e arbitrárias.
Assim, uma vez prolatada uma decisão, “o tribunal não a pode revogar, por perda de poder jurisdicional. Trata-se, pois, de uma regra de proibição do livre arbítrio e discricionariedade na estabilidade das decisões judiciais. (...) Graças a esta regra, antes mesmo do trânsito em julgado, uma decisão adquire com o seu proferimento um primeiro nível de estabilidade interna ou restrita, perante o próprio autor da decisão” (Rui Pinto in CPC Anotado, Vol. II, pág. 174).
Como já referia Alberto dos Reis em anotação ao anterior art. 666º, correspondente ao atual 613º, o princípio do esgotamento do poder jurisdicional justifica-se por uma razão de ordem doutrinal e por uma razão de ordem pragmática.
Razão doutrinal: o juiz, quando decide, cumpre um dever – o dever jurisdicional – que é a contrapartida do direito de acção e de defesa. Cumprido o dever, o magistrado fica em posição jurídica semelhante à do devedor que satisfaz a obrigação. Assim como o pagamento e as outras formas de cumprimento da obrigação exoneram o devedor, também o julgamento exonera o juiz; a obrigação que este tinha de resolver a questão proposta, extinguiu-se pela decisão. E como o poder jurisdicional só existe como instrumento destinado a habilitar o juiz a cumprir o dever que sobre ele impende, segue-se lògicamente que, uma vez extinto o dever pelo respectivo cumprimento, o poder extingue-se e esgota-se.
A razão pragmática consiste na necessidade de assegurar a estabilidade da decisão jurisdicional. Que o tribunal superior possa, por via do recurso, alterar ou revogar a sentença ou despacho, é perfeitamente compreensível; que seja lícito ao próprio juiz reconsiderar e dar o dito por não dito, é de todo intolerável, sob pena de se criar a desordem, a incerteza, a confusão” (Alberto dos Reis in CPC Anotado, Vol. V, pág. 127).
Portanto, da extinção do poder jurisdicional decorre esta consequência irrecusável: o juiz não pode, motu proprio, voltar a pronunciar-se sobre a matéria apreciada (cf. Acórdão da Relação de Coimbra, de 17.4.2012, Relator Henrique Antunes, in www.dgsi.pt).
Prolatada a decisão, e ressalvados os casos de retificação, reforma ou suprimento de nulidades, por força do esgotamento do poder jurisdicional fica vedada a possibilidade de essa decisão ser alterada pelo próprio tribunal que a proferiu, apenas sendo possível obter a sua alteração através de recurso que dela venha ser interposto.
Como tal, podemos afirmar que da “extinção do poder jurisdicional consequente ao proferimento da decisão decorrem dois efeitos: um positivo, que se traduz na vinculação do tribunal à decisão que proferiu; outro negativo, consistente na insusceptibilidade de o tribunal que proferiu a decisão tomar a iniciativa de a modificar ou revogar” (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa in CPC Anotado, 2ª ed., Vol. I, pág. 762).
A intangibilidade da decisão proferida é, naturalmente, limitada pelo respetivo objeto no sentido de que a extinção do poder jurisdicional só se verifica relativamente às concretas questões sobre que incidiu a decisão.
Se o tribunal, em desrespeito do comando ínsito no art. 613º, nº 1 (e fora dos ressalvados casos de retificação, reforma ou suprimento de nulidades) proferir outra decisão que incida sobre a mesma matéria que já foi anteriormente apreciada, a nova decisão que padeça de tal vício é juridicamente inexistente e não vale como decisão jurisdicional por ter sido proferida em momento e circunstâncias em que o aludido poder jurisdicional já se tinha esgotado (cf. neste sentido, Acórdão do STJ, de 6.5.2010, Relator Álvaro Rodrigues, in www.dgsi.pt).
Assentes nestas premissas e aplicando-as ao caso concreto, vejamos, então, se com a prolação dos despachos de 16.4.2021, 12.5.2021 e 25.5.2021 ficou, ou não, esgotado o poder jurisdicional no que toca à possibilidade de ordenar a junção aos autos dos extratos bancários da conta titulada pela ex-cônjuge do réu AA, relativos aos meses de .../.../2023 a dezembro de 2019, para a qual foi transferida, em 07.08.2019, a quantia de € 34.750,00, diligência esta que foi determinada no despacho recorrido.
O despacho de 16.4.2021, na parte que aqui releva, tem o seguinte teor:
Quanto ao requerimento da autora com a referência ...32 (fls. 252), considerando a resposta do réu AA com a referência ...69 (fls. 276), de onde resulta que o dinheiro foi transferido para a conta de ..., antes de mais, notifica-se a autora para, em 5 dias, esclarecer se tal informação basta, ou se pretende ainda a notificação do Banco 2....”
O despacho de 12.5.2021 tem o seguinte teor:
“Requerimento que antecede – Visto. Notifique o autor para que esclareça, em 2 dias, se a informação prestada pelo réu BB basta ou se pretende qualquer outra informação, e neste caso, qual, atendendo ao requerimento de 22.3.2021.”

O despacho de 25.5.2021, na parte que aqui releva, tem o seguinte teor:
“Requerimento da autora com a referência electrónica ...88 – Visto.
Respostas dos réus pelos requerimentos com as referências ...88 e ...64 – Visto.
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A autora pede que:
1 -Seja admitido o depoimento de parte de ambos os réus, aos factos que indica discriminadamente.
2 – Se notifique o réu AA para esclarecer qual a relação que mantém com ... e qual a sua morada.
3 – Se admita o aditamento da referida CC ao rol de testemunhas, quando faltam menos de 20 dias para a realização da audiência de julgamento.
Vejamos.
Começando pelo depoimento de parte, como bem refere a autora, o Tribunal já indeferiu o pedido de depoimento de parte por decisão transitada em julgado.
Por outro lado, conforme decorre do artigo 552.º, n.º 6 do Código de Processo Civil, os meios de prova são apresentados com a petição inicial e podem ser alterados nos termos dos artigos 598.º do mesmo código (ou seja, na audiência prévia se for realizada, ou provocando a realização da audiência prévia nos termos do art. 593.º, n.º 3).
Tais prazos para apresentar e alterar os meios de prova há muito que se esgotaram.
Veio a autora dizer que os documentos juntos e os novos desenvolvimentos do processo justificam o novo pedido de prestação de depoimento de parte.
Ora, sem prejuízo do que é dito pela autora, não podemos concordar com a mesma, pois os documentos juntos não trouxeram quaisquer desenvolvimentos que nos levem a concluir que há falta de colaboração dos réus com a descoberta da verdade material (o dinheiro saiu da conta do réu BB e entrou na conta do réu AA e depois saiu daqui para a conta de um terceiro (CC). Os réus não colaboraram efectivamente aquando não permitiram que os Bancos prestassem as informações pretendidas pela autora, mas depois do sigilo bancário que foi levantado pelo Tribunal da Relação de Guimarães, os réus não obstaculizaram a nada e até prestaram a informação que a autora pretendia sobre a proveniência do dinheiro que entrou na conta do réu BB.
Pelo exposto, não há qualquer fundamento para admitir, neste momento, os depoimentos de parte que já foram indeferidos por decisão transitada em julgado.
No que concerne ao pedido de notificação ao réu AA sobre qual a relação que mantém com CC e o seu aditamento ao rol de testemunhas, também não vemos qualquer fundamento.
Note-se que o objecto da acção é saber se o alegado mútuo e a emissão da letra de câmbio são simulados. Não é objecto destes autos saber qual foi o destino que o réu AA deu ao dinheiro que recebeu do réu BB (a menos que o dinheiro tivesse regressado à conta deste réu, ou que AA tivesse transferido o dinheiro para BB, para depois este devolver/emprestar o dinheiro aquele). A autora diz que o mútuo e a letra de câmbio são simulados e compete-lhe provar isso, mas isso não acarreta a obrigação do réu AA informar as razões de ter entregue a quantia de €.34.500,00 à dita CC, nem qual a relação que tem com a mesma.
Assim sendo não há fundamento para notificar o réu AA para informar qual a relação que mantém com CC.
Relativamente ao aditamento ao rol de testemunhas, a informação já consta nos autos desde 01.04.2021 (fls. 276), informação essa que foi prestada pelo réu AA, na sequência do pedido dessa mesma informação solicitado pela autora a 08.03.2021 (e sem que para tanto fosse por nós proferido despacho).
Ora, se tal informação sobre a pessoa que recebeu o dinheiro - CC - já consta dos autos desse 01.04.2021, a autora podia, se quisesse, ter pedido o aditamento ao rol de testemunhas cumprindo o prazo legal do art. 598.º, n.º 2 do Código de Processo Civil (pois a audiência está marcada para o próximo dia 28.05.2021).
O que não pode é vir agora, sem qualquer fundamento, pedir o aditamento ao rol, não cumprindo tal prazo, e pretendendo alterar o seu requerimento probatório – que deveria ter sido alterado até à fase do despacho saneador/audiência prévia – a pouco mais de duas semanas da data designada para a realização da audiência de julgamento.
Assim, por extemporaneidade, não se admite o aditamento ao rol.

Por todo o exposto, decide-se:
1) Não admitir os requeridos depoimentos de parte, por falta de fundamento legal, extemporaneidade e por haver já uma decisão proferida nos autos e transitada em julgado.
2) Indeferir, por falta de fundamento legal, a notificação do réu EE para informar qual a relação que existe com a CC.
3) Indeferir, por extemporaneidade, o aditamento ao rol de testemunhas.”
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Finalmente, os despachos proferidos na audiência de 6.7.2022, que têm de ser interpretados e analisados conjugadamente, têm o seguinte teor:
Quanto ao requerido pela autora no seu requerimento apresentado nos autos em 06/05/2022:
Face à prova entretanto produzida nos autos, importa ainda apurar cabalmente, designadamente para efeitos do ponto 7) dos temas de prova enunciados, o destino do montante de € 34.750,00 que foi entregue por cheque do réu BB ao réu AA, sendo certo que, dos depoimentos de parte prestados, não resultou qualquer confissão da alegada matéria.
Face ao exposto, e com vista a apurar cabalmente o destino dado a tal quantia e, tendo em consideração o referido pelo réu AA no seu depoimento de parte quanto a esse destino, ao abrigo do disposto no artigo 411º do C.P.C., determino que se notifique o réu AA nos exatos termos requeridos pela autora no seu requerimento de 06.05.2022.”
“Em face do ora comunicado pelo Il. Mandatário do 1º réu, determino que se oficie diretamente ao banco em causa para que preste a informação solicitada no referido requerimento de 06.05.2022, ou seja, a junção aos autos dos extratos bancários da conta titulada pela ex-cônjuge do réu AA, relativos aos meses de .../.../2023 a dezembro de 2019, para a qual foi transferida, em 07.08.2019, a quantia de € 34.750,00.”
Comparando os despachos de 16.4.2021, 12.5.2021 e 25.5.2021 com os despachos proferidos em 6.7.2022, designadamente com o despacho recorrido, conclui-se que as matérias apreciadas e decididas não são as mesmas. Designadamente, o despacho de 25.5.2021 não decidiu o que o recorrente invoca nas suas alegações, decidiu apenas o que consta do seus nºs 1 a 3, ou seja, que os depoimentos de parte não deviam ser admitidos, que o réu AA não tinha que informar qual a sua relação com CC e que o aditamento ao rol de testemunhas não era admissível.
O demais que o recorrente invoca sobre o que consta do despacho de 25.5.2021 é matéria relativa à fundamentação e argumentação expendidas com vista a sustentar estas três decisões.
O princípio do esgotamento do poder jurisdicional impede apenas que se decida uma segunda vez a mesma matéria, não abrangendo a fundamentação que consta da decisão.
Acresce ainda que nessa fundamentação, se é certo que se refere que “o objecto da acção é saber se o alegado mútuo e a emissão da letra de câmbio são simulados. Não é objecto destes autos saber qual foi o destino que o réu AA deu ao dinheiro que recebeu do réu BB” não é menos certo que logo de seguida se faz uma ressalva a esta afirmação dizendo “a menos que o dinheiro tivesse regressado à conta deste réu, ou que AA tivesse transferido o dinheiro para BB, para depois este devolver/emprestar o dinheiro aquele”. Por outro lado, estas afirmações são feitas num dado contexto, mais concretamente para efeitos de aferir da obrigação do réu AA informar as razões de ter entregue a quantia de € 34.500,00 a CC e a relação que tem com a mesma.
Por isso, não se podem descontextualizar as aludidas afirmações feitas em sede de fundamentação para delas extrair a ilação de que o tribunal está impedido de aferir o destino dos € 34 500, tanto mais que esse destino se mostra absolutamente relevante face ao tema da prova nº 7 que consiste em apurar “se o réu BB nunca entregou ao réu AA, que também não recebeu, a quantia de € 34 750 em junho de 2019”.
De lembrar que quando estão em causa situações de simulação, como sucede no caso em apreço, é normal que as deslocações patrimoniais sejam efetuadas de forma indireta, por intermédio de terceiros, em várias tranches, e não na totalidade, recorrendo-se a diversos subterfúgios precisamente para que se deixe o menor rasto possível de forma a dificultar a comprovação da existência do ato dissimulado.
Assim, pelos motivos expostos, considera-se que o poder jurisdicional não se mostra esgotado com a prolação dos despachos de 16.4.2021, 12.5.2021 e 25.5.2021, não sendo, por esta via, inadmissível a prolação do despacho recorrido que ordenou a junção aos autos dos extratos bancários da conta titulada pela ex-cônjuge do réu AA, relativos aos meses de .../.../2023 a dezembro de 2019, para a qual foi transferida, em 07.08.2019, a quantia de € 34.750,00.
Improcede, assim, esta questão recursória.

IV – Verificação dos pressupostos legais previstos no art. 411º do CPC para que seja ordenada a diligência probatória

O recorrente considera que, no caso, não estão reunidos os pressupostos legais para que possa ser determinada a diligência probatória de junção de elementos bancários, ao abrigo do disposto no art. 411º, do CPC, e entende que a decisão que a ordenou violou:
- O princípio do dispositivo (art.º 3.º e 5.º, do C.P.C.), uma vez que as partes dispõem do processo e da relação jurídica material;
- O princípio da autorresponsabilidade das partes, uma vez que são estas quem conduzem o processo por sua conta e risco, devendo deduzir e fazer valer os meios de ataque e de defesa que lhes correspondam (incluindo as provas), suportando uma decisão adversa, caso omitam algum. A negligência ou inépcia das partes redunda inevitavelmente em prejuízo delas porque não pode ser suprida pela iniciativa e actividade do juiz.
(...)
- O princípio da eventualidade ou da preclusão, na medida em que há ciclos processuais rígidos, cada um com a sua finalidade própria e formando compartimentos estanques, por isso os actos (maxime as alegações de factos ou meios de prova) que não tenham lugar no ciclo próprio ficam precludidos;
- O princípio da igualdade das partes (art.º 4, do C.P.C.), consistindo no facto de as partes serem postas no processo em perfeita paridade de condições, desfrutando, portanto, idênticas possibilidades de obter a justiça que lhes seja devida.

Vejamos, então, se a junção de extratos bancários podia, ou não, ser ordenada pelo tribunal a quo ao abrigo do princípio do inquisitório.
Como já acima referimos, o princípio do inquisitório encontra-se consagrado no art. 411º, o qual dispõe que incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.
E é-lhe lícito conhecer: a) dos factos articulados pelas partes que constituem a causa de pedir e as exceções invocadas, b) dos factos instrumentais que resultem da instrução da causa, c) dos factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa (desde que sobre eles as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciar) e d) dos factos notórios e daqueles de que o tribunal tenha conhecimento por virtude do exercício das suas funções (art. 5º, nºs 1 e 2).
Portanto, não obstante o princípio do dispositivo consagrado no art. 5º, nº 1, segundo o qual é às partes que compete a alegação dos factos essenciais que integram a causa de pedir e as exceções invocadas, o juiz pode ainda conhecer dos restantes factos enunciados, desde que verificadas as condições referidas, ainda que os mesmos não tenham sido alegados pelas partes.
E quanto a esses factos de que licitamente pode conhecer, a lei processual atribui ao juiz o poder-dever de determinar as diligências probatórias que se revelem necessárias ao apuramento da verdade.
Com efeito, o tribunal não tem o poder discricionário de ordenar as diligências referidas no art. 411º, antes lhe incumbe realizar ou ordenar essas diligências, sempre que elas se revelem necessárias à descoberta da verdade e à justa composição do litígio, impondo o princípio em questão ao juiz um verdadeiro poder vinculado.
No direito processual civil vigoram, desde há muito, os princípios do dispositivo e do inquisitório. Todavia, o equilíbrio entre ambos tem vindo a alterar-se ao longo do tempo e o legislador tem conferido sucessivamente maior prevalência ao princípio do inquisitório, com a consequente compressão do princípio do dispositivo.
É sabido que a filosofia subjacente ao atual Código de Processo Civil visa assegurar a prevalência do fundo sobre a forma, estabelecendo mecanismos que permitam que a tramitação processual tenha a maleabilidade e flexibilidade necessárias para que se consiga alcançar a verdade material e a concretização dos direitos das partes.
Tal filosofia começou a ser introduzida com a reforma do Código de Processo Civil de 1961, operada com o DL nº 329-A/95, de 12/12, em cujo preâmbulo se refere que as linhas mestras do processo assentam, designadamente na “garantia de prevalência do fundo sobre a forma, através da previsão de um poder mais interventor do juiz…” e que “visa, deste modo, a presente revisão do Código de Processo Civil torná-lo moderno, verdadeiramente instrumental no que toca à perseguição da verdade material, em que nitidamente se aponta para uma leal e sã cooperação de todos os operadores judiciários, (...) não sendo, numa palavra, nem mais nem menos do que uma ferramenta posta à disposição dos seus destinatários para alcançarem a rápida, mas segura, concretização dos seus direitos”. Refere-se ainda que o processo civil terá que ser perspetivado “…como um modelo de simplicidade e de concisão, apto a funcionar como um instrumento, como um meio de ser alcançada a verdade material pela aplicação do direito substantivo, e não como um estereótipo autista que a si próprio se contempla e impede que seja perseguida a justiça, afinal o que os cidadãos apenas pretendem quando vão a juízo” (sublinhados nossos).
Na aludida reforma, procedeu-se a “uma ponderação entre os princípios do dispositivo e da oficiosidade, em termos que se consideram razoáveis e adequados” e eliminaram-se as restrições excecionais que à data vigoravam “no que se refere à limitação do uso de meios probatórios, quer pelas partes quer pelo juiz, a quem, deste modo, incumbe realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente e sem restrições, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.”
E, no capítulo da produção dos meios de prova, a aludida reforma “procurou introduzir alterações significativas, com vincados apelos à concretização do princípio da cooperação, redimensionado não só em relação aos operadores judiciários como às instituições e cidadãos em geral, adentro de uma filosofia de base de obtenção, em termos de celeridade, eficácia e efectivo aproveitamento dos actos processuais, de uma decisão de mérito, o mais possível correspondente, em termos judiciários, à verdade material subjacente” (sublinhados nossos).
A reforma em questão constituiu uma “viragem histórica e atualizou o direito adjetivo civil português”, como referido na exposição de motivos da Proposta de Lei nº 113/XII, que deu origem ao Código de Processo Civil vigente, onde se considera que essa reforma “erigiu corretamente os princípios orientadores do moderno processo civil”.
Porém, entendeu-se ser necessário ir mais longe e completar o que nessa reforma se iniciou, sempre tendo por base, entre outros, os princípios da verdade material e do primado da prevalência do mérito ou da substância sobre a forma, salientando-se que “mantém-se e reforça-se o poder de direção do processo pelo juiz e o princípio do inquisitório (de particular relevo na eliminação das faculdades dilatórias, no ativo suprimento da generalidade da falta de pressupostos processuais, na instrução da causa e na efetiva e ativa direção da audiência” (sublinhado nosso).
Esclarece a aludida exposição de motivos que se prevê “um novo paradigma para a ação declarativa e executiva”, imbuído dos aludidos princípios- a par de outros que aqui não iremos desenvolver - visando-se “viabilizar e conferir conteúdo útil aos princípios da verdade material, à cooperação funcional e ao primado da substância sobre a forma”.
Termina a aludida exposição dizendo que “há razões sérias para esperar que, por via da presente reforma, o processo civil português se abra à modernidade e se liberte de amarras perfeitamente desajustadas e desfasadas, pois que juízes, advogados, cidadãos e empresas, passarão a ter em sua mão o instrumento adequado para obter uma decisão em prazo razoável mediante um processo equitativo, como nos impõe a nossa lei fundamental.
O princípio do inquisitório adquire especial acuidade e relevância na fase da instrução do processo, uma vez que o tribunal não está limitado aos elementos probatórios apresentados pelas partes, tendo o poder-dever de procura da verdade material, correspondendo esta àquilo que efetivamente ocorreu na realidade, impendendo sobre o juiz a obrigação de reunir toda a prova que seja necessária à formação completa e esclarecida da sua convicção.
Esta regra é transversal a toda a fase de instrução da ação, valendo para qualquer um dos meios de prova legalmente admissíveis.
Porém, como referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa (in CPC Anotado, 2ª ed., Vol. I, pág. 503) “cumpre ao juiz exercitar a inquisitoriedade, preservando o necessário equilíbrio de interesses, critérios de objectividade e uma relação de equidistância e de imparcialidade”.
E, pese embora o primado da prevalência da substância sobre a forma e as finalidades de busca da verdade material e justa composição do litígio, importa não esquecer que no processo civil vigoram outros princípios que não podem ser postergados e que com aqueles têm de conviver de forma equilibrada, designadamente, os princípios do dispositivo, da preclusão e da autorresponsabilização das partes.
O princípio do inquisitório deve orientar-se por padrões mínimos de objetividade levando-se em consideração que “o equilíbrio do nosso quadro legal resulta da intersecção das duas dimensões: por um lado, o ónus da iniciativa probatória das partes; por outro, o poder-dever do juiz em sede instrutória. Daqui resulta o seguinte: jamais as partes podem encontrar naquele poder-dever um pretexto para negligenciarem a sua iniciativa probatória; jamais o juiz pode ver naquela iniciativa probatória um alibi para a sua própria inércia. O critério firmado no art. 411º coloca a questão ao nível da necessidade das diligências probatórias para o apuramento da verdade e para a justa composição do litígio. Verificando-se o pressuposto da necessidade, o juiz tem um dever oficial de agir. Não se verificando o pressuposto, inexistirá aquele dever” (Paulo Pimenta in Processo Civil Declarativo, 3ª ed., pág. 389, nota 920)
Este é um equilíbrio muito difícil de gerir pois nem é aconselhável que se façam demasiadas concessões às sugestões probatórias das partes, pois tal acarreta o risco de transformar o juiz num instrumento de escape ao incumprimento dos ónus probatórios das partes, nem é aconselhável que se adote uma postura demasiada rígida inviabilizando que se alcance a verdade material esgrimindo como argumento o princípio de que cabe às partes o ónus probatório.
Este ponto de equilíbrio há-se procurar-se e encontrar-se sopesando o confronto dos aludidos princípios no caso concreto, considerando-os com as suas particulares especificidades, e não esquecendo que o exercício do poder-dever conferido pelo princípio do inquisitório não pode ser uma forma de suprimento oficioso de comportamentos groseira e indesculpavelmente negligentes em violação do princípio da autorresponsabilidade das partes.
Revertendo ao caso concreto, verifica-se que foi ordenada a junção dos extratos bancários da conta titulada por CC, ex-cônjuge do réu AA, relativos aos meses de .../.../2023 a dezembro de 2019, para a qual foi transferida, em 07.08.2019, a quantia de € 34.750,00.
Resulta das informações que já foram prestadas nos autos, que a aludida quantia foi efetivamente transferida em 7.8.2019 da conta do réu AA para a conta da sua ex-cônjuge CC.
Efetivamente, não é objeto dos autos saber qual foi o concreto destino que AA deu ao dinheiro em questão. Mas é objeto dos autos, constituindo o tema de prova nº 7, saber “se o réu BB nunca entregou ao réu AA, que também não recebeu, a quantia de € 34 750 em junho de 2019” sendo o objeto do litígio apurar “se o mútuo de € 34 750,00 realizado pelo réu BB ao réu AA, em Junho de 2019, e se a emissão da letra de câmbio no valor de € 39.962,00 e com vencimento em 25.7.2019, pelo réu AA e a sua entrega ao réu BB, foram simulados”.
Ora, quando estão em causa atos simulados, é normal que as deslocações patrimoniais sejam efetuadas de forma indireta, por intermédio de terceiros, normalmente pessoas próximas dos envolvidos, designadamente, amigos, familiares, trabalhadores, etc.; e é normal que as deslocações patrimoniais sejam efetuadas em várias tranches, e não na totalidade, recorrendo-se a diversos subterfúgios precisamente para que se deixe o menor rasto possível de forma a dificultar a comprovação da existência do ato dissimulado.
Por conseguinte, o destino que o réu AA deu ao à aludida quantia de € 34 750, se não é relevante em si mesmo ou diretamente, já é relevante indiretamente na medida em que pode ser apto a permitir a conclusão de que ocorreu uma simulação.
Tendo o dinheiro saído da conta do réu AA e ingressado na conta de CC é importante e relevante apurar qual o percurso seguido por esse dinheiro pois o mesmo pode permitir concluir que houve uma simulação e que em termos reais verdadeiramente não ocorreu nenhum mútuo, por não ter ocorrido qualquer entrega de dinheiro, mas tão só uma mera aparência de entrega, tendo o valor regressado, por alguma via, novamente à esfera do réu BB.
Portanto, contrariamente ao defendido pelo recorrente, a prova ordenada é abstratamente idónea e apta, de um ponto de vista objetivo, a comprovar o tema de prova nº 7.
Repare-se que a finalidade da diligência não é saber qual o concreto destino que CC deu ao dinheiro, mas sim seguir o percurso do dinheiro por forma a apurar se ele regressou ao património do réu BB, o que são realidades não coincidentes, embora para apurar a segunda se tenha de averiguar a primeira.
O facto de CC não ser parte nos autos não constitui óbice à realização da diligência ordenada pois, nos termos do art. 417º, nº 1, todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados, ressalvados os casos em que a recusa é legítima e que se encontram enunciados no nº 3.
Assim, a invocação de que se trata de elementos relativos a um terceiro, que não é parte na causa, não releva para efeitos de impedir a determinação da diligência probatória ordenada.
O recorrente argumenta que a diligência foi ordenada com um âmbito excessivo e desproporcional pois refere-se a um terceiro e bastaria aceder a informação bancária que declarasse “se entre a dita CC e o Co-R. BB, no período solicitado aconteceu algum movimento a débito para crédito deste último, na identificada conta bancária”.
Consideramos que, no caso concreto, estes argumentos não permitem restringir o âmbito da diligência. É verdade que a falecida CC é terceira, no sentido de que não é parte na causa. Porém, não era uma pessoa absolutamente alheia e distanciada da situação, pois foi cônjuge do réu AA. Esta relação próxima e especial que teve com o réu AA, aliada à circunstância de a quantia alegadamente mutuada ter ingressado na sua conta bancária e às regras da experiência comum, segundo as quais, quando se pretende “ocultar” bens ou “dissimular” atos, se recorre a familiares próximos (cônjuges, pais, filhos, netos, irmãos, etc.), amigos ou outras pessoas com quem se mantém uma relação de confiança as quais surgem como “intermediários” quanto ao verdadeiro destino dos bens, faz com que seja importante averiguar a totalidade dos movimentos bancários e não apenas aqueles que respeitem unicamente a transferências diretas entre ... e BB.
Na verdade, pensamos que só com a análise da totalidade dos movimentos efetuados nessa conta no aludido período se poderá chegar mais perto da verdade material. E dizemos mais perto porque, mesmo com essas informações, essa verdade poderá não vir a ser alcançada. Todavia, havendo a possibilidade de realizar uma diligência probatória que é objetivamente apta e idónea a seguir o percurso do dinheiro e sendo este percurso, por sua vez, relevante para aquilatar da existência de simulação, a qual, em regra, requer sempre uma prova indireta, considera-se que o juiz, por força do princípio do inquisitório, se encontra vinculado ao poder-dever de ordenar as diligências necessárias para esse efeito, designadamente a concreta junção dos extratos bancários que determinou.
Por conseguinte, considera-se que a diligência ordenada tem fundamento legal no princípio do inquisitório consagrado no art. 411º, do CPC, e não se mostra excessiva nem desproporcional, perante a finalidade que se visa alcançar.

V – Violação do direito de reserva à intimidade da vida privada

O recorrente considera que a junção dos extratos bancários viola o direito à reserva da intimidade da vida privada com consagração constitucional, mormente no art. 26º, nº 1, da CRP.
Dispõe o normativo citado que a todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação.
Acrescenta o nº 2 do mesmo artigo que a lei estabelecerá garantias efetivas contra a obtenção e utilização abusivas, ou contrárias à dignidade humana, de informações relativas às pessoas e famílias.
A nível civilístico, dispõe o art. 80º, do CC, que todos devem guardar reserva quanto à intimidade da vida privada de outrem, sendo a extensão da reserva definida conforme a natureza do caso e a condição das pessoas.
Em conformidade com aquela imposição constitucional, embora o art. 417, nº 1 imponha a todas as pessoas, ainda que não sejam parte na causa, o dever de cooperação para a descoberta da verdade, designadamente facultando o que lhes for requisitado, a al. b) do nº 3 estabelece situações de exceção a esse princípio geral, estatuindo que a recusa é, porém, legítima se a obediência importar a intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.
O legislador optou por não definir o que seja a intimidade da vida privada, recorrendo a uma cláusula geral, sem qualquer tipo de exemplificação.
No entanto, podemos dizer que a vida privada compreende um conjunto de atividades situações, atitudes ou comportamentos individuais que não têm relação com a vida pública, que estão desta separados e que estão estritamente ligados à vida individual e familiar da pessoa (Luísa Neto in CC Anotado, Coord. Ana Prata, 2ª ed., Vol. I, pág. 123).
Concretizando um pouco mais e recorrendo às palavras do acórdão da Relação do Porto, de 11.4.2019, Relator Miguel Baldaia de Morais (in www.dgsi.pt)em termos gerais tem-se entendido que a reserva da vida privada que a lei protege compreende os actos que devem ser subtraídos à curiosidade pública, por naturais razões de resguardo e melindre, como os sentimentos, os afectos, os costumes da vida e as vulgares práticas quotidianas, as dificuldades próprias da difícil situação económica e as renúncias que implica e até por vezes o modo particular de ser, o gosto pessoal de simplicidade que contraste com certa posição económica ou social; os sentimentos, acções e abstenções que fazem parte de um certo modo de ser e estar e que são condição da realização e do desenvolvimento da personalidade. Tratar-se-á, numa delimitação possível ou de simples referência de critérios, dos sectores ou acontecimentos da vida de cada indivíduo relativamente aos quais é legítimo supor que a pessoa manifeste uma exigência de discrição como expressão de um direito ao resguardo.
A notificação do banco para que forneça os extratos da conta bancária de uma pessoa é suscetível de contender com a reserva da vida privada, entendida esta com o alcance e noção que deixámos explanado. É precisamente por isso que as informações bancárias se encontram sujeitas a sigilo bancário.
Neste mesmo sentido, refere o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/02/2008 (in www.dgsi.pt) que “o segredo visa também a proteção dos interesses dos clientes da banca, para quem o segredo constitui a defesa da discrição da sua vida privada, tendo em conta a relevância que a utilização de contas bancárias assume na vida moderna, em termos de refletir aproximadamente a “biografia” de cada sujeito, de forma que o direito ao sigilo bancário se pode ancorar no direito à reserva da intimidade da vida privada, previsto no art. 26º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa. Porém, esse direito ao sigilo, embora com cobertura constitucional, não é um direito absoluto, até porque, pela sua referência à esfera patrimonial, não se inclui no círculo mais íntimo da vida privada das pessoas, embora com ele possa manter relação estreita. Pode, pois, ter que ceder perante outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, cuja tutela imponha o acesso a informações cobertas pelo segredo bancário.
A par do direito à reserva da intimidade da vida privada consagrado no art. 26º, a CRP também consagra, no art. 20º, o direito de acesso aos tribunais para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos e o direito a um processo equitativo. Estes direitos supõem naturalmente a realização da justiça com a consequente e conatural procura da verdade material.
Temos assim uma situação de colisão de direitos constitucionalmente consagrados que importa resolver.
Consabido que os direitos fundamentais, enquanto princípios que são, não têm carácter absoluto, sendo a sua relatividade uma das suas principais características, é inquestionável que, em caso de colisão entre eles, impõe-se sopesar cada um dos direitos por forma a decidir qual deles deve prevalecer e assegurar a sua harmonização, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros e realizando, se necessário, uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada um.”
Em caso de colisão de direitos, a chave para uma tomada de decisão por parte do juiz sobre qual dos direitos deve prevalecer e do modo como devem ser harmonizados os direitos em causa está no princípio da proporcionalidade, consagrado na parte final do nº 2 do art. 18º da Constituição da República Portuguesa, que, por via dos seus três subprincípios da adequação, da exigibilidade e da justa medida, fornece uma estrutura formal tripartida à ponderação, a fazer em concreto e casuisticamente, entre os fins prosseguidos pelas normas, os bens, interesses e valores em conflito, as medidas possíveis e os seus efeitos, por forma a estabelecer uma relação equilibrada entre os direitos em confronto”(acórdão do STJ, de 18.10.2018, e respetivo sumário, Relatora Rosa Tching, in www.dgsi.pt).
Ora, no caso concreto, depois de realizadas todas as diligências probatórias, a julgadora permaneceu na dúvida quando ao destino do montante de € 34.750,00 que foi entregue por cheque do réu BB ao réu AA, destino esse que importa apurar cabalmente, designadamente para efeitos do ponto 7) dos temas de prova. Com esta finalidade, ou seja, com vista à busca da verdade material, ordenou a junção dos extratos da conta bancária de CC para onde, em 7.8.2019, a aludida quantia foi transferida pelo réu AA, ex-cônjuge daquela, sendo tais extratos limitados ao período temporal de .../.../2023 a dezembro de 2019.
No confronto entre os interesses públicos e preponderantes de boa administração da justiça e de efetiva realização dos fins da atividade judicial, nos quais se integra a justa composição do litígio e a busca da verdade material, com o interesse de reserva da intimidade da vida privada no sentido de não divulgação de informações bancárias, este último tem de ceder e ser comprimido na medida necessária e proporcional para possibilitar a satisfação do primeiro, considerando-se que a diligência que foi ordenada, com a sua concreta extensão e depois de esgotadas todas as restantes diligências probatórias e sendo ainda certo que se está perante uma situação de alegada simulação em que é muito difícil obter uma prova direta, sendo necessário recorrer a indícios e presunções para conseguir demonstrar a sua ocorrência, é uma diligência que respeita os aludidos princípios da adequação, da exigibilidade e da justa medida.
Como tal, a diligência ordenada está justificada e é admissível pelas razões expostas, ou seja, por ser necessária, adequada e proporcional à realização da justiça e à busca da verdade material.
Improcede assim este fundamento de recurso.
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Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º, do CPC, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que a elas houver dado causa, entendendo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção, ou, não havendo vencimento, quem do processo tirou proveito.
Tendo o recurso sido julgado improcedente na totalidade, é o recorrente responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com a disposição legal citada.

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando o despacho recorrido.
Custas da apelação pelo recorrente.
Notifique.
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Guimarães, 15 de dezembro de 2022.

(Relatora) Rosália Cunha
(1ª Adjunta) Lígia Venade
(2º Adjunto) Fernando Barroso Cabanelas.